Monday, August 11, 2008

Paralipômeno substantivo

Assim a palavra peixe é um substantivo comum, concreto, masculino. A palavra saudade é um substantivo comum, abstrato, feminino. A palavra pedra é um substantivo comum concreto feminino. A palavra amor é um substantivo comum abstrato masculino. A palavra Deus é um substantivo próprio abstrato masculino. A palavra Índia é um substantivo próprio concreto feminino. A palavra Japão é um substantivo próprio, concreto, masculino. A palavra Isabel é um substantivo próprio abstrato feminino. A palavra língua é uma palavra linda. A palavra palavra é uma palavra substantivo(a) feminino(a). A palavra assim

Tuesday, August 05, 2008

Série mini-resenhas III - O azul do filho morto

MIRISOLA, Mirisola. O azul do filho morto. São Paulo: Editora 34, 2002, 176 p.

Isabel Pires

Os escritos de Marcelo Mirisola parecem ser a confirmação de que a lei de Murphy existe mesmo: quando você pensa que tudo está dando errado, as coisas ainda vão piorar. E muito. A saga do herói “mirisoliano” – um narrador que conta tudo em primeiríssima pessoa, testemunha declarada dos mínimos detalhes, até mesmo do “cocozinho amarelo” da avó entrevada –, com sua obsessão por mamilos, não poderia ser mais crua, cruenta e cruel, para se confirmar tão-somente uma existência irremediavelmente sem sentido. Em O azul do filho morto, após as inúmeras lambidas de tapumes e azulejos imundos, visitas aos quartos das empregadinhas e trepadas com putas de luxo ou não, ainda tem a compota do feto azul com olhos de girino, o incêndio da “bela casa de praia com vista para o mar” e a combustão dos fantasmas azuis e alaranjados, ao som do tango Adios Nonino, que Astor Piazzolla compôs para seu pai, e que, com certeza, o filho não nascido do narrador jamais poderia compor-lhe. No entanto, esse narrador parece encontrar algum consolo no “fantasminha boboca metido a sabichão do Machado de Assis”, pois, segundo ele, “pior do que deixar filhos é deixar livros. Os filhos podem esquecê-lo e renegá-lo – a despeito de seu legado, de suas misérias. Até perdoá-lo. Os livros, não. São filhos amaldiçoados (os melhores, evidentemente) e mortos-vivos para sempre”. Como este O azul do filho morto. Será?

Monday, August 04, 2008

Fantasmas da informatização. Observações sobre o Orkut

Isabel Pires


Nesta primeira década do século XXI, início também de um novo milênio, as antigas especulações sobre a essência do ser, a busca da Verdade transcendente e do sentido da existência, as tentativas de compreender a origem das coisas – pilares básicos da filosofia ocidental – cedem cada vez mais lugar à aceitação da dúvida, das incertezas e da ausência de respostas definitivas, num processo iniciado ainda no século XX, o século que talvez passe à história – ou melhor, à História – como o “século das incertezas”, quem sabe até, o “século da desrazão”. Num mundo cada vez mais tecnológico, a ciência abdicou de vez do papel de oferecer respostas, ampliando, ao contrário, o leque das já inúmeras questões.
Cercado por tantos simulacros, cópias, clones, imagens fantasmáticas as mais diversas, fadadas a transformar o ser humano em mero espectro de si mesmo, o indivíduo não mais se preocupa com “conceitos”. Os conceitos do Ser e da Verdade, formulados pela filosofia platônica, e até mesmo o conceito do não-Ser do sofista Górgia, pouco a pouco vão sendo soterrados na poeira do tempo. Diante da possibilidade – tangível para alguns, meramente fantasiosa para outros – dos andróides, diante da realidade dos clones e do espaço virtual surge não um novo conceito, mas um princípio: o princípio do “trans-humano”.
Na sociedade do simulacro, tudo é fantasma. Mas, como não podia deixar de ser, a nova “sociedade do simulacro”, com suas luminosas e fantasmáticas imagens, é a mesma velha sociedade burguesa-capitalista, responsável tanto por expulsar os sombrios fantasmas medievais, exorcizando-os com sua “razão iluminada”, como por engendrar, ainda nos seus primórdios, os novos fantasmas: os fantasmas tecnológicos.
No curso do século XVIII, a introdução da maquinofatura na Inglaterra deu vida ao primeiro fantasma tecnológico – o fantasma da mecanização –, quando as máquinas passaram a substituir, em larga escala, os teares manuais, pondo fim, assim, às guildas de artesãos e a um modo-de-produção que, decididamente, ficou para trás. Essa revolução industrial marcou a entrada definitiva do mundo “civilizado” – isto é, ocidental e europeu – na modernidade tecnológica e econômica.
Dos relatos de Marx, contidos no primeiro livro de O capital, fica-se sabendo que este “fantasma”, gerado a partir da nova tecnologia em vigor, causou muito estrago. A figura medieval do mestre-artesão, em torno da qual se agrupavam os aprendizes e jornaleiros, tornou-se obsoleta diante das exigências dos novos tempos. O modo-de-produção que começava a se instalar tampouco foi capaz de aproveitar os artesãos na indústria. A mão-de-obra industrial era arrebanhada na enorme massa de camponeses que, expropriada da terra pelos grandes proprietários para a criação de carneiros que alimentavam a nascente indústria têxtil, era colocada à disposição, em troca de ínfimos salários, do produtor industrial.
Novas configurações na esfera da produção, nas primeiras décadas do século XX, introduziram o mundo capitalista na era do capitalismo financeiro e da produção fortemente monopolizada, voltada, paradoxalmente, para o consumo de um mercado sem fronteiras (leia-se, por exemplo, Coca-cola). Aprofundado no pós-guerra, esse processo, conhecido como globalização, gerou os fantasmas da onipresença e da onipotência, traduzidos, na ficção, pelo Big Brother, de George Orwell, e na teoria, pela invisível rede do poder, de Michel Foucault.
Com a intensificação da informatização, a partir da segunda metade do século XX, o fantasma passou a atender pelo nome de Simulacro, e já assombrou tanto o campo da ficção como o da teoria, sendo que, neste último campo, o “papa” do simulacro é o francês Jean Baudrillard, autor de Simulacros e simulações.
Grosso modo, as ficções que tratam do simulacro podem ser agrupadas em dois segmentos básicos. No primeiro, o mundo não passaria de uma “projeção virtual”, resultante de um programa de computador – como pode ser visto, por exemplo, na trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski –, e os seres humanos seriam as vítimas da ilusão criada em seus cérebros por máquinas, para controlá-los e escravizá-los. No segundo segmento, o simulacro diz respeito não ao mundo mas aos próprios indivíduos, tornados meros andróides programados para substituir a humanidade e, assim, inaugurar um mundo livre das mazelas “humanas, demasiado humanas”.
Essa mesma informatização, que engendrou delírios tecnológicos como o menino-andróide David, do filme Inteligência Artificial, parece estar gerando novíssimos fantasmas. Um deles é o Orkut.
Situado num entrelugar que não é nem realidade nem ficção – o espaço virtual –, o “site de relacionamentos” Orkut, bem como outros afins, como MySpace e Friendster, permite, ao mesmo tempo, tanto a simulação do mundo quanto a dos indivíduos. Este “ponto de encontro on-line” tem por objetivo primordial “conectar pessoas”. Quanto mais pessoas conectadas, melhor. Melhor para o Orkut, claro, e não para as pessoas que, ao se conectarem a ele, deixam de ser propriamente pessoas para serem meros “perfis”.
Quando o Orkut surgiu, em 2004, os internautas conectavam-se a ele por meio de um “convite” eletrônico, recebido, também eletronicamente, de algum conhecido já devidamente “conectado”, criando-se, assim, a falsa ilusão de seletividade, de pertencer a um mundo único, uma “elite”. No entanto, essa “aura” era logo desarticulada no aviso de que “Você está conectado a X milhares de pessoas”, e ainda no convite um tanto intimidador: “aumente a sua rede de amigos agora mesmo!”. Atualmente, é possível criar perfis no Orkut sem necessidade do tal convite, bastando para isso apenas um endereço eletrônico, um email qualquer.
No Orkut, a “esfera do público” e a “esfera do privado”, duramente teorizadas por autores de peso, como Habermas, simplesmente não existem. Ou melhor, não são “esferas”, e muito menos separadas. Tudo é público e tudo é privado ao mesmo tempo. Há os “perfis” individuais que, além de informações particulares, possuem espaços para “depoimentos de fãs”, “recados” e “álbum de fotografias”, e há as “comunidades”, as quais os “perfis” também podem se conectar, tornando-se “membros”, e participar de “fóruns” em que nada é debatido.
Embora volta e meia surjam na mídia notícias sobre coisas escabrosas – e ilegais – ligadas ao Orkut, como tráfico de drogas, crimes premeditados, etc., para cuja prática são utilizados “perfis falsos”, a comunidade on line, assim como suas concorrentes pelo mundo afora, oferece um mundo ideal, feito de fotos digitais e comentários piegas, atrás do qual se esconde uma gigantesca montanha financeira. Controvérsias sobre seus supostos benefícios à parte, como fazer amigos, encontrar pessoas, parceiros profissionais, etc., o fato é que o Orkut tornou-se, para muitos pais, o fantasma do momento, que vêem, impotentes, o tempo de estudo dos filhos ser indevidamente tomado, ou “orkutado”, como já o foi um dia pela agora inofensiva televisão.

Pequeno tratado de literatura – Parte I: A Poesia

Isabel Pires

1 – Insumo poético

O lixo não seria somente “aquilo que se varre das casas e das ruas”, como informa o Aurélio. A definição de lixo pode ser muito mais abrangente, como por exemplo a que se encontra na área que trata do meio ambiente: “restos domésticos ou industriais, despejos; resíduos, entulhos, dejetos”. O lixo é, pois, um “excedente” – um resíduo do qual a sociedade não mais necessita e, por isso, pretende dele se livrar. (A noção de “lixo reciclável”, que propõe uma reutilização dos resíduos, parece ainda não ter sido inteiramente assimilada pela sociedade, de forma que permanece a concepção arcaica – isto é, aquela que considera lixo, “lixo”.)
Donaldo Schuller, tradutor, no Brasil, do Finnegans Wake, de James Joyce, tenta definir a literatura como “lixeratura” – ou seja, algo que, absolutamente, não serve para nada, mas que, não obstante, segue sendo produzida pela humanidade em suas diversas línguas e culturas, desde os mitos indígenas aos gregos, dos romances, contos e poemas mais sofisticados aos folhetins melodramáticos. Como diria Cortázar, cabe de tudo nessa “valise de Cronópio”.
Adélia Prado parece se aproximar dessa noção de “lixeratura”, quando fala, em Cacos para um vitral, que “a poesia precisa incomodar como cocô de criança na sala de visitas”. Vem a visita, finge que não repara. Mas algo sempre permanece. Algo impossível de se varrer, de se apagar, de se lavar. Algo assim como uma espécie de insumo poético, de que o poeta necessita.

2 – Ágio poético

Por outro lado, a noção de luxo, em aparência diametralmente oposta à de lixo, aproxima-se paradoxalmente deste último. O luxo, na sua qualidade intrínseca de “supérfluo”, também é um “excedente”, algo de que a sociedade absolutamente não necessita, embora não pense em jogar fora jamais.
Parafraseando o tradutor do Finnegans Wake, surge a noção de “luxeratura”, algo que, assim como a lixeratura “schulleriana” (desculpe, Donaldo), também não serve para nada. É perfeitamente prescindível, mas autor algum tem coragem de dispensar. A luxeratura é o ágio poético.

3 – O bardo

O poeta trabalha com esses dois excedentes – o lixo e o luxo da palavra. O seu trabalho é interminável como o dos heróis e bandidos mitológicos, porque interminável é a produção excedente de lixo e luxo poéticos. O poeta é o bardo – que, em português, lembra “pardo”, “parvo”, “bando”. O poeta não está sozinho. Assim como são precisos muitos galos para, com seu canto, tecer uma manhã, também são necessários muitos poetas – um bando pardo de poetas parvos, ou, ainda, um parvo bando de poetas pardos – para se tecer um fiozinho, um fiapo de poesia. As antologias são necessárias.

4 – A expulsão

Platão condenava a poesia. Ele devia ter um bom motivo para isso. (Possível que os poetas – sobretudo os sofistas – tenham descoberto algo de muito sórdido na República platônica.) As ontologias não são necessárias.

5 – Os poetas-samambaias

Os sofistas, que, muito antes dos surrealistas, já colocavam em dúvida a noção de “realidade” das coisas, foram os primeiros a praticarem a enumeração caótica na poesia. Pagaram caro por isso. Foram por Aristóteles reduzidos à condição de “plantas que falam”. Por isso, a voz do poeta é rouca. Ela vem dos confins da humanidade.

6 – A torre

A arte pela arte, como um fim em si mesma, não existe. A poesia, como meio de sobrevivência, é condição de todo artista. O poeta não tem queixas, gueixas ou deixas e nem está numa torre de marfim. Ele é a torre de marfim.

Friday, August 01, 2008

Série "entre aspas" II - Camus

"Um mundo que pode ser explicado pelo raciocínio, por mais falho que seja este, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luz o homem se sente um estranho. Seu exílio é irremediável, porque foi privado da lembrança de uma pátria perdida tanto quanto da esperança de uma terra de promissão futura. Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário, em verdade constitui o sentimento do Absurdo" (Albert Camus, in: Le Mythe de Sisyphe, 1942).

[Citado por Martin Esslin, O Teatro do Absurdo. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 19.]

Série "entre aspas" I - A explicação de Jauss

E como hoje é o dia da "seção série", lá vai mais uma: a "Série Entre Aspas", que traz para este blog fragmentos de textos famosos citados em outros textos, de outros autores. E o primeiro post da série é uma explicação bastante razoável sobre as citações:
“As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade, com o propósito único de sancionar determinado passo no curso da reflexão científica. Elas podem também retomar uma questão antiga visando demonstrar que uma resposta já tornada clássica não mais se revela satisfatória, que essa própria resposta fez-se novamente história, demandando de nós uma renovação da pergunta e uma solução.”
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994, p. 9.

Série mini-resenhas II - O mágico de verdade

Lá vai outra mini-resenha...

BERNARDO, Gustavo. O mágico de verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 104 p.
Um brasileiro entra no avião e vê, sobre a poltrona que lhe está destinada, uma maleta. Dirige-se ao passageiro ao lado, um português, e pergunta “esta mala é sua?”. O português prontamente responde: “não, é da minha tia, que m’a emprestou para viajar”. Velha conhecida dos brasileiros, a piada também faz parte do repertório humorístico português. No entanto, enquanto por estas bandas os brasileiros riem-se da resposta do português, do lado de lá, na “terrinha”, os portugueses também riem-se a valer, mas da pergunta “óbvia e mal colocada” dos brasileiros, que nunca sabem perguntar exatamente o querem perguntar. Esta história foi contada por Gustavo Bernardo em O mágico de verdade (Rocco, 2006), que, em meio às mágicas poderosas do Mágico de Verdade – apresentadas num programa televisivo, o “Programa de Domingo”, por um inacreditável apresentador que, porém, lembra bastante um outro apresentador “de verdade” –, vai desmontando a nossa percepção e mostrando que existem outras perspectivas, outras formas de “ver”, uma não sendo necessariamente “melhor” que a outra. A partir disso, conceitos como “cá” e “lá” tornam-se apenas relativos. Por meio de delicadíssimos estranhamentos – por exemplo, somos levados a visualizar a estátua do Cristo Redentor sentada no alto Corcovado, na mesma posição do “Pensador”, de Rodin –, embarcamos por instantes na mágica da ficção, ou seja, aquela que permite mergulhar na “verdade do texto” e viajar, junto com o mágico, junto com o apresentador e toda a platéia, no Senhor Tapete, que – segundo momento da viagem – nos leva a refletir sobre aquilo que se revela a cada passo da leitura: a preocupação com a capacidade do espanto.

Série mini-resenhas I - O inimigo do rei

Hoje resolvi criar uma “seção especial” neste blog de 16 leitores (acabo de contar os “comentários”!), dedicada a resenhas rápidas de textos que li, anotei alguma impressão e deixei de lado sem pensar mais no assunto. São textos diversos que li há mais ou menos tempo. Bom, vamos à primeira mini-resenha, então.

NETO, Lira. O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar. São Paulo: Globo, 2006, 431 p.

Peripécias alencarinas

A melhor biografia de José de Alencar ainda é, de longe, Como e por que sou romancista, a conhecida autobiografia do escritor. No entanto, vale a pena dar uma conferida no livro do jornalista Lira Neto, ganhador do prêmio Jabuti de 2007 na categoria “melhor biografia”. Embora salpicado aqui e ali de algumas cacofonias e redundâncias, de uns poucos erros de regência e de outros defeitos menores, como os erros gráficos (chamados hoje em dia de “pastéis”, e de “gralhas”, no tempo de Alencar), o livro traz um conteúdo saboroso, fácil de digerir, com uma narrativa que prende a atenção do leitor nas reviravoltas e peripécias da conturbada vida do mestre do nosso Romantismo, para, ao fim e ao cabo, nos devolver uma imagem ao mesmo tempo heróica e quixotesca, grandiosa e “fanadinha” – humana, enfim –, raramente encontrada em outras biografias do escritor. Amigo de controvérsias, seja por índole, seja por pura teimosia, seja por defender apaixonadamente suas posições literárias e políticas, o Alencar retratado nas 431 páginas que compõem o livro de Lira Neto em nada lembra um cético. “Anti-pirrônico” por natureza, o criador de Iracema jamais se calou, defendendo seu ponto de vista sem medir esforços para tentar convencer a todos de que as suas próprias convicções eram melhores e mais certas do que as opiniões contrárias. Sua inquietação quase angustiante também o afastava de qualquer “tranqüilidade”, “pirrônica” ou não, e, aumentando o rol das contradições que desde sempre lhe são imputadas, acabou abrindo caminho àquele que é considerado o mais cético escritor brasileiro: Machado de Assis.