Os cem contos que amei ler III (Mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.
41. Terra (Rachel de Queiroz)
42. Seminário dos Ratos (Lygia Fagundes Telles)
43. O homem nu (Fernando Sabino)
44. O batizado da vaca (Chico Anysio)
45. O afogado (Rubem Braga)
46. Os laços de família (Clarice Lispector)
47. Olhar (Rubem Fonseca)
48. Sonho de valsa (Antonia Cristina de Alencar Pires)
49. Algo de muito grave vai acontecer neste lugar (Gabriel García Márquez)
50. Flor, telefone, moça (Carlos Drummond de Andrade)
51. A biblioteca de Babel (Jorge Luís Borges)
52. A chave na porta (Lygia Fagundes Telles)
53. O peru de Natal (Mário de Andrade)
54. A igreja do Diabo (Machado de Assis)
55. Baleia (Graciliano Ramos)
56. Mãe (Rubem Braga)
57. Natal na barca (Lygia Fagundes Telles)
58. Bezerro sem mãe (Rachel de Queiroz)
59. Entre santos (Machado de Assis)
60. Padre Virgílio (Marcelo Araújo)
Terra
Rachel de Queiroz
Chegam os amigos de visita pelo sertão e nos seus olhos leio o espanto, e quando não é espanto pelo menos é estranheza: que é que nos prenderá nesta secura e nesta rusticidade? Ou, nos meses que precedem a secura, os excessos dos invernos nordestinos, as águas torrenciais, os caminhos desfeitos, as várzeas alagadas, qualquer comunicação interrompida.
Tudo tão pobre. Tudo tão longe do conforto e da civilização, da boa cidade com as suas pompas e as suas obras. Aqui, a gente tem apenas o mínimo e até esse mínimo é chorado.
Nem paisagem tem, no sentido tradicional de paisagem. Agora, por exemplo, fins-d'águas e começo de agosto, o mato já está todo zarolho. E o que não é zarolho é porque já secou. Folha que resta é vermelha, caíram as últimas flores das catingueiras e dos paus-d'arco, e não haveria mais flor nenhuma não fossem as campânulas das salsas, roxas e rasteiras.
No horizonte largo tudo vai ficando entre sépia e cinza, salvo as manchas verdes, aqui e além, dos velhos juazeiros ou das novatas algarobas. E os serrotes de pedra do Quixadá também trazem a sua nota colorida; até mesmo quando o sol bate neles de chapa, tira faíscas de arco-íris.
E a água, a própria água, não dá a impressão de fresca: nos pratos-d'água espelhantes ela tem reflexos de aço, que dói nos olhos.
A casa fica num alto lavado de ventos. Casa tão rústica, austera como um convento pobre, as paredes caiadas, os ladrilhos vermelhos, o soalho areado. As instalações rudimentares, a lenha a queimar no fogão, a água de beber a refrescar nos potes. O encanamento novo é um anacronismo, a geladeira entre os móveis primitivos de cumaru parece sentir-se mal.
Não tem jardim; as zínias e os manjericões, que levantavam um muro colorido ao pé dos estacotes, estão ressequidos como ramos bentos guardados num baú. Também não tem pomar, fora os coqueiros e as bananeiras do baixio.
Não tem nada dos encantos tradicionais do campo, como os conhecemos pelo mundo além. Nem sebes floridas, nem regatos arrulhantes, nem sombrios frescos de bosque – só se a gente der para chamar a caatinga de bosque.
Não, aqui não há por onde tentar a velha comparação dos encantos do campo aos encantos da cidade. Aqui não há encantos. Pode-se afirmar com segurança que isto por aqui não chega sequer a ser campo. É apenas sertão e caatinga. As delgadas, escuras cercas de pau a pique cavalgando as lombadas, o horizonte redondo e desnudo, o vento nordeste varrendo os ariscos.
*
Comparo este mistério do Nordeste ao mistério de Israel. Aquela terra árida, aquelas águas mornas, aqueles pedregulhos, aqueles cardos, aquelas oliveiras de parca folhagem empoeirada – por que tanta luta por ela, milênios de amor, de guerra e saudade?
Por que tanto suor e carinho no cultivo daquele chão que aparentemente só dá pedra, espinho e garrancho? Não sei. Mistério é assim: está aí e ninguém sabe. Talvez a gente se sinta mais puros, mais nus, mais lavados. E depois a gente sonha. Naquele cabeço limpo vou plantar uma árvore enorme. Naquelas duas ombreiras a cavaleiro da grota dá para fazer um açudinho. No pé da parede caberão uns coqueiros e no choro da revência, quem sabe, há de dar umas leiras de melancia. Terei melancias em novembro.
Quem tem melancias em qualquer mês e não sabe de onde elas vêm, compreenderá acaso este simples milagre – melancias em novembro?
Aqui tudo é diferente. Você vê falar em ovelhas – e evoca prados relvosos, os brancos carneirinhos redondos de lã. Mas as nossas ovelhas se confundem com as cabras e têm o pelo vermelho e curto de cachorro-do-mato; verdade que os cordeirinhos são lindos.
E ainda não se falou no povo. Que não tem celeiros nem gordos rebanhos; só o parco feijão e as mãos de milho seco para virar o ano, no quarto do paiol, e os magros bodes, que é este o país dos bodes.
Há um prazer áspero na permanente descoberta de quanto supérfluo a gente se sobrecarrega e de como é fácil a gente se despojar dele. É como tirar uma casca suja. Ou uma pele velha, seca, engelhada.
Viver no dia a dia, sem conhecer ambição – mesmo porque não há o que se querer.
Tudo tão longe. Tão longe as solicitações. Por isso falei em pureza. Nem anúncios oferecendo, nem oportunidades de tentação. A pobreza é uma garantia. Falem em bezerro de ouro aqui, ninguém entende. Todo o ouro que se possui mal dá para os brincos levíssimos que as moças compram nas feiras; nem para um dente de ouro dá.
*
Sim, só comparo o Nordeste à Terra Santa. Homens magros, tostados, ascéticos. A carne de bode, o queijo duro, a fruta de lavra seca, o grão cozido n'água e sal. Um poço, uma lagoa é como um sol líquido, em torno do qual gravitam as plantas, os homens e os bichos. Pequenas ilhas d'água cercadas de terra por todos os lados e em redor dessas ilhas a vida se concentra.
O mais é a paz, o sol, o mormaço.
(Não me Deixes, 17.8.1963)
(In: Coleção Melhores Crônicas. Rachel de Queiroz. Seleção e prefácio Heloísa Buarque de Hollanda. São Paulo: Global, 2012. 1ª edição digital)
***
Seminário
dos Ratos
Lygia
Fagundes Telles
Que
século, meu Deus! — exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício.
Carlos Drummond de Andrade
O Chefe das Relações Públicas, um
jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes,
ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do
Bem-Estar Público e Privado:
– Excelência?
O Secretário do Bem-Estar Público
e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro.
Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas.
Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo
metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.
– Pode entrar — disse ao Chefe
das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos
na altura do peito. — Então? Correu bem o coquetel?
Tinha a voz branda, com um leve
acento lamurioso. O jovem empertigou-se.
Um ligeiro rubor cobriu-lhe o
rosto bem escanhoado.
– Tudo perfeito, Excelência.
Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas
pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito
agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e — consultou o relógio — veja,
Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da
RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes
Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a
Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os
há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!
– O senhor disse que o Diretor
das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta.
Por que cinzenta?
O jovem pediu licença para se
sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde
o Secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.
— Bueno, escolhi as cores pensando
nas pessoas — começou com certa hesitação. Animou-se: — A suíte do Delegado Americano,
por exemplo, é rosa-forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa
Excelência escolhi este azul-pastel, mais de uma vez vi Vossa Excelência de
gravata azul… Já para a suíte norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não
gosta da cor cinzenta?
O Secretário moveu com
dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.
– É a cor deles. Rattus
alexandrinus.
– Dos conservadores?
– Não, dos ratos. Mas enfim, não
tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na
piscina, por que os? Veio mais de um?
– Pois com o Delegado de
Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de
terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos
dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o
cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para
conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se
os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração.
Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe,
Santiago, Buenos Aires…
– Fui contra a indicação. Desse
americano — atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. — Os ratos são
nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das
nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo
não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos — acrescentou
apontando para o pé em cima da almofada. — Por que não apareci ainda, por quê?
Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando.
Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O
senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas
coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder
nossos chinelos.
– Mas Vossa Excelência me
permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também têm
muitos ratos, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo
que é um expert em jornalismo eletrônico.
– Pior ainda. Vai sair buzinando
por aí — suspirou o Secretário, tentando mudar a posição do pé. — Enfim, não
tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a
repercussão. Na imprensa, é óbvio.
O Chefe das Relações Públicas
pigarreou discretamente, murmurou um bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença
para fumar.
– Bueno, é do conhecimento de
Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por
que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente
isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para
tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros
locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele,
Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em
disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o
excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína…
O Secretário passou o lenço na
calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se
completou.
– Gastando milhões? Bilhões estão
consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou
apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos.
Enfim, não tem importância, prossiga por favor.
– Mas são essas as críticas mais
severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de
bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a
população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que
temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias
mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça – acrescentou contendo uma
risadinha. — O de sempre… Não se conformam é de nos reunirmos em local
retirado, que devíamos estar lá no Centro, dentro do problema. Nosso Assessor
de Imprensa já esclareceu o óbvio, que este Seminário é o Quartel-General de
uma verdadeira batalha! E que traçar as coordenadas de uma ação conjunta deste
porte exige meditação. Lucidez. Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui,
respirando um ar que só o campo pode oferecer? Nesta bendita solidão, em
contato íntimo com a natureza… O Delegado de Massachusetts achou genial essa
ideia do encontro em pleno campo. Um moço muito gentil, tão simples. Achou
excelente nossa piscina térmica, Vossa Excelência sabia? Foi campeão de nado de
peito, está lá se divertindo, adorou nossa água-de-coco! Contou-me uma coisa
curiosa, que os ratos do Polo Norte têm pelos deste tamanho para aguentar o
frio de trinta abaixo de zero, se guarnecem de peliças, os marotos. Podiam
viver em Marte, uma saúde de ferro!
O Secretário parecia pensar em
outra coisa quando murmurou evasivamente um “enfim”. Levantou o dedo pedindo
silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto.
– Que barulho é esse?
– Barulho?
– Um barulho esquisito, não está
ouvindo?
O Chefe das Relações Públicas
voltou a cabeça, concentrado.
– Não estou ouvindo nada…
– Já está diminuindo — disse o
Secretário, baixando o dedo almofadado. — Agora parou. Mas o senhor não ouviu?
Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o
teto… Não ouviu mesmo?
O jovem arregalou os olhos de um
azul inocente.
– Absolutamente nada, Excelência.
Mas foi aqui no quarto?
– Ou lá fora, não sei. Como se
alguém… — Tirou o lenço, limpou a boca e suspirou profundamente. — Não me
espantaria nada se cismassem de instalar aqui algum gravador. O senhor se
lembra? Esse Delegado americano…
– Mas, Excelência, ele é
convidado do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas!
– Não confio em ninguém. Em quase
ninguém — corrigiu o Secretário num sussurro. Fixou o olhar suspeitoso na mesa.
Nos baldaquins azuis da cama. — Onde essa gente está, tem sempre essa praga de
gravador. Enfim, não tem importância, prossiga, por favor. E o Assessor de Imprensa?
– Bueno, ontem à noite ele sofreu
um pequeno acidente, Vossa Excelência sabe como anda o nosso trânsito! Teve que
engessar um braço. Só pode chegar amanhã, já providenciei o jatinho —
acrescentou o jovem com energia. — Na retaguarda fica toda uma equipe armada
para a cobertura. Nosso Assessor vai pingando o noticiário por telefone,
criando suspense até o encerramento, quando virão todos num jato especial,
fotógrafos, canais de televisão, correspondentes estrangeiros, uma apoteose.
Finis coronat opus, o fim coroa a obra!
– Só sei que ele já deveria estar
aqui, começa mal — lamentou o Secretário inclinando-se para o copo de leite.
Tomou um gole e teve uma expressão desaprovadora. — Enfim, o que me preocupava
muito é ficarmos incomunicáveis. Não sei mesmo se essa ideia do Assessor da
Presidência da RATESP vai funcionar, isso de deixarmos os jornalistas longe.
Tenho minhas dúvidas.
– Vossa Excelência vai me
perdoar, mas penso que a cúpula se valoriza ficando assim inacessível. Aliás, é
sabido que uma certa distância, um certo mistério excita mais do que o contato
diário com os meios de comunicação. Nossa única fonte vai soltando notícias
discretas, influindo sem alarde até o encerramento, quando abriremos as
baterias! Não é uma boa tática?
Com dedos tamborilantes, o
Secretário percorreu vagamente os botões do colete. Entrelaçou as mãos e ficou
olhando as unhas polidas.
– Boa tática, meu jovem, é
influenciar no começo e no fim todos os meios de comunicação do país. Esse é o
objetivo. Que já está prejudicado com esse assessor de perna quebrada.
– Braço, Excelência. O antebraço,
mais precisamente.
O Secretário moveu penosamente o
corpo para a direita e para a esquerda.
Enxugou a testa. Os dedos. Ficou
olhando para o pé em cima da almofada.
– Hoje mesmo o senhor poderia lhe
telefonar para dizer que estrategicamente os ratos já se encontram sob
controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro
controle. A ligação é demorada?
– Bueno, cerca de meia hora. Peço
já, Excelência?
O Secretário foi levantando o
dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto
lento, foi se voltando para a lareira.
– Está ouvindo? Está ouvindo? O
barulho. Ficou mais forte agora!
O jovem levou a mão à concha da
orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na
ponta dos pés.
– Vem daqui, Excelência? Não
consigo perceber nada!
– Aumenta e diminui. Olha aí, em
ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo
tempo tão longe! Está fugindo, olha aí… Tombou para o espaldar da poltrona
exausto. Enxugou o queixo úmido. — Quer dizer que o senhor não ouviu nada?
O Chefe das Relações Públicas
arqueou as sobrancelhas perplexas. Espiou dentro da lareira. Atrás da poltrona.
Levantou a cortina da janela e olhou para o jardim.
– Tem dois empregados lá no
gramado, motoristas, creio… Ei, vocês aí!… — chamou, estendendo o braço para
fora. Fechou a janela. — Sumiram. Pareciam agitados, talvez discutissem, mas
suponho que nada tenham a ver com o barulho. Não ouvi coisa alguma, Excelência.
Escuto tão mal deste ouvido!
– Pois eu escuto demais, devo ter
um ouvido suplementar. Tão fino. Quando fiz a Revolução de 32 e depois, no
Golpe de 64, era sempre o primeiro do grupo a pressentir qualquer anormalidade.
O primeiro! Lembro que uma noite avisei meus companheiros, O inimigo está aqui
com a gente, e eles riram, Bobagem, você bebeu demais, tínhamos tomado no
jantar um vinho delicioso. Pois quando saímos para dormir, estávamos cercados.
O Chefe das Relações Públicas
teve um olhar de suspeita para a estatueta de bronze em cima da lareira, uma
opulenta mulher de olhos vendados, empunhando a espada e a balança. Estendeu a
mão até a balança. Passou o dedo num dos pratos empoeirados. Olhou o dedo e
limpou-o com um gesto furtivo no espaldar da poltrona.
– Vossa Excelência quer que eu vá
fazer uma sondagem? O Secretário estendeu doloridamente a perna. Suspirou.
– Enfim, não tem importância.
Nestas minhas crises sou capaz de ouvir alguém riscando um fósforo na sala.
Entre consternado e tímido, o
jovem apontou para o pé enfermo.
– É algo… grave?
– A gota.
– E dói, Excelência?
– Muito.
– Pode ser a gota d’água! Pode
ser a gota d’água! — cantarolou ele, ampliando o sorriso que logo esmoreceu no
silêncio taciturno que se seguiu à sua intervenção musical. Pigarreou. Ajustou
o nó da gravata. — Bueno, é uma canção que o povo canta por aí.
– O povo, o povo — disse o
Secretário do Bem-Estar Público, entrelaçando as mãos. A voz ficou um brando
queixume. — Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração.
– Abstração, Excelência?
– Que se transforma em realidade
quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés
das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da
imprensa de esquerda. Da imprensa marrom. Enfim, pura demagogia. Aliada às
bombas dos subversivos, não esquecer esses bastardos que parecem ratos —
suspirou o Secretário, percorrendo languidamente os botões do colete.
Desabotoou o último. — No Egito Antigo resolveram esse problema aumentando o
número de gatos. Não sei por que aqui não se exige mais da iniciativa privada,
se cada família tivesse em casa um ou dois gatos esfaimados…
– Mas Excelência, não sobrou
nenhum gato na cidade, já faz tempo que a população comeu tudo. Ouvi dizer que
dava um ótimo cozido!
– Enfim — sussurrou o Secretário
esboçando um gesto que não completou.
– Está escurecendo, não?
O jovem levantou-se para acender
as luzes. Seus olhos sorriam intensamente.
– E à noite, todos os gatos são
pardos! — Depois, sério. — Quase sete horas, Excelência! O jantar será servido
às oito, a mesa decorada só com orquídeas e frutas. A mais fina cor local,
encomendei do Norte abacaxis belíssimos! E as lagostas, então? O
Cozinheiro-Chefe ficou entusiasmado, nunca viu lagostas tão grandes. Bueno, eu
tinha pensado num vinho nacional que anda de primeiríssima qualidade, diga-se
de passagem, mas me veio um certo receio: e se der alguma dor de cabeça? Por um
desses azares, Vossa Excelência já imaginou? Então achei prudente encomendar
vinho chileno.
– De que safra?
– De Pinochet, naturalmente.
O Secretário do Bem-Estar Público
e Privado baixou o olhar ressentido para o próprio pé.
– Para mim um caldo sem sal, uma
canjinha rala. Mais tarde talvez um… — Emudeceu. A cara pasmada foi-se voltando
para o jovem: — Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!
O Chefe das Relações Públicas
levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada.
– Mas claro, Excelência, está
repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!
– Eu não disse, eu não disse? —
perguntou o Secretário. Parecia satisfeito: — Nunca me enganei, nunca! Já faz
horas que estou ouvindo coisas, mas não queria dizer nada, podiam pensar que
fosse delírio. Olha aí agora! Parece até que estamos em zona vulcânica, como se
um vulcão fosse irromper aqui embaixo…
– Vulcão?
– Ou uma bomba, têm bombas que
antes de explodir dão avisos!
– What is that?
– Perhaps nothing… perhaps
something… — respondeu ele, abrindo o sorriso automático. Acenou-lhe com um
frêmito de dedos imitando asas. — Supper at eight, Miss Gloria!
Apressou o passo quando viu o
Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas que vinha com seu
chambre de veludo verde. Encolheu-se para lhe dar passagem, fez uma mesura,
“Excelência” e quis prosseguir mas teve a passagem barrada pela montanha
veludosa.
– Que barulho é esse?
– Bueno, também não sei dizer,
Excelência, é o que vou verificar. Volto num instante. Não é mesmo estranho?
Tão forte!
O Diretor das Classes
Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:
– E esse cheiro? O barulho
diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? — Franziu a cara. — Uma maçada!
Cheiros, barulhos e o telefone que não funciona… Por que o telefone não está funcionando?
Preciso me comunicar com a Presidência e não consigo, o telefone está mudo!
– Mudo? Mas fiz dezenas de
ligações hoje cedo… Vossa Excelência já experimentou o do Salão Azul?
– Venho de lá. Também está mudo,
uma maçada! Procure meu motorista, veja se o telefone do meu carro está
funcionando, tenho que fazer essa ligação urgente.
– Fique tranquilo, Excelência.
Vou tomar providências e volto em seguida.
Com licença, sim? — fez o jovem,
esgueirando-se numa mesura rápida. Enveredou pela escada. Parou no primeiro
lance: — Mas o que significa isso? Pode me dizer o que significa isso?
Esbaforido, sem o gorro e com o
avental rasgado, o Cozinheiro-Chefe veio correndo pelo saguão. O jovem fez um
gesto enérgico e precipitou-se ao seu encontro.
– Como é que o senhor entra aqui
neste estado?
O homem limpou no peito as mãos
sujas de suco de tomate.
– Aconteceu uma coisa horrível,
doutor! Uma coisa horrível!
– Não grita, o senhor está
gritando, calma — e o jovem tomou o Cozinheiro- Chefe pelo braço, arrastou-o a
um canto. — Controle-se. Mas o que foi? Sem gritar, não quero histerismo,
vamos, calma, o que foi?
– As lagostas, as galinhas, as
batatas, eles comeram tudo! Tudo! Não sobrou nem um grão de arroz na panela.
Comeram tudo e o que não tiveram tempo de comer levaram embora!
– Mas quem comeu tudo? Quem?
– Os ratos, doutor, os ratos!
– Ratos?!… Que ratos?
O Cozinheiro-Chefe tirou o
avental, embolou-o nas mãos.
– Vou-me embora, não fico aqui
nem mais um minuto. Acho que a gente está no mundo deles. Pela alma da minha
mãe, quase morri de susto quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela,
pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea! Até os panos de prato eles
comeram. Só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou
limpa, limpa!
– Ainda estão lá?
– Não, assim como entrou saiu tudo guinchando feito doido. Eu já estava ouvindo fazia um tempinho aquele barulho, me representou um veio d’água correndo forte debaixo do chão, depois martelou, assobiou, a Euclídea que estava batendo maionese pensou que fosse um fantasma quando começou aquela tremedeira e na mesma hora entrou aquilo tudo pela janela, pela porta, não teve lugar que a gente olhasse que não desse com o monte deles guinchando! E cada ratão, viu? Deste tamanho! A Euclídea pulou em cima do fogão, eu pulei em cima da mesa, ainda quis arrancar uma galinha que um deles ia levando assim no meu nariz, taquei o vidro de suco de tomate com toda força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito um homem. Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato!
– Meu Deus, que loucura… E o
jantar?!
– Jantar? O senhor disse jantar?!
Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a
lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram
na água fervendo. Cruz-credo, vou me embora e é já!
– Espera, calma! E os empregados?
Ficaram sabendo?
– Empregados, doutor? Empregados?
Todo mundo já foi embora, ninguém é louco! E se eu fosse vocês, também me mandava,
viu? Não fico aqui nem que me matem!
– Um momento, espera! O
importante é não perder a cabeça, está me compreendendo? O senhor volta lá,
abre as latas, que as latas ainda ficaram, não ficaram? A geladeira não estava
fechada? Então, deve ter alguma coisa, prepare um jantar com o que puder,
evidente!
– Não, não! Não fico nem que me
matem!
– Espera, eu estou falando: o
senhor vai voltar e cumprir sua obrigação. O importante é que os convidados não
fiquem sabendo de nada, disso me incumbo eu, está me compreendendo? Vou já até
a cidade, trago um estoque de alimentos e uma escolta de homens armados até os
dentes, quero ver se vai entrar um mísero camundongo nesta casa, quero ver!
– Mas o senhor vai como? Só se
for a pé, doutor.
O Chefe das Relações Públicas
empertigou-se. A cara se tingiu de cólera.
Apertou os olhinhos e fechou os
punhos para soquear a parede, mas interrompeu o gesto quando ouviu vozes no
andar superior. Falou quase entredentes.
– Covardes, miseráveis! Quer
dizer que os empregados levaram todos os carros? Foi isso, levaram os carros?
– Levaram nada, fugiram a pé
mesmo, nenhum carro está funcionando. O José experimentou um por um, viu? Os
fios foram comidos, comeram também os fios. Vocês fiquem aí que eu vou pegar a
estrada e é já!
O jovem encostou-se na parede, a
cara agora estava lívida. “Quer dizer que o telefone…”, murmurou e cravou o
olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-Chefe largou no chão. As vozes no
andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se
mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com olhar
silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns
passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para
cima, rápido como se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível.
Foi a última coisa que viu, porque nesse instante a casa foi sacudida nos seus
alicerces. As luzes se apagaram. Então, deu- se a invasão, espessa como se um
saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora
saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de
olhos luzindo negríssimos. Quando a primeira dentada lhe arrancou um pedaço da
calça, ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos
despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi
encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa
contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras, expulsou-os e num
salto, pulou lá dentro. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, que a
porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou
de fora, substituiu o dedo pela gravata.
No rigoroso inquérito que se
processou para apurar os acontecimentos daquela noite, o Chefe das Relações
Públicas jamais pôde precisar quanto tempo teria ficado dentro da geladeira,
enrodilhado como um feto, a água gelada pingando na cabeça, as mãos endurecidas
de câimbra, a boca aberta no mínimo vão da porta que de vez em quando algum
focinho tentava forcejar. Lembrava-se, isso sim, de um súbito silêncio que se
fez no casarão: nenhum som, nenhum movimento. Nada. Lembrava-se de ter aberto a
porta da geladeira. Espiou. Um tênue raio de luar era a única presença na
cozinha esvaziada. Foi andando pela casa completamente oca, nem móveis, nem
cortinas, nem tapetes. Só as paredes. E a escuridão. Começou então um murmurejo
secreto, rascante, que parecia vir da Sala de Debates e teve a intuição de que
estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como
conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu
quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado.
(In: Seminário dos Ratos. [Contos]. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977).
***
O
Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de
pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece
que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem – ponderou a
mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de
vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando
ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que
não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar – amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar
um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu
fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o
pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para
outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo
padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia
aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou
à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do
chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher
pensava que já era o sujeito da televisão.
Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu – chamou,
em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o
ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da
televisão!
Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o
elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar
nas mãos nervosas o embrulho de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos,
regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma
pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco
e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem ter onde se esconder.
Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar,
e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada.
Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! – fez o homem nu,
sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele
ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu,
desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu
apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e
desvairado Regime do Terror!
— Isso é que não – repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares,
obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea
ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo
continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência:
parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada
de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O
elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! – gritava,
desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se
abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando
inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento
vizinho:
— Bom dia, minha senhora – disse ele,
confuso. – Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha
filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era.
Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do
banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia – disse ele, ainda
ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
(In: O Homem
Nu. [Contos] Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960, p. 65).
***
O batizado da vaca
Chico Anysio
O lugar
era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas e as vacas tão bovinas,
que o chefe da família achou que valeria a pena comprar ali uma fazenda.
Consultou
a família que, de pronto, foi contra. Isto colaborou demais para que o chefe da
família entrasse, imediatamente, em conversações com o proprietário de uma, que
se queria desfazer da fazenda, por achar que ela estava num lugar que não era
lá essas coisas, o clima era idiota, as flores não fugiam daquela variedade:
rosas, rosas, rosas, e as vacas, coitadas, eram simplesmente bovinas — numa
total falta de imaginação. Vá-se querer que as vacas tenham isso!
O negócio
foi fechado por um dinheiro grande, e a família tomou posse da propriedade dois
dias depois, data que coincidia com a véspera do fim das férias.
A fazenda
ficava num vale e era separada em duas partes por um córrego como o que só
corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas, rosas e charcos,
galinhas e caseiros.
— Uma
idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa, numa contrariedade de quem
faz doze pontos.
— Comprar
terra sempre é bom negócio vibrou o chefe da família, puxando o ar, a encher o
peito com um cheiro de estrume que vinha do estábulo. — Olhe em volta. Até onde
a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o abacateiro? É nosso; Aquele
caqui-chocolate? É nosso. A carreira de jabuticabeiras? Nossa. O mato, a casa,
a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda,
é o único pedaço de céu que é nosso, porque o da cidade é do governo. Aqui,
mandamos nós, porque aqui tudo é nosso!
— Pra
quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa.
— Ora —
explicou admiravelmente o chefe da família —, para ser nosso. Nossa terra,
nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou numa, furando o dedo.
Durante o
curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da fazenda aproximou-se com uma
notícia muito importante: a fazenda acabava de crescer de valor pelo nascimento
de uma bezerrinha.
Viu? —
comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas costas da esposa, de modo
a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava comer. – Nasceu uma
vaquinha!
A notícia
correu para os demais da família ao mesmo tempo em que, para os pais, corriam
os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do nascimento da novilha.
— É
menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão longos cabelos, nem se
sabia se era menino ou menina.
— Não é
assim que se fala, menino – esclareceu o pai. – A pergunta é: bezerra ou
bezerro? É uma bezerrinha.
— Vamos
ver? Vamos ver? gritavam os filhos a sugestão lógica das crianças que nunca
viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em pó.
Foram. A
vaca não deixou que se aproximassem da cria, que ficou sendo observada a
distância pela família encantada e pelo caseiro indiferente e até um pouco
irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo.
— Quem é
o pai? – perguntou a moça mais taluda.
— Um boi
desses – errou o pai.
— Um
touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é um touro que já era;
boi é um touro que perdeu os documentos.
— Pois é
— emendou o pai na mesma veemência —, um tourão danado desses. Olha a carinha
dela. Os olhinhos ainda estão fechados.
— Vamos
batizar! – gritou um menino.
— Boa
ideia – concordou o chefe da família. — Quem vai escolher o nome?
— Eu. Eu.
Eu. Eu — disseram, um a cada vez, os quatro filhos do casal.
E começou
a discussão sobre o nome a ser posto na recém-nascida que, indiferente a tudo,
mamava na mãe, provando, assim, que ela (a mãe) não era tão vaca quanto
julgavam.
— Aretha
Franklin!
— Janis
Joplin.
— Jimi
Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me provem o contrário, essa
vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver.
— É
fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se para o caseiro, na
indagação do que já afirmara: — O senhor não viu?
— Vi. É
fêmea.
E tome de
gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva Maldita, Otorrinolaringologia…
Havia os nomes sugeridos a sério e os de gozação. Todos os que citei eram os a
sério. Finalmente, o bom senso ajudou a solucionar o impasse. Foi a esposa quem
sugeriu o nome que lhe pareceu o mais indicado para a novilhazinha que mamava
no seio vaquerno: Long Island.
—
Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender.
— Long
Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem fala “mococa”.
— A
senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se incapaz de decorar
aquilo.
Arranjaram
uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe de família escreveu: LONG ISLAND,
tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou presa no pescoço da novilha
para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela jovem bovina atendia pelo
nome de Long Island, nome que fica muito bem para parque de diversões, mas que
não é dos mais adequados para quem tem cara de Mimosa, Formosa, Maravilha ou
Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o reconhecimento da peça.
Acabadas
as férias, a família voltou à sua poluição metropolitana e só pôde retornar à
fazenda dois anos depois.
Tudo
continuava como dantes, com exceção de uma coisinha em pior estado, uma das
quais o geral.
—
Caseiro! — chamou o chefe de família, que não sabia que o caseiro tinha nome:
José Caseiro da Silva.
— Pronto,
doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a presteza de um favor bancários.
— Como
vai a novilha?
— Está
uma vaca! — elogiou o caseiro de um modo que soou ofensa aos ouvidos da
família.
— Já dá
leite? — perguntou um dos filhos.
— Dá, né?
respondeu o caseiro estranhando a pergunta, pelo fato de saber (ele é
acostumado, porque vive ali) que as vacas não dão outra coisa senão leite.
— Pois eu
quero beber um copo de leite da novilha — ordenou a esposa do chefe, madrinha
de batismo da vaquinha.
E o
caseiro, sem que a família ouvisse, comandou a um seu auxiliar que tirasse um
pouco de leite da vaca “Tabuleta”.
(In: O batizado da vaca [Contos].
Rio de Janeiro: Sabiá,1972.)
***
O afogado
Rubem Braga
Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda
precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não
saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar
braçadas, mas está exausto.
A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É
preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim, sem
exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se
aproxima. Mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que
ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o
necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado
pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da
onda que passou. Experimenta: não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o.
Tem dificuldade de respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez
mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue
controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os
sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na
esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem
outra onda imensa.
Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na
superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.
Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito
que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo fosse
gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu
próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que, se não for
socorrido, morrerá; que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de sábado, o
banhista da Prefeitura já deve ter ido embora; o horário agora é de morrer, e
não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças, tem a
impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A
imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na pedra, procura
tirar algum espeto do pé.
A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe
violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque
naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente
isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar-se, ao menos para
morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas
assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora do que
ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o
pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o
ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a garganta e é expelido com
aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.
Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe
bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado das
pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas, apesar de
tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as pedras,
ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas
acha longe demais; de súbito, reflete que à sua esquerda deve haver também uma
ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente, faz
gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma
espécie de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o que
houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia de afogado. Sente-se um animal
vencido que vai morrer, mas está frio e disposto a lutar, mesmo sem qualquer
força; lutar ao menos com a cabeça; não se deixará enlouquecer pelo medo.
Repara, então, que, realmente, está agora perto de uma pedra, coberta de
mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se vier
uma muito forte, serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com a
cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me agarrar
da primeira vez, não terei mais nenhuma chance.
Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha
para trás. Muda de ideia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a pedra.
Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado sobre a
pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de
menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma
ilhota de pedra também coberta de mariscos. Vê que alguém, em uma pedra mais
alta, lhe faz sinais nervosos para que saia dali, está em um lugar perigoso.
Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo,
mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer
e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo
um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco. Quando
chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do
que antes o medo do perigo que passou.
“Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada.”
Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca
perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo, um palavrão para
eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de quem não morreu,
mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor
importância, seria até ridículo de seu ponto de vista tudo o que se pudesse
discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá no corpo inteiro um infinito
prazer.
[1953]
(In: Duzentas crônicas escolhidas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1979).
***
Os laços de família
Clarice Lispector
A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza – assistia.
– Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.
– Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência. Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
– Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.
– O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
– Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.
– Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente.
Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha.
Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança”…
– Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. – Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?
Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação?
– Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada. Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
– Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
– Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa.
Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.
O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fossem vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…
– … não esqueci de nada? perguntou a mãe.
Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.
– Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
– Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
– Dê lembranças a titia! gritou.
– Sim, sim!
– Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.
– Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.
O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
– “Ela” foi?
– Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
– Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.
Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.
Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.
Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.
Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…
O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.
“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torná-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vivido desde sempre.
Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.
– “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.
(In: Laços de família. [Contos]. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1960.)
***
Olhar
Rubem
Fonseca
Olhar (I)
Um olhar pode mudar a vida de um homem? Não falo do olhar do poeta,
que depois de contemplar uma urna grega pensou em mudar de vida. Refiro-me a
transformações muito mais terríveis.
Eu não gostava de comer, até acontecerem os episódios que relatarei daqui a pouco. Tinha dinheiro para me alimentar com as mais finas iguarias, porém os prazeres da mesa não me atraíam. Por várias razões, nunca entrara num restaurante. Era vegetariano e gostava de dizer que necessitava apenas dos alimentos do espírito – música, livros, teatro. O que era uma estupidez, como o dr. Goldblum me provaria depois.
Minha profissão é escrever, todos sabem. Não preciso dizer o tipo
de literatura que faço. Sou um escritor que os professores de letras, numa dessas
convenções arbitrárias que impingem aos alunos, chamam de clássico. E isso
nunca me incomodou. Uma obra é considerada clássica por ter, através dos
tempos, mantido a atenção ininterrupta dos leitores. Que mais pode um autor
querer? Que me chamem, pois, de clássico, ou mesmo de acadêmico. Mesmo antes de
começar a escrever eu já preferia as obras de arte que o tempo consagrou,
criações que pela pureza e perfeição da forma e do estilo se tornaram imortais.
Felizmente, o acesso aos clássicos da literatura e da música não apresenta as
dificuldades que existem, por exemplo, em relação ao teatro. As lojas de música
e as livrarias, por mais reles que sejam, sempre oferecem, junto com o lixo
abominável que costumam mercadejar, as obras de um ou outro grande mestre. Não
há muito tempo descobri, numa livraria onde pululavam Sheldons e Robins, uma
bela edição de Orlando furioso, de Ariosto, em italiano, uma pérola no meio do
chiqueiro. Já quanto ao teatro a situação é desalentadora. Raramente se pode
assistir à encenação de um Sófocles, um Shakespeare, um Racine, um Ibsen, um
Strindberg. O que se oferece comumente ao espectador são os dejetos do
provinciano teatro americano ou as mediocridades decadentes do teatro europeu –
para não falar do teatro brasileiro, aprisionado ao subúrbio sórdido de Nelson
Rodrigues. O cinema é uma arte menor – se é que se pode chamar de arte uma
manifestação cultural incapaz de produzir uma obra verdadeiramente clássica.
Quanto à ópera, eu a julgo um divertimento de burgueses ascendentes que supõem ser
refinada essa mistura primária de drama e canto que, na verdade, ainda em
passado recente, satisfazia apenas aos anseios culturais da rafaméia.
Era assim que eu pensava, nos tempos em que passava os dias em
casa escrevendo e, quando não estava escrevendo, ouvindo Mozart e relendo
Petrarca, ou Bach e Dante, ou Brahms e santo Tomás de Aquino, ou Chopin e
Camões – a vida era curta para ler e ouvir tudo o que se encontrava à
disposição do espírito e da mente de um homem como eu. Havia uma interessante
sinergia entre música e literatura, que me propiciava uma fruição sublime.
Devo confessar que era também, antes dos
episódios que relatarei, quase um misantropo. Gostava de ficar só e até mesmo a
presença da empregada, Talita, me incomodava. Por isso ela recebera instruções
de trabalhar no máximo duas horas por dia, e depois se retirar. Eu a mandava
embora, transcorrido esse prazo, mesmo que o suflê de espinafre, que ela fazia
diariamente, não tivesse ficado pronto, para, desta forma, poder escrever, e
ler, e ouvir minha música, sem ninguém me incomodar.
Um parêntese: quando vou escrever, primeiro preparo a mesa. É uma coisa muito simples – um maço de folhas de papel artesanal de linho puro especial fabricado “en los talleres de Segundo Santos em Cuenca”, que recebo regularmente da Espanha (só sei escrever nele, “los papeles contienen mezclas de lanas teñidas a mano, esparto, hierbas, helechos y otros elementos naturales”) e uma caneta antiga, daquelas que têm um depósito transparente de tinta. Mais nada. Acho graça quando ouço falar em idiotas que escrevem em microcomputadores.
Mas voltemos à história. Uma tarde, enquanto lia
Propércio ao som de Mahler, senti-me mal e desmaiei. Quando voltei a mim
percebi que anoitecera. Um repulsivo suor frio cobria meu corpo, que tremia em
espasmódicas convulsões cortadas por arrepios que faziam bater os meus dentes,
como se fossem castanholas. Em seguida comecei a ter visões, a ouvir vozes.
Cambaleando, fui até a mesa do escritório, apanhei a caneta e
escrevi um poema. Depois desmaiei novamente.
O médico, dr. Goldblum, a quem consultei no dia seguinte, disse
que meu problema era inanição.
“Isso explica por que as visões passaram depois que tomei um copo
de leite morno com açúcar.”
“Os santos tinham visões porque jejuavam, e
jejuavam porque tinham visões, um interessante círculo vicioso. Vou lhe confessar
uma coisa: eu até que gostaria de ter esse tipo de visão, uma vez pelo menos.
Agora vou ler o seu poema”, disse Goldblum.
Eu entregara o poema ao médico, supondo
tratar-se de um abjeto material semiótico que ajudaria a diagnosticar o surto
de morbidez que eu havia sofrido. Agora, que sabia que tudo era apenas uma
simples e passageira crise de inânia, não queria mais que o dr. Goldblum lesse
o que eu havia escrito em meu delírio; palavras grosseiras que os clássicos,
com algumas exceções (pensei em Gil Vicente, Rabelais), jamais usariam. Tentei
tirar o papel que o esculápio tinha na mão, mas ele foi mais rápido e, protegendo-se
atrás da mesa, leu o poema:
OS TRABALHADORES DA MORTE
(Para Mégnin e H. Gomes)
Joyce, James se emocionava com a marca marrom de
cocô na calcinha
(nem tão calcinha assim, naquele tempo)
da mulher amada.
Agora a mulher morreu
(a dele, a sua e a minha)
e aquela mancha marrom de bactérias
começa a tomar conta do corpo inteiro.
Elas atacam em turnos:
muca, muscina e califora,
belos nomes,
dão início ao trabalho de destruição;
lucilia, sarcófaga e onésia
fabricam os odores da putrefação;
dermestestes (afinal um nome masculino)
cria a acidez da pré-fermentação;
fiofila, antomia e necróbia fazem
a transformação caseinica dos albuininóides:
tireófíro, lonchea, ofira, necroforus e saprinus
são a quinta invasão, dedicada à fermentação;
urópode, tiroglifos, glicíjàgos, tracinotos e serratos
consagram-se a dissecação;
anglossa, tineola. tirea, atageno, antreno
roem o ligamento e o tendão,
afinal tenébrio e ptino
acabam com o que restou
de homem, gato e cão.
Não há quem resista a esse exército
contido num cagalhão.
“Muito interessante, trata-se de uma visão
poética delirante de um jejuador”, disse Goldblum, que confessou cometer, nas horas
vagas, seus versejares bissextos. “Parece coisa de Augusto dos Anjos.” Recitou
solenemente: “Verme é o seu nome obscuro de batismo, jamais emprega o acérrimo
exorcismo em sua diária ocupação funérea, e vive em contubérnio com a bactéria,
livre das roupas do antropomorfismo. Lembra?”.
Envergonhado, por ter cometido uma peça de
literatura tão medíocre e suspeita, eu não soube o que dizer.
Goldblum quis saber como eu tomara conhecimento do nome de todas
aquelas bactérias, mas eu não sabia como isto acontecera. Nós escritores temos
muitas coisas dentro da cabeça, algumas esquecidas e abandonadas como trastes
no porão de uma casa. Quando são recuperadas, a gente se
pergunta, como é que isso veio parar aqui? Isso é meu?
Goldblum sugeriu um final “menos grosseiro” para
o poema.
Assim:
afinal tenébrio e ptino acabam com o que restou de homem, cão
e jumento.
Não há quem resista a esse exército contido num excremento.
— Palavras chulas não se coadunam com a poesia
ele disse.
“Foi um pesadelo, pesadelos são grosseiros”,
justifiquei-me. Médico e cliente, no consultório refrigerado, ficamos conversando
calmamente sobre música, literatura, pintura, até que a enfermeira, preocupada
com o número crescente de clientes esperando atendimento, entreabriu a
porta, enfiou a cabeça e disse:
“Já chegou o senhor J. J. Monteiro Filho.”
“Diga para esperar”
“E também a dona Evangelina Abiabade.”
“Diga para esperar.”
“E o engenheiro Bertoldo Pingler.”
“Que esperem, que esperem”, disse Goldblum, irritado.
A enfermeira desapareceu, fechando a porta.
“Você precisa comer”, disse Goldblum. “A coisa mais criativa que
o homem pode fazer é comer. Tenho um grande respeito pela gula. Comer é vital –
uma obviedade as vezes esquecida. Arte é
fome.”
Arte é fome. Naquele instante não compreendi a profundidade da
frase de Goldblum.
“Vamos jantar juntos hoje”, ele disse. Goldblum acabara de se
separar da mulher e jantava todas as noites fora de casa, variando de
restaurantes. “Passo em sua casa às oito horas.”
Não soube dizer não. Afinal, Goldblum fora muito gentil e
atencioso comigo, seria uma indelicadeza não aceitar o convite.
Já em casa, naquela noite, estava ouvindo Schumann quando Goldblum
chegou. Goldblum, esqueci-me de dizer, era um homem gordo, com uma grande
barriga, calvo, de olhos redondos e úmidos.
“Vou levá-lo ao restaurante que tem o melhor peixe da cidade”,
ele disse.
O restaurante possuía um enorme aquário cheio de trutas azuladas.
Goldblum levou-me até o aquário.
“Escolha qual dessas trutas você quer comer”, disse, enquanto
olhávamos os peixes nadando de um lado para o outro. “Truta é uma carne leve,
não lhe fará mal.”
Eu não sentia vontade de comer truta, ou qualquer outra
coisa.
“Que critério devo adotar, em minha escolha?”, perguntei para
ser gentil.
“O critério é sempre o do sabor” respondeu Goldblum.
“Qual é a mais saborosa?”
— Uns gostam das grandes. Outros das pequenas.
Ante essa resposta, que considerei idiota e evasiva, decidi que
não comeria a truta. Certamente saberiam fazer ali um suflê de espinafre.
Subitamente percebi que uma das trutas me olhava. Nadava de maneira
mais elegante do que as outras e possuía um olhar meigo e inteligente. O olhar
da truta deixou-me encantado.
“Belo, o olhar desta truta.” Apontei o peixe.
Um garçom aproximou-se, atendendo ao estalo de dedos de Goldblum.
“Esta e mais esta”, disse Goldblum. O garçom enfiou uma rede no
aquário.
“Não, não!”, gritei, porém já era tarde. Os dois peixes haviam
sido apanhados e o garçom se retirava com eles para a cozinha.
“Não estou com fome.”
“Comer e coçar. Você conhece o ditado”, disse Goldblum.
As trutas foram servidas aux amandes, junto com um trocken alemão
(Goldblum permitiu-me apenas um cálice). Eu não queria comer. Foi preciso que
Goldblum instasse repetidamente comigo.
“Você necessita dos nutrientes deste belo salmonídeo”, convenceu-me,
afinal.
Coloquei, então, o primeiro pedaço na boca. Em seguida outro naco,
e outro, e a truta foi inteiramente devorada.
Comer aquela truta, devo admitir, foi uma experiência mais do
que agradável. Eu não esperava sentir um prazer e uma alegria tão grandes,
apenas por ingerir um mísero pedaço de carne de peixe. Todavia, quando Goldblum
quis marcar um outro jantar para o dia seguinte, escusei-me, com um falso pretexto.
“Eu lhe telefono um dia desses –, disse, intimamente decidido
a nunca mais ligar para o médico.
Olhar (II)
Durante alguns dias comi – na verdade deixei de
comer – o suflê de Talita. Pensava na truta, de uma maneira extremamente
complexa: no gosto da carne; nos elegantes movimentos do peixe nadando no
aquário; na estranha sensação que tivera ao abrir a truta com a faca, como um
cirurgião, seguindo instruções de Goldblum; e pensava, principalmente, no olhar
da truta respondendo ao meu olhar.
Enquanto isso, mergulhava em elucubrações etológicas e literárias.
Lembrava-me do conto de Cortázar em que o narrador se torna um axolotl, e no
conto de Guimarães Rosa, em que ele se transforma numa onça. Mas eu não queria tornar-me
uma truta: eu queria COMER uma truta de olhar inteligente.
Eu não conhecia restaurantes e não me lembrava do nome daquele
em que comera a truta com Goldblum. Fui a um restaurante, que anunciava ser especializado
em peixes. Entrei, constrangido, sentei-me e quando o garçom se aproximou
perguntei pelo aquário, pois queria escolher a minha truta. O garçom chamou o
maitre, que explicou que eles não tinham aquário, mas que as trutas estavam
frescas, haviam chegado da serra da Bocaina naquele dia. Desapontado, pedi
truta aux amandes, como da outra vez.
Minha decepção foi imensa. O peixe não era igual ao outro que
eu degustara com tanta emoção. Não tinha cabeça, nem olhos. Eu lhe dediquei a
mesma atenção meticulosa, separando a carne das espinhas e da pele, mas, na
hora de comer, o sabor não era parecido com o da carne que provara anteriormente.
Era uma carne insípida, sem caráter ou espírito, insossa, sem frescura,
enfadonha, sem elã, com um sabor de coisa diluída – um calafrio varou meu corpo
–, de coisa morta.
No dia seguinte, lista telefônica à minha frente, liguei para
todos os restaurantes da cidade, para saber quais deles tinham aquários onde os
fregueses pudessem escolher os peixes que iriam comer. Anotei os nomes de todos
e, naquele mesmo dia, fui jantar num deles.
Desta vez entrei mais confiante. Escolhi, entre as várias que
nadavam nervosamente no aquário, uma truta parecida com a primeira – na cor, na
elegância dos movimentos e, mais que tudo, no brilho significativo do olhar.
Quando a colocaram no meu prato senti um frisson tão forte que temi que os ocupantes
das mesas vizinhas o tivessem percebido. Ao comê-la, tive a alegria de poder
confirmar que seu gosto era deliciosamente igual ao da primeira.
Minha vida mudou depois desse dia. Dispensei Talita de fazer o
suflê. Saía todas as noites para jantar num dos restaurantes com aquários.
Alguns tinham também lagostas e lagostins, que outrossim passei
a comer, com grande prazer, conquanto esses animais tivessem olhos miúdos e
opacos. Mas a força vital que se desprendia da carne sólida deles compensava a
falta de um olhar sensível e inteligente. Sentia-me atraído pela robusta assimetria
arcaica, pela monstruosa estrutura pré-histórica desses crustáceos.
A partir de então, enquanto ouvia música, durante o dia, minha
mente não mais vagava em nebulosas divagações poéticas: pensava no que iria
comer à noite.
Os garçons já me conheciam. Sabiam que eu só comia trutas, lagostas
e lagostins tirados vivos do aquário. Mas um dia, um garçom novo perguntou-me o
que eu queria comer.
“Existe alguma outra coisa?”, perguntei.
“Temos coelho à caçadora, cabrito, carneiro...”
“Onde é que eles estão?”, perguntei, olhando para o aquário.
“Onde é que eles estão?”, perguntou por sua vez, perplexo, o garçom.
“Sim”, eu disse, “queria vê-los.”
“Estão na cozinha”, disse o garçom. “Um momentinho.”
O garçom voltou com o maitre, que me reconheceu.
“O senhor hoje não quer comer uma truta? Uma lagosta?”
“O garçom sugeriu um coelho”, eu disse. “Nunca comi coelho. É
bom?”
“Nosso coelho é ótimo”, disse o maitre.
“Eu queria vê-los.”
“Vê-los?”
“Sim. Para escolher.”
“Para escolher”, repetiu o maitre.
“Sim. Como faço com as trutas e as lagostas.”
“Ah, sim, sim, entendo. Mas acontece que os coelhos já estão
–”, ele ia dizer mortos, senti que ele ia dizer mortos, todavia percebeu que
isto talvez chocasse um freguês como eu, e preferiu dizer “– temperados.”
“Temperados?”
“Sim, temperados.” O maitre sorriu, satisfeito, por ter conseguido
inventar uma metáfora tão eficiente. “Os coelhos, ao contrário das trutas, têm
que ser temperados algum tempo antes de serem degustados.”
“Então me mostre os cabritos”, eu disse. Talvez influenciado pelo
garçom, eu decidira comer, naquele dia, um animal diferente, da terra e não da
água.
“Com os cabritos é a mesma coisa. Eles já estão, han, temperados.”
“Onde é que eles se encontram?”
“Onde?”, o maitre sentiu que suava; discretamente, com muita rapidez,
limpou a testa com um lenço que tirou do bolso, “Onde? Nas travessas”.
“Posso ver?”
“Sim. Mas eles não estão inteiros. Cabritos são animais grandes,
não sei se o senhor já viu um.”
“Não, nunca vi. Eles têm chifres?”
“Sim, eles têm chifres. Mas são pequenos, os chifres. Pode comer
sem susto, nós tiramos os chifres.” Um sorriso nervoso e outra limpeza rápida
da testa. “Assados, com brócolis, são uma delícia.” (Ele não me disse, mas eu
soube, depois, que os cabritos são comidos esquartejados.)
“E os coelhos? Também nunca vi um coelho.”
“Esses não têm chifres.”
“Isso eu sei. Os animais que têm chifres são o boi, o cabrito,
o rinoceronte.”
“A girafa...”
“Vocês têm girafa?”
“Não, não, não temos. O que eu queria dizer é que elas têm chifres.
Um chifrinho pequeno. As girafas.”
“Maior ou menor do que o do cabrito?”
“Digo pequeno em comparação ao seu tamanho. As girafas são altas”,
disse o maitre. Parecia muito perturbado. (A definição do Bluteau é de que a
girafa é um animal maior do que um elefante”.)
“Pode comer o coelho sem susto”, disse o maitre cortando os meus
pensamentos. “Seu Abílio –, disse para o garçom que assistia ao diálogo, –
traga um coelho à caçadora para o cavalheiro.”
Então comi aquela comida extravagante. Era um gosto inesperado,
diferente de tudo que eu havia conhecido até então.
Comi consciente, o tempo todo, da peculiaridade
daquele sabor, uma doçura que não era a do mel, muito menos a do açúcar, um
paladar que me dava uma inesperada sensação de gozo singular.
Ao chegar em casa coloquei Satie, esse rebelde, no aparelho de
som, e fiquei imaginando como seria aquela iguaria, se eu pudesse escolhê-la
imediatamente antes de ser preparada, como eu fazia com as trutas e lagostas,
que prazer gustativo me seria propiciado se eu pudesse ver os olhos dos coelhos
antes de morrerem. Lembrei-me das diferenças de sabor entre a truta que haviam
posto no meu prato, sem que a tivesse visto antes (e ela visto a mim), e
aquelas que eu escolhia, após demorada contemplação mútua. Trutas que eu
selecionava após olhar e perceber tudo o que elas significavam, objetiva e
subjetivamente, cor, movimento, e, mais do que tudo, o furtivo e sutil olhar de
resposta – sim, a truta olhava de volta, sub-repticiamente, uma coisa tímida e
ao mesmo tempo matreira, astuta, que procurava estabelecer comigo uma comunhão
dissimulada, secreta, sedutora.
No dia seguinte voltei ao restaurante e disse que queria ver o
coelho “temperado”.
O maitre, recalcitrante, levou-me à cozinha e mostrou-me o coelho
deitado numa travessa de alumínio, que tirou da geladeira. O coelho estava
inteiro, sem cabeça e com um buraco onde deveriam estar as vísceras. Isso não
me surpreendeu, eu sabia que os animais eram estripados, antes de serem
comidos. Trutas também tinham tripas, o mesmo ocorrendo com as lagostas.
O coelho decapitado me pareceu uma coisa feia, algo indefinido
entre gato e cachorro, já que a cabeça é que distinguia esses animais um do
outro, quando mortos e esfolados. A um bicho sem cabeça falta algo muito importante,
os olhos.
Comi o coelho que me haviam exibido, tendo antes pedido ao cozinheiro
que me explicasse como aquele prato – coelho à caçadora – devia ser preparado.
O cozinheiro ensinou-me mais coisas.
Fui a uma loja na cidade, que vendia animais de estimação. Queria
ver um coelho vivo. Havia vários na loja, cinzentos ou brancos, e o olhar
evasivo deles, dentro de órbitas pequenas, era difícil de captar.
Ah, que animal manhoso, pensei. Um deles era tão bonito que eu
o comprei, mesmo sendo mais caro que os outros. Era um belo coelho angorá, de
longos e sedosos pelos brancos.
No caminho de casa, carregando o coelho numa caixa de papelão,
parei num mercado para comprar cenouras e batatas.
O coelho não se interessou pelas batatas, mas comeu, instalado
no tapete persa da sala, as cenouras com grande dedicação. Enquanto ouvia
Brahms, fiquei contemplando a mastigação silenciosa do coelho.
Como se alimentam de maneira delicada os animais, pensei. Evidentemente
nunca vi um porco comendo, mas suponho que eles também, ao comer, ainda que
possam parecer mais vorazes do que os outros animais, conforme consta na
literatura, demonstrem nesse ato, como todos nós, a fragilidade e beleza essenciais
à sua singular condição animal. Arte é fome.
O olhar esquivo do coelho me incomodou um pouco, faltava-lhe a
candura, a franqueza do olhar da truta. Mas talvez fosse uma questão de
sensibilidade e perspicácia – mas quem, qual, seria mais sensível e/ou
inteligente que o outro? Eu sabia que na água habitavam alguns dos animais mais
inteligentes da natureza; mas a truta não costumava ser incluída entre esses,
era conhecida mais pela energia física, pelo vigor peripatético.
Eu nada sabia sobre coelhos. Eram um mistério para mim. Mas sabia,
agora, matá-los e cozinhá-los, conforme o cozinheiro do restaurante me havia
ensinado.
Segurei o coelho pelas orelhas, com a mão esquerda. As pernas
do animal se distenderam, mas ele logo as encolheu e lançou-me um olhar. Um olhar
significativo e direto, afinal!
“Obrigado, obrigado por esse olhar espontâneo e cândido”, eu
disse, sempre segurando o coelho pelas orelhas. Coloquei os rostos, o meu e o
do animal, frente a frente, muito próximos. Li o olhar dele, um olhar de
obscura curiosidade, de leve interesse, como se o que fosse acontecer não lhe
importasse. Não era, pois, um olhar inquisitivo, de sondagem. Estão a me
segurar pelas orelhas, é tudo que ele devia estar pensando.
Com a aba da mão direita, os dedos estendidos e juntos, dei
um golpe na nuca do coelho. O cozinheiro me assegurara que apenas um golpe
seria suficiente para matar o animal.
Mas todos aqueles anos em que passei comendo irregularmente
suflês de espinafre, e sentado escrevendo, e deitado ouvindo e lendo os grandes
clássicos, haviam contribuído muito pouco para o desenvolvimento da minha força
muscular. O coelho, ao receber o golpe, tremeu e continuou com os olhos
abertos, agora exprimindo um vago medo. Não era, todavia, um sentimento
irracional, o coelho sabia o que estava acontecendo, que estava à mercê de um
ente poderoso, que não poderia fugir e só lhe restava a resignação.
Encaramos, um ao outro – o coelho tremendo sem nenhum pudor, os
estoicos olhos arregalados.
Foram precisos uns três ou quatro golpes. Finalmente o coelho
cessou de se debater.
Eu estava exausto. Deve ser isso o que sente o sujeito que
ganha a maratona, pensei ao notar que, junto com a fadiga, sentia uma estuante
euforia.
Coloquei a Nona sinfonia de Beethoven no aparelho e fui,
inteiramente nu, para a banheira, com o coelho e mais uma faca e dois
caldeirões. Tinha receio, naquele primeiro dia, ainda inexperiente, de sujar a
cozinha de sangue ao estripar e esfolar o coelho, de acordo com as instruções
do cozinheiro.
A faca era afiada e não tive muitas dificuldades. Sentado nu
na banheira, realizei a esfoladura e a evisceração do leporídeo. Findo o
trabalhos, coloquei as sobras – tripas asquerosas, peles, gânglios – num caldeirão.
O coelho, pronto para ser temperado, em outro.
Em seguida lavei a banheira e tomei um longo banho morno.
Do banheiro, que ficara imaculadamente limpo, fui para a
cozinha, onde preparei o coelho, ensopado com cenouras e batatas, agora ouvindo
os Noturnos de Chopin.
Afinal o coelho estava pronto, à minha frente.
Comecei a saboreá-lo delicadamente, em pequenas porções. Ah!,
que prazer excelso! Foi uma lenta refeição que durou a Júpiter, de Mozart,
inteira. Mozart não se incomodaria de eu ter usado sua música como mera
tafelmusik, se soubesse do gozo que senti.
Depois fui escovar os dentes. Contemplei, através do espelho,
pensativo, a banheira. Quem fora mesmo que me dissera que os cabritos tinham um
olhar ao mesmo tempo meigo e perverso, uma mistura de pureza e devassidão? E o
olhar dos seres humanos? Hum... Aquela banheira era pequena. Precisava comprar
uma maior. Talvez uma jacuzzi, das grandes, com jatos estimulantes.
Fiquei vendo meu rosto no espelho. Olhei meus olhos. Olhando e
sendo olhado – uma coisa afinal irrefletida, um eixo de aço, lava de um vulcão
sendo expelida, nuvem infindável.
O olhar. O olhar.
***
Sonho de valsa
Antonia Cristina de Alencar Pires
Os três seguiram pela
estrada de terra vermelha. Atrás deles uma nuvem alaranjada de poeira formava
uma espécie de véu. O brilho do sol feria as retinas do menino de olhos grandes
e tristes. Sua cabeça doía e ele remexia as lembranças como se elas estivessem
no tacho de goiabada de sua avó. As outras pessoas que caminhavam com ele eram
os dois homens que conhecera na manhã daquele dia. Um deles carregava uma
sanfona velha e o outro segurava uma gaiola onde se espremiam três macaquinhos.
No bolso da bermuda, todo amassado, havia um papel de bombom que o menino
guardava como um tesouro.
O som da sanfona
desafinada enchia a praça. No centro dela estavam os dois homens, cercados por
algumas pessoas. O sanfoneiro tocava e os três macaquinhos presos na ponta de
uma corda dançavam frenéticos, segurados com força pelo outro homem. No chão,
um chapéu surrado aparava as moedas que a pequena assistência jogava. Eles anunciavam
a chegada do circo à cidade.
O menino de olhos
grandes e tristes ficou toda a manhã na praça. Quando os dois homens se
preparavam para sair, pediu-lhes para acompanhá-los.
Enquanto andava, o
menino pensava em Nina, sua colega de turma, que se mudara de cidade no final
do ano passado. Nunca esqueceria do dia em que ela lhe deu um bombom sonho de
valsa, cujo papel ele levava consigo. Agora ele iria ser artista de circo,
talvez a encontrasse em alguma cidade por onde a troupe passasse. Primeiro se
apresentaria com os macaquinhos, depois, quem sabe, iria para o trapézio ou
para o globo da morte. Na plateia, apreensiva mas orgulhosa, Nina o olharia
cheia de carinho e depois lhe daria um bombom, um beijo talvez. O calor era
como uma lâmina fina a penetrar na carne. A cabeça do menino latejava. Outras imagens
borbulhavam no seu tacho de memórias. Lá estava dona Ângela, sua professora da
terceira série, com seus olhos lânguidos e seus cabelos seguros por uma
presilha de veludo negro. Onde andaria dona Ângela? Um dia avisaram que não
haveria aulas para a turma dele. A professora fugira com o namorado, tal qual a
personagem do livro de Ziraldo que o menino leu nas férias na casa dos primos. Ele
ficou três dias com febre e não foi à escola. Não queria ninguém no lugar de
dona Ângela. Por onde ela andaria: o acampamento do circo estava logo depois da
ponte de madeira. O menino avistou o caminhão, duas barracas e pessoas ao redor
delas. Os três aproximaram-se do grupo. Entre as barracas havia uma trempe onde
fervia um caldeirão encarvoado. Dentro, um caldo ralo de fubá. No caldo boiavam
alguns pedaços de legumes e rodelas de linguiça. O cheiro não era ruim, mas o
menino não quis tomá-lo quando lhe ofereceram um pouco.
O menino de olhos
grandes e tristes catou gravetos para a trempe, trouxe água do rio numa lata e
ajudou a serrar pedaços de madeira. Executar essas tarefas era a condição para
integrar-se à caravana brancaleone. Muito cansado, encostou-se numa árvore. No galho
mais alto, um sabiá-laranjeira cantava indiferente às dores do mundo. Indiferente
à dor do menino. Ele pensou em um cachorro perdigueiro que morreu de fome e de
sede no fundo do quintal. Morreu de amor não correspondido por Laika, a cadela
do vizinho. Pensou também no filhote do coelho do mato que encontrou na beira do
rio e levou para casa. Acomodou o bicho no cesto de roupa suja. À noite o gato
virou o cesto e devorou o filhote.
O menino fechou os
olhos. Nina, o coelho do mato, o cachorro, dona Ângela, os macaquinhos valsavam
ao som desafinado da sanfona. Ele, de um trapézio a outro, ouvia uma secreta
música. No globo da morte ele era o motociclista e fazia acrobacias arriscadas.
Era um artista daquele circo mambembe. Daquele circo fantasma.
A manhã já estava alta
quando o encontraram sozinho, deitado junto à árvore. Na cabeça havia um
ferimento e restos de sangue coalhado pelos cabelos. No posto médico para onde
foi levado, disseram tratar-se de mordida de algum animal silvestre. Talvez macacos.
(In: "8º Concurso de
Contos Luís Jardim", promovido pela Prefeitura do Recife por meio da Biblioteca
Popular da Casa Amarela Jornalista Alcides Lopes. Recife, 2010.)
Algo
de muito grave vai acontecer neste lugar
Gabriel
García Márquez
Imagine você um povoado
bem pequeno, onde há uma velha senhora que tem dois filhos, um de 17 e uma
filha de 14. Está servindo-lhes o café da manhã e tem uma expressão de
preocupação. Os filhos perguntam-lhe o que se passa e ela lhes responde:
— Não sei, mas
acordei com o pressentimento de que algo de muito grave vai acontecer a este
lugar.
Eles se riem da mãe.
Dizem que são pressentimentos de velha, coisas que passam. O filho vai jogar o bilhar, e no momento em que vai lançar uma carambola1
muito simples, o outro jogador
lhe diz:
— Aposto um peso como
não acertas.
Todos riem. Ele se
ri. Lança a carambola e não acerta. Paga o peso e todos lhe perguntam o que houve,
se era uma carambola simples. Ele responde:
— Está certo, mas me
bateu a preocupação de uma coisa que disse minha mãe esta manhã sobre algo
grave que vai acontecer no povoado.
Todos se riem dele, e
aquele que ganhou o peso volta para casa, onde está com sua mãe ou uma neta, ou
enfim qualquer parente. Feliz com seu peso, diz:
— Ganhei este peso de
Dámaso da forma mais simples porque é um tonto.
— E por que é um
tonto?
— Porque não pode
acertar uma carambola bem simples perturbado com a ideia de que sua mãe acordou hoje
com a ideia de que algo muito grave vai acontecer no povoado. Então sua mãe
lhe disse: “Não deboche dos pressentimentos dos velhos porque às vezes eles
acontecem”.
Uma parenta escuta e
vai comprar carne. Ela diz ao açougueiro:
— Quero meio quilo de
carne – e no momento em que ele corta a carne, ela acrescenta –: Melhor levar
um quilo, porque andam dizendo que algo grave vai acontecer e o melhor é
estar preparado.
O açougueiro a
despacha e quando chega outra senhora para comprar meio quilo de carne, ele diz:
— Leve um quilo, porque
chega gente aqui dizendo que algo muito grave vai acontecer, e estão se
preparando e comprando coisas.
Então a velha
responde:
— Tenho vários
filhos. Olhe, é melhor dar-me dois quilos.
Ela leva os dois quilos; e para não tornar a história longa, direi que o açougueiro em meia hora
esgotou toda a carne, mata outra vaca, vende tudo e o boato vai se espalhando.
Chega o momento em que todo mundo, no povoado, está esperando que aconteça
algo. Paralisam-se as atividades e de repente, às duas da tarde, faz calor como
sempre. Alguém diz:
— Notaram o calor que
está fazendo?
— Mas neste povoado
sempre fez calor!
(Tanto calor que é um
povoado onde os músicos tinham instrumentos remendados com breu e tocavam
sempre à sombra, porque se tocassem no sol eles cairiam aos pedaços.)
— No entanto – disse
alguém – a esta hora nunca fez tanto calor.
— Mas às duas da
tarde é quando faz mais calor.
— Sim, mas não tanto como agora.
No povoado deserto, a
praça deserta, pousa de repente um passarinho e a notícia corre:
— Há um passarinho na
praça.
E vem todo mundo,
espantado, para ver o passarinho.
— Mas senhores,
sempre houve passarinhos pousando.
— Sim, mas nunca a
esta hora.
Chega um momento de
tal tensão para os habitantes do povoado, que todos estão desesperados para
irem embora e não têm coragem de fazê-lo.
— Eu sim sou muito
macho – grita alguém –. Eu vou embora.
Agarra seus móveis,
seus filhos, seus animais, os mete numa carreta e atravessa a rua central onde
está o pobre povo assistindo-o. Até o momento em que dizem:
— Se ele se atreve,
pois nós também vamos.
E começam
literalmente a desmantelar o povoado. Levam as coisas, os animais, tudo.
E um dos últimos a
abandonar o povoado, diz:
— Que não venha a
desgraça a cair sobre o que resta de nossa casa – e então a incendeia e outros
incendiam também suas casas.
Fogem num tremendo e
verdadeiro pânico, como num êxodo de guerra, e em meio a eles, vai a senhora
que teve o presságio, clamando:
— Eu disse que algo
muito grave ia acontecer, e disseram que eu estava louca.
(Traduzido do espanhol por Isabel Pires. Contado2 por Gabriel García Márquez no XIII Congreso Interamericano de Literatura, Caracas, 1967.) Disponível em espanhol em:
https://ciudadseva.com/texto/algo-muy-grave-va-a-suceder-en-este-pueblo/
___________
NOTAS:
1 No jogo do bilhar, a “carambola” é conseguida quando a bola do jogador toca em outras duas bolas. (Fonte: Wikipedia).
2 Este conto foi utilizado por García Márquez nesse Congresso para exemplificar a diferença entre “contar um conto” e “escrever um conto”.
***
Flor, telefone, moça
Carlos Drummond de Andrade
Não, não é conto.
Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai
passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é
doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se
fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.
Falava-se de
cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora
me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz
murchou um pouquinho.
– Sei de um caso de
flor que é tão triste!
E
sorrindo:
– Mas você não vai
acreditar, juro.
Quem sabe? Tudo
depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não
depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento
máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.
– Era uma moça que
morava na rua General Polidoro, começou ela. Perto do cemitério São João
Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar
conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se
interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de
rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver
passar enterro do que de não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto
corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.
Se o enterro era
mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar
no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa
impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito
nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por
disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam
apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério
e a acompanhar o préstito até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que
adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para
passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar
um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha
o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de
coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei
lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo.
Coitada!
– No interior isso
não é raro…
– Mas a moça era de
Botafogo.
– Ela
trabalhava?
– Em casa. Não me
interrompa. Você não vai me pedir a certidão de idade da moça, nem sua
descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é
que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar”
pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma
inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida,
uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade
dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela
fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde
está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá
que, uma tarde, ela apanhou a flor.
– Que
flor?
– Uma flor
qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro
palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem
diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como
inconscientemente já se esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto.
Não se pensa mais nisso.
Se a moça jogou a
margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa,
também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas
foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia
poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.
– Alooô…
– Quede a flor que
você tirou de minha sepultura?
A voz era
longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:
– O
quê?
Desligou. Voltou
para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone
chamava de novo.
– Alô.
– Quede a flor que
você tirou de minha sepultura?
Cinco minutos dão
para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas
preparada.
– Está aqui comigo,
vem buscar.
No mesmo tom lento,
severo, triste, a voz respondeu:
– Quero a flor que
você me furtou. Me dá minha florzinha.
Era homem, era
mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça
topou a conversa:
– Vem buscar, estou
te dizendo.
– Você bem sabe que
eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem
obrigação de devolver.
– Mas quem está
falando aí?
– Me dá minha flor,
eu estou te suplicando.
– Diga o nome,
senão eu não dou.
– Me dá minha flor,
você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha
sepultura.
O trote era
estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve
mais nada.
Mas no outro dia
houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi
atender.
– Alô!
– Quede a
flor…
Não ouviu mais.
Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada, voltou
à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz
lamentosa recomeçasse:
– Olhe, vire a
chapa. Já está pau.
– Você tem que dar
conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha
cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta
aquela flor.
– Esta é fraquinha.
Não sabe de outra?
E desligou. Mas,
voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia daquela flor, ou
antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no
cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava
de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria
fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se
podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha
de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo
que a moça começou a ter medo.
– E eu
também.
– Não seja bobo. O
fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu
mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo
tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo
da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego
eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da
restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça,
além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a
cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o
boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E
se a voz não se calasse, ela tomaria providências.
A providência
consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a
voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam
convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o
curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.
– A voz chamou
hoje? indagava o pai, chegando da cidade.
– Ora. É infalível,
suspirava a mãe, desalentada.
Descomposturas não
adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na
vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as
tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as
lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o
telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de
jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento,
dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?
O rapaz começou a
tocar para todos os telefones da rua General Polidoro, depois para todos os
telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha
dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava.
Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de
sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se
fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de
hora também inspirou à família algumas diligências. Mas
infrutíferas.
Claro que a moça
deixou de atender telefone. Não falava mais nem para as amigas. Então a “voz”,
que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais
“você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem de
restituir” etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa
era com a moça. E a “voz” não dava explicações.
Isso durante quinze
dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos,
mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender
comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é
que não se apurou nada. Então, o pai correu à Companhia Telefônica. Foi
recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores
de ordem técnica…
– Mas é a
tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha
filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?
– Não faça isso,
meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em
dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho
de amigo. Volte para sua casa, tranquilize a família e aguarde os
acontecimentos. Vamos fazer o possível.
Bem, você já está
percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o
apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para
trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando. Sentia-se
miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer
conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova
de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…
O irmão voltou do
São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde,
havia cinco sepulturas plantadas.
A mãe não disse
coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco
ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi
derramá-los votivamente, sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e
ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto
propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos
sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver
afligido.
Mas a “voz” não se
deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela,
miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais.
As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a
voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam
no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?
O pai jogou a
última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs
longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada
de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência,
mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos eram
impotentes, esses poderes, quando alguém quer alguma coisa de sua última fibra,
e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às
vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma
explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para
aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se
era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no
apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu
sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível
compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa
flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem
esperança?
– Mas, e a
moça?
– Carlos, eu
preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns
meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais
pediu.
(In: Contos de aprendiz. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 61-66)
A biblioteca de
Babel
Jorge Luís
Borges
By this art you may contemplate the variation
of the 23 letters...
(The Anathomy of Melancholy,part. 2, sec. ii, mem. iv)
O universo (que outros chamam de Biblioteca) se compõe de um número
indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de
ventilação no meio, cercados por varandas baixíssimas. De qualquer hexágono se
veem os pisos inferiores e superiores: interminavelmente.
A distribuição da galeria é invariável. Vinte prateleiras, até cinco
prateleiras compridas de cada lado, cobrem todos os lados, exceto dois; sua
altura, que é a dos pisos, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das
faces livres conduz a um corredor estreito, que conduz a outra galeria,
idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do corredor há dois
armários minúsculos.
Um permite dormir em pé; outro,
satisfazer as necessidades finais. Por ali passa a escada em caracol, que
mergulha no abismo e se eleva ao longe. No saguão há um espelho, que duplica
fielmente as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a
Biblioteca não é infinita (se realmente fosse, por que essa duplicação
ilusória?); prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o
infinito... A luz vem de frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. São duas
em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha
juventude; peregrinei em busca de um livro, acaso do catálogo dos catálogos; agora
que meus olhos mal conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a
algumas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que
me atirem por cima da varanda; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo
afundará por muito tempo e corromperá e dissolverá no vento engendrado pela
queda, que é infinita.
Afirmo que a Biblioteca é infinita. Os idealistas
argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto
ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Eles raciocinam que uma sala
triangular ou pentagonal é inconcebível. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes
revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua,
que contorna todas as paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras.
Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me, por ora, repetir o ditame clássico: A Biblioteca é uma esfera cujo centro exato
é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível.
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem
cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato
uniforme; cada livro possui quatrocentas e dez páginas; cada página, quarenta
linhas; cada linha, cerca de oitenta letras pretas. Também há letras no dorso
de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas.
Eu sei que essa desconexão, alguma vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a
solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato
capital da história) quero recordar alguns axiomas.
O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário
imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O
homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou de demiurgos
malévolos; o universo, com sua elegante dotação de prateleiras, de tomos
enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o
bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância
entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trêmulos que
minha mão falível rabisca na capa de um livro, com as letras orgânicas do
interior: pontuais, delicadas, negrísimas, inimitavelmente simétricas.[1]
O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco. Essa constatação
permitiu, há trezentos anos atrás, formular uma teoria geral da Biblioteca e
resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura havia decifrado: a
natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que meu pai viu em um
hexágono do circuito quinze noventa e quatro, consistia nas letras MCV
perversamente repetidas da primeira à última linha. Outro (muito consultado
nesta área) é um mero labirinto de letras, mas a penúltima página diz Oh tempo tuas pirâmides. Já se sabe: por
uma linha razoável ou uma notícia reta há léguas de insensatas cacofonias, confusões
verbais e incoerências. (Sei de uma região selvagem cujos bibliotecários
repudiam o supersticioso e vão costume de buscar sentido nos livros e o
equiparam a procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que
os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam
que essa aplicação é casual e que os livros nada significam em si. Essa
opinião, já veremos, não é totalmente falaciosa.
Durante muito tempo acreditou-se que esses
livros impenetráveis correspondiam a línguas passadas ou remotas. É verdade
que os homens mais velhos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz
diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua
é dialetal e que noventa pisos acima é incompreensível. Tudo isso, repito, é
verdade, mas quatrocentas e dez páginas do inalterável MCV não podem
corresponder a nenhuma língua, por mais dialetal ou rudimentar que seja. Alguns
insinuaram que cada letra poderia influir na subsequente e que o valor de MCV
na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série em outra
posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros pensaram em
criptografias; universalmente essa conjectura foi aceita, ainda que não no
sentido em que a formularam seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono
superior[2] se deparou com um livro tão confuso quanto os outros, mas que tinha
quase duas folhas de linhas homogêneas. Ele mostrou sua descoberta a um
decifrador ambulante,
que lhe disse que estavam escritos em português; outros lhe disseram que era
iídiche. Antes de um século, a língua pôde ser estabelecida: um dialeto
samoiedo-lituano do guarani, com inflexões do árabe clássico.
O conteúdo também foi decifrado: noções de análise
combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada.
Esses exemplos permitiram a um genial bibliotecário descobrir a lei fundamental
da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por mais diversos
que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte
e duas letras do alfabeto. Ele também alegou um fato que todos os viajantes têm
confirmado: Não há na vasta Biblioteca
dois livros idênticos.
Dessas premissas incontestáveis, deduziu que a
Biblioteca é total e que suas estantes registram todas as combinações possíveis
dos vinte e tantos símbolos ortográficos (um número, embora vasto, não
infinito), ou seja, tudo o que pode ser expresso: em todas as línguas. Tudo: a
história minuciosa
do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o
catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a
demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo
verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário sobre esse
evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de sua
morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada
livro em todos os livros, o tratado que Bede poderia ter escrito (e não
escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos
os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens
se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema
pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: em algum hexágono. O
universo estava justificado, o universo usurpou abruptamente as dimensões ilimitadas
da esperança. Naquele tempo muito se falou sobre as Vindicações: livros de
apologia e profecia, que vindicavam para sempre os atos de cada homem do
universo e guardavam prodigiosos arcanos para seu futuro. Milhares de
gananciosos abandonaram o doce hexágono natal e se lançaram escadas acima,
movidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação. Esses peregrinos
disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições,
estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos
túneis, eram mortos em penhascos por homens de regiões remotas. Outros
enlouqueceram... As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas do
futuro, talvez não imaginárias) mas os buscadores não se lembraram que a
possibilidade de um homem encontrar a sua, ou alguma variação pérfida da sua, é
computável a zero.
Também esperou-se então o esclarecimento dos
mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É provável
que esses graves mistérios possam ser explicados em palavras: se não bastasse a
linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca terá produzido a linguagem inédita
que se requer e os vocabulários e gramáticas dessa língua. Faz quatro séculos
que os homens esgotam os hexágonos... Há buscadores oficiais, inquisidores. Eu os tenho visto no
desempenho de sua função: sempre chegam exaustos; falam de uma escada sem
degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário;
algumas vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, em busca de palavras
infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À esperança desenfreada, seguiu-se, como é natural,
uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava
livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, parecia
quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que
todos os homens embaralhassem letras e símbolos, até construírem, mediante um
improvável dom do acaso, esses livros canônicos. As autoridades se viram
obrigadas a promulgar ordens
severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi velhos que por muito
tempo se esconderam nas latrinas, com alguns discos de metal em um copo
proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.
Outros, inversamente, acreditavam que o primordial
era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem
sempre falsas, folheavam entediados um volume e condenavam estantes inteiras: a
seu furor higiênico, ascético, se deve a insensata destruição de milhões de
livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os "tesouros"
que seu frenesi destruiu negligenciam dois fatos notórios. Um: a Biblioteca é
tão grande que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada
exemplar é único, insubstituível, mas (já que a Biblioteca é total) há sempre
várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que diferem
apenas por uma letra ou uma vírgula. Ao contrário da opinião geral, me atrevo a
supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores têm
sido exageradas pelo horror que esses fanáticos causaram. Foram impelidos pelo
delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor
que os naturais; onipotentes, ilustrados
e mágicos.
Também sabemos de outra superstição daquele tempo:
a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinavam os
homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os outros: algum bibliotecário
o examinou e é análogo a um deus. Na linguagem desta área ainda persistem
vestígios do culto desse remoto funcionário. Muitos peregrinaram em busca Dele.
Durante um século eles trabalharam em vão nas mais diversas direções. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito... Em aventuras como essas, esbanjei e consumi meus anos. Não me parece improvável que em alguma estante do universo haja um livro total[3]; Rogo aos deuses desconhecidos para que um homem – apenas um, mesmo que fosse, há milhares de anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra, a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para os outros. Que o céu exista, mesmo que meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num só ser, Tu, enorme Biblioteca, se justifique.
Afirmam os ímpios que o absurdo é normal na
Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é uma quase
milagrosa exceção. Falam (eu sei) da "Biblioteca febril, cujos volumes
aleatórios correm o incessante risco de se transformarem em outros e que tudo
afirmam, negam e confundem como uma divindade delirante". Essas palavras que
não só denunciam a desordem mas também a exemplificam, notoriamente provam
seu péssimo gosto e sua desesperada ignorância.
Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas
verbais, todas as variações que os vinte e cinco símbolos ortográficos
permitem, mas nem um só disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume
dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trovão penteado, e outro A
câimbra de gesso e outro Axaxaxas mlö.
Essas proposições, à primeira vista incoerentes, são sem dúvida passíveis de
justificação criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca.
Não posso combinar alguns caracteres dhcmrlchtdj
que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em algumas de suas línguas
secretas não encerram um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba
que não seja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas línguas o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer
em tautologias. Esta epístola inútil e prolixa já existe em um dos trinta
volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também sua
refutação. (Um número n de linguagens
possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição onipresente e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas
biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as
sete palavras que a definem têm outro valor. Tu, que me lês, estás seguro de entender
minha linguagem?).
A escrita metódica me distrai da condição atual dos
homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos torna fantasmas.
Conheço bairros onde os jovens se prostram diante dos livros e beijam as
páginas barbaramente, mas não sabem decifrar uma só letra. As epidemias, as discórdias
heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm
dizimado a população. Creio haver mencionado os suicídios, a cada ano mais
frequentes. Quiçá me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie
humana – a única – está prestes a se extinguir e que a Biblioteca perdurará:
iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes
preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse
adjetivo por hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é
infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores,
as escadas e os hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo.
Quem o imagina sem limites esquece que os tem o número possível de livros.
Atrevo-me a sugerir esta solução para o velho problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a
atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao longo dos séculos que os
mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem).
Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.[4]
Mar del Plata, 1941
_____________
NOTAS
[1] O manuscrito original não contém
algarismos ou letras maiúsculas. A pontuação foi limitada à vírgula e ao ponto.
Esses dois signos, o espaço e as vinte e duas letras do alfabeto são os vinte e
cinco símbolos suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do editor).
[2] Antes, para cada três hexágonos havia um homem.
Suicídio e doenças pulmonares destruíram essa proporção. Memória de indescritível
melancolia: Às vezes tenho viajado muitas noites por corredores e escadas
polidas sem encontrar um único bibliotecário.
[3] Repito: basta que um livro seja possível para
que ele exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é
também uma escada, ainda que haja, sem dúvida, livros que discutem, negam e
demonstram essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma
escada.
[4] Letizia Álvarez Toledo observou que a vasta
Biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um
só volume, de formato comum, impresso em novo corpo ou corpo dez, que constará
de um número infinito de folhas infinitamente delgadas. (Cavalieri, no início
do século XVII, dizia que todo corpo sólido é a superposição de um número
infinito de planos.) O manuseio desse vademecun
sedoso não seria confortável: cada folha aparentemente se desdobraria em outras
semelhantes; a inconcebível folha central não teria reverso.
(In: El jardín de senderos que se bifurcan, 1941;
Ficciones, 1944). Traduzido do espanhol por Isabel Pires. Disponível
em espanhol em: http://www.literatura.us/borges/biblioteca.html
A chave na porta
Lygia Fagundes Telles
A chuva fina. E os carros na furiosa descida pela ladeira, nenhum táxi?
A noite tão escura. E aquela árvore solitária lá no fim da rua, podia me
abrigar debaixo da folhagem mas onde a folhagem? Assim na distância era visível
apenas o tronco com os fios das pequeninas luzes acesas, subindo em espiral na
decoração natalina. Uma decoração meio sinistra, pensei. E descobri, essa visão
lembrava uma chapa radiográfica revelando apenas o esqueleto da árvore, ah!
tivesse ela braços e mãos e seria bem capaz de arrancar e atirar longe aqueles
fios que deviam dar choques assim molhados.
— Quer condução, menina?
Recuei depressa quando o carro arrefeceu a marcha e parou na minha
frente, ele disse menina? O tom me pareceu familiar. Inclinei-me para ver o
motorista, um homem grisalho, de terno e gravata, o cachimbo aceso no canto da
boca. Mas espera, esse não era o Sininho? Ah! é claro, o próprio Sininho, um
antigo colega da Faculdade, o simpático Sininho! Tinha o apelido de Sino porque
estava sempre anunciando alguma novidade. Era burguês mas dizia-se anarquista.
— Sininho, é você!
Ele abriu a porta e o sorriso branquíssimo, de dentinhos separados.
— Um milagre, eu disse enquanto afundava no banco com a bolsa e os
pequenos pacotes. Como conseguiu me reconhecer nesta treva?
— Estes faróis são poderosos. E olha que já lá vão quarenta anos,
menina. Quarenta anos de formatura! Aspirei com prazer a fumaça do cachimbo e
que se misturava ao seu próprio perfume, alfazema? E não parecia ter
envelhecido muito, os cabelos estavam grisalhos e a face pálida estava vincada
mas o sorriso muito claro não era o mesmo? E me chamava de menina, no mesmo tom
daqueles tempos. Acendi um cigarro e estendi confortavelmente as pernas, mas
espera, esse carrão antiquado não era o famoso Jaguar que gostava de exibir de vez
em quando?
— O próprio.
Fiquei olhando o belo painel com o pequeno relógio verde embutido na
madeira clara.
— Você era rico e nós éramos pobres. E ainda por cima a gente lia
Dostoievski.
— Humilhados e ofendidos!
Rimos gostosamente, não era mesmo uma coisa extraordinária? Esse
encontro inesperado depois de tanto tempo. E em plena noite de Natal. Contei
que voltava de uma reunião de amigos, quis sair furtivamente e para não
perturbar inventei que tinha condução. Quando começou a chuva.
—Acho essas festas tão deprimentes, eu disse.
Ele então voltou-se para me ver melhor. Dei-lhe o meu endereço. No farol
da esquina ele voltou a me olhar. Passou de leve a mão na minha cabeça mas não
disse nada. Guiava como sempre, com cuidado e sem a menor pressa. Contou que
voltava também de uma reunião, um pequeno jantar com colegas mas acrescentou
logo, eram de outra turma. Tentei vê-lo através do pequeno espelho entortado,
mas não era incrível? Eu me sentir assim com a mesma idade daquela estudante da
Academia. Outra vez inteira? Inteira. E também ele com o seu eterno carro, meu
Deus! na noite escura tudo parecia ainda igual ou quase. Ou quase, pensei ao
ouvir sua voz um tanto enfraquecida, rateando como se viesse de alguma pilha gasta.
Mas resistindo.
— Quarenta anos como se fossem quarenta dias, ele disse. Você usava uma
boina.
— Sininho, você vai achar isso estranho mas tive há pouco a impressão de
ter recuperado a juventude. Sem ansiedade, ô! que difícil e que fácil ficar
jovem outra vez.
Ele reacendeu o cachimbo, riu baixinho e comentou, ainda bem que não
havia testemunhas dessa conversa. A voz ficou mais forte quando recomeçou a
falar em meio das pausas, tinha asma? Contou que depois da formatura foi
estudar na Inglaterra. Onde acabou se casando com uma colega da universidade e
continuaria casado se ela não tivesse inventado de se casar com outro. Então
ele matriculou o filho num colégio, tiveram um filho. E em plena depressão
ainda passou por aquela estação no inferno, quando teve uma ligação com uma
mulher casada. Um amor tão atormentado, tão louco, ele acrescentou. Vivemos
juntos algum tempo, ela também me amava mas acabou voltando para o marido que
não era marido, descobri mais tarde, era o próprio pai.
— O pai?!
— Um atroz amor de perdição. Fiquei destrambelhado, desandei a beber e
sem outra saída aceitei o que me apareceu, fui lecionar numa pequena cidade
afastada de Londres. Um lugar tão modesto mas deslumbrante. Deslumbrante, ele
repetiu depois de um breve acesso de tosse. Nos fins de semana viajava para
visitar o filho mas logo voltava tão ansioso. Fiquei muito amigo de um abade
velhíssimo, Dom Matheus. Foi ele que me deu a mão. Conversávamos tanto nas
nossas andanças pelo vasto campo nas redondezas do mosteiro. Recomecei minhas
leituras quando fui morar no mosteiro e lecionar numa escola fundada pelos
religiosos, meus alunos eram camponeses.
— Você não era ateu?
— Ateu? Era apenas um ser completamente confuso, enredado em teias que
me tapavam os olhos, os ouvidos… Fiquei por demais infeliz com o fim do meu
casamento e não me dei conta disso. E logo em seguida aquele amor que foi só
atormentação. Sofrimento. Aos poucos, na nova vida tão simples em meio da
natureza eu fui encontrando algumas respostas, eram tantas as minhas dúvidas.
Mas o que eu estou fazendo aqui?! me perguntava. Que sentido tem tudo isto?
Ficava muito em contato com os bichos, bois. Carneiros. Fui então aprendendo um
jogo que não conhecia, o da paciência. E nesse aprendizado acabei por
descobrir… (fez uma pausa) por descobrir…
Saímos de uma rua calma para entrar numa travessa agitada, quase não
entendia o que ele estava dizendo, foi o equilíbrio interior que descobriu ou
teria falado em Deus?
— Depois do enterro de Dom Matheus, despedi-me dos meus amigos, fui buscar
meu filho que já estava esquecendo a língua e voltei para o Brasil, a gente
sempre volta. Voltei e fui morar sabe onde? Naquela antiga casa da rua São
Salvador, você esteve lá numa festa, lembra?
— Mas como podia esquecer? Uma casa de tijolinhos vermelhos, a noite
estava fria e vocês acenderam a lareira, fiquei tão fascinada olhando as
labaredas. Me lembro que quando atravessei o jardim passei por um pé de
magnólia todo florido, prendi uma flor no cabelo e foi um sucesso! Ah, Sininho,
voltou para a mesma casa e este mesmo carro…
Ele inclinou-se para ler a tabuleta da rua. Empertigou-se satisfeito
(estava no caminho certo) e disse que os do signo de Virgem eram desse jeito
mesmo, conservadores nos hábitos assim no feitio dos gatos que simulam um
caráter errante mas são comodistas, voltam sempre aos mesmos lugares. Até os
anarquistas, acrescentou zombeteiro em meio de uma baforada.
Tinha parado de chover. Apontei-lhe o edifício e nos despedimos
rapidamente porque a fila dos carros já engrossava atrás. Quis dizer-lhe como
esse encontro me deixou desanuviada mas ele devia estar sabendo, eu não
precisava mais falar. Entregou-me os pacotes. Beijei sua face em meio da fumaça
azul. Ou azul era a névoa?
Quando subia a escada do edifício, dei por falta da bolsa e lembrei que
ela tinha caído no chão do carro numa curva mais fechada. Voltei-me. Espera!
cheguei a dizer. E o Jaguar já seguia adiante. Deixei os pacotes no degrau e
fiquei ali de braços pendidos: dentro da bolsa estava a chave da porta, eu não
podia entrar. Através do vidro da sua concha, o porteiro me observava. E me
lembrei de repente, rua São Salvador! Apontei para o porteiro os meus pacotes
no chão e corri para o táxi que acabava de estacionar.
— É aqui! Quase gritei assim que vi o bangalô dos tijolinhos. Antes de
apertar a campainha, fiquei olhando a casa ainda iluminada. Não consegui ver a
garagem lá no fundo, mergulhada na sombra mas vislumbrei o pé de magnólia, sem
as flores mas firme no meio do gramado. Uma velhota de uniforme veio vindo pela
alameda e antes mesmo que ela fizesse perguntas, já fui me desculpando,
lamentava incomodar assim tarde da noite mas o problema é que tinha esquecido a
bolsa no carro do patrão, um carro prateado, devia ter entrado há pouco. Ele me
deu carona e nessa bolsa estava a minha chave. Será que ela podia?…
A mulher me examinou com o olhar severo. Mas que história era essa se o
patrão nem tinha saído e já estava até se recolhendo com a mulher e os gêmeos?
Carro prateado? Como esqueci a bolsa num carro prateado se na garagem estavam
apenas os carros de sempre, o bege e o preto?
— Decerto a senhora errou a casa, dona, ela disse e escondeu a boca
irônica na gola do uniforme. Em noite de tanta festa a gente faz mesmo
confusão…
Tentei aplacar com as mãos os cabelos que o vento desgrenhou.
— Espera, como é o nome do seu patrão?
— Doutor Glicério, ora. Doutor Glicério Júnior.
— Então é o pai dele que estou procurando, estudamos juntos. Mora nesta
rua, um senhor grisalho, guiava um Jaguar prateado…
A mulher recuou fazendo o sinal-da-cruz:
— Mas esse daí morreu faz tempo, meu Deus! É o pai do meu patrão mas ele
já morreu, fui até no enterro… Ele já morreu!
Fechei o casaco e fiquei ouvindo minha voz meio desafinada a se enrolar
nas desculpas, tinha razão, as casas desse bairro eram muito parecidas, Devo
ter me enganado, é evidente, fui repetindo enquanto ia recuando até o táxi que
me esperava.
O motorista tinha o rádio ligado numa música sacra. Pedi-lhe que
voltasse para o ponto.
Já estava na escada do edifício quando o porteiro veio ao meu encontro
para avisar que um senhor tinha vindo devolver a minha bolsa:
— Não é esta?
Fiz que sim com a cabeça. Quando consegui falar foi para dizer, Ah! que
bom. Abri a bolsa e nela afundei a mão mas alguma coisa me picou o dedo. Fiz
nova tentativa e dessa vez trouxe um pequeno botão de rosa, um botão vermelho
enredado na correntinha do chaveiro. Na extremidade do cabo curto, o espinho.
Pedi ao porteiro que depois levasse os pacotes e subi no elevador.
Quando abri a porta do apartamento tive o vago sentimento de que estava
abrindo uma outra porta, qual? Uma porta que eu não sabia onde ia dar mas isso
agora não tinha importância. Nenhuma importância, pensei e fiquei olhando o
perfil da chave na palma da minha mão. Deixei-a na fechadura e fui mergulhar o
botão no copo d’água. Agora desabrocha! pedi e toquei de leve na corola
vermelha.
Debrucei-me na janela. Lá embaixo na rua, a pequena árvore (parecida com
a outra) tinha a mesma decoração das luzes em espiral pelo tronco enegrecido.
Mas não era mais a visão sinistra da radiografia revelando na névoa o esqueleto
da árvore, ao contrário, o espiralado fio das pequeninas luzes me fez pensar no
sorriso dele, luminoso de tão branco.
(In: Invenção e memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 89)
O Peru de Natal
Mário de Andrade
O nosso primeiro
Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi
de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos
familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente
honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades
econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser
desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no
medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas
felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de
geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o
puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai,
sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava
que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia
ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada
almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a
ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se
viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas
aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por
instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o
bom do morto.
Foi decerto por
isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas
chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida
conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de
ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o
beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma
detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei,
de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta
parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus
pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando
exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem
de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me
salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para
se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido,
coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me
queixar um nada.
Era costume sempre,
na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai,
castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e
nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…),
empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi
lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:
– Bom, no Natal,
quero comer peru.
Houve um desses
espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava
conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
– Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…
– Meu filho, não fale assim…
– Pois falo,
pronto!
E descarreguei
minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de
bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha
teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura
imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães
que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de
alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma
imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do
peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não
sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios
finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava
embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de
exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com
titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E
isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na
verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de
festa.
Não, não se
convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas
farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga.
Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa
preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha
companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos
desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria
tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu
garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados
fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a
ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
Quando acabei meus
projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer
aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos
se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia
jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes.
Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã
resolveu o consentimento geral:
– É louco mesmo!…
Comprou-se o peru,
fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o
nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que
finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que
pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos
também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela
felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda
disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito
do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da
ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido
numa quase pobreza sem razão.
– Não senhora,
corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor
familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer
pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era
o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a
quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos.
Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem
modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do
peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.
– Eu que sirvo!
“É louco, mesmo”
pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre
risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma
distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta
logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E
depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço
angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
– Se lembre de seus
manos, Juca!
Quando que ela
havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga
maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de
comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
– Mamãe, este é o
da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não
pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo
percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das
lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também,
se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não
chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e
chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria
se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem
indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra
sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se
a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um
tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto,
de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais
violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai
sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade.
E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo
digno do Jesusinho nascido.
Principiou uma luta
baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era
fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru.
Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei
o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
– Só falta seu pai…
Eu nem comia, nem
podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta
entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial,
de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece
decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi,
triste:
– É mesmo… Mas
papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós,
papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais
o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
E todos
principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo,
diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru
com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por
nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a
seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma
inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de
contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente
vitorioso.
Minha mãe, minha
tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas
não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um
esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi,
sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um
amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente
e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou
exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é
impossível conceber.
Mamãe comeu tanto
peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah,
que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de
verdade!
A tamanha falta de
egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e
uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo
este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera
em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram
quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos
iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia
feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar
com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo,
beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu
bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…
[1942 - Revista da Academia Paulista de Letras]
(In: Nós e o Natal. Prefácio de Carlos
Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Artes Gráficas Gomes de Souza, 1964, pág. 19-23.)
A igreja do Diabo
Capítulo I
De
uma ideia mirífica
Conta
um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos
e grandes, sentia-se
humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos,
sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos,
dos descuidos e obséquios humanos.
Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário
contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas,
bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal
dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois,
enquanto as outras religiões se combatem e se dividem,
a minha igreja será única; não acharei
diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo
isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou
os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo:
— Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias
do abismo, arrancou da sombra
para o infinito azul.
Capítulo II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins, que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se
estar à entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos
do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros.
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?
— Vieste dizê-la,
não legitimá-la, advertiu
o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso
dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da tua
desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma ideia cruel no espírito, algum reparo picante
no alforje de memória, qualquer
coisa que, nesse breve
instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada
desde alguns séculos,
e é que as virtudes,
filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las
todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico!
murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham
aos vossos pés, nos templos
do mundo, trazem as anquinhas
da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros,
as pupilas centelham
de curiosidade e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado.
Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro
põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas,
ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto
os serafins agitaram
as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram
no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer
a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires.
Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado;
e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam
já com a morte; deu-lhes
a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde
achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto
de caridade; deixar a vida aos outros,
para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou
o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as virtudes, recolhe
todas as franjas, convoca todos os homens...
Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino,
encheram o céu com as harmonias de seus cânticos.
O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
Capítulo III
A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar
uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas
do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias,
os deleites mais íntimos. Confessava
que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu
respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças,
mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado
para meu desdouro,
fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar
os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e deslavada.
Clamava
ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza,
que declarou não ser mais do que a mãe da economia,
com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada.
A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles,
não haveria a Ilíada:
"Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu
as melhores páginas de Rabelais,
e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior,
que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente
o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária
ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia
substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução
direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente
que era a virtude principal,
origem de propriedades infinitas; virtude preciosa,
que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes de eloquência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração. Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor ao próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
Capítulo IV
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes
cuja capa de veludo acabava
em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados
de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam
as antigas virtudes.
Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.
Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente
em dias de preceito católico;
muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas;
vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam,
uma ou outra vez, com o coração
nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam
embaçando os outros.
A descoberta assombrou
o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira,
e, com o produto das drogas, socorria
os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito
ladrão de camelos,
que tapava a cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o,
com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês,
varão de cinquenta
anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha
romana, telas, estátuas,
biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária;
e, conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas,
benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia.
Mas não havia que duvidar;
o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante.
O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar
e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso
de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno.
Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela
agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.
(Publicado originalmente no livro Histórias sem data, de 1884. Rio de Janeiro, Editora Garnier.)
***
Baleia
Graciliano Ramos
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
— Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
— Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.
Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as baraúnas e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
— Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
(Publicado originalmente em O Jornal, em 23/05/1937, posteriormente incluído como capítulo do livro Vidas secas, de 1938).
***
Mãe
Rubem
Braga
(Crônica dedicada
ao Dia das Mães, embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)
O menino e seu
amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia,
batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.
Foi então que
chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito
elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma
esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se
pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando
que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir
três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar
resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola
com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — “que vestido
horroroso o da Marieta neste coquetel” — “que presente de casamento vamos dar à
Lúcia? tem de ser uma coisa boa” — e outros pequenos assuntos sociais foram
aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado,
informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse
menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo
menos na volta!
O pai (fica em
minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO
anos, Maria!
— OITO anos, não,
oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um
menino distraído como esse!
E erguendo-se
olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de
seu filhinho.
— Bem, eu vou lá só
para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do
medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou
a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o
separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola
vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.
Agora o amigo do
casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e
o casal ouvia, muito interessado — “mas a Niquinha com o coronel? não é
possível!” — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em
todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — “deve estar por aí”,
a Mãe gradativamente nervosa — “mas por aí, onde?” — o amigo otimista, mas
levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o
Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as
mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se,
foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu
estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.
A Mãe, que viera
correndo, interpelou novamente o amigo do filho. “Mas sumiu como? para onde?
entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!” O garoto, com cara de bobo, e
assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo
braço: “Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não
estava com ele? hein? ele entrou no mar?”.
— Acho que entrou…
ou então foi-se embora.
De pé, lábios
trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para
examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem
na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela
queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos
era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de
cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada
olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história
acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles
se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou,
o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta praia mesmo!) — deu um
grito para as ondas e espumas — “Joãozinho!”.
Banhistas
distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e
o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada
mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo
era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu
filho, todos eram culpados — “Joãozinho!” — ela mesma não tinha mais nome nem
era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais
essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — “Joãozinho!”
— ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase
jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado
ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo
voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando
sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça
curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata…
(Publicado originalmente no Correio da Manhã, em 08/05/1953.)
***
Natal na barca
Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo lembrar aqui por que me
encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que
me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas
quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho,
uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de
comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora
dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança
enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe
cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na
barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não
me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão
despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o
melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que
a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira
carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos
num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E
era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos
e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns
respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a
mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança
e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos
olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres
roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu
ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a
primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair
esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas
tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não
sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje…
A criança agitou-se, choramingando. A
mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a
niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se
exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista,
o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda
ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre… Mas Deus não
vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo
agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o
ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente
avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas
caiu de tal jeito… Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o
toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a
ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto
para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro
tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha
verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado…
A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E
voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela
noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já
ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não
tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir.
Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia
mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido…
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem,
mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou
nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que
acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se
levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e
foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha
lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me
lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com
aquela tela no meio… Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de
tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos
perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam
na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com
tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado
deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa,
perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que
ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não,
não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas.
Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me
abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som
débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí
estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia
montanhas…
Ela mudou a posição da criança,
passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de
paixão:
— Foi logo depois da morte do meu
menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um
casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num
banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com
tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me
aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao
menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça
no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer
dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino
brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou
de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto… Era tamanha
sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei
um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale
que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o
rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me
sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito.
Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e
respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela
água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O
importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe
daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de
atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
– Chegamos!… Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui —
disse atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto.
Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao
invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse
impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve
estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja…
Inclinei-me. A criança abrira os olhos
— aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava,
esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela,
enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e
atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e
acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho
passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por
último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo
como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
[1958]
(In: Antes do baile verde, 2ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. José
Olympio, 1971).
***
Bezerro sem mãe
Rachel de Queiroz
Foi
numa fazenda de gado, no tempo do ano em que as vacas dão cria. Cada vaca toda
satisfeita com o seu bezerro. Mas dois deles andavam tristes de dar pena: uma
vaca que tinha perdido o seu bezerro e um bezerro que ficou sem mãe.
A
vaquinha até parecia estar chorando, com os peitos cheios de leite, sem filho
para mamar. E o bezerro sem mãe gemia, morrendo de fome e abandonado.
Não
adiantava juntar os dois, porque a vaca não aceitava. Ela sentia pelo cheiro
que o bezerrinho órfão não era filho dela, e o empurrava para longe.
Aí
o vaqueiro se lembrou do couro do bezerro morto, que estava secando ao sol.
Enrolou naquele couro o bezerrinho sem mãe e levou o bichinho disfarçado para
junto da vaca sem filho.
Ora,
foi uma beleza! A vaca deu uma lambida no couro, sentiu o cheiro do filho e
deixou que o outro mamasse à vontade. E por três dias foi aquela mascarada.
Mas no quarto dia, a vaca, de repente, meteu o
focinho no couro e puxou fora o disfarce. Lambeu o bezerrinho direto, como se
dissesse: “Agora você já está adotado”.
E
ficaram os dois no maior amor, como filho e mãe de verdade.
(In:
Meninos, eu conto, coletânea com
diversos autores. Rio de Janeiro: Record, 2002)
***
Entre santos
Machado de Assis
Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula
(contava um padre velho), aconteceu-me uma aventura extraordinária.
Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma
noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo
estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas.
Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro,
sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões;
além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como
seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério
arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido
passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei.
O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna
e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A
primeira e a segunda porta que comunicam com a igreja estavam fechadas; mas
via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando,
até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu
lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que
era.
Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que
viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja
sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a
luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das
velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem
confusas, mas regulares, claras e tranquilas, à maneira de conversação. Não
pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma ideia que me
fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas,
imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só
passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez à porta, dizendo a
mim mesmo que semelhante ideia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa
mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra
vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então
uma coisa extraordinária.
Dois dos três santos do outro lado, S. José e S.
Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido
dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das
próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os
altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que
senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante
nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da
loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim
mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única,
posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo,
entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a
mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos
altares e falando com os outros santos.
Tinha sido tal a minha estupefação que eles
continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes.
Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham
interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não
pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do
altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o
orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como
eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se
bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão.
Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte
nenhuma, porque o lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar,
que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais
exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares
escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei.
Já então procedia automaticamente. A vida que vivi
durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior.
Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente
sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar.
Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles
inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava
alguma coisa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a
vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas
escalpelam um cadáver. S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas,
mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de
Sales; esse ouvia ou contava as coisas com a mesma indulgência que presidira ao
seu famoso livro da Introdução à Vida Devota.
Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais enojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.
— Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens.
— Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo,
não exageremos nada. Olha - ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez
sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do
que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita
coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso.
— Eu?
— Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e
todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já
intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.
— Que pessoa?
— Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão,
José, e que o teu lojista, Miguel...
— Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais
interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha
pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo
com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De
manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das
garras do demônio. Começou rezando bem, cordialmente; mas pouco a pouco vi que
o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras
paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois
inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando; mas a alma, que eu
espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal
persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada.
— Melhor é o meu caso.
— Melhor que isto? perguntou S. José
curioso.
— Muito melhor, respondeu S.
Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da
terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a
esta outra? Lá vai o que é.
Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos,
esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que veem tudo o que se
passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos,
intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou
gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales
começou a falar.
— Tem cinquenta anos o meu homem,
disse ele, a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há
cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela
cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na
dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que
não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o
bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele
gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura.
— Bem podia ser que sim, ponderou S.
João.
— Mas não era. Que ele é usurário e
avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu
nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o
cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão
dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um
armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas,
contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas
noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come
para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta
escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de
contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem
deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este
homem tem ou não o gênio da economia, Sales libertou o cadáver...
E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos
outros.
— O cadáver?
— Sim, o cadáver. Fez enterrar a
escrava como pessoa livre e miserável, para não acudir às despesas da
sepultura. Pouco embora, era alguma coisa. E para ele não há pouco; com pingos
d'água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto
nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do
céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da
vida alheia, que é regalo gratuito.
— Compreende-se a incredulidade
pública, ponderou S. Miguel.
— Não digo que não, porque o mundo
não vai além da superfície das coisas. O mundo não vê que, além de caseira
eminente educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher
deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro
aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica
sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado
com a ideia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de
duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra,
voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim, que sou o santo do
seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio
correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz
da fé, mas era outra coisa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que
redobreis de atenção.
Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio
não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do
santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui
integralmente, mas em substância.
— Quando pensou em vir pedir-me que
intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma ideia específica de usurário,
a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta
maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça
divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a
avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras
a vida da mulher - intuição de avaro; - despender é documentar: só se quer de
coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca
escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das
entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele
logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e
esperei que acabasse de benzer-se e rezar.
— Ao menos, tem alguma religião,
ponderou S. José.
— Alguma tem, mas vaga, e econômica.
Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que
pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira.
Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina.
— Bem, ajoelhou-se e rezou.
— Rezou. Enquanto rezava, via eu a
pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em
certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha
intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios
repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo
olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar
a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o
golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem
sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido
e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias,
não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o
pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela
ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a
boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as
entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela...
No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de
cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a
moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o
dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os
olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de
longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho.
Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era
ela que ali estava no ar, girando, às tontas; era ela que descia do teto, ou
subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava
nos pingentes do lustre.
Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram
mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de
contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas coisas
soltas, - Deus, - os anjos do Senhor, - as bentas chagas, - palavras lacrimosas
e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da
dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que
recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher
e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer; mas, à beira do valo,
quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no
coração do homem.
O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a
moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e
parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De
repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao
pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando. Pedia-me que
intercedesse por ela, que a salvasse...
Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação
nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e
muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as
mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe
salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos, - não
menos, - trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático:
trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil
padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do
alfabeto, mas em algarismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a
obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E
voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do
Senhor... 1.000 - 1.000 - 1.000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto,
que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem,
e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada,
mil, mil, mil, mil ... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de
Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele
grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano
servir à mesa, mas de um riso modesto, tranquilo, beato e católico.
Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos.
[1886, Gazeta de Notícias. 1896, Várias Histórias]
(In: Várias
Histórias. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc Editores, 1946).
Padre
Virgílio
Marcelo
Araújo
Difícil lembrar quanto tempo fiquei ajoelhado, orando em silêncio, em frente ao altar. Gostava de me entregar a esse ato de fervor e não eram raras as vezes em que a reza me transportava para longe, para contentamento de Padre Virgílio, religioso responsável por minha paróquia. Um senhor com mais de sessenta anos, com seus cabelos brancos e porte físico modesto, Padre Virgílio era muito simpático e cativava todos da paróquia com sua gentileza e disponibilidade para ajudar o próximo. Só mesmo uma ou outra matraca fofoqueira da comunidade para eventualmente tecer algum comentário maldoso contra Virgílio; comentário esse logo afastado com veemência pelos demais.
A enorme estátua barroca do Cristo, com sangue escorrendo dos membros crucificados e de outras partes do corpo, dava inspiração para meu fervor. De repente, um barulho de sinos chamou a minha atenção. Abri os olhos e notei que o Padre Virgílio havia deixado o local.
Estava só.
Achei que Padre Virgílio saíra do ambiente para tocar os sinos, que começaram a soar. Mas, que eu saiba, não era hora de fazer isso e nem dia de missa. Outro fato curioso era que as badaladas não pararam. Começaram a se repetir indefinidamente. Pensava em me levantar e ir perguntar ao padre por que os sinos tocavam tanto e fora de hora. Come- moravam alguma data da qual não me lembrava?
Quando ia me levantar, um ruído diferente voltou a atrair minha atenção. Fui detido em meu lugar por um som distante, algo como pessoas rezando. O som cresceu rapidamente e identifiquei que se tratava de um coral.
Mais forte e mais forte, esse som – com várias vozes, difusas, masculinas e femininas – ia enchendo meus ouvidos. Olhava para todos os lados da igreja, sem ver qualquer pessoa, apesar da potência do som. Poderia dizer que se tratava de uma melodia barroca mergulhada em ferocidade. Tinha a impressão de que a igreja ia desabar, com tanto barulho. Os sinos ainda tocavam ao fundo e eu me questionava se havia alguma encenação ou espetáculo programado para aquela hora, com a permissão de Padre Virgílio. Ele teria avisado.
Logo, ao coral invisível, somaram-se sopros; provavelmente trombetas. Enquanto as vozes entoavam linhas sombrias, sopros riscavam o ar paralelamente e com estridência. Meus ouvidos doíam quando isso acontecia.
No caos sonoro, uma imagem aterradora quase me derrubou: o Cristo pregado na parede agora estava de cabeça para baixo. As tintas da pintura barroca haviam se convertido em sangue, que escorria por todo o corpo da estátua. No peito, repleto de marcas, tinha-se a impressão de que a carne de Jesus estufava, como se o coração, por dentro dela, crescesse e quisesse saltar para fora, rasgando tudo. As faces do Messias aparentavam mais melancolia do que nunca. Na verdade, seu olhar exalava terror, medo, como se pedisse socorro.
— Meu Deus! – eu disse.
Minha voz se perdeu em meio ao coro.
O meu espanto só aumentou ao ver que a estátua de Jesus Cristo começava um inusitado movimento. Mexia lentamente, a cabeça, de um lado para ou outro. Eu tentava juntar forças e correr para fora da igreja, para longe daquilo tudo. Algo me segurava, como se no meu interior quisesse, apesar de todo o medo, assistir à sequência do espetáculo macabro que desfilava ante meus olhos.
E não apenas do Cristo escorria sangue. Vi que do teto e por todas as paredes da igreja começava a descer um líquido vermelho vivo, escuro e grosso. Era sangue se espalhando por toda a igreja, escorrendo pelo piso e chegando perto dos meus pés.
Eis que, como se um maestro ordenasse, a música parou. O Cristo continuava a movimentar a cabeça, única parte do corpo totalmente livre, e me olhava. O sangue, já inundava o piso da igreja, como a água de uma enchente.
O silêncio era quase total, exceto por minha respiração ofegante.
Então, as portas da igreja bateram, com enorme impacto. Vi que precisava sair dali imediatamente. Reuni as forças que parecia ter perdido e corri para as portas.
Tentei inutilmente abri-las. Não conseguia puxá-las. Meu retiro de fé se transformou numa terrível prisão e sabe lá o que me esperava.
Berrei o que pude, na esperança de que alguém, passando, me ouvisse e trouxesse socorro. Não obtive resposta.
Para meu terror, comecei a ouvir passos pela saída do lado esquerdo do altar. Virei e olhei fixo para o altar.
— Padre Virgílio? É o senhor? Padre Virgílio!
Desesperei-me ao ver que quem chegava não era o religioso.
Poderia ser um monge, com uma vestimenta semelhante à desses religiosos, cobrindo todo o seu corpo. Um capuz caía-lhe por sobre o rosto. A roupa era negra, com uma faixa vermelha amarrada na cintura. Ainda usava luvas escuras e trazia em uma das mãos uma vela vermelha.
Ele andou na direção do altar. Colocou a vela no castiçal e começou a falar. Era uma voz grossa e rouca, de um homem. Eis que o verdadeiro reinado se aproxima.
Ele virou-se e observou o Cristo, que também o encarava, com o sangue escorrendo dos pés e manchando todo o seu rosto.
— Impostores serão desmascarados. Está escrito apenas nas sombras: “Queimem comigo”.
De longe, eu via aquele ato de heresia, num misto de incredulidade e ofensa.
A figura me olhou, apontou o dedo para mim e disse:
— Vá e conte o que viu. Tudo nos pertence!
Virei para as portas e elas logo se abriram. Antes de sair, olhei mais uma vez para dentro e me surpreendi. O homem de capuz havia desaparecido e tudo voltara a ser como antes, dentro da igreja. Não havia mais sangue no chão ou nas paredes e a imagem de Jesus aparecia na posição correta, não mais invertida. Também não se mexia e tornara a ser apenas uma estátua. Reinava o silêncio.
Eu teria sofrido algum delírio? Estava sonhando?
Não tinha coragem de entrar outra vez na igreja, principalmente após ouvir outra vez passos saindo do mesmo lugar por onde a figura sinistra saiu.
Para meu alívio, não era a figura diabólica, que até há alguns instantes estava ali, blasfemando no altar. Quem apareceu foi Padre Virgílio. Respirei tranquilo por uns instantes. Nem sabia se tinha coragem de contar para o padre a minha visão. Então percebi que o religioso Virgílio estava sério, muito sério, sem a simpatia que demonstrava habitualmente.
Ele me encarou com ar severo e apontou o dedo para mim.
— Vá – ordenou o clérigo, em voz alta.
Imediatamente comecei a correr e desapareci na escuridão.
(In: Não
abra: contos de terror. Brasília: Thesaurus, 2008, p. 99-102.)
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