Thursday, December 13, 2007

Uma dose a mais

Era domingo. O senhor Marciano Brasil acordara feliz. “Marciano Brasil” vamos chamá-lo assim nesta história, para evitar possíveis constrangimentos, já que se trata de um caso completamente verídico. Vamos aos fatos.
O senhor Marciano Brasil, um idoso de 83 anos, aposentado do SUS, era contudo feliz. Tinha quatro filhos, oito netos e três bisnetos. Um homem aparentemente realizado, embora viúvo e muito embora ainda não tivesse escrito um livro nem plantado nenhuma árvore. Mas, pela robustez com que encarava a vida, parecia que não iria faltar-lhe tempo para isso. Ele havia acordado feliz porque aquele domingo era especial. A neta Ana Brasil tinha convidado toda a família para o aniversário de dois anos do ...
Vamos chamar de Brasil Neto o bisneto do senhor Marciano. Continuemos.
Brasil Neto ganharia uma festinha - a primeira de aniversário, já que, no ano anterior, a bisavó Maria Brasil, esposa do senhor Marciano, houvera por bem enfartar de felicidade, por assim dizer, bem às vésperas do aniversário de um ano de Brasil Neto. O primeiro bisneto. Seis meses depois, nasceriam os gêmeos,
Bom, vamos dar aos gêmeos, nesta história real-fictícia, os nomes de Pedro Brasil I e Pedro Brasil II, ok?
, mas dona Maria Brasil não chegou a ver as carinhas iguais de Pedro Brasil I e Pedro Brasil II, nem soube da felicidade que havia tomado conta em dobro do clã Brasil.
Mas desta vez era diferente. O senhor Marciano Brasil esbanjava saúde, bem entendido, para a idade dele. Nem sequer tomava medicamentos. Não precisava. Até lia os jornais, via perfeitamente as horas no seu velho relógio de ponteiros, quase tão longevo quanto ele próprio.
Ele também seria homenageado na festinha de Brasil Neto. Por isso, estava tão feliz. Satisfeito.
Contudo, a nossa história começa após a festa da família Brasil. O senhor Marciano Brasil voltou para casa. Ainda estava feliz. Foi dormir feliz na noite daquele domingo. Porém, por motivos que escapassem talvez até mesmo a Freud, o senhor Marciano Brasil aquela noite teve um pesadelo.
Um pesadelo que, também não se sabe muito bem porquê, fê-lo cair da cama.
Um acontecimento quase banal, não fosse a idade do senhor Marciano Brasil. Ele quebrou o fêmur. Foi levado, ainda de madrugada, ao hospital.
Internado, o senhor Marciano Brasil foi submetido a uma cirurgia de urgência, isto na terça-feira seguinte, após passar toda a segunda-feira colhendo sangue, fezes e urina. Quando se descobriu que o senhor Marciano Brasil sofria de insuficiência renal. Pobrezinho, nunca se queixava, repetia, admirada, a neta Ana, a mesma mãe de Brasil Neto, filha de Marciano Brasil Filho.
Uma cirurgia quase de rotina, na verdade. Muitos idosos caíam, em casa ou na rua, quebravam pernas e bacias. Um procedimento quase simples. Precisava apenas fixar a perna do senhor Marciano Brasil com um parafuso. Para isso, bastava perfurar o osso com uma broca, colocar o pino, e pronto. Viu como foi fácil?!
Quando a cirurgia já ia terminando, porém, houve um acidente. O hospital – público, esquecemos de dizê-lo – abriu depois uma sindicância para apurar responsabilidades. Há que se achar culpados e puni-los exemplarmente. Tudo na forma da lei. À letra fria da lei. Dura lex sed lex. A broca, não.
A broca se partiu e a ponta dela foi se cravar justo na barriga do senhor Marciano Brasil.
O senhor Marciano Brasil foi levado da mesa de cirurgia ao raio X. A ponta da broca tinha perfurado a bexiga do senhor Marciano Brasil, constataram os médicos. Ainda sedado, o senhor Marciano Brasil voltou ao bloco cirúrgico. Os médicos abriram seu abdômen e suturaram a bexiga. Tudo resolvido.
No dia seguinte, uma quarta-feira, levaram o senhor Marciano Brasil de volta para a UTI, porque ele tinha começado a inchar, devido à insuficiência renal, certamente agravada pela perfuração na bexiga. Inchou tanto, que os pontos do abdômen arrebentaram e começou a vazar ruim um líquido de cheiro muito ruim. Os médicos limparam o local, mas, devido à inchação, não puderam dar novos pontos. Apenas cobriram o corte com gaze, para que não ficasse exposto.
O inchaço, porém, progredia, indiferente aos cuidados dos médicos. Na tarde da quinta-feira, o senhor Marciano Brasil foi submetido a uma hemodiálise.
Ana, a neta do senhor Marciano Brasil, tentou, junto com outros Brasis, transferi-lo para um hospital particular. No entanto, o corpo médico do Hospital ...
Vamos omitir o nome do hospital, já que esta história, a bem da verdade, poderia ter tido lugar em qualquer hospital público - municipal, estadual ou federal.
O fato é que o hospital não autorizou a transferência. Afinal, o paciente estava medicado e bem cuidado.
Às 23 horas da mesma quinta-feira, o senhor Marciano Brasil sofreu uma parada cardíaca. Os médicos submeteram-no aos procedimentos de praxe, em casos como esse: utizaram o desfibrilador.
A pressão exercida pelo desfibrilador, porém, acabou abrindo mais ainda o corte no abdômen, e os órgãos internos ficaram completamente expostos.
Na madrugada da sexta-feira, o senhor Marciano Brasil foi submetido a uma nova cirurgia, para recolocar os órgãos em seus devidos lugares. Seguiu depois para a UTI, onde se acha até agora, em coma induzido, respirando por aparelhos.


O nome dos personagens

Gostaria que essa história fosse mera ficção, mas não é. Circulou dia desses, na versão on line do jornal O Globo. Infelizmente, é o retrato escrito da saúde pública no Brasil. Muitas frases foram retiradas textualmente da notícia. Apenas os nomes dos personagens são fictícios, não o fato. O nome Marciano é uma referência à Marte, que significa “guerra”. Marciano, portanto, é um guerreiro, como todos os brasileiros, mas também é “extraterrestre” em sua própria terra, sem direito à saúde nem a condições dignas de vida e mesmo de morte. Ana é corruptela do nome da personagem real. Pedro Brasil I, Pedro Brasil II e Brasil Neto representam as sucessivas gerações de brasileiros, que, duros como pedra, insistem em resistir.

Isabel Pires