Friday, June 09, 2023

Os cem contos que amei ler III (Mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.

41. Terra (Rachel de Queiroz)

42. Seminário dos Ratos (Lygia Fagundes Telles)

43. O homem nu (Fernando Sabino)

44. O batizado da vaca (Chico Anysio)

45. O afogado (Rubem Braga)

46. Os laços de família (Clarice Lispector)

47. Olhar (Rubem Fonseca)

48. Sonho de valsa (Antonia Cristina de Alencar Pires)

49. Algo de muito grave vai acontecer neste lugar (Gabriel García Márquez)

50. Flor, telefone, moça (Carlos Drummond de Andrade)

51. A biblioteca de Babel (Jorge Luís Borges)

52. A chave na porta (Lygia Fagundes Telles)

53. O peru de Natal (Mário de Andrade)

54. A igreja do Diabo (Machado de Assis)

55. Baleia (Graciliano Ramos)

56. Mãe (Rubem Braga)

57. Natal na barca (Lygia Fagundes Telles)

58. Bezerro sem mãe (Rachel de Queiroz)

59. Entre santos (Machado de Assis)

60. Padre Virgílio (Marcelo Araújo)


Terra

Rachel de Queiroz

Chegam os amigos de visita pelo sertão e nos seus olhos leio o espanto, e quando não é espanto pelo menos é estranheza: que é que nos prenderá nesta secura e nesta rusticidade? Ou, nos meses que precedem a secura, os excessos dos invernos nordestinos, as águas torrenciais, os caminhos desfeitos, as várzeas alagadas, qualquer comunicação interrompida. 

Tudo tão pobre. Tudo tão longe do conforto e da civilização, da boa cidade com as suas pompas e as suas obras. Aqui, a gente tem apenas o mínimo e até esse mínimo é chorado. 

Nem paisagem tem, no sentido tradicional de paisagem. Agora, por exemplo, fins-d'águas e começo de agosto, o mato já está todo zarolho. E o que não é zarolho é porque já secou. Folha que resta é vermelha, caíram as últimas flores das catingueiras e dos paus-d'arco, e não haveria mais flor nenhuma não fossem as campânulas das salsas, roxas e rasteiras.

No horizonte largo tudo vai ficando entre sépia e cinza, salvo as manchas verdes, aqui e além, dos velhos juazeiros ou das novatas algarobas. E os serrotes de pedra do Quixadá também trazem a sua nota colorida; até mesmo quando o sol bate neles de chapa, tira faíscas de arco-íris.

E a água, a própria água, não dá a impressão de fresca: nos pratos-d'água espelhantes ela tem reflexos de aço, que dói nos olhos. 

A casa fica num alto lavado de ventos. Casa tão rústica, austera como um convento pobre, as paredes caiadas, os ladrilhos vermelhos, o soalho areado. As instalações rudimentares, a lenha a queimar no fogão, a água de beber a refrescar nos potes. O encanamento novo é um anacronismo, a geladeira entre os móveis primitivos de cumaru parece sentir-se mal.

Não tem jardim; as zínias e os manjericões, que levantavam um muro colorido ao pé dos estacotes, estão ressequidos como ramos bentos guardados num baú. Também não tem pomar, fora os coqueiros e as bananeiras do baixio. 

Não tem nada dos encantos tradicionais do campo, como os conhecemos pelo mundo além. Nem sebes floridas, nem regatos arrulhantes, nem sombrios frescos de bosque  só se a gente der para chamar a caatinga de bosque.

Não, aqui não há por onde tentar a velha comparação dos encantos do campo aos encantos da cidade. Aqui não há encantos. Pode-se afirmar com segurança que isto por aqui não chega sequer a ser campo. É apenas sertão e caatinga. As delgadas, escuras cercas de pau a pique cavalgando as lombadas, o horizonte redondo e desnudo, o vento nordeste varrendo os ariscos.

*

Comparo este mistério do Nordeste ao mistério de Israel. Aquela terra árida, aquelas águas mornas, aqueles pedregulhos, aqueles cardos, aquelas oliveiras de parca folhagem empoeirada  por que tanta luta por ela, milênios de amor, de guerra e saudade?

Por que tanto suor e carinho no cultivo daquele chão que aparentemente só dá pedra, espinho e garrancho? Não sei. Mistério é assim: está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta mais puros, mais nus, mais lavados. E depois a gente sonha. Naquele cabeço limpo vou plantar uma árvore enorme. Naquelas duas ombreiras a cavaleiro da grota dá para fazer um açudinho. No pé da parede caberão uns coqueiros e no choro da revência, quem sabe, há de dar umas leiras de melancia. Terei melancias em novembro.

Quem tem melancias em qualquer mês e não sabe de onde elas vêm, compreenderá acaso este simples milagre  melancias em novembro?

Aqui tudo é diferente. Você vê falar em ovelhas  e evoca prados relvosos, os brancos carneirinhos redondos de lã. Mas as nossas ovelhas se confundem com as cabras e têm o pelo vermelho e curto de cachorro-do-mato; verdade que os cordeirinhos são lindos. 

E ainda não se falou no povo. Que não tem celeiros nem gordos rebanhos; só o parco feijão e as mãos de milho seco para virar o ano, no quarto do paiol, e os magros bodes, que é este o país dos bodes. 

Há um prazer áspero na permanente descoberta de quanto supérfluo a gente se sobrecarrega e de como é fácil a gente se despojar dele. É como tirar uma casca suja. Ou uma pele velha, seca, engelhada. 

Viver no dia a dia, sem conhecer ambição  mesmo porque não há o que se querer.

Tudo tão longe. Tão longe as solicitações. Por isso falei em pureza. Nem anúncios oferecendo, nem oportunidades de tentação. A pobreza é uma garantia. Falem em bezerro de ouro aqui, ninguém entende. Todo o ouro que se possui mal dá para os brincos levíssimos que as moças compram nas feiras; nem para um dente de ouro dá.

*

Sim, só comparo o Nordeste à Terra Santa. Homens magros, tostados, ascéticos. A carne de bode, o queijo duro, a fruta de lavra seca, o grão cozido n'água e sal. Um poço, uma lagoa é como um sol líquido, em torno do qual gravitam as plantas, os homens e os bichos. Pequenas ilhas d'água cercadas de terra por todos os lados e em redor dessas ilhas a vida se concentra.

O mais é a paz, o sol, o mormaço.

(Não me Deixes, 17.8.1963)

(In: Coleção Melhores Crônicas. Rachel de Queiroz. Seleção e prefácio Heloísa Buarque de Hollanda. São Paulo: Global, 2012. 1ª edição digital)

***


Seminário dos Ratos

Lygia Fagundes Telles

 

 

Que século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.
Carlos Drummond de Andrade

O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

– Excelência?

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.

– Pode entrar — disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito. — Então? Correu bem o coquetel?

Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se.

Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.

– Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e — consultou o relógio — veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!

– O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.

— Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas — começou com certa hesitação. Animou-se: — A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa-forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência escolhi este azul-pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de gravata azul… Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.

– É a cor deles. Rattus alexandrinus.

– Dos conservadores?

– Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

– Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires…

– Fui contra a indicação. Desse americano — atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. — Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos — acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. — Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

– Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também têm muitos ratos, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico.

– Pior ainda. Vai sair buzinando por aí — suspirou o Secretário, tentando mudar a posição do pé. — Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

– Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína…

O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou.

– Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.

– Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça – acrescentou contendo uma risadinha. — O de sempre… Não se conformam é de nos reunirmos em local retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em contato íntimo com a natureza… O Delegado de Massachusetts achou genial essa ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de peito, está lá se divertindo, adorou nossa água-de-coco! Contou-me uma coisa curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam viver em Marte, uma saúde de ferro!

O Secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um “enfim”. Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto.

– Que barulho é esse?

– Barulho?

– Um barulho esquisito, não está ouvindo?

O Chefe das Relações Públicas voltou a cabeça, concentrado.

– Não estou ouvindo nada…

– Já está diminuindo — disse o Secretário, baixando o dedo almofadado. — Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto… Não ouviu mesmo?

O jovem arregalou os olhos de um azul inocente.

– Absolutamente nada, Excelência. Mas foi aqui no quarto?

– Ou lá fora, não sei. Como se alguém… — Tirou o lenço, limpou a boca e suspirou profundamente. — Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador. O senhor se lembra? Esse Delegado americano…

– Mas, Excelência, ele é convidado do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas!

– Não confio em ninguém. Em quase ninguém — corrigiu o Secretário num sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa. Nos baldaquins azuis da cama. — Onde essa gente está, tem sempre essa praga de gravador. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?

– Bueno, ontem à noite ele sofreu um pequeno acidente, Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito! Teve que engessar um braço. Só pode chegar amanhã, já providenciei o jatinho — acrescentou o jovem com energia. — Na retaguarda fica toda uma equipe armada para a cobertura. Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone, criando suspense até o encerramento, quando virão todos num jato especial, fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose. Finis coronat opus, o fim coroa a obra!

– Só sei que ele já deveria estar aqui, começa mal — lamentou o Secretário inclinando-se para o copo de leite. Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora. — Enfim, o que me preocupava muito é ficarmos incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe. Tenho minhas dúvidas.

– Vossa Excelência vai me perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato diário com os meios de comunicação. Nossa única fonte vai soltando notícias discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as baterias! Não é uma boa tática?

Com dedos tamborilantes, o Secretário percorreu vagamente os botões do colete. Entrelaçou as mãos e ficou olhando as unhas polidas.

– Boa tática, meu jovem, é influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.

– Braço, Excelência. O antebraço, mais precisamente.

O Secretário moveu penosamente o corpo para a direita e para a esquerda.

Enxugou a testa. Os dedos. Ficou olhando para o pé em cima da almofada.

– Hoje mesmo o senhor poderia lhe telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle. A ligação é demorada?

– Bueno, cerca de meia hora. Peço já, Excelência?

O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.

– Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou mais forte agora!

O jovem levou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés.

– Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!

– Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí… Tombou para o espaldar da poltrona exausto. Enxugou o queixo úmido. — Quer dizer que o senhor não ouviu nada?

O Chefe das Relações Públicas arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou dentro da lareira. Atrás da poltrona. Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim.

– Tem dois empregados lá no gramado, motoristas, creio… Ei, vocês aí!… — chamou, estendendo o braço para fora. Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam agitados, talvez discutissem, mas suponho que nada tenham a ver com o barulho. Não ouvi coisa alguma, Excelência. Escuto tão mal deste ouvido!

– Pois eu escuto demais, devo ter um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução de 32 e depois, no Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade. O primeiro! Lembro que uma noite avisei meus companheiros, O inimigo está aqui com a gente, e eles riram, Bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.

O Chefe das Relações Públicas teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a mão até a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.

– Vossa Excelência quer que eu vá fazer uma sondagem? O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou.

– Enfim, não tem importância. Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala.

Entre consternado e tímido, o jovem apontou para o pé enfermo.

– É algo… grave?

– A gota.

– E dói, Excelência?

– Muito.

– Pode ser a gota d’água! Pode ser a gota d’água! — cantarolou ele, ampliando o sorriso que logo esmoreceu no silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical. Pigarreou. Ajustou o nó da gravata. — Bueno, é uma canção que o povo canta por aí.

– O povo, o povo — disse o Secretário do Bem-Estar Público, entrelaçando as mãos. A voz ficou um brando queixume. — Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração.

– Abstração, Excelência?

– Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda. Da imprensa marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos — suspirou o Secretário, percorrendo languidamente os botões do colete. Desabotoou o último. — No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o número de gatos. Não sei por que aqui não se exige mais da iniciativa privada, se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados…

– Mas Excelência, não sobrou nenhum gato na cidade, já faz tempo que a população comeu tudo. Ouvi dizer que dava um ótimo cozido!

– Enfim — sussurrou o Secretário esboçando um gesto que não completou.

– Está escurecendo, não?

O jovem levantou-se para acender as luzes. Seus olhos sorriam intensamente.

– E à noite, todos os gatos são pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas, Excelência! O jantar será servido às oito, a mesa decorada só com orquídeas e frutas. A mais fina cor local, encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as lagostas, então? O Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes. Bueno, eu tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade, diga-se de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma dor de cabeça? Por um desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então achei prudente encomendar vinho chileno.

– De que safra?

– De Pinochet, naturalmente.

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé.

– Para mim um caldo sem sal, uma canjinha rala. Mais tarde talvez um… — Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando para o jovem: — Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!

O Chefe das Relações Públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada.

– Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!

– Eu não disse, eu não disse? — perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: — Nunca me enganei, nunca! Já faz horas que estou ouvindo coisas, mas não queria dizer nada, podiam pensar que fosse delírio. Olha aí agora! Parece até que estamos em zona vulcânica, como se um vulcão fosse irromper aqui embaixo…

– Vulcão?

– Ou uma bomba, têm bombas que antes de explodir dão avisos!

– Meu Deus — exclamou o jovem. Correu para a porta. — Vou verificar imediatamente, Excelência. Não se preocupe, não há de ser nada, com licença, volto logo. Meu Deus, zona vulcânica?!…
Quando fechou a porta atrás de si, abriu-se a porta em frente e pela abertura introduziu-se uma carinha louramente risonha. Os cabelos estavam presos no alto por um laçarote de bolinhas amarelas.

– What is that?

– Perhaps nothing… perhaps something… — respondeu ele, abrindo o sorriso automático. Acenou-lhe com um frêmito de dedos imitando asas. — Supper at eight, Miss Gloria!

Apressou o passo quando viu o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que vinha com seu chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura, “Excelência” e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha veludosa.

– Que barulho é esse?

– Bueno, também não sei dizer, Excelência, é o que vou verificar. Volto num instante. Não é mesmo estranho? Tão forte!

O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:

– E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? — Franziu a cara. — Uma maçada! Cheiros, barulhos e o telefone que não funciona… Por que o telefone não está funcionando? Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!

– Mudo? Mas fiz dezenas de ligações hoje cedo… Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul?

– Venho de lá. Também está mudo, uma maçada! Procure meu motorista, veja se o telefone do meu carro está funcionando, tenho que fazer essa ligação urgente.

– Fique tranquilo, Excelência. Vou tomar providências e volto em seguida.

Com licença, sim? — fez o jovem, esgueirando-se numa mesura rápida. Enveredou pela escada. Parou no primeiro lance: — Mas o que significa isso? Pode me dizer o que significa isso?

Esbaforido, sem o gorro e com o avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio correndo pelo saguão. O jovem fez um gesto enérgico e precipitou-se ao seu encontro.

– Como é que o senhor entra aqui neste estado?

O homem limpou no peito as mãos sujas de suco de tomate.

– Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!

– Não grita, o senhor está gritando, calma — e o jovem tomou o Cozinheiro- Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?

– As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou nem um grão de arroz na panela. Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora!

– Mas quem comeu tudo? Quem?

– Os ratos, doutor, os ratos!

– Ratos?!… Que ratos?

O Cozinheiro-Chefe tirou o avental, embolou-o nas mãos.

– Vou-me embora, não fico aqui nem mais um minuto. Acho que a gente está no mundo deles. Pela alma da minha mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea! Até os panos de prato eles comeram. Só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!

– Ainda estão lá?

– Não, assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido. Eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d’água correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando! E cada ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem. Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!

– Meu Deus, que loucura… E o jantar?!

– Jantar? O senhor disse jantar?! Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram na água fervendo. Cruz-credo, vou me embora e é já!

– Espera, calma! E os empregados? Ficaram sabendo?

– Empregados, doutor? Empregados? Todo mundo já foi embora, ninguém é louco! E se eu fosse vocês, também me mandava, viu? Não fico aqui nem que me matem!

– Um momento, espera! O importante é não perder a cabeça, está me compreendendo? O senhor volta lá, abre as latas, que as latas ainda ficaram, não ficaram? A geladeira não estava fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare um jantar com o que puder, evidente!

– Não, não! Não fico nem que me matem!

– Espera, eu estou falando: o senhor vai voltar e cumprir sua obrigação. O importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada, disso me incumbo eu, está me compreendendo? Vou já até a cidade, trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os dentes, quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa, quero ver!

– Mas o senhor vai como? Só se for a pé, doutor.

O Chefe das Relações Públicas empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.

Apertou os olhinhos e fechou os punhos para soquear a parede, mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no andar superior. Falou quase entredentes.

– Covardes, miseráveis! Quer dizer que os empregados levaram todos os carros? Foi isso, levaram os carros?

– Levaram nada, fugiram a pé mesmo, nenhum carro está funcionando. O José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a estrada e é já!

O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. “Quer dizer que o telefone…”, murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. Foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus alicerces. As luzes se apagaram. Então, deu- se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num salto, pulou lá dentro. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou de fora, substituiu o dedo pela gravata.

No rigoroso inquérito que se processou para apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira, enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum focinho tentava forcejar. Lembrava-se, isso sim, de um súbito silêncio que se fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada. Lembrava-se de ter aberto a porta da geladeira. Espiou. Um tênue raio de luar era a única presença na cozinha esvaziada. Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.

(In: Seminário dos Ratos. [Contos]. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977).

***

O Homem Nu

Fernando Sabino



Ao acordar, disse para a mulher:

Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.

Explique isso ao homem – ponderou a mulher.

Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar – amanhã eu pago.

Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão.

Bateu com o nó dos dedos:

Maria! Abre aí, Maria. Sou eu – chamou, em voz baixa.

Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:

Maria, por favor! Sou eu!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem ter onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.

Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

Ah, isso é que não! – fez o homem nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!

Isso é que não – repetiu, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

Maria! Abre esta porta! – gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:

Bom dia, minha senhora – disse ele, confuso. – Imagine que eu...

A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

Valha-me Deus! O padeiro está nu!

E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:

Tem um homem pelado aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

É um tarado!

Olha, que horror!

Não olha não! Já pra dentro, minha filha!

Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.

Deve ser a polícia – disse ele, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o cobrador da televisão.

(In: O Homem Nu. [Contos] Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, p. 65).

***

 

O batizado da vaca

Chico Anysio

O lugar era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas e as vacas tão bovinas, que o chefe da família achou que valeria a pena comprar ali uma fazenda.

Consultou a família que, de pronto, foi contra. Isto colaborou demais para que o chefe da família entrasse, imediatamente, em conversações com o proprietário de uma, que se queria desfazer da fazenda, por achar que ela estava num lugar que não era lá essas coisas, o clima era idiota, as flores não fugiam daquela variedade: rosas, rosas, rosas, e as vacas, coitadas, eram simplesmente bovinas — numa total falta de imaginação. Vá-se querer que as vacas tenham isso!

O negócio foi fechado por um dinheiro grande, e a família tomou posse da propriedade dois dias depois, data que coincidia com a véspera do fim das férias.

A fazenda ficava num vale e era separada em duas partes por um córrego como o que só corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas, rosas e charcos, galinhas e caseiros.

— Uma idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa, numa contrariedade de quem faz doze pontos.

— Comprar terra sempre é bom negócio ­vibrou o chefe da família, puxando o ar, a encher o peito com um cheiro de estrume que vinha do estábulo. — Olhe em volta. Até onde a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o abacateiro? É nosso; Aquele caqui-chocolate? É nosso. A carreira de jabuticabeiras? Nossa. O mato, a casa, a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda, é o único pedaço de céu que é nosso, porque o da cidade é do governo. Aqui, mandamos nós, porque aqui tudo é nosso!

— Pra quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa.

— Ora — explicou admiravelmente o chefe da família —, para ser nosso. Nossa terra, nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou numa, furando o dedo.

Durante o curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da fazenda aproximou-se com uma notícia muito importante: a fazenda acabava de crescer de valor pelo nascimento de uma bezerrinha.

Viu? — comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas costas da esposa, de modo a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava comer. – Nasceu uma vaquinha!

A notícia correu para os demais da família ao mesmo tempo em que, para os pais, corriam os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do nascimento da novilha.

— É menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão longos cabelos, nem se sabia se era menino ou menina.

 Não é assim que se fala, menino – esclareceu o pai. – A pergunta é: bezerra ou bezerro? É uma bezerrinha.

— Vamos ver? Vamos ver? gritavam os filhos a sugestão lógica das crianças que nunca viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em pó. 

Foram. A vaca não deixou que se aproximassem da cria, que ficou sendo observada a distância pela família encantada e pelo caseiro indiferente e até um pouco irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo.

— Quem é o pai? – perguntou a moça mais taluda.

— Um boi desses – errou o pai.

— Um touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é um touro que já era; boi é um touro que perdeu os documentos.

 Pois é — emendou o pai na mesma veemência —, um tourão danado desses. Olha a carinha dela. Os olhinhos ainda estão fechados.

— Vamos batizar! – gritou um menino.

— Boa ideia – concordou o chefe da família. — Quem vai escolher o nome?

— Eu. Eu. Eu. Eu — disseram, um a cada vez, os quatro filhos do casal.

E começou a discussão sobre o nome a ser posto na recém-nascida que, indiferente a tudo, mamava na mãe, provando, assim, que ela (a mãe) não era tão vaca quanto julgavam.

— Aretha Franklin!

— Janis Joplin.

— Jimi Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me provem o contrário, essa vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver.

— É fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se para o caseiro, na indagação do que já afirmara: — O senhor não viu?

— Vi. É fêmea.

E tome de gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva Maldita, Otorrinolaringologia… Havia os nomes sugeridos a sério e os de gozação. Todos os que citei eram os a sério. Finalmente, o bom senso ajudou a solucionar o impasse. Foi a esposa quem sugeriu o nome que lhe pareceu o mais indicado para a novilhazinha que mamava no seio vaquerno: Long Island.

— Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender.

— Long Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem fala “mococa”.

— A senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se incapaz de decorar aquilo.

Arranjaram uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe de família escreveu: LONG ISLAND, tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou presa no pescoço da novilha para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela jovem bovina atendia pelo nome de Long Island, nome que fica muito bem para parque de diversões, mas que não é dos mais adequados para quem tem cara de Mimosa, Formosa, Maravilha ou Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o reconhecimento da peça.

Acabadas as férias, a família voltou à sua poluição metropolitana e só pôde retornar à fazenda dois anos depois.

Tudo continuava como dantes, com exceção de uma coisinha em pior estado, uma das quais o geral.

— Caseiro! — chamou o chefe de família, que não sabia que o caseiro tinha nome: José Caseiro da Silva.

— Pronto, doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a presteza de um favor bancários.

— Como vai a novilha?

— Está uma vaca! — elogiou o caseiro de um modo que soou ofensa aos ouvidos da família.

— Já dá leite? — perguntou um dos filhos.

— Dá, né? respondeu o caseiro estranhando a pergunta, pelo fato de saber (ele é acostumado, porque vive ali) que as vacas não dão outra coisa senão leite.

— Pois eu quero beber um copo de leite da novilha — ordenou a esposa do chefe, madrinha de batismo da vaquinha.

E o caseiro, sem que a família ouvisse, comandou a um seu auxiliar que tirasse um pouco de leite da vaca “Tabuleta”.

(In: O batizado da vaca [Contos]. Rio de Janeiro: Sabiá,1972.)

 ***


O afogado

Rubem Braga

Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar braçadas, mas está exausto.

A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim, sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta: não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade de respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa.

Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.

Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se não for socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças, tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na pedra, procura tirar algum espeto do pé.

A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar-se, ao menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.

Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas, apesar de tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente, faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia de afogado. Sente-se um animal vencido que vai morrer, mas está frio e disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça; não se deixará enlouquecer pelo medo.

Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se vier uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me agarrar da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.

Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha para trás. Muda de ideia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco. Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do que antes o medo do perigo que passou.

“Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada.” Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo, um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto de vista tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá no corpo inteiro um infinito prazer.

[1953]

(In: Duzentas crônicas escolhidas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1979).


***

Os laços de família

Clarice Lispector

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.

  Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.

 Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência. Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.

 Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.

  O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.

  Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.

  Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente.

Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor   da velha.

Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança”…

   Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. – Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?

Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação?

  Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada. Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.

  Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.

  Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa.

Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.

Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.

O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fossem vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia  esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…

  não esqueci de nada? perguntou a mãe.

Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.

 Não pegar corrente de ar! gritou Catarina.

– Ora menina, sou criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:

  lembranças a titia! gritou.

  Sim, sim!

  Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas se moviam.

 Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.

No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.

O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.

 “Ela” foi?

 Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor  bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.

 Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.

Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.

Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho  na calçada.

Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.

Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…

O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.

“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torná-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vivido desde sempre.

Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se frustrado porque muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.

A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos.  As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.

 “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.

 

(In: Laços de família. [Contos]. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960.)

***


Olhar

Rubem Fonseca

Olhar (I)

Um olhar pode mudar a vida de um homem? Não falo do olhar do poeta, que depois de contemplar uma urna grega pensou em mudar de vida. Refiro-me a transformações muito mais terríveis.

Eu não gostava de comer, até acontecerem os episódios que relatarei daqui a pouco. Tinha dinheiro para me alimentar com as mais finas iguarias, porém os prazeres da mesa não me atraíam. Por várias razões, nunca entrara num restaurante. Era vegetariano e gostava de dizer que necessitava apenas dos alimentos do espírito  música, livros, teatro. O que era uma estupidez, como o dr. Goldblum me provaria depois.

Minha profissão é escrever, todos sabem. Não preciso dizer o tipo de literatura que faço. Sou um escritor que os professores de letras, numa dessas convenções arbitrárias que impingem aos alunos, chamam de clássico. E isso nunca me incomodou. Uma obra é considerada clássica por ter, através dos tempos, mantido a atenção ininterrupta dos leitores. Que mais pode um autor querer? Que me chamem, pois, de clássico, ou mesmo de acadêmico. Mesmo antes de começar a escrever eu já preferia as obras de arte que o tempo consagrou, criações que pela pureza e perfeição da forma e do estilo se tornaram imortais. Felizmente, o acesso aos clássicos da literatura e da música não apresenta as dificuldades que existem, por exemplo, em relação ao teatro. As lojas de música e as livrarias, por mais reles que sejam, sempre oferecem, junto com o lixo abominável que costumam mercadejar, as obras de um ou outro grande mestre. Não há muito tempo descobri, numa livraria onde pululavam Sheldons e Robins, uma bela edição de Orlando furioso, de Ariosto, em italiano, uma pérola no meio do chiqueiro. Já quanto ao teatro a situação é desalentadora. Raramente se pode assistir à encenação de um Sófocles, um Shakespeare, um Racine, um Ibsen, um Strindberg. O que se oferece comumente ao espectador são os dejetos do provinciano teatro americano ou as mediocridades decadentes do teatro europeu – para não falar do teatro brasileiro, aprisionado ao subúrbio sórdido de Nelson Rodrigues. O cinema é uma arte menor – se é que se pode chamar de arte uma manifestação cultural incapaz de produzir uma obra verdadeiramente clássica. Quanto à ópera, eu a julgo um divertimento de burgueses ascendentes que supõem ser refinada essa mistura primária de drama e canto que, na verdade, ainda em passado recente, satisfazia apenas aos anseios culturais da rafaméia.

Era assim que eu pensava, nos tempos em que passava os dias em casa escrevendo e, quando não estava escrevendo, ouvindo Mozart e relendo Petrarca, ou Bach e Dante, ou Brahms e santo Tomás de Aquino, ou Chopin e Camões – a vida era curta para ler e ouvir tudo o que se encontrava à disposição do espírito e da mente de um homem como eu. Havia uma interessante sinergia entre música e literatura, que me propiciava uma fruição sublime.

Devo confessar que era também, antes dos episódios que relatarei, quase um misantropo. Gostava de ficar só e até mesmo a presença da empregada, Talita, me incomodava. Por isso ela recebera instruções de trabalhar no máximo duas horas por dia, e depois se retirar. Eu a mandava embora, transcorrido esse prazo, mesmo que o suflê de espinafre, que ela fazia diariamente, não tivesse ficado pronto, para, desta forma, poder escrever, e ler, e ouvir minha música, sem ninguém me incomodar.

Um parêntese: quando vou escrever, primeiro preparo a mesa. É uma coisa muito simples – um maço de folhas de papel artesanal de linho puro especial fabricado en los talleres de Segundo Santos em Cuenca, que recebo regularmente da Espanha (só sei escrever nele, los papeles contienen mezclas de lanas teñidas a mano, esparto, hierbas, helechos y otros elementos naturales) e uma caneta antiga, daquelas que têm um depósito transparente de tinta. Mais nada. Acho graça quando ouço falar em idiotas que escrevem em microcomputadores.

Mas voltemos à história. Uma tarde, enquanto lia Propércio ao som de Mahler, senti-me mal e desmaiei. Quando voltei a mim percebi que anoitecera. Um repulsivo suor frio cobria meu corpo, que tremia em espasmódicas convulsões cortadas por arrepios que faziam bater os meus dentes, como se fossem castanholas. Em seguida comecei a ter visões, a ouvir vozes.

Cambaleando, fui até a mesa do escritório, apanhei a caneta e escrevi um poema. Depois desmaiei novamente.

O médico, dr. Goldblum, a quem consultei no dia seguinte, disse que meu problema era inanição.

“Isso explica por que as visões passaram depois que tomei um copo de leite morno com açúcar.”

“Os santos tinham visões porque jejuavam, e jejuavam porque tinham visões, um interessante círculo vicioso. Vou lhe confessar uma coisa: eu até que gostaria de ter esse tipo de visão, uma vez pelo menos. Agora vou ler o seu poema”, disse Goldblum.

Eu entregara o poema ao médico, supondo tratar-se de um abjeto material semiótico que ajudaria a diagnosticar o surto de morbidez que eu havia sofrido. Agora, que sabia que tudo era apenas uma simples e passageira crise de inânia, não queria mais que o dr. Goldblum lesse o que eu havia escrito em meu delírio; palavras grosseiras que os clássicos, com algumas exceções (pensei em Gil Vicente, Rabelais), jamais usariam. Tentei tirar o papel que o esculápio tinha na mão, mas ele foi mais rápido e, protegendo-se atrás da mesa, leu o poema:


OS TRABALHADORES DA MORTE


(Para Mégnin e H. Gomes)


Joyce, James se emocionava com a marca marrom de

cocô na calcinha

(nem tão calcinha assim, naquele tempo)

da mulher amada.

Agora a mulher morreu

(a dele, a sua e a minha)

e aquela mancha marrom de bactérias

começa a tomar conta do corpo inteiro.

Elas atacam em turnos:

muca, muscina e califora,

belos nomes,

dão início ao trabalho de destruição;

lucilia, sarcófaga e onésia

fabricam os odores da putrefação;

dermestestes (afinal um nome masculino)

cria a acidez da pré-fermentação;

fiofila, antomia e necróbia fazem

a transformação caseinica dos albuininóides:

tireófíro, lonchea, ofira, necroforus e saprinus

são a quinta invasão, dedicada à fermentação;

urópode, tiroglifos, glicíjàgos, tracinotos e serratos

consagram-se a dissecação;

anglossa, tineola. tirea, atageno, antreno

roem o ligamento e o tendão,

afinal tenébrio e ptino

acabam com o que restou

de homem, gato e cão.

Não há quem resista a esse exército

contido num cagalhão.


“Muito interessante, trata-se de uma visão poética delirante de um jejuador”, disse Goldblum, que confessou cometer, nas horas vagas, seus versejares bissextos. “Parece coisa de Augusto dos Anjos.” Recitou solenemente: “Verme é o seu nome obscuro de batismo, jamais emprega o acérrimo exorcismo em sua diária ocupação funérea, e vive em contubérnio com a bactéria, livre das roupas do antropomorfismo. Lembra?”.

Envergonhado, por ter cometido uma peça de literatura tão medíocre e suspeita, eu não soube o que dizer.

Goldblum quis saber como eu tomara conhecimento do nome de todas aquelas bactérias, mas eu não sabia como isto acontecera. Nós escritores temos muitas coisas dentro da cabeça, algumas esquecidas e abandonadas como trastes no porão de uma casa. Quando são recuperadas, a gente se pergunta, como é que isso veio parar aqui? Isso é meu?

Goldblum sugeriu um final “menos grosseiro” para o poema.

Assim:

afinal tenébrio e ptino acabam com o que restou de homem, cão e jumento.

Não há quem resista a esse exército contido num excremento.


— Palavras chulas não se coadunam com a poesia ele disse.


“Foi um pesadelo, pesadelos são grosseiros”, justifiquei-me. Médico e cliente, no consultório refrigerado, ficamos conversando calmamente sobre música, literatura, pintura, até que a enfermeira, preocupada com o número crescente de clientes esperando atendimento, entreabriu a porta, enfiou a cabeça e disse:

“Já chegou o senhor J. J. Monteiro Filho.”

“Diga para esperar”

“E também a dona Evangelina Abiabade.”

“Diga para esperar.”

“E o engenheiro Bertoldo Pingler.”

“Que esperem, que esperem”, disse Goldblum, irritado.

A enfermeira desapareceu, fechando a porta.

“Você precisa comer”, disse Goldblum. “A coisa mais criativa que o homem pode fazer é comer. Tenho um grande respeito pela gula. Comer é vital – uma obviedade as vezes esquecida. Arte é fome.”

Arte é fome. Naquele instante não compreendi a profundidade da frase de Goldblum.

“Vamos jantar juntos hoje”, ele disse. Goldblum acabara de se separar da mulher e jantava todas as noites fora de casa, variando de restaurantes. “Passo em sua casa às oito horas.”

Não soube dizer não. Afinal, Goldblum fora muito gentil e atencioso comigo, seria uma indelicadeza não aceitar o convite.

Já em casa, naquela noite, estava ouvindo Schumann quando Goldblum chegou. Goldblum, esqueci-me de dizer, era um homem gordo, com uma grande barriga, calvo, de olhos redondos e úmidos.

“Vou levá-lo ao restaurante que tem o melhor peixe da cidade”, ele disse.

O restaurante possuía um enorme aquário cheio de trutas azuladas. Goldblum levou-me até o aquário.

“Escolha qual dessas trutas você quer comer”, disse, enquanto olhávamos os peixes nadando de um lado para o outro. “Truta é uma carne leve, não lhe fará mal.”

Eu não sentia vontade de comer truta, ou qualquer outra coisa.

“Que critério devo adotar, em minha escolha?”, perguntei para ser gentil.

“O critério é sempre o do sabor” respondeu Goldblum.

Qual é a mais saborosa?”

 Uns gostam das grandes. Outros das pequenas.

Ante essa resposta, que considerei idiota e evasiva, decidi que não comeria a truta. Certamente saberiam fazer ali um suflê de espinafre.

Subitamente percebi que uma das trutas me olhava. Nadava de maneira mais elegante do que as outras e possuía um olhar meigo e inteligente. O olhar da truta deixou-me encantado.

“Belo, o olhar desta truta.” Apontei o peixe.

Um garçom aproximou-se, atendendo ao estalo de dedos de Goldblum.

“Esta e mais esta”, disse Goldblum. O garçom enfiou uma rede no aquário.

“Não, não!”, gritei, porém já era tarde. Os dois peixes haviam sido apanhados e o garçom se retirava com eles para a cozinha.

“Não estou com fome.”

“Comer e coçar. Você conhece o ditado, disse Goldblum.

As trutas foram servidas aux amandes, junto com um trocken alemão (Goldblum permitiu-me apenas um cálice). Eu não queria comer. Foi preciso que Goldblum instasse repetidamente comigo.

“Você necessita dos nutrientes deste belo salmonídeo”, convenceu-me, afinal.

Coloquei, então, o primeiro pedaço na boca. Em seguida outro naco, e outro, e a truta foi inteiramente devorada.

Comer aquela truta, devo admitir, foi uma experiência mais do que agradável. Eu não esperava sentir um prazer e uma alegria tão grandes, apenas por ingerir um mísero pedaço de carne de peixe. Todavia, quando Goldblum quis marcar um outro jantar para o dia seguinte, escusei-me, com um falso pretexto.

“Eu lhe telefono um dia desses –, disse, intimamente decidido a nunca mais ligar para o médico.


Olhar (II)


Durante alguns dias comi – na verdade deixei de comer – o suflê de Talita. Pensava na truta, de uma maneira extremamente complexa: no gosto da carne; nos elegantes movimentos do peixe nadando no aquário; na estranha sensação que tivera ao abrir a truta com a faca, como um cirurgião, seguindo instruções de Goldblum; e pensava, principalmente, no olhar da truta respondendo ao meu olhar.

Enquanto isso, mergulhava em elucubrações etológicas e literárias. Lembrava-me do conto de Cortázar em que o narrador se torna um axolotl, e no conto de Guimarães Rosa, em que ele se transforma numa onça. Mas eu não queria tornar-me uma truta: eu queria COMER uma truta de olhar inteligente.

Eu não conhecia restaurantes e não me lembrava do nome daquele em que comera a truta com Goldblum. Fui a um restaurante, que anunciava ser especializado em peixes. Entrei, constrangido, sentei-me e quando o garçom se aproximou perguntei pelo aquário, pois queria escolher a minha truta. O garçom chamou o maitre, que explicou que eles não tinham aquário, mas que as trutas estavam frescas, haviam chegado da serra da Bocaina naquele dia. Desapontado, pedi truta aux amandes, como da outra vez.

Minha decepção foi imensa. O peixe não era igual ao outro que eu degustara com tanta emoção. Não tinha cabeça, nem olhos. Eu lhe dediquei a mesma atenção meticulosa, separando a carne das espinhas e da pele, mas, na hora de comer, o sabor não era parecido com o da carne que provara anteriormente. Era uma carne insípida, sem caráter ou espírito, insossa, sem frescura, enfadonha, sem elã, com um sabor de coisa diluída – um calafrio varou meu corpo –, de coisa morta.

No dia seguinte, lista telefônica à minha frente, liguei para todos os restaurantes da cidade, para saber quais deles tinham aquários onde os fregueses pudessem escolher os peixes que iriam comer. Anotei os nomes de todos e, naquele mesmo dia, fui jantar num deles.

Desta vez entrei mais confiante. Escolhi, entre as várias que nadavam nervosamente no aquário, uma truta parecida com a primeira – na cor, na elegância dos movimentos e, mais que tudo, no brilho significativo do olhar. Quando a colocaram no meu prato senti um frisson tão forte que temi que os ocupantes das mesas vizinhas o tivessem percebido. Ao comê-la, tive a alegria de poder confirmar que seu gosto era deliciosamente igual ao da primeira.

Minha vida mudou depois desse dia. Dispensei Talita de fazer o suflê. Saía todas as noites para jantar num dos restaurantes com aquários.

Alguns tinham também lagostas e lagostins, que outrossim passei a comer, com grande prazer, conquanto esses animais tivessem olhos miúdos e opacos. Mas a força vital que se desprendia da carne sólida deles compensava a falta de um olhar sensível e inteligente. Sentia-me atraído pela robusta assimetria arcaica, pela monstruosa estrutura pré-histórica desses crustáceos.

A partir de então, enquanto ouvia música, durante o dia, minha mente não mais vagava em nebulosas divagações poéticas: pensava no que iria comer à noite.

Os garçons já me conheciam. Sabiam que eu só comia trutas, lagostas e lagostins tirados vivos do aquário. Mas um dia, um garçom novo perguntou-me o que eu queria comer.

“Existe alguma outra coisa?”, perguntei.

“Temos coelho à caçadora, cabrito, carneiro...”

“Onde é que eles estão?”, perguntei, olhando para o aquário.

“Onde é que eles estão?”, perguntou por sua vez, perplexo, o garçom.

“Sim”, eu disse, “queria vê-los.”

“Estão na cozinha”, disse o garçom. “Um momentinho.”

O garçom voltou com o maitre, que me reconheceu.

“O senhor hoje não quer comer uma truta? Uma lagosta?”

“O garçom sugeriu um coelho”, eu disse. “Nunca comi coelho. É bom?”

“Nosso coelho é ótimo”, disse o maitre.

“Eu queria vê-los.”

“Vê-los?”
“Sim. Para escolher.”

“Para escolher”, repetiu o maitre.

“Sim. Como faço com as trutas e as lagostas.”

“Ah, sim, sim, entendo. Mas acontece que os coelhos já estão –”, ele ia dizer mortos, senti que ele ia dizer mortos, todavia percebeu que isto talvez chocasse um freguês como eu, e preferiu dizer “– temperados.”

“Temperados?”

“Sim, temperados.” O maitre sorriu, satisfeito, por ter conseguido inventar uma metáfora tão eficiente. “Os coelhos, ao contrário das trutas, têm que ser temperados algum tempo antes de serem degustados.”

“Então me mostre os cabritos”, eu disse. Talvez influenciado pelo garçom, eu decidira comer, naquele dia, um animal diferente, da terra e não da água.

“Com os cabritos é a mesma coisa. Eles já estão, han, temperados.”

“Onde é que eles se encontram?”

“Onde?”, o maitre sentiu que suava; discretamente, com muita rapidez, limpou a testa com um lenço que tirou do bolso, “Onde? Nas travessas”.

“Posso ver?”

“Sim. Mas eles não estão inteiros. Cabritos são animais grandes, não sei se o senhor já viu um.”

“Não, nunca vi. Eles têm chifres?”

“Sim, eles têm chifres. Mas são pequenos, os chifres. Pode comer sem susto, nós tiramos os chifres.” Um sorriso nervoso e outra limpeza rápida da testa. “Assados, com brócolis, são uma delícia.” (Ele não me disse, mas eu soube, depois, que os cabritos são comidos esquartejados.)

“E os coelhos? Também nunca vi um coelho.”

“Esses não têm chifres.”

“Isso eu sei. Os animais que têm chifres são o boi, o cabrito, o rinoceronte.”

“A girafa...”

“Vocês têm girafa?”

“Não, não, não temos. O que eu queria dizer é que elas têm chifres. Um chifrinho pequeno. As girafas.”

“Maior ou menor do que o do cabrito?”

“Digo pequeno em comparação ao seu tamanho. As girafas são altas”, disse o maitre. Parecia muito perturbado. (A definição do Bluteau é de que a girafa é um animal maior do que um elefante”.)

“Pode comer o coelho sem susto”, disse o maitre cortando os meus pensamentos. “Seu Abílio –, disse para o garçom que assistia ao diálogo, – traga um coelho à caçadora para o cavalheiro.”

Então comi aquela comida extravagante. Era um gosto inesperado, diferente de tudo que eu havia conhecido até então.


Comi consciente, o tempo todo, da peculiaridade daquele sabor, uma doçura que não era a do mel, muito menos a do açúcar, um paladar que me dava uma inesperada sensação de gozo singular.

Ao chegar em casa coloquei Satie, esse rebelde, no aparelho de som, e fiquei imaginando como seria aquela iguaria, se eu pudesse escolhê-la imediatamente antes de ser preparada, como eu fazia com as trutas e lagostas, que prazer gustativo me seria propiciado se eu pudesse ver os olhos dos coelhos antes de morrerem. Lembrei-me das diferenças de sabor entre a truta que haviam posto no meu prato, sem que a tivesse visto antes (e ela visto a mim), e aquelas que eu escolhia, após demorada contemplação mútua. Trutas que eu selecionava após olhar e perceber tudo o que elas significavam, objetiva e subjetivamente, cor, movimento, e, mais do que tudo, o furtivo e sutil olhar de resposta – sim, a truta olhava de volta, sub-repticiamente, uma coisa tímida e ao mesmo tempo matreira, astuta, que procurava estabelecer comigo uma comunhão dissimulada, secreta, sedutora.

No dia seguinte voltei ao restaurante e disse que queria ver o coelho “temperado”.

O maitre, recalcitrante, levou-me à cozinha e mostrou-me o coelho deitado numa travessa de alumínio, que tirou da geladeira. O coelho estava inteiro, sem cabeça e com um buraco onde deveriam estar as vísceras. Isso não me surpreendeu, eu sabia que os animais eram estripados, antes de serem comidos. Trutas também tinham tripas, o mesmo ocorrendo com as lagostas.

O coelho decapitado me pareceu uma coisa feia, algo indefinido entre gato e cachorro, já que a cabeça é que distinguia esses animais um do outro, quando mortos e esfolados. A um bicho sem cabeça falta algo muito importante, os olhos.

Comi o coelho que me haviam exibido, tendo antes pedido ao cozinheiro que me explicasse como aquele prato – coelho à caçadora – devia ser preparado.

O cozinheiro ensinou-me mais coisas.

Fui a uma loja na cidade, que vendia animais de estimação. Queria ver um coelho vivo. Havia vários na loja, cinzentos ou brancos, e o olhar evasivo deles, dentro de órbitas pequenas, era difícil de captar.

Ah, que animal manhoso, pensei. Um deles era tão bonito que eu o comprei, mesmo sendo mais caro que os outros. Era um belo coelho angorá, de longos e sedosos pelos brancos.

No caminho de casa, carregando o coelho numa caixa de papelão, parei num mercado para comprar cenouras e batatas.

O coelho não se interessou pelas batatas, mas comeu, instalado no tapete persa da sala, as cenouras com grande dedicação. Enquanto ouvia Brahms, fiquei contemplando a mastigação silenciosa do coelho.

Como se alimentam de maneira delicada os animais, pensei. Evidentemente nunca vi um porco comendo, mas suponho que eles também, ao comer, ainda que possam parecer mais vorazes do que os outros animais, conforme consta na literatura, demonstrem nesse ato, como todos nós, a fragilidade e beleza essenciais à sua singular condição animal. Arte é fome.

O olhar esquivo do coelho me incomodou um pouco, faltava-lhe a candura, a franqueza do olhar da truta. Mas talvez fosse uma questão de sensibilidade e perspicácia – mas quem, qual, seria mais sensível e/ou inteligente que o outro? Eu sabia que na água habitavam alguns dos animais mais inteligentes da natureza; mas a truta não costumava ser incluída entre esses, era conhecida mais pela energia física, pelo vigor peripatético.

Eu nada sabia sobre coelhos. Eram um mistério para mim. Mas sabia, agora, matá-los e cozinhá-los, conforme o cozinheiro do restaurante me havia ensinado.

 

Segurei o coelho pelas orelhas, com a mão esquerda. As pernas do animal se distenderam, mas ele logo as encolheu e lançou-me um olhar. Um olhar significativo e direto, afinal!

“Obrigado, obrigado por esse olhar espontâneo e cândido”, eu disse, sempre segurando o coelho pelas orelhas. Coloquei os rostos, o meu e o do animal, frente a frente, muito próximos. Li o olhar dele, um olhar de obscura curiosidade, de leve interesse, como se o que fosse acontecer não lhe importasse. Não era, pois, um olhar inquisitivo, de sondagem. Estão a me segurar pelas orelhas, é tudo que ele devia estar pensando.

Com a aba da mão direita, os dedos estendidos e juntos, dei um golpe na nuca do coelho. O cozinheiro me assegurara que apenas um golpe seria suficiente para matar o animal.

Mas todos aqueles anos em que passei comendo irregularmente suflês de espinafre, e sentado escrevendo, e deitado ouvindo e lendo os grandes clássicos, haviam contribuído muito pouco para o desenvolvimento da minha força muscular. O coelho, ao receber o golpe, tremeu e continuou com os olhos abertos, agora exprimindo um vago medo. Não era, todavia, um sentimento irracional, o coelho sabia o que estava acontecendo, que estava à mercê de um ente poderoso, que não poderia fugir e só lhe restava a resignação.

Encaramos, um ao outro – o coelho tremendo sem nenhum pudor, os estoicos olhos arregalados.

Foram precisos uns três ou quatro golpes. Finalmente o coelho cessou de se debater.

Eu estava exausto. Deve ser isso o que sente o sujeito que ganha a maratona, pensei ao notar que, junto com a fadiga, sentia uma estuante euforia.

Coloquei a Nona sinfonia de Beethoven no aparelho e fui, inteiramente nu, para a banheira, com o coelho e mais uma faca e dois caldeirões. Tinha receio, naquele primeiro dia, ainda inexperiente, de sujar a cozinha de sangue ao estripar e esfolar o coelho, de acordo com as instruções do cozinheiro.

A faca era afiada e não tive muitas dificuldades. Sentado nu na banheira, realizei a esfoladura e a evisceração do leporídeo. Findo o trabalhos, coloquei as sobras – tripas asquerosas, peles, gânglios – num caldeirão. O coelho, pronto para ser temperado, em outro.

Em seguida lavei a banheira e tomei um longo banho morno.

Do banheiro, que ficara imaculadamente limpo, fui para a cozinha, onde preparei o coelho, ensopado com cenouras e batatas, agora ouvindo os Noturnos de Chopin.

Afinal o coelho estava pronto, à minha frente.

Comecei a saboreá-lo delicadamente, em pequenas porções. Ah!, que prazer excelso! Foi uma lenta refeição que durou a Júpiter, de Mozart, inteira. Mozart não se incomodaria de eu ter usado sua música como mera tafelmusik, se soubesse do gozo que senti.

Depois fui escovar os dentes. Contemplei, através do espelho, pensativo, a banheira. Quem fora mesmo que me dissera que os cabritos tinham um olhar ao mesmo tempo meigo e perverso, uma mistura de pureza e devassidão? E o olhar dos seres humanos? Hum... Aquela banheira era pequena. Precisava comprar uma maior. Talvez uma jacuzzi, das grandes, com jatos estimulantes.

Fiquei vendo meu rosto no espelho. Olhei meus olhos. Olhando e sendo olhado – uma coisa afinal irrefletida, um eixo de aço, lava de um vulcão sendo expelida, nuvem infindável.

O olhar. O olhar.

 (In: Romance negro e outras histórias. [Contos]. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 61-73).

*** 


Sonho de valsa

Antonia Cristina de Alencar Pires

 

Os três seguiram pela estrada de terra vermelha. Atrás deles uma nuvem alaranjada de poeira formava uma espécie de véu. O brilho do sol feria as retinas do menino de olhos grandes e tristes. Sua cabeça doía e ele remexia as lembranças como se elas estivessem no tacho de goiabada de sua avó. As outras pessoas que caminhavam com ele eram os dois homens que conhecera na manhã daquele dia. Um deles carregava uma sanfona velha e o outro segurava uma gaiola onde se espremiam três macaquinhos. No bolso da bermuda, todo amassado, havia um papel de bombom que o menino guardava como um tesouro.

O som da sanfona desafinada enchia a praça. No centro dela estavam os dois homens, cercados por algumas pessoas. O sanfoneiro tocava e os três macaquinhos presos na ponta de uma corda dançavam frenéticos, segurados com força pelo outro homem. No chão, um chapéu surrado aparava as moedas que a pequena assistência jogava. Eles anunciavam a chegada do circo à cidade.

O menino de olhos grandes e tristes ficou toda a manhã na praça. Quando os dois homens se preparavam para sair, pediu-lhes para acompanhá-los.

Enquanto andava, o menino pensava em Nina, sua colega de turma, que se mudara de cidade no final do ano passado. Nunca esqueceria do dia em que ela lhe deu um bombom sonho de valsa, cujo papel ele levava consigo. Agora ele iria ser artista de circo, talvez a encontrasse em alguma cidade por onde a troupe passasse. Primeiro se apresentaria com os macaquinhos, depois, quem sabe, iria para o trapézio ou para o globo da morte. Na plateia, apreensiva mas orgulhosa, Nina o olharia cheia de carinho e depois lhe daria um bombom, um beijo talvez. O calor era como uma lâmina fina a penetrar na carne. A cabeça do menino latejava. Outras imagens borbulhavam no seu tacho de memórias. Lá estava dona Ângela, sua professora da terceira série, com seus olhos lânguidos e seus cabelos seguros por uma presilha de veludo negro. Onde andaria dona Ângela? Um dia avisaram que não haveria aulas para a turma dele. A professora fugira com o namorado, tal qual a personagem do livro de Ziraldo que o menino leu nas férias na casa dos primos. Ele ficou três dias com febre e não foi à escola. Não queria ninguém no lugar de dona Ângela. Por onde ela andaria: o acampamento do circo estava logo depois da ponte de madeira. O menino avistou o caminhão, duas barracas e pessoas ao redor delas. Os três aproximaram-se do grupo. Entre as barracas havia uma trempe onde fervia um caldeirão encarvoado. Dentro, um caldo ralo de fubá. No caldo boiavam alguns pedaços de legumes e rodelas de linguiça. O cheiro não era ruim, mas o menino não quis tomá-lo quando lhe ofereceram um pouco.

O menino de olhos grandes e tristes catou gravetos para a trempe, trouxe água do rio numa lata e ajudou a serrar pedaços de madeira. Executar essas tarefas era a condição para integrar-se à caravana brancaleone. Muito cansado, encostou-se numa árvore. No galho mais alto, um sabiá-laranjeira cantava indiferente às dores do mundo. Indiferente à dor do menino. Ele pensou em um cachorro perdigueiro que morreu de fome e de sede no fundo do quintal. Morreu de amor não correspondido por Laika, a cadela do vizinho. Pensou também no filhote do coelho do mato que encontrou na beira do rio e levou para casa. Acomodou o bicho no cesto de roupa suja. À noite o gato virou o cesto e devorou o filhote.

O menino fechou os olhos. Nina, o coelho do mato, o cachorro, dona Ângela, os macaquinhos valsavam ao som desafinado da sanfona. Ele, de um trapézio a outro, ouvia uma secreta música. No globo da morte ele era o motociclista e fazia acrobacias arriscadas. Era um artista daquele circo mambembe. Daquele circo fantasma.

A manhã já estava alta quando o encontraram sozinho, deitado junto à árvore. Na cabeça havia um ferimento e restos de sangue coalhado pelos cabelos. No posto médico para onde foi levado, disseram tratar-se de mordida de algum animal silvestre. Talvez macacos.

(In: "8º Concurso de Contos Luís Jardim", promovido pela Prefeitura do Recife por meio da Biblioteca Popular da Casa Amarela Jornalista Alcides Lopes. Recife, 2010.)

 

***

Algo de muito grave vai acontecer neste lugar

Gabriel García Márquez

 

Imagine você um povoado bem pequeno, onde há uma velha senhora que tem dois filhos, um de 17 e uma filha de 14. Está servindo-lhes o café da manhã e tem uma expressão de preocupação. Os filhos perguntam-lhe o que se passa e ela lhes responde:

— Não sei, mas acordei com o pressentimento de que algo de muito grave vai acontecer a este lugar.

Eles se riem da mãe. Dizem que são pressentimentos de velha, coisas que passam. O filho vai jogar o bilhar, e no momento em que vai lançar uma carambola1 muito simples,  o outro jogador lhe diz:

— Aposto um peso como não acertas.

Todos riem. Ele se ri. Lança a carambola e não acerta. Paga o peso e todos lhe perguntam o que houve, se era uma carambola simples. Ele responde:

— Está certo, mas me bateu a preocupação de uma coisa que disse minha mãe esta manhã sobre algo grave que vai acontecer no povoado.

Todos se riem dele, e aquele que ganhou o peso volta para casa, onde está com sua mãe ou uma neta, ou enfim qualquer parente. Feliz com seu peso, diz:

— Ganhei este peso de Dámaso da forma mais simples porque é um tonto.

— E por que é um tonto?

— Porque não pode acertar uma carambola bem simples perturbado com a ideia de que sua mãe acordou hoje com a ideia de que algo muito grave vai acontecer no povoado. Então sua mãe lhe disse: “Não deboche dos pressentimentos dos velhos porque às vezes eles acontecem”.

Uma parenta escuta e vai comprar carne. Ela diz ao açougueiro:

— Quero meio quilo de carne – e no momento em que ele corta a carne, ela acrescenta –: Melhor levar um quilo, porque andam dizendo que algo grave vai acontecer e o melhor é estar preparado.

O açougueiro a despacha e quando chega outra senhora para comprar meio quilo de carne, ele diz:

— Leve um quilo, porque chega gente aqui dizendo que algo muito grave vai acontecer, e estão se preparando e comprando coisas.

Então a velha responde:

— Tenho vários filhos. Olhe, é melhor dar-me dois quilos.

Ela leva os dois quilos; e para não tornar a história longa, direi que o açougueiro em meia hora esgotou toda a carne, mata outra vaca, vende tudo e o boato vai se espalhando. Chega o momento em que todo mundo, no povoado, está esperando que aconteça algo. Paralisam-se as atividades e de repente, às duas da tarde, faz calor como sempre. Alguém diz:

— Notaram o calor que está fazendo?

— Mas neste povoado sempre fez calor!

(Tanto calor que é um povoado onde os músicos tinham instrumentos remendados com breu e tocavam sempre à sombra, porque se tocassem no sol eles cairiam aos pedaços.)

— No entanto – disse alguém – a esta hora nunca fez tanto calor.

— Mas às duas da tarde é quando faz mais calor.

— Sim, mas não tanto como agora.

No povoado deserto, a praça deserta, pousa de repente um passarinho e a notícia corre:

— Há um passarinho na praça.

E vem todo mundo, espantado, para ver o passarinho.

— Mas senhores, sempre houve passarinhos pousando.

— Sim, mas nunca a esta hora.

Chega um momento de tal tensão para os habitantes do povoado, que todos estão desesperados para irem embora e não têm coragem de fazê-lo.

— Eu sim sou muito macho – grita alguém –. Eu vou embora.

Agarra seus móveis, seus filhos, seus animais, os mete numa carreta e atravessa a rua central onde está o pobre povo assistindo-o. Até o momento em que dizem:

— Se ele se atreve, pois nós também vamos.

E começam literalmente a desmantelar o povoado. Levam as coisas, os animais, tudo.

E um dos últimos a abandonar o povoado, diz:

— Que não venha a desgraça a cair sobre o que resta de nossa casa – e então a incendeia e outros incendiam também suas casas.

Fogem num tremendo e verdadeiro pânico, como num êxodo de guerra, e em meio a eles, vai a senhora que teve o presságio, clamando:

— Eu disse que algo muito grave ia acontecer, e disseram que eu estava louca.

(Traduzido do espanhol por Isabel Pires. Contado2 por Gabriel García Márquez no XIII Congreso Interamericano de Literatura, Caracas, 1967.) Disponível em espanhol em: 

https://ciudadseva.com/texto/algo-muy-grave-va-a-suceder-en-este-pueblo/

___________

NOTAS:

1 No jogo do bilhar, a “carambola” é conseguida quando a bola do jogador toca em outras duas bolas. (Fonte: Wikipedia).

2 Este conto foi utilizado por García Márquez nesse Congresso para exemplificar a diferença entre “contar um conto” e “escrever um conto”.

***


Flor, telefone, moça

Carlos Drummond de Andrade

Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.  

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.  

– Sei de um caso de flor que é tão triste!  

E sorrindo:  

– Mas você não vai acreditar, juro.  

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.  

– Era uma moça que morava na rua General Polidoro, começou ela. Perto do cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que de não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.  

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstito até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!  

– No interior isso não é raro…  

– Mas a moça era de Botafogo.  

– Ela trabalhava?  

– Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir a certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.  

– Que flor?  

– Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já se esperava , depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.  

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.  

– Alooô…  

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?  

A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:  

– O quê?  

Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.  

– Alô.  

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?  

Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.  

– Está aqui comigo, vem buscar.  

No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:  

– Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.  

Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:  

– Vem buscar, estou te dizendo.  

– Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.  

– Mas quem está falando aí?  

– Me dá minha flor, eu estou te suplicando.  

– Diga o nome, senão eu não dou.  

– Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.  

O trote era estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.  

Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.  

– Alô!  

– Quede a flor…  

Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada, voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:  

– Olhe, vire a chapa. Já está pau.  

– Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.  

– Esta é fraquinha. Não sabe de outra?  

E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo que a moça começou a ter medo.  

– E eu também.  

– Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.  

A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.  

– A voz chamou hoje? indagava o pai, chegando da cidade.  

– Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.  

Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?  

O rapaz começou a tocar para todos os telefones da rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era , desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.  

Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem para as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem de restituir” etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava explicações.  

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. Então, o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica…  

– Mas é a tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?  

– Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranquilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.  

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…  

O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas.  

A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente, sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.  

Mas a “voz” não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?  

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos eram impotentes, esses poderes, quando alguém quer alguma coisa de sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?  

– Mas, e a moça?  

– Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.  

 [1951] 

(In: Contos de aprendiz. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 61-66)

 

***



A biblioteca de Babel

Jorge Luís Borges

 

By this art you may contemplate the variation of the 23 letters...

(The Anathomy of Melancholy,part. 2, sec. ii, mem. iv) 


O universo (que outros chamam de Biblioteca) se compõe de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono se veem os pisos inferiores e superiores: interminavelmente.

A distribuição da galeria é invariável. Vinte prateleiras, até cinco prateleiras compridas de cada lado, cobrem todos os lados, exceto dois; sua altura, que é a dos pisos, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres conduz a um corredor estreito, que conduz a outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do corredor há dois armários minúsculos.

Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades finais. Por ali passa a escada em caracol, que mergulha no abismo e se eleva ao longe. No saguão há um espelho, que duplica fielmente as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se realmente fosse, por que essa duplicação ilusória?); prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz vem de frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. São duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.

Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, acaso do catálogo dos catálogos; agora que meus olhos mal conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a algumas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem por cima da varanda; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo afundará por muito tempo e corromperá e dissolverá no vento engendrado pela queda, que é infinita.

Afirmo que a Biblioteca é infinita. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Eles raciocinam que uma sala triangular ou pentagonal é inconcebível. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que contorna todas as paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me, por ora, repetir o ditame clássico: A Biblioteca é uma esfera cujo centro exato é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.

A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro possui quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta linhas; cada linha, cerca de oitenta letras pretas. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Eu sei que essa desconexão, alguma vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da história) quero recordar alguns axiomas.

O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou de demiurgos malévolos; o universo, com sua elegante dotação de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas ​​para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trêmulos que minha mão falível rabisca na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negrísimas, inimitavelmente simétricas.[1]     

O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco. Essa constatação permitiu, há trezentos anos atrás, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura havia decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro, consistia nas letras MCV perversamente repetidas da primeira à última linha. Outro (muito consultado nesta área) é um mero labirinto de letras, mas a penúltima página diz Oh tempo tuas pirâmides. Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia reta há léguas de insensatas cacofonias, confusões verbais e incoerências. (Sei de uma região selvagem cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de buscar sentido nos livros e o equiparam a procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual e que os livros nada significam em si. Essa opinião, já veremos, não é totalmente falaciosa.

Durante muito tempo acreditou-se que esses livros impenetráveis ​​correspondiam a línguas passadas ou remotas. É verdade que os homens mais velhos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que noventa pisos acima é incompreensível. Tudo isso, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas do inalterável MCV não podem corresponder a nenhuma língua, por mais dialetal ou rudimentar que seja. Alguns insinuaram que cada letra poderia influir na subsequente e que o valor de MCV na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série em outra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceita, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.

Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior[2] se deparou com um livro tão confuso quanto os outros, mas que tinha quase duas folhas de linhas homogêneas. Ele mostrou sua descoberta a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam escritos em português; outros lhe disseram que era iídiche. Antes de um século, a língua pôde ser estabelecida: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões do árabe clássico.

O conteúdo também foi decifrado: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram a um genial bibliotecário descobrir a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por mais diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Ele também alegou um fato que todos os viajantes têm confirmado: Não há na vasta Biblioteca dois livros idênticos.

Dessas premissas incontestáveis, deduziu que a Biblioteca é total e que suas estantes registram todas as combinações possíveis dos vinte e tantos símbolos ortográficos (um número, embora vasto, não infinito), ou seja, tudo o que pode ser expresso: em todas as línguas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário sobre esse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de sua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Bede poderia ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo usurpou abruptamente as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo muito se falou sobre as Vindicações: livros de apologia e profecia, que vindicavam para sempre os atos de cada homem do universo e guardavam prodigiosos arcanos para seu futuro. Milhares de gananciosos abandonaram o doce hexágono natal e se lançaram escadas acima, movidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos túneis, eram mortos em penhascos por homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas do futuro, talvez não imaginárias) mas os buscadores não se lembraram que a possibilidade de um homem encontrar a sua, ou alguma variação pérfida da sua, é computável a zero.

Também esperou-se então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É provável que esses graves mistérios possam ser explicados em palavras: se não bastasse a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca terá produzido a linguagem inédita que se requer e os vocabulários e gramáticas dessa língua. Faz quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos... Há buscadores oficiais, inquisidores. Eu os tenho visto no desempenho de sua função: sempre chegam exaustos; falam de uma escada sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; algumas vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.

À esperança desenfreada, seguiu-se, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, parecia quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens embaralhassem letras e símbolos, até construírem, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As autoridades se viram obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi velhos que por muito tempo se esconderam nas latrinas, com alguns discos de metal em um copo proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.

Outros, inversamente, acreditavam que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam entediados um volume e condenavam estantes inteiras: a seu furor higiênico, ascético, se deve a insensata destruição de milhões de livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os "tesouros" que seu frenesi destruiu negligenciam dois fatos notórios. Um: a Biblioteca é tão grande que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (já que a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que diferem apenas por uma letra ou uma vírgula. Ao contrário da opinião geral, me atrevo a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores têm sido exageradas pelo horror que esses fanáticos causaram. Foram impelidos pelo delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.

Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinavam os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os outros: algum bibliotecário o examinou e é análogo a um deus. Na linguagem desta área ainda persistem vestígios do culto desse remoto funcionário. Muitos peregrinaram em busca Dele.

Durante um século eles trabalharam em vão nas mais diversas direções. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito... Em aventuras como essas, esbanjei e consumi meus anos. Não me parece improvável que em alguma estante do universo haja um livro total[3]; Rogo aos deuses desconhecidos para que um homem  apenas um, mesmo que fosse, há milhares de anos!  o tenha examinado e lido. Se a honra, a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para os outros. Que o céu exista, mesmo que meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num só ser, Tu, enorme Biblioteca, se justifique.

Afirmam os ímpios que o absurdo é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é uma quase milagrosa exceção. Falam (eu sei) da "Biblioteca febril, cujos volumes aleatórios correm o incessante risco de se transformarem em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade delirante". Essas palavras que não só denunciam a desordem mas também a exemplificam, notoriamente provam seu péssimo gosto e sua desesperada ignorância.  

Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que os vinte e cinco símbolos ortográficos permitem, mas nem um só disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trovão penteado, e outro A câimbra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, são sem dúvida passíveis de justificação criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar alguns caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em algumas de suas línguas secretas não encerram um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não seja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas línguas o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e prolixa já existe em um dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis ​​hexágonos – e também sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição onipresente e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem têm outro valor. Tu, que me lês, estás seguro de entender minha linguagem?).

A escrita metódica me distrai da condição atual dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos torna fantasmas. Conheço bairros onde os jovens se prostram diante dos livros e beijam as páginas barbaramente, mas não sabem decifrar uma só letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio haver mencionado os suicídios, a cada ano mais frequentes. Quiçá me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está prestes a se extinguir e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.

Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjetivo por hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores, as escadas e os hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Quem o imagina sem limites esquece que os tem o número possível de livros. Atrevo-me a sugerir esta solução para o velho problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao longo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.[4]

 

Mar del Plata, 1941

 

_____________

NOTAS

[1] O manuscrito original não contém algarismos ou letras maiúsculas. A pontuação foi limitada à vírgula e ao ponto. Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do editor).

[2] Antes, para cada três hexágonos havia um homem. Suicídio e doenças pulmonares destruíram essa proporção. Memória de indescritível melancolia: Às vezes tenho viajado muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.

[3] Repito: basta que um livro seja possível para que ele exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, ainda que haja, sem dúvida, livros que discutem, negam e demonstram essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.

[4] Letizia Álvarez Toledo observou que a vasta Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um só volume, de formato comum, impresso em novo corpo ou corpo dez, que constará de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, no início do século XVII, dizia que todo corpo sólido é a superposição de um número infinito de planos.) O manuseio desse vademecun sedoso não seria confortável: cada folha aparentemente se desdobraria em outras semelhantes; a inconcebível folha central não teria reverso.

 

(In: El jardín de senderos que se bifurcan, 1941; Ficciones, 1944). Traduzido do espanhol por Isabel Pires. Disponível em espanhol em: http://www.literatura.us/borges/biblioteca.html

 

***


A chave na porta

Lygia Fagundes Telles

 

A chuva fina. E os carros na furiosa descida pela ladeira, nenhum táxi? A noite tão escura. E aquela árvore solitária lá no fim da rua, podia me abrigar debaixo da folhagem mas onde a folhagem? Assim na distância era visível apenas o tronco com os fios das pequeninas luzes acesas, subindo em espiral na decoração natalina. Uma decoração meio sinistra, pensei. E descobri, essa visão lembrava uma chapa radiográfica revelando apenas o esqueleto da árvore, ah! tivesse ela braços e mãos e seria bem capaz de arrancar e atirar longe aqueles fios que deviam dar choques assim molhados.

— Quer condução, menina?

Recuei depressa quando o carro arrefeceu a marcha e parou na minha frente, ele disse menina? O tom me pareceu familiar. Inclinei-me para ver o motorista, um homem grisalho, de terno e gravata, o cachimbo aceso no canto da boca. Mas espera, esse não era o Sininho? Ah! é claro, o próprio Sininho, um antigo colega da Faculdade, o simpático Sininho! Tinha o apelido de Sino porque estava sempre anunciando alguma novidade. Era burguês mas dizia-se anarquista.

— Sininho, é você!

Ele abriu a porta e o sorriso branquíssimo, de dentinhos separados.

— Um milagre, eu disse enquanto afundava no banco com a bolsa e os pequenos pacotes. Como conseguiu me reconhecer nesta treva?

— Estes faróis são poderosos. E olha que já lá vão quarenta anos, menina. Quarenta anos de formatura! Aspirei com prazer a fumaça do cachimbo e que se misturava ao seu próprio perfume, alfazema? E não parecia ter envelhecido muito, os cabelos estavam grisalhos e a face pálida estava vincada mas o sorriso muito claro não era o mesmo? E me chamava de menina, no mesmo tom daqueles tempos. Acendi um cigarro e estendi confortavelmente as pernas, mas espera, esse carrão antiquado não era o famoso Jaguar que gostava de exibir de vez em quando?

— O próprio.

Fiquei olhando o belo painel com o pequeno relógio verde embutido na madeira clara.

— Você era rico e nós éramos pobres. E ainda por cima a gente lia Dostoievski.

— Humilhados e ofendidos!

Rimos gostosamente, não era mesmo uma coisa extraordinária? Esse encontro inesperado depois de tanto tempo. E em plena noite de Natal. Contei que voltava de uma reunião de amigos, quis sair furtivamente e para não perturbar inventei que tinha condução. Quando começou a chuva.

—Acho essas festas tão deprimentes, eu disse.

Ele então voltou-se para me ver melhor. Dei-lhe o meu endereço. No farol da esquina ele voltou a me olhar. Passou de leve a mão na minha cabeça mas não disse nada. Guiava como sempre, com cuidado e sem a menor pressa. Contou que voltava também de uma reunião, um pequeno jantar com colegas mas acrescentou logo, eram de outra turma. Tentei vê-lo através do pequeno espelho entortado, mas não era incrível? Eu me sentir assim com a mesma idade daquela estudante da Academia. Outra vez inteira? Inteira. E também ele com o seu eterno carro, meu Deus! na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. Ou quase, pensei ao ouvir sua voz um tanto enfraquecida, rateando como se viesse de alguma pilha gasta. Mas resistindo.

— Quarenta anos como se fossem quarenta dias, ele disse. Você usava uma boina.

— Sininho, você vai achar isso estranho mas tive há pouco a impressão de ter recuperado a juventude. Sem ansiedade, ô! que difícil e que fácil ficar jovem outra vez.

Ele reacendeu o cachimbo, riu baixinho e comentou, ainda bem que não havia testemunhas dessa conversa. A voz ficou mais forte quando recomeçou a falar em meio das pausas, tinha asma? Contou que depois da formatura foi estudar na Inglaterra. Onde acabou se casando com uma colega da universidade e continuaria casado se ela não tivesse inventado de se casar com outro. Então ele matriculou o filho num colégio, tiveram um filho. E em plena depressão ainda passou por aquela estação no inferno, quando teve uma ligação com uma mulher casada. Um amor tão atormentado, tão louco, ele acrescentou. Vivemos juntos algum tempo, ela também me amava mas acabou voltando para o marido que não era marido, descobri mais tarde, era o próprio pai.

— O pai?!

— Um atroz amor de perdição. Fiquei destrambelhado, desandei a beber e sem outra saída aceitei o que me apareceu, fui lecionar numa pequena cidade afastada de Londres. Um lugar tão modesto mas deslumbrante. Deslumbrante, ele repetiu depois de um breve acesso de tosse. Nos fins de semana viajava para visitar o filho mas logo voltava tão ansioso. Fiquei muito amigo de um abade velhíssimo, Dom Matheus. Foi ele que me deu a mão. Conversávamos tanto nas nossas andanças pelo vasto campo nas redondezas do mosteiro. Recomecei minhas leituras quando fui morar no mosteiro e lecionar numa escola fundada pelos religiosos, meus alunos eram camponeses.

— Você não era ateu?

— Ateu? Era apenas um ser completamente confuso, enredado em teias que me tapavam os olhos, os ouvidos… Fiquei por demais infeliz com o fim do meu casamento e não me dei conta disso. E logo em seguida aquele amor que foi só atormentação. Sofrimento. Aos poucos, na nova vida tão simples em meio da natureza eu fui encontrando algumas respostas, eram tantas as minhas dúvidas. Mas o que eu estou fazendo aqui?! me perguntava. Que sentido tem tudo isto? Ficava muito em contato com os bichos, bois. Carneiros. Fui então aprendendo um jogo que não conhecia, o da paciência. E nesse aprendizado acabei por descobrir… (fez uma pausa) por descobrir…

Saímos de uma rua calma para entrar numa travessa agitada, quase não entendia o que ele estava dizendo, foi o equilíbrio interior que descobriu ou teria falado em Deus?

— Depois do enterro de Dom Matheus, despedi-me dos meus amigos, fui buscar meu filho que já estava esquecendo a língua e voltei para o Brasil, a gente sempre volta. Voltei e fui morar sabe onde? Naquela antiga casa da rua São Salvador, você esteve lá numa festa, lembra?

— Mas como podia esquecer? Uma casa de tijolinhos vermelhos, a noite estava fria e vocês acenderam a lareira, fiquei tão fascinada olhando as labaredas. Me lembro que quando atravessei o jardim passei por um pé de magnólia todo florido, prendi uma flor no cabelo e foi um sucesso! Ah, Sininho, voltou para a mesma casa e este mesmo carro…

Ele inclinou-se para ler a tabuleta da rua. Empertigou-se satisfeito (estava no caminho certo) e disse que os do signo de Virgem eram desse jeito mesmo, conservadores nos hábitos assim no feitio dos gatos que simulam um caráter errante mas são comodistas, voltam sempre aos mesmos lugares. Até os anarquistas, acrescentou zombeteiro em meio de uma baforada.

Tinha parado de chover. Apontei-lhe o edifício e nos despedimos rapidamente porque a fila dos carros já engrossava atrás. Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviada mas ele devia estar sabendo, eu não precisava mais falar. Entregou-me os pacotes. Beijei sua face em meio da fumaça azul. Ou azul era a névoa?

Quando subia a escada do edifício, dei por falta da bolsa e lembrei que ela tinha caído no chão do carro numa curva mais fechada. Voltei-me. Espera! cheguei a dizer. E o Jaguar já seguia adiante. Deixei os pacotes no degrau e fiquei ali de braços pendidos: dentro da bolsa estava a chave da porta, eu não podia entrar. Através do vidro da sua concha, o porteiro me observava. E me lembrei de repente, rua São Salvador! Apontei para o porteiro os meus pacotes no chão e corri para o táxi que acabava de estacionar.

— É aqui! Quase gritei assim que vi o bangalô dos tijolinhos. Antes de apertar a campainha, fiquei olhando a casa ainda iluminada. Não consegui ver a garagem lá no fundo, mergulhada na sombra mas vislumbrei o pé de magnólia, sem as flores mas firme no meio do gramado. Uma velhota de uniforme veio vindo pela alameda e antes mesmo que ela fizesse perguntas, já fui me desculpando, lamentava incomodar assim tarde da noite mas o problema é que tinha esquecido a bolsa no carro do patrão, um carro prateado, devia ter entrado há pouco. Ele me deu carona e nessa bolsa estava a minha chave. Será que ela podia?…

A mulher me examinou com o olhar severo. Mas que história era essa se o patrão nem tinha saído e já estava até se recolhendo com a mulher e os gêmeos? Carro prateado? Como esqueci a bolsa num carro prateado se na garagem estavam apenas os carros de sempre, o bege e o preto?

— Decerto a senhora errou a casa, dona, ela disse e escondeu a boca irônica na gola do uniforme. Em noite de tanta festa a gente faz mesmo confusão…

Tentei aplacar com as mãos os cabelos que o vento desgrenhou.

— Espera, como é o nome do seu patrão?

— Doutor Glicério, ora. Doutor Glicério Júnior.

— Então é o pai dele que estou procurando, estudamos juntos. Mora nesta rua, um senhor grisalho, guiava um Jaguar prateado…

A mulher recuou fazendo o sinal-da-cruz:

— Mas esse daí morreu faz tempo, meu Deus! É o pai do meu patrão mas ele já morreu, fui até no enterro… Ele já morreu!

Fechei o casaco e fiquei ouvindo minha voz meio desafinada a se enrolar nas desculpas, tinha razão, as casas desse bairro eram muito parecidas, Devo ter me enganado, é evidente, fui repetindo enquanto ia recuando até o táxi que me esperava.

O motorista tinha o rádio ligado numa música sacra. Pedi-lhe que voltasse para o ponto.

Já estava na escada do edifício quando o porteiro veio ao meu encontro para avisar que um senhor tinha vindo devolver a minha bolsa:

— Não é esta?

Fiz que sim com a cabeça. Quando consegui falar foi para dizer, Ah! que bom. Abri a bolsa e nela afundei a mão mas alguma coisa me picou o dedo. Fiz nova tentativa e dessa vez trouxe um pequeno botão de rosa, um botão vermelho enredado na correntinha do chaveiro. Na extremidade do cabo curto, o espinho. Pedi ao porteiro que depois levasse os pacotes e subi no elevador.

Quando abri a porta do apartamento tive o vago sentimento de que estava abrindo uma outra porta, qual? Uma porta que eu não sabia onde ia dar mas isso agora não tinha importância. Nenhuma importância, pensei e fiquei olhando o perfil da chave na palma da minha mão. Deixei-a na fechadura e fui mergulhar o botão no copo d’água. Agora desabrocha! pedi e toquei de leve na corola vermelha.

Debrucei-me na janela. Lá embaixo na rua, a pequena árvore (parecida com a outra) tinha a mesma decoração das luzes em espiral pelo tronco enegrecido. Mas não era mais a visão sinistra da radiografia revelando na névoa o esqueleto da árvore, ao contrário, o espiralado fio das pequeninas luzes me fez pensar no sorriso dele, luminoso de tão branco.

(In: Invenção e memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 89)

*** 


O Peru de Natal

Mário de Andrade

 

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

– Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

– Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…

– Meu filho, não fale assim…

– Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

– É louco mesmo!…

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

– Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

– Eu que sirvo!

“É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

– Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

– Só falta seu pai…

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

– É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…

[1942 - Revista da Academia Paulista de Letras]

(In: Nós e o Natal. Prefácio de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Artes Gráficas Gomes de Souza, 1964, pág. 19-23.)

***

A igreja do Diabo

Machado de Assis

Capítulo I

De uma ideia mirífica

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

 

Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; um de negar tudo.

 

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.



Capítulo II 

Entre Deus e o Diabo


Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins, que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

 

   Que me queres tu? perguntou este.

 

           —  Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

 

   Explica-te.

 

               —  Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros.


              —   Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

                  —  Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?

 

   Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.

 

         —  Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos  mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.

 

   Vai.

 

   Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?

 

      —  Não é preciso; basta que me digas desde por que motivo, cansado tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.

 

O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:

 

          —  agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...

 

   Velho retórico! murmurou o Senhor.

 

          —  Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor, a indiferença, ao menos, com que esse cavalheiro põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...

 

Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram  no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.

 

           —  Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?

 

   vos disse que não.

 

            —  Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas a franja de algodão?

 

   Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.

 

   Negas esta morte?

 

            —  Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos  outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...

 

          —  Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!

 

             Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os  serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.


Capítulo III

A boa nova aos homens 


Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.

 

          —  Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,  a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...

 

Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.

 

Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.

 

As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.


Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. 


E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele. 


Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor ao próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria. 


Capítulo IV

Franjas e franjas


A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de triunfo.

 

Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos  avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros.

 

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas, socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinquenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso era verdadeiro.

 

Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:

 

         —  Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.


(Publicado originalmente no livro Histórias sem data, de 1884. Rio de Janeiro, Editora Garnier.)


***


Baleia


Graciliano Ramos 




A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.


Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.


Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.


Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:


 Vão bulir com a Baleia?


Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.


Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.


Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.


Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.


Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.


Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:  


 Capeta excomungado.


Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.


Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.


Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável. 


Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era  impossível, levantou um pedaço da cabeça.


Fabiano percorreu o alpendre, olhando as baraúnas e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:


— Ecô! ecô!


Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.


Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se. 


E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.


Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.


Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.


Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.


Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-­se.  


Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade. 


Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava:  certamente os preás tinha fugido.


Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.


O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.


Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança. 


Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.


Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.


Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.


Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.


Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.


Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.


A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.


Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.


Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. 


                    (Publicado originalmente em O Jornal, em 23/05/1937, posteriormente incluído como capítulo do livro Vidas secas, de 1938).



***



Mãe

Rubem Braga

(Crônica dedicada ao Dia das Mães, embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)

O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.

Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.

Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — “que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel” — “que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa” — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:

— Cadê Joãozinho?

O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.

— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!

O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:

— O menino tem OITO anos, Maria!

— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse!

E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.

— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.

Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.

Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado — “mas a Niquinha com o coronel? não é possível!” — quando a Mãe se ergueu de repente:

— E o Joãozinho?

Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — “deve estar por aí”, a Mãe gradativamente nervosa — “mas por aí, onde?” — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.

— Joãozinho!

O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.

— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.

A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. “Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!” O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: “Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?”.

— Acho que entrou… ou então foi-se embora.

De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta praia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas — “Joãozinho!”.

Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — “Joãozinho!” — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — “Joãozinho!” — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!

O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:

— Mãe é chaaata… 

(Publicado originalmente no Correio da Manhã, em 08/05/1953.)


***


Natal na barca

Lygia Fagundes Telles

 

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje…

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre… Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito… Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado… A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido…

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio… Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto… Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

– Chegamos!… Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja…

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

[1958]

(In: Antes do baile verde, 2ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1971).


***



Bezerro sem mãe

Rachel de Queiroz

Foi numa fazenda de gado, no tempo do ano em que as vacas dão cria. Cada vaca toda satisfeita com o seu bezerro. Mas dois deles andavam tristes de dar pena: uma vaca que tinha perdido o seu bezerro e um bezerro que ficou sem mãe.

A vaquinha até parecia estar chorando, com os peitos cheios de leite, sem filho para mamar. E o bezerro sem mãe gemia, morrendo de fome e abandonado.

Não adiantava juntar os dois, porque a vaca não aceitava. Ela sentia pelo cheiro que o bezerrinho órfão não era filho dela, e o empurrava para longe.

Aí o vaqueiro se lembrou do couro do bezerro morto, que estava secando ao sol. Enrolou naquele couro o bezerrinho sem mãe e levou o bichinho disfarçado para junto da vaca sem filho.

Ora, foi uma beleza! A vaca deu uma lambida no couro, sentiu o cheiro do filho e deixou que o outro mamasse à vontade. E por três dias foi aquela mascarada.
Mas no quarto dia, a vaca, de repente, meteu o focinho no couro e puxou fora o disfarce. Lambeu o bezerrinho direto, como se dissesse: “Agora você já está adotado”.

E ficaram os dois no maior amor, como filho e mãe de verdade.

(In: Meninos, eu conto, coletânea com diversos autores. Rio de Janeiro: Record, 2002)

 

***


Entre santos

Machado de Assis

 

Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.

Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.

O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era.

Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranquilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma ideia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante ideia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária.

Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos.

Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.

Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.

Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.

Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais enojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça. 

Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens. 

Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.

Eu?

Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

Que pessoa?

Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel...

Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.

Melhor é o meu caso.

Melhor que isto? perguntou S. José curioso.

Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é.

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que veem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar.

Tem cinquenta anos o meu homem, disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.

Bem podia ser que sim, ponderou S. João.

Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas, contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...

E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros.

O cadáver?

Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito.

Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel.

Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a ideia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção.

Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância.

Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma ideia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher - intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar.

Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José.

Alguma tem, mas vaga, e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.

Bem, ajoelhou-se e rezou.

Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...

No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre.

Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem.

O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse...

Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.

E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranquilo, beato e católico.

Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.

[1886, Gazeta de Notícias. 1896, Várias Histórias] 

(In: Várias Histórias. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc Editores, 1946).

 

***

Padre Virgílio

Marcelo Araújo

 

Difícil lembrar quanto tempo fiquei ajoelhado, orando em silêncio, em frente ao altar. Gostava de me entregar a esse ato de fervor e não eram raras as vezes em que a reza me transportava para longe, para contentamento de Padre Virgílio, religioso responsável por minha paróquia. Um senhor com mais de sessenta anos, com seus cabelos brancos e porte físico modesto, Padre Virgílio era muito simpático e cativava todos da paróquia com sua gentileza e disponibilidade para ajudar o próximo. Só mesmo uma ou outra matraca fofoqueira da comunidade para eventualmente tecer algum comentário maldoso contra Virgílio; comentário esse logo afastado com veemência pelos demais.

A enorme estátua barroca do Cristo, com sangue escorrendo dos membros crucificados e de outras partes do corpo, dava inspiração para meu fervor. De repente, um barulho de sinos chamou a minha atenção. Abri os olhos e notei que o Padre Virgílio havia deixado o local.

Estava só.

Achei que Padre Virgílio saíra do ambiente para tocar os sinos, que começaram a soar. Mas, que eu saiba, não era hora de fazer isso e nem dia de missa. Outro fato curioso era que as badaladas não pararam. Começaram a se repetir indefinidamente. Pensava em me levantar e ir perguntar ao padre por que os sinos tocavam tanto e fora de hora. Come- moravam alguma data da qual não me lembrava?

Quando ia me levantar, um ruído diferente voltou a atrair minha atenção. Fui detido em meu lugar por um som distante, algo como pessoas rezando. O som cresceu rapidamente e identifiquei que se tratava de um coral.

Mais forte e mais forte, esse som – com várias vozes, difusas, masculinas e femininas ia enchendo meus ouvidos. Olhava para todos os lados da igreja, sem ver qualquer pessoa, apesar da potência do som. Poderia dizer que se tratava de uma melodia barroca mergulhada em ferocidade. Tinha a impressão de que a igreja ia desabar, com tanto barulho. Os sinos ainda tocavam ao fundo e eu me questionava se havia alguma encenação ou espetáculo programado para aquela hora, com a permissão de Padre Virgílio. Ele teria avisado.

Logo, ao coral invisível, somaram-se sopros; provavelmente trombetas. Enquanto as vozes entoavam linhas sombrias, sopros riscavam o ar paralelamente e com estridência. Meus ouvidos doíam quando isso acontecia.

No caos sonoro, uma imagem aterradora quase me derrubou: o Cristo pregado na parede agora estava de cabeça para baixo. As tintas da pintura barroca haviam se convertido em sangue, que escorria por todo o corpo da estátua. No peito, repleto de marcas, tinha-se a impressão de que a carne de Jesus estufava, como se o coração, por dentro dela, crescesse e quisesse saltar para fora, rasgando tudo. As faces do Messias aparentavam mais melancolia do que nunca. Na verdade, seu olhar exalava terror, medo, como se pedisse socorro.

Meu Deus! eu disse.

Minha voz se perdeu em meio ao coro.

O meu espanto só aumentou ao ver que a estátua de Jesus Cristo começava um inusitado movimento. Mexia lentamente, a cabeça, de um lado para ou outro. Eu tentava juntar forças e correr para fora da igreja, para longe daquilo tudo. Algo me segurava, como se no meu interior quisesse, apesar de todo o medo, assistir à sequência do espetáculo macabro que desfilava ante meus olhos.

E não apenas do Cristo escorria sangue. Vi que do teto e por todas as paredes da igreja começava a descer um líquido vermelho vivo, escuro e grosso. Era sangue se espalhando por toda a igreja, escorrendo pelo piso e chegando perto dos meus pés.

Eis que, como se um maestro ordenasse, a música parou. O Cristo continuava a movimentar a cabeça, única parte do corpo totalmente livre, e me olhava. O sangue, inundava o piso da igreja, como a água de uma enchente.

O silêncio era quase total, exceto por minha respiração ofegante.

Então, as portas da igreja bateram, com enorme impacto. Vi que precisava sair dali imediatamente. Reuni as forças que parecia ter perdido e corri para as portas.

Tentei inutilmente abri-las. Não conseguia puxá-las. Meu retiro de fé se transformou numa terrível prisão e sabe lá o que me esperava.

Berrei o que pude, na esperança de que alguém, passando, me ouvisse e trouxesse socorro. Não obtive resposta.

Para meu terror, comecei a ouvir passos pela saída do lado esquerdo do altar. Virei e olhei fixo para o altar.

Padre Virgílio? É o senhor? Padre Virgílio!

Desesperei-me ao ver que quem chegava não era o religioso.

Poderia ser um monge, com uma vestimenta semelhante à desses religiosos, cobrindo todo o seu corpo. Um capuz caía-lhe por sobre o rosto. A roupa era negra, com uma faixa vermelha amarrada na cintura. Ainda usava luvas escuras e trazia em uma das mãos uma vela vermelha.

Ele andou na direção do altar. Colocou a vela no castiçal e começou a falar. Era uma voz grossa e rouca, de um homem. Eis que o verdadeiro reinado se aproxima.

Ele virou-se e observou o Cristo, que também o encarava, com o sangue escorrendo dos pés e manchando todo o seu rosto.

Impostores serão desmascarados. Está escrito apenas nas sombras: “Queimem comigo”.

De longe, eu via aquele ato de heresia, num misto de incredulidade e ofensa.

A figura me olhou, apontou o dedo para mim e disse:

e conte o que viu. Tudo nos pertence!

Virei para as portas e elas logo se abriram. Antes de sair, olhei mais uma vez para dentro e me surpreendi. O homem de capuz havia desaparecido e tudo voltara a ser como antes, dentro da igreja. Não havia mais sangue no chão ou nas paredes e a imagem de Jesus aparecia na posição correta, não mais invertida. Também não se mexia e tornara a ser apenas uma estátua. Reinava o silêncio.

Eu teria sofrido algum delírio? Estava sonhando?

Não tinha coragem de entrar outra vez na igreja, principalmente após ouvir outra vez passos saindo do mesmo lugar por onde a figura sinistra saiu.

Para meu alívio, não era a figura diabólica, que até há alguns instantes estava ali, blasfemando no altar. Quem apareceu foi Padre Virgílio. Respirei tranquilo por uns instantes. Nem sabia se tinha coragem de contar para o padre a minha visão. Então percebi que o religioso Virgílio estava sério, muito sério, sem a simpatia que demonstrava habitualmente.

Ele me encarou com ar severo e apontou o dedo para mim.

ordenou o clérigo, em voz alta.

Imediatamente comecei a correr e desapareci na escuridão.

 

(In: Não abra: contos de terror. Brasília: Thesaurus, 2008, p. 99-102.)

 

***


0 Comments:

Post a Comment

<< Home