Wednesday, July 28, 2021

O delírio de Brás Cubas

 

Capítulo VII - O Delírio (Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881, de Machado de Assis)

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração. Mas, por menos curioso que seja, sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça durante uns vinte a trinta minutos.

Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. - Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos.

Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas cousas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma cousa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos; reflexões de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só que a sensação de frio aumentava com a jornada, e que chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo neve; chegava a gelar-nos um sol de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:

- Onde estamos?

- Já passamos o Éden.

- Bem; paremos na tenda de Abraão.

- Mas se nós caminhamos para trás! redarguiu motejando a minha cavalgadura.

Fiquei vexado e aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois - cogitações de enfermo - dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das cousas ficara estúpida diante do homem.

Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.

- Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.

Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas.

- Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo.

- Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.

- Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.

- Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.

- Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, de certo, ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma cousa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?

- Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?

- Sim; o teu olhar fascina-me.

- Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.

Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita do mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.

- Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?

- Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu amo a vida, porque te hás de golpear a ti mesma, matando-me?

- Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.

- Tens razão, disse eu, a cousa é divertida e vale a pena, - talvez monótona - mas vale a pena. Quando Job amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas digere-me.

A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: - «Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.» E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, - o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...

Tuesday, July 20, 2021

O terceiro grande momento cético: Bertrand Russell

Isabel Pires

Se o “segundo grande momento” da história do ceticismo é, reconhecidamente, caracterizado pelo surgimento da obra de Montaigne no Renascimento francês, após um período de dez séculos de obscurantismo quebrado apenas pelo nominalismo de Guilherme de Occam[1] no início do século XIV –, pode-se considerar que um terceiro grande momento cético ocorre com o pensador inglês Bertrand Russell, cuja obra começou a ser publicada ainda em finais do século XIX e perdurou até 1969, com a publicação do terceiro e último volume de sua autobiografia. O pensamento de Bertrand Russell é, pois, contemporâneo dos principais eventos ocorridos no século XX, e que deram conformidade a esse século: a revolução socialista, a ascensão do nazi-fascismo, as duas Grandes Guerras que sacudiram a Europa e tiveram reflexos em diversas partes do mundo, o advento da guerra fria, a emergência dos Estados Unidos como superpotência, a corrida espacial, entre outros. Dono de uma extensa obra, em que aborda desde matemática a filosofia, política e religião, Bertrand Russell talvez seja o pensador que melhor corporifique o “espírito de época” do século XX – um século de dúvidas e incertezas, em que os parâmetros positivistas da ciência, tão eficazes no século anterior, cedem lugar definitivamente ao relativismo einsteiniano.

Em tal contexto, Bertrand Russell não poderia mais ser um fideísta, como o cético Montaigne, que, no final do século XVI, aderiu irrestritamente ao catolicismo. Ao contrário, num mundo sem outros deuses que não os tecnológicos e sem outro sentido que não o do mercado, Bertrand Russell irá colocar em xeque a religião, vista por ele como essencialmente perniciosa à humanidade, tema tratado em Mysticism and Logic and Other Essays (1918) e Religion and Science (1935).  A própria existência de Deus é questionada, em Why I am not a Chistian, coletânea de ensaios publicada em 1957. A preocupação com a civilização industrial do Ocidente e com a guerra gerada no seio dessa mesma civilização é uma constante em seu pensamento, em obras como Justice in War-time (1916), The Prospects of Industrial Civilization (1923, em colaboração com Dora Russell), Icarus, or the Future of Science (1924), The Impact of Science on Society (1952), Common Sense and Nuclear Warfare (1959), e Has Man a Future? (1961).

Inicialmente identificadas com o pensamento lógico-analítico, as ideias de Russell mostrarão possuir uma base essencialmente cética. Afastado tanto da posição extremista do pirronismo quanto do fideísmo montaigniano, Russell adota porém um dos pressupostos céticos mais fundamentais: o de levar em conta aquilo que é evidente e compartilhado por todos – ou seja, os fenômenos, as aparências –, adequando-o para um ceticismo que ele denomina “racional”:

Assuntos existem a respeito a respeito dos quais concordam os que os investigaram; as datas dos eclipses podem servir de exemplo. Outros há sobre os quais os peritos não concordam. Mesmo quando concordam todos os peritos, podem estar enganados. A opinião de Einstein relativa ao grau de curvatura da luz, causada pela gravitação, seria rejeitada por todos os peritos vinte anos atrás, e no entanto demonstrou-se correta. Quando unânime, todavia, a opinião dos peritos deve ser aceite pelos não-peritos como mais provavelmente certa do que a opinião oposta. O ceticismo que eu advogo reduz-se a isto: 1) que quando os peritos concordam, a opinião contrária não pode ser considerada certa; 2) que quando não concordam, nenhuma opinião pode ser considerada certa pelo não-perito, e 3) que quando todos afirmam não haver base suficiente para uma opinião positiva, o melhor que o homem comum tem a fazer é reservar seu julgamento. (RUSSELL, 1955, p. 10)

Percebe-se assim que a suspensão cética do juízo, presente na tradição do ceticismo desde suas origens, serve de fundamento às ideias de Russel, expressa na afirmação de que, na ausência de bases suficientes para o estabelecimento definitivo de uma determinada opinião, “o melhor que o homem comum tem a fazer é reservar seu julgamento” – ou seja, suspender o juízo. Além deste claro argumento a favor da époké, a suspensão cética do juízo, o pensador inglês propõe em sua autobiografia, publicada em três volumes entre 1967 e 1969, um decálogo que encerra um código de conduta:

1. Não tenhas certeza absoluta de nada. 

2. Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz. 

3. Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza terás sucesso. 

4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória dependente da autoridade é irreal e ilusória. 

5. Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas. 

6. Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te. 

7. Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas. 

8. Encontres mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda. 

9. Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la. 

10. Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.

Aparentando, segundo o autor, “complementar” os dez mandamentos do judaísmo-cristianismo, ou ser uma espécie de paródia deste, o decálogo de Russell remete ao Dez modos de Enesidemo, filósofo cético grego que viveu provavelmente entre 80 a. C. e 130 da era cristã. Em seus “modos” (ou “tropos”), Enesidemo busca evidenciar a relatividade do conhecimento filosófico e a incapacidade dos sentidos para apreender a real natureza dos objetos, colocando em destaque ainda a “realtividade das circunstâncias” na apreensão do conhecimento. Ao lado dos Oito modos, também de Enesidemo, e dos Cinco tropos de Agripa, os Dez modos constituem a chamada “bateria cética” do pirronismo. No século III, Sexto Empírico, o representante máximo do ceticismo antigo, compilou esses “modos” céticos em sua obra Hipotiposes pirronicas, tornando-os conhecidos no Renascimento, quando, em 1562, o editor francês Henri Estienne publica a obra de Sexto Empírico, traduzida do grego para o latim.

O decálogo russelliano também aproxima-se do preceito do ceticismo grego que estabelece que os céticos devem seguir “um tipo de argumento de acordo com o manifesto, que nos ensina a viver segundo os costumes pátrios, as leis, os ensinamentos recebidos e os sentimentos naturais” (Empírico, 1993, p. 58). Esse preceito remete ainda à necessidade de se adotar uma espécie de “roteiro prático” que possa auxiliar a orientação humana no mundo. A “moral provisória” de Descartes[2] também encerra este mesmo princípio. De caráter essencialmente cético, essa moral tem por finalidade auxiliar Descartes na etapa de investigação, quando o filósofo coloca em xeque as opiniões existentes, inclusive as suas próprias:

(...) formei para mim mesmo uma moral provisória que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar. / A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. (Descartes, 1996, p. 83)

             Embora devamos a Pirro (300 anos-a.C.) a elaboração do método do ceticismo filosófico, o  primeiro grande cético é Sexto Empírico, que, no século III, compilou, em sua obra Hipotiposis pirronicas, o que se conhecia do ceticismo desde Pirro, passando pelos céticos acadêmicos, como Arcesilau, e pelos dialéticos, como Enesidemo e Agripa. Sexto Empírico, representante máximo do ceticismo antigo, ao discutir a existência da divindade, lança mão da dialética – recurso muito praticado por ele e outros céticos, como Enesidemo e Agripa – para chegar à conclusão de que “tanto pode ser que os deuses existam ou não”. Ou seja, praticando uma radical suspensão cética do juízo, Sexto Empírico se coloca a igual distância de ambas as possibilidades: da existência ou não existência da divindade.

            Durante o Renascimento, no segundo momento cético, do qual Montaigne é a figura por excelência, a époké é praticada somente com relação ao conhecimento humano, isto é, suspende-se o juízo diante dos argumentos da razão. Quando o assunto é religião, ocorre uma separação, no pensamento cético renascentista, entre fé e razão, o que permitirá que Montaigne se torne um fideísta, aderindo irrestritamente ao catolicismo. Mesmo antes de Montaigne, Guilherme de Occam, pensador cético bastante expressivo do final da Idade Média, também já havia aderido à fé cristã, separando radicalmente o pensamento racional, que na verdade é o único a sofrer os efeitos da suspensão cética do juízo.

            Ao contrário dos céticos que lhe antecederam, Bertrand Russel não se coloca à igual distância da possibilidade da existência divina, e muito menos adere ao fideísmo. Seu “ceticismo racional” é, também, um “ceticismo ateísta”, na medida em que ele apresenta as razões de sua descrença, chegando mesmo a enumerar, no ensaio Por que não sou cristão, “evidências” que, para ele, seriam provas da não existência divina. 

A busca da felicidade terrena          

                Fiel aos ideias de Pirro, que, no século III a. C. fundou o ceticismo como método filosófico de alcançar a felicidade, para Bertrand Russel a felicidade humana não é algo que possa ser usufruída apenas depois da morte, como preconiza a maioria das religiões, mas algo que deve ser alcançado no mundo:

Penso que quando morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharei os calafrios de terror ao pensamento da aniquilação total. A felicidade não é, absolutamente, menor e menos verdadeira, apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim, e tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor, por não serem eternos. (Bertrand Russell)

 O pensamento libertário e sobretudo humanitário de Bertrand Russell rendeu-lhe o prêmio Nobel de literatura, em 1950.


BIBLIOGRAFIA

DESCARTES, René. “Discurso do método”. In: ___________ . Vida e obra. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 61-127.

EMPIRICO, Sexto. Esbozos pirrónicos. Introducción, traducción y notas de Antonio G. Cao e Teresa M. Diego. Madrid: Editorial Gredos, 1993.

RUSSELL, Bertrand. Ensaios céticos. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.

_______________ . “Por que não sou cristão”. In: RUSSELL, Bertrand. Ensaios escolhidos. Seleção de textos Hugh Mattew Lacey. Trad. Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 205 a 222. (Col. Os Pensadores)

_______________ . The Autobiography of Bertrand Russell, 3 vols., London: George Allen & Unwin, 1967–1969.



[1] O frade franciscano inglês Guilherme de Occam foi acusado de heresia e julgado pela corte de Avignon, em 1324, por ter defendido posições contrárias ao dogmatismo teológico tomista da Igreja. As ideias de Occam, sintetizadas na chamada “navalha de Occam”, que questiona a noção de “essência” e a existência dos “universais” – para ele, apenas conceitos, isto é, palavras –, tiveram o poder de abalar a ordem eclesiástica tradicional, ao evidenciar a relatividade do conhecimento, que só pode ser adquirido através da experiência sensível.

[2] Embora não seja considerado cético no sentido estrito do termo, Descartes utilizou a “dúvida cética” como método de conhecimento para garantir a existência de Deus e a imortalidade da alma. É no Discurso do método, texto fundamental para o desenvolvimento posterior de toda a ciência moderna, que Descartes adota, para seu uso particular, a “moral provisória”.