Thursday, August 25, 2005

Stanislavsky - Uma discussão sobre direção

13 a 19 de abril de 1936

K. S. STANISLAVSKY: Digamos que seja mesmo preciso “criar” diretores, mas esta questão nunca foi muito clara para mim. A experiência me diz que não se pode criar um diretor – ele nasce pronto. É possível criar uma atmosfera em que ele possa desenvolver-se, mas tomar Ivan Ivanovich e fazer um diretor a partir dele é pouco provável. O verdadeiro diretor encerra em si um diretor-professor, um diretor-artista, um diretor-escritor, um diretor-administrador. O que podemos fazer, se uns possuem estas qualificações e outros não?
Se o diretor entende que “Eu possuo certos elementos e necessito de outros, mas devo tentar adquirir mais, e, neste meio tempo, dar ao teatro tudo o que tenho”; se ele possui este discernimento e ajuda a criar uma organização de diretores – isto pode, em certa medida, compensar a ausência de todos aqueles elementos em um único homem. . .
Uma coisa é clara para mim: existem diretores de resultados e diretores de raízes. Temos de distingui-los. Precisamos de diretores de raízes. Este é um dos mais importantes requisitos para o Teatro de Arte.
O primeiro visa a resultados imediatos. . . Freqüentemente, ele toma duas, três, cinco substâncias, mistura-as como num laboratório, para ver o que acontecerá. Algumas vezes, o que acontece não é aquilo que se espera. “Como posso eu, o diretor, resolver isto? Posso adicionar a estes elementos a substância inorgânica opopanax. . . Posso dizer ao ator ‘Faça uma boa tentativa nesta passagem. . . . do contrário, eles me acusarão enquanto diretor’.”
Considero este método de trabalho um crime. Se você adiciona opopanax a uma substância orgânica, as coisas começarão a ferver, a chiar e a destilar mau cheiro.
Conseqüentemente, um ou outro – resultado ou raiz.
Outra coisa: “Eu, como diretor, produzo uma peça, e isso é tudo”. Ou “Eu produzo uma peça e, durante o processo, crio um ator”. Existe uma diferença. O diretor pode fazer uma peça, sem se preocupar com o ator. Ele pode conseguir um ator pronto, acabado. No entanto, é preciso primeiro se criar uma companhia de atores – as peças e o teatro seguirão como um conteúdo do curso.
É possível “fazer” uma peça e “modelá-la” a fim de provar a si mesmo como diretor. O ator pode precisar passar por um certo treinamento. . . . mas não significaria de pronto que o ator esteja esquecido da palavra “orgânico”. Muitos têm esquecido as diferenças entre orgânico e inorgânico, a verdade teatral e a verdade orgânica. . .
A questão é, de um modo ou de outro, poder preparar um ator com quem se possa falar a respeito do seu papel; como um pedaço de argila, ele pudesse sentir a pressão dos meus dedos. Nem toda espécie de barro é apropriada à escultura, e nem com todo ator você pode falar a respeito de arte. Mas, se nos mantermos à parte neste primeiro momento, iniciaremos tudo pela compulsão. Se um diretor impinge ao ator os seus próprios pensamentos, derivados da sua própria memória pessoal e emocional, se ele diz “Você deve atuar exatamente assim”, está violentando a natureza do ator. O ator precisa da minha memória emocional? Ora, ele tem a dele! O que eu preciso é capturar o seu espírito como um ímã, e ver o que ele contém. Ahá! Agora, eu compreendo de que espécie de material emocional ele é constituído. Não pode ser outro. . .
Mas existem ainda a seqüência e a lógica das emoções – o que dizer a respeito delas? Como podemos falar da lógica e da seqüência das emoções? Nem mesmo sei em qual universidade eu poderia aprender sobre a lógica e a seqüência inerentes às emoções. Como compreendê-las? Como recordá-las? Digo que isso não é necessário. O negócio de um ator é atuar. Você encena Romeo. Se você está amando, o que você poderia fazer? Tome o seu caderno de notas e escreva “Encontrei-a em um lugar, ela não olhou para mim, voltei ofendido”. Deste modo, você diz tudo. Você recorda a sua vida, transfere suas emoções para o papel. Essa paixão, esse amor, você analisa dentro dos seus momentos constitutivos de ação lógica. Tudo junto constitui amor. . . A cada estágio do desdobramento das emoções corresponderá uma seqüência lógica. Ao longo desses estágios, você evoluiu no seu papel, porque você tomou de sua própria vida coisas relacionadas ao amor e transferiu-as para o papel. Elas não são meramente pedaços de Romeo, elas são seus próprios pedaços.

N. N. LITOVTZEVA: Em que momento você dá aos atores as palavras necessárias?

K. S. STANISLAVSKY: Isto é o mais difícil. Tento primeiramente não dar palavra alguma – tudo o que eu preciso é de um plano de ação. Quando o ator passa a ter domínio sobre isto, uma certa linha de ação amadurece com ele, e ele começa a sentir com seu próprio corpo, com os seus músculos. Quando isto acontece, o ator entende aonde está indo e por quê. Ele atinge este momento quando precisa atuar por causa de algo. É um momento muito agitado. . . . Eu dou-lhes palavras quando eles devem atuar com palavras. Num primeiro momento, eles podem atuar com pensamentos, apenas. E quando vejo que compreenderam esses pensamentos e que também alcançaram a lógica e a seqüência inerentes a eles, digo: “Agora, tomem as palavras”. Então, eles terão uma relação diferente com as palavras. Eles precisam delas, não para memorizá-las numa rotina, mas para atuar fora delas. Eles colocam as palavras não sobre os músculos da língua, nem mesmo no cérebro, mas no seu íntimo, de onde o ator esforça-se em direção a um super-objetivo. Então, as palavras se tornarão super-efetivas.
As ações e os pensamentos corretos já foram estabelecidos. Agora, você se aproximou da essência do papel. Você tem uma base em que se apoiar.
Mas você tem êxito, sem uma ação direta? Definitivamente, não. Isto é adquirido gradualmente, não dentro de qualquer convencionalidade, mas num senso absolutamente correto.

V. G. SAKHONOVSKY: Suponha que uma combinação favorável de circunstâncias permita formar um bom elenco. Seria suficiente treinar o grupo técnica e profissionalmente, ou poderia haver outro tipo de demanda, como por exemplo, que os atores devam ser capazes de analisar os fenômenos da vida, que sejam bastante cultos, que estejam à frente do seu tempo?

K. S. STANISLAVSKY: Fico surpreso que tal questão me seja colocada. Podem existir dúvidas quanto a precisarmos de atores com um horizonte vasto ou estreito, atores inteligentes ou estúpidos – de todo modo, com uma visão ampliada, uma cultura maior. . .

E. S. TELESHEVA: Deve-se explicar o super-objetivo ao ator? Você mesmo o define antes do trabalho começar?

K. S. STANISLAVSKY: Receio tomar decisões precipitadas. Precisamos ser apenas sugestivos. Sei para onde estou indo – para a direita ou para a esquerda. Mas me encontro diante de um esquema cuja lógica guia-nos cegamente a um ponto em que precisamos dizer: este é, definitivamente, o super-objetivo, não pode haver outro!
Suponha que você atue em uma determinada cena. Qual é o seu objetivo? Quero saber para onde você está indo. Digo para o ator: “Comece encenando e prossiga”. O objetivo inicial se dissolve em um novo objetivo – o primeiro não é tão necessário. Tomemos o próximo fragmento. Descobri uma nova circunstância. Agora, o objetivo anterior não é mais útil. Ele foi dissolvido por um solvente mais poderoso. Minha atenção já se desviou para o quarto fragmento.
Você pode atravessar uma peça inteira até atingir o super-objetivo. Se você encontrou um ator que estava tão diretamente envolvido num super-objetivo, que compreendeu tão profunda e completamente que este objetivo absorve todos os fragmentos e todos os objetivos subordinados da peça, uma ação direta mais poderosa pode resultar daí, e um papel inteiro pode ser criado de modo bastante inconsciente. Todo grande objetivo destrói e absorve em si mesmo todos os pequenos objetivos precedentes, que recuam para o subconsciente. Eles não dão grandes idéias. Você pega o super-objetivo e tudo servirá somente para trazê-lo até você.

N. N. LITOVTZEVA: Então o roteiro vai do menor objetivo ao super-objetivo?

K. S. STANISLAVSKY: Todo objetivo importante governa sua atenção completamente. Você não tem concentração suficiente para realizar conscientemente todas as etapas. Sua própria criatividade natural faz isto. Isto é uma verdadeira criatividade. A sua própria natureza orgânica, sobre a qual você não tem controle, é quem cria. Mas nem todo super-objetivo é capaz de despertar nossa natureza criativa. Suponha que meu super-objetivo em Hamlet é mostrar a mãe devassa em conflito com seu filho, que ama profundamente o pai. Pode, de tal modo, um super-objetivo satisfazer-se? Não, porque eu o rebaixei a um nível trivial. Reduzi-o a uma idéia de filisteu. Porém, se eu baseio o super-objetivo em uma concepção profunda da vida, isto é algo inteiramente diferente.
Imagine que eu tenha o seguinte objetivo. Estou convencido de que eu, Hamlet, preciso purificar a corte inteira, o mundo todo do mal, e preciso envolver neste objetivo todas as pessoas à minha volta, a fim de salvar o meu pobre pai. Tenho de empreender um objetivo inatingível, mas tenho de cumpri-lo. Você compreende a tortura de ser incapaz de cumprir um objetivo que pode salvar meu pai? Este superpoderoso objetivo diante de um homem que se empenha e se atira à tentativa de executá-lo sem dúvida o moverá mais firmemente que qualquer outro. . . .
Digo para o ator: “Dê-me o que está na peça, mas dê-me apenas a verdade para um final perfeito”. Deixo-o refletir sobre isto dez vezes. Ele deve se vestir para a cena somente quando tem o papel e o papel o tem. Mas os céus não permitam que a imagem seja moldada quando o ator ainda não está aquecido, ainda não está maleável. Isto é prejudicial. O papel ainda não está nele, e ele ainda não está no papel. Este é um momento que freqüentemente perdemos. Se, entretanto, você deseja conseguir uma perfeita mistura do ator com seu papel, então sente-se com ele à mesa. Ele argumentará com você. “Eu tenho uma linha a seguir para o papel, e não gostaria de destruí-la. Em que dadas circunstâncias eu precisaria colocar mais vida no papel?”.

I. Y. SUDAKOV: Quantas dessas dadas circunstâncias ele precisaria para estar pronto para subir no palco?

STANISLAVSKY: Ele não entrará em cena até ser animado pelas dadas circunstâncias. O ator implorará a você por isto, porque ele precisa localizar em si mesmo o papel. Ele pensará: “Eles dizem que estou no caminho errado. Mas como entrarei? O que farei? Não sei ainda para onde vou, nem de onde vim”.
“Vamos falar sobre o lugar de onde você veio.”
“E de onde eu vim?”
Você lhe diz: “Encene, que eu acredito em você”, e ele terá de atravessar o mesmo processo tudo de novo.

SUDAKOV: E se ele tiver enterrado o pai aquele dia, entrará de modo diferente.

STANISLAVSKY: Se ele enterrou o pai – é uma coisa. Se voltou bêbado de uma taverna – é outra coisa. E se veio da lua-de-mel – é uma terceira coisa. Ele não saberá mais tomar uma xícara de chá sem saber de onde veio, e por quê.

SUDAKOV: Então, a vida da imagem depende de dadas circunstâncias.

STANISLAVSKY: O resultado será a vida do corpo humano. Mas isto é uma armadilha. A verdadeira questão não é a vida do corpo humano. Para criar a vida do corpo humano, precisamos antes criar a vida do espírito humano. Dele, você cria a lógica da ação, cria a linha interna, mas dá-lhe forma externamente. Se você atravessa três ou quatro atos numa dada seqüência, o modo apropriado virá naturalmente.
Quando chega o momento de fusão da verdade interna pessoal do ator com a verdade do papel, algo transpira. Sua cabeça gira, literalmente. “Onde estou? Onde está o papel?”. E certamente se inicia o processo de amálgama entre o ator e seu papel. O modo é de vocês, mas ele também segue o do papel. A lógica do modo é inerente ao papel. As dadas circunstâncias são as do papel. Você não pode dizer onde você está e onde está o papel. Há um amálgama completo. E este é o momento de unidade. . .

SUDAKOV: Você segue a linha da peça.

STANISLAVSKY: Eu sigo os fatos da peça. Tomo o ator como tal. Ele mesmo se localiza nas dadas circunstâncias do papel. Ele tem de criar uma imagem característica. Mas ele permanece o mesmo. Sempre que ele retirar-se de si mesmo, ele mata o papel. Você vive com suas emoções. Remova as emoções, e o papel morre. Você precisa ser você mesmo na imagem. Se caminho com uma perna doente, sou um homem diferente? Torno-me diferente, ao ser picado por uma abelha? São circunstâncias externas. . .
Estamos analisando todos os procedimentos, todas as possibilidades que temos no limiar do subconsciente, que geram todas as reações subconscientes. As mais poderosas são a ação direta e o super-objetivo. Qual é o nosso objetivo atual? Tome dois, três, quatro, ou mesmo cinco papéis. Você diz: “Quero atrair a atenção”, e alguém, inversamente, diz “Eu tento compreender o que falei”. O primeiro objetivo foi aqui absorvido pelo segundo, o terceiro absorverá o segundo, e todos eles serão absorvidos no final pelo super-objetivo.
Se agora você encontrar um ator que adere rápido ao super-objetivo e segue a ação direta, todos os objetivos subordinados serão resolvidos subconscientemente.

LITOVTZEVA: Não ficou claro para mim como cada objetivo preliminar é absorvido pelo subseqüente.

STANISLAVSKY: Vamos dar um exemplo:
“O que vossa senhoria disse?”
“Nada, meu senhor: isto é – eu não sei o quê.”
Qual é o objetivo de Iago?

LITOVTZEVA: Provocar suspeitas.

STANISLAVSKY: E o de Otelo?

LITOVTZEVA: Entender a alusão de Iago.

STANISLAVSKY: E qual é o próximo objetivo? Otelo ri das palavras de Iago “Nada, meu senhor”. O que aconteceu então ao primeiro objetivo? Ele foi absorvido pelo segundo. Vamos ainda mais longe. Você tem um poderoso objetivo: “sacrificar-se por uma mulher ideal”. Se toda sua decisão contém este objetivo, você considerará ridículo permitir que as suspeitas recaiam sobre Desdêmona. Como você sorriria! Mas se você se aproxima de alguma circunstância plausível, tramada astuciosamente por Iago, você ficará perplexo. Tudo se afigurará evidente, precisamente porque eu me apego fortemente ao super-objetivo e à ação direta. . .

SAKHNOVSKY: O diretor lê a peça tão atentamente quanto o ator. Então, o ator e o diretor se encontram e seguem a linha orgânica da ação da qual você fala. Qual é o próximo passo? Você atravessará ato após ato, cena após cena? Qual destes seguirá? Quando surgem as questões do super-objetivo e da ação direta?

STANISLAVSKY: Você indica aproximadamente a espécie de objetivo. Mas o super-objetivo não será encontrado por muito tempo. Talvez somente na vigésima atuação. No entanto, você sugere ao ator um super-objetivo temporário, do qual ele fará uso. Este objetivo não é definitivo. Indica no momento a direção necessária, não longe da verdade, porém ainda não a própria verdade, que emergirá do estudo do papel nele mesmo, e do estudo dele mesmo no papel.

SAKHNOVSKY: Quando a ação direta surge?

STANISLAVSKY: Todo o corpo de atores a sugerirá a você. Se você a planeja sozinho, ela pode ser formalmente correta, porém errada como experiência de vida. Os próprios atores lembrarão a você: “Aqui está, o objetivo, isto é o que precisamos ter”. Vamos examiná-lo em conjunto com os atores. . .

L. M. LEONIDOV: Você deduz o super-objetivo de indicações feitas pelo autor. Mas se ambos encenamos o Bailiff, precisamos ter o mesmo super-objetivo?

STANISLAVSKY: O mesmo, mas algo diferente, neste caso. O seu é rosa pálido-azul, o meu é rosa pálido-verde.

LEONIDOV: Caminhamos por diferentes corredores, mas chegamos ao mesmo lugar.

STANISLAVSKY: Este lugar está tanto na sua imaginação quanto na minha. A diferença existe, porque cada um de nós é o resultado das diferenças de nossas vidas inteiras, de nossas memórias emocionais.

LEONIDOV: Na vida do Bailiff?

STANISLAVSKY: Ela tem de tornar-se a sua própria vida. Em suas reflexões, ela será algo diferente da minha.

LITOVTZEVA: Como, então, podemos seguir, se não sabemos imediatamente aonde ir? Podemos nos perder no caminho.

STANISLAVSKY (passando um dedo em volta da borda de uma xícara de chá): Aqui está um círculo. No centro dele, está o super-objetivo. É o círculo da sua vida – o papel. A vida começa e morre aqui. Você toma esta parte da vida (indicando um trecho do círculo). Você conhece o passado, tem projetos para o futuro. Você precisa encontrar o caminho para o super-objetivo. Você sabe que ele está aqui, em algum lugar (aponta para o centro da xícara). Você se origina daqui, de sua simples ação. Você sabe que o super-objetivo está em algum lugar, lá, no vácuo. Agora, você passa em volta do círculo e determina o centro. Em última análise, você precisa explorar aquilo que constitui o centro, a essência, a alma do seu papel. . .

LEONIDOV: A coisa mais importante é que o estágio sem palavras deva ser murmurado. Toda sentença precisa ser fecunda de pensamentos. Mas em que medida isto é possível, em apenas quatro atos?

STANISLAVSKY: Você pode viver com o super-objetivo, mas não é necessário deixar de falar com as pessoas entre os atos sobre um assunto não relacionado a eles. Você não se afasta de sua linha de ação por causa disso. A linha de ação física tem uma poderosa sustentação; você pode retornar a ela muito facilmente. Claro que, se deste modo uma linha se ausenta, haverá confusão.
Só Deus sabe os talentos que tenho em meu estúdio – mas eles sabem perfeitamente como prestar atenção às suas próprias palavras. Quando lhes digo: “Dou a vocês apenas três problemas: você encontra, você vê cada um antes, você se casa”, eles entendem tanto esta iluminada tarefa, que não confundem suas partes na cena. Encontro novos ajustes, novas situações. Elas fazem excelentes atores.

LITOVTZEVA: Você deu-lhes a mise en scène?

STANISLAVSKY: A pior mise en scène é aquela dada pelo diretor. Eu os assisti com suas costas voltadas para mim, e ouvi e compreendi tudo. Não poderia inventar uma mise en scène parecida.
Eu gostaria de criar uma atuação livre de mises en scène. Hoje, esta parede está aberta, e quando o ator chegar amanhã, não saberá que a parede poderia ser aberta. Ele poderia vir ao teatro e pensar que um pavilhão está localizado diferentemente do que estava ontem, e que todas as mises en scène foram modificadas. O fato de que ele tem de improvisar uma mise en scène é mais do que o esperado, e mais interessante. Nenhum diretor pode inventar uma mise en scène.
(Texto traduzido do inglês por Isabel Pires)









Thursday, August 18, 2005

Lois Lane

Agora mesmo vi um pedaço da capa, balançando perto da janela. Disseram que não, que tinha sido mera impressão, e que era apenas a cortina, refletindo os raios vermelhos do sol. Mas eu sei, era ele. Certamente tem receio de vir me ver, assim como estou. O tempo passou para mim, não passou para ele. Minhas rugas e meus cabelos de prata devem entristecê-lo, até magoá-lo. Outro dia foi a campainha. Pensei ser ele, em seu humano disfarce. Mas me garantiram que não havia, parado à porta, nenhum sujeito tímido, desajeitado e míope. As pessoas à minha volta se espantam, quando aceno para a parede. Porque sei que de algum ponto do céu ele me observa, talvez oculto entre nuvens pacatas. E quando os dias se alongam, ficam compridos de não se poder aturar, sei também que é ele – a Terra, suave girassol azul sobre seus ombros – retardando em ínfimos segundos a nossa rota no espaço.

Crônica de um sábado de verão

Isabel Pires

Não pode um cristão dormir um pouco mais numa manhã de sábado?, era o que me vinha à mente, ainda entorpecida, enquanto olhava os números do relógio-despertador, que exibiam, na penumbra do quarto, seis horas e dois minutos extravagantemente vermelhos. Contudo, não era o despertador que tocava. A seu lado, o telefone berrava estridente. E a segunda coisa que me veio à cabeça foi uma ideia funesta. Algo de terrível tinha por força de ter acontecido, para justificar a insistência daquela campainha àquela hora da madrugada. Atendia ou não? Como aquele troço não parasse, resolvi ver afinal do que se tratava. “Alô? Querido? Já está pronto?”. A voz meiga de Lina era um balde de água fria nos meus ouvidos. Como poderia ter esquecido? Eu era mesmo um animal. Um monstro. “Cla claro querida. Daqui a dez minutos? Tudo bem”.
Como eu ia disfarçar o gosto de sola-de-sapato-cabo-de-guarda-chuva na boca, eu não fazia a mínima ideia. Como aquilo acontecera comigo, eu conseguia explicar. Só um asno poderia sair para um happy-hour com a turma do trabalho – a mesma com a qual eu passava oito horas por dia, quarenta por semana – e chegar em casa às... Bem, isso não importava agora, mas apenas chegar na casa da Lina em... Cinco minutos?
Sentei desolado na beira da cama, tentando lembrar onde foram parar as chaves do carro. Felizmente, havia um spray para garganta no armário do banheiro. Enfiei-me numa roupa qualquer e fui dirigindo com a janela do carro bem aberta. Isso justificava o cabelo desgrenhado, a roupa amarrotada. Sorri comigo mesmo, envaidecido da minha própria inteligência.
À porta do prédio, de mala em punho, bolsa, sacola e laptop, Lina me recebeu com um sorriso do tamanho do mundo, e, enquanto colocava toda aquela tralha no banco traseiro, confessou que estávamos meia hora adiantados. Devo ter sorrido muito amarelo, porque ela me perguntou se eu havia tomado café. “Está com fome, querido? Pobrezinho!” Deu-me as chaves do seu apartamento e insistiu para que, na volta, eu passasse por lá. Havia me preparado uma bela surpresa. “Claro que você vai gostar!” No saguão do aeroporto, Lina notou-me a palidez, o mutismo. E interpretou tudo como saudades antecipadas dela. “Volto logo, querido. Só uma semana...”. Eu só pensava em voltar correndo para debaixo das cobertas.
Depois do check-in, Lina finalmente me liberou, não sem antes me fazer prometer que sim, que quando saísse dali eu iria direto ao apê dela.
Enquanto dirigia, o vento fresco da manhã revigorando-me, começava, de fato, a sentir saudades da minha doce Lina. Pouco a pouco, também a curiosidade começava a me dominar. Afinal, não custava nada dar uma passada por lá.
Era manhã de sábado. O trânsito fluía. Os poucos motoristas também fluíam, sem prestar muita atenção ao sinal. Verde, amarelo, vermelho, que diferença fazia? Eu ia sem pressa, parando em algumas esquinas.
Devia estar pensando ainda em Lina e na “bela surpresa” que me aguardava, porque não percebi logo que as buzinadas ao lado eram comigo. Só quando o motorista bateu na minha janela é que tomei conhecimento dele. Dele, da mulher e dos dois filhos, que me olhavam cheios de interesse e, provavelmente, com segundas intenções. Era o meu primo Maurício. “Está indo a algum lugar? Bom... Estamos indo a um churrasco, não quer vir com a gente?”. O sinal ficou verde e o carro do Maurício não saía do lugar. Acabou dizendo que foi mesmo muita sorte ter me encontrado. “E?...” O que eu temia aconteceu. A prima Roberta me olhava sorrindo, um sorriso quase do tamanho do sorriso da Lina. “Como não?”. “Com o maior prazer”, atravessei a cidade para ir buscar o casal de velhinhos, avós de Roberta. Era aniversário de alguém e insistiam para eu ficar. Churrasco, piscina. Nada mau para uma manhã de sábado. Maurício arranjou-me um calção de banho e eu fui me deixando ficar ali. Tinha tempo que eu não pegava uma corzinha.
Entre um mergulho e outro, sempre dando um jeito de devolver o tapa de água recebido dos garotos, lembrava da surpresa da Lina e sentia remorsos. Depois, olhava os dois velhos, sentados placidamente à sombra, com seus chapéus brancos de largas abas, e sentia mais remorsos. Mas, definitivamente, eu não iria levá-los de volta. Lá pelas duas da tarde, arranjei um pretexto para escapulir, apesar da insistência da mãe de Roberta para que eu ficasse. Disse que não podia, tinha um encontro com a Lina, ia almoçar com ela. A velhinha, até então quieta, levantou a cabeça um tanto surpresa. “Mas a Lina não viajou? Você não foi levá-la ao aeroporto?”. Emendei-a, constrangido e percebendo que ela anotara tudo da nossa conversa no trajeto para o churrasco. “Como? Não, Lina ainda vai viajar. Depois que almoçarmos”. Enquanto eu terminava as despedidas, a velhinha fez cara de poucos amigos e, intimamente, deve ter me rogado algumas pragas. Ao lado dela, o velhinho dormitava, indiferente.
Era um breakfast o que Lina havia me preparado. Simpáticos crisântemos repousavam ao lado da jarra de suco e da leiteira. Torradas, queijo, presunto. Geléia, biscoitos amanteigados. Pão francês. Tudo murcho. O ar recendia a mamão e a laranja azeda. Sob o açucareiro, um bilhete carinhoso de Lina, escrito num delicado papel, ornado de flores e corações.
Sorri um pouco, sem compreender muito bem a finalidade da estética romântica que presidia tudo aquilo, e que, aparentemente, não combinava em nada com a doutora Idalina Carvalho. A propósito, ela havia embarcado para um simpósio de advogados criminalistas, que ia se realizar em Porto Seguro. Enquanto mastigava uma torrada ressecada em excesso e esvaziava a jarra de suco e a leiteira dentro da pia da cozinha, senti-me, mais uma vez, um monstro inominável. Paciência. Sobretudo, eu deveria ser paciente comigo mesmo. Dobrei com cuidado o bilhete e guardei-o na carteira.
Escolhi um CD da coleção da Lina para escutar debaixo do chuveiro. Titãs. Só os Titãs salvam. Enquanto esfregava o xampu da Lina no cabelo, podia ouvir a música vinda lá da sala. “Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”. Súbito, a campainha tocou. Eu ainda estava na metade do banho e a campainha tocando, sistemática e pausadamente, uma duas três vezes. Quem seria? Enrolei a toalha na cintura e fui atender a porta.
De dentro de suas bermudas, um garotão com pinta de surfista sorria, com uns dentes meio exagerados e muito brancos. “Não, a Lina não está”. “É que, bem, a minha avó...” Ele parecia meio desconcertado. E os Titãs: “cabeça cabeça cabeça de dinossauro”. Por fim, o garotão conseguiu se explicar: viera convidar a Lina para a missa de sua bisavó, que morava no apartamento em frente. Lembrei do aviso dentro do elevador, referente a uma missa que seria celebrada pela passagem dos cem anos de alguma senhora do prédio. Com efeito, por trás do garoto, pude ver a velhinha sendo retirada de casa em sua cadeira de rodas. “Bom, cara. Vai rolar um bolo lá mesmo, no salão de festas da igreja. Se quiser, aparece por lá”.
Aquele era o sábado dos aniversários. Declinei de mais este convite. O garoto não insistiu, afinal, e eu voltei aos Titãs. “Família, família. Papai, mamãe, titia”.
Uma ligeira azia e a movimentação do apartamento em frente, cujos ruídos pareciam penetrar por debaixo da porta, tiravam-me qualquer concentração. A cabeça começou a latejar. Imóvel, esticado no sofá, escutei o CD terminar a última faixa: “É que a televisão me deixou burro, muito burro demais”.
A televisão! O controle remoto estava ali mesmo, ao alcance da mão. Bastava apertar um botãozinho de nada. Televisão relaxa, afinal de contas. E a da Lina é das grandes. Quarenta e três polegadas de imagem colorida em 3D invadiram o espaço num blablablá infernal que me aumentava a dor de cabeça. Abaixei o volume até deixá-la muda. E troquei o CD. Agora sim, podia relaxar, escutando Caetano com aquele cenário todo colorido. Parecia um show.
Não estava com a mínima disposição para dirigir de volta pra casa, e assim fui ficando no apê aconchegante da Lina, sem a Lina, porém. O relaxamento com música, televisão e sofá pode ser que fizesse efeito, era o que eu esperava. Enquanto isso, mudei para os CDs internacionais, sempre com as imagens coloridas ao fundo. Rolling Stones, Supertramp, Dire Straits, Yes. Com tais canções de ninar, acalentadas pela tevê completamente muda, acabei cochilando. Ou melhor, dava cabeçadas para logo ser bruscamente acordado por uma bateria mais pesada ou uma guitarra mais estridente. Até que os CDs cessaram de tocar e peguei no sono de vez.
Não tenho ideia de quanto tempo depois fui acordado por uma voz estranha que me sussurrava aos ouvidos. Sussurro nada. Era uma voz grandiloquente. Visceral, eu diria, se não fosse tão impostada. Quando abri os olhos, Cid Moreira olhava fixo para mim, de dentro da tela da tevê: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”.
Que história era aquela? O que o Cid Moreira estava fazendo na televisão da Lina? Mas ele, impassível, continuou: “Ele estava no princípio com Deus. Eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro”. Como eu não reagisse, ele colocou as mãos na moldura da tela, como se fosse sair de lá. Foi o que fez. Quando percebi, ele já havia passado uma das pernas para o lado de fora, e estava prestes a passar a outra, enquanto dizia: “Estamos de olho!”. Foi aí que eu reagi. De um pulo, saltei do sofá, abri a porta e saí em desabalada carreira pelo corredor, enquanto a toalha que me cingia a cintura caía no chão, juntamente com os óculos 3D da televisão da Lina. Antes de alcançar as escadas, completamente nu, ainda vi a cara, lambuzada de glacê branco, da velhinha dos cem anos, que estava sendo removida de volta para casa.

Wednesday, August 17, 2005

Glauberrocha: a dimensão épica do cinema brasileiro

O Cinema Novo, movimento cultural que revolucionou o próprio modo de se fazer cinema no Brasil, teve origem em 1952, com o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, nos quais começaram a ser discutidas novas idéias para a produção cinematográfica brasileira. O filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, é considerado o marco fundador da nova forma de produção brasileira de filmes, que teve nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Leon Hirszman, David Neves, Ruy Guerra e Luiz Carlos Barreto.
Dono de uma vasta produção teórica, em que expõe suas idéias sobre como fazer cinema no Brasil, Glauber Rocha surge como a figura mais representativa do movimento cinemanovista. Depois de atuar como crítico de cinema e ator de teatro universitário – quando participou da montagem de Eros Martim Gonçalves da Ópera dos Três Tostões, de Brecht – Glauber Rocha lança, em 1959, em Salvador, Bahia, os filmes curta-metragem Cruz na Praça, de acento surrealista, e O pátio, que se aproxima mais de uma proposta concretista. Com a adesão ao Cinema Novo, porém, Glauber abandona o esteticismo inicial, em favor da compreensão de uma “função social e humana do cinema” (ROCHA, G. 1968).
Em seus filmes “peliculamente incorretos”, ensaísticos e experimentais ao extremo, fugindo aos padrões do cinema industrial, Glauber Rocha busca a afirmação de um cinema realmente brasileiro, um cinema que não represente um simples “udigrudi”[1] do “cinema industrial do colonizador”, como as pornochanchadas, duramente criticadas por ele:

"Até quando o México vai insistir em conservar os mitos do cinema industrial? Quando os jovens diretores mexicanos vão inventar algo mais revolucionário e deixar de fazer películas corretas para incluí-las na indústria da mediocridade?". (Glauber Rocha, carta a Alfredo Guevara, junho de 1967, citado in VENTURA, 2000: 252).

Em 1965, a partir de uma comunicação de Glauber no Seminário “Terzo Mondo e Comunità Mondiale”, realizado em Gênova, Itália, surge a Estética da Fome, que tornou-se, ao lado do lema “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, espécie de manifesto do Cinema Novo. Como parte do projeto de descolonização cultural pretendido, a Estética da Fome problematiza a relação entre estética e política no contexto de uma economia dependente, estabelecendo o conceito de “cinema ideogramático”. De acordo com tal conceito, a cultura popular brasileira torna-se frente de resistência, ainda que pacífica e inconsciente, aos valores do imperialismo cultural e econômico. Assim, os seus elementos devem ser apropriados criticamente pelo “novo” cinema brasileiro, para a recriação de uma nova linguagem, que expresse a “consciência em relação direta com a construção das condições revolucionárias” (ROCHA, G.1982: 212).
Baseada, pois, na cultura épico-popular dos cantadores, na oralidade, na literatura de cordel, nas crenças populares e no misticismo, esta nova forma estética propõe ainda a transposição de um problema moral e político – que inclui a precariedade do cinema do Terceiro Mundo como reflexo das condições do subdesenvolvimento, tematizado por ele – para o campo estético. Como observa Ismail Xavier, “a fome como metáfora permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que permite redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante” (XAVIER, 1983: 10).
Com uma praxis essencialmente voltada para a luta do cinema latino-americano frente ao imperialismo cultural do “cinema industrial do colonizador”, seja ele “o americano” ou “o europeu”, Glauber Rocha retoma os trabalhos de Humberto Mauro – considerado por ele como precursor de uma linguagem cinematográfica essencialmente brasileira. Também a música de Villa-Lobos, cuja proposta é sintetizar as dicotomias campo/cidade, civilização/barbárie na busca de uma melodia própria para o Brasil, é apropriada por Glauber, que a utiliza fartamente em seus filmes.
Os projetos culturais de Villa-Lobos e Humberto Mauro vêm de encontro à pesquisa estética de Glauber, que se baseia em alguns conceitos, dos quais se destacam: 1) o “específico fílmico”: busca de uma linguagem especificamente fílmica, que utiliza a montagem dialética como rompimento da montagem literário-teatral (ou seja, “narrativa”) do cinema contemporâneo. Segundo esse conceito, a imagem torna-se “invenção”, signo de uma forma lingüística nova; 2) o conceito de “cineação”: a possibilidade de “dominar o tempo sem a mínima discursividade” (ROCHA, G. 1959: 103) – ou seja, eliminando a narratividade e recriando/retomando uma ação própria do cinema, baseado que foi, em suas origens, no puro movimento da imagem; 3) o “cinema-testemunha”: “o cinema ainda não é arte e aqui no Brasil seria melhor chamá-lo de testemunho” (ROCHA, G. 1958); 4) a importância da linguagem do sertanejo como elemento de identidade cultural: “a fala do Terceiro Mundo, a fala secreta, a fala selvagem, a fala reprimida é uma fala antigramatical (...). A língua é forjada segundo todo um sistema de dominação preestabelecido” (ROCHA, G. 1978); 5) o conceito de autor: “o autor é o maior responsável pela verdade; sua estética é uma ética, sua mise-em-scène é uma política... O cinema não é instrumento, o cinema é uma ontologia” (ROCHA, G. 1963:14).
O cinema “peliculamente incorreto” de Glauber Rocha, colocando em prática os conceitos que defende, lança mão de vários recursos experimentalistas, dos quais se destacam:
. o gesto: simultaneamente “crítico” e “messiânico”, não tem “antes” nem “depois”, mas resultaria da “vivência do instante”. Este recurso aparece em várias cenas do filme Terra em Transe (1967), em que os personagens voltam os olhos diretamente para a câmera, quebrando, com esse gesto, a chamada “quarta-parede” do cinema naturalista e invertendo a relação filme/espectador, uma vez que os personagens não são, nesta proposta, apenas “vistos” pelos espectadores, mas também “vêem” estes;
. intervenções em off: numa das cenas do filme Idade da Terra (1980) o Cristo negro, vivido por Antônio Pitanga, desafia o americano John Brahms (interpretado por Maurício do Valle) a “ouvir a voz do Terceiro Mundo”, e essa voz é a própria voz de Glauber, em off sobre a imagem de Brasília, discursando sobre o “mundo rico” e o “mundo pobre”;
. desnaturalização das imagens: contrapondo-se ao neo-realismo do cinema italiano, este recurso busca valorizar a imagem pela imagem, isto é, como um produto específico, e não pela que ela “conta” (narra) ou “representa” (imita o real);
. destruição da montagem: com este recurso (ou “falta” de recurso), a equipe técnica aparece durante as cenas dos filmes, o que, adicionalmente, dispensa os famosos “créditos” do cinema convencional;
. utilização da música: “acho que o cinema brasileiro tem, nas origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música: nosso triste povo canta alegre, uma terrível alegria de tristeza. O samba de morro e a bossa nova, o romanceiro do Nordeste e o samba de roda da Bahia, cantiga de pescador e Villa-Lobos – tudo isso vive dessa tristeza larga, deste balanço e avanço que vem do coração antes da razão” (ROCHA, G. 1964: 111);
. e, por fim, outros recursos, como a quebra da noção de tempo e de espaço, o uso de luz indireta e a caracterização de personagens fragmentados, recursos largamente empregados por Glauber em praticamente todos os seus filmes.

Para compreendermos melhor a utilização desses recursos no cinema de Glauber Rocha – um cinema definido por ele como “épico e sagrado, dialético, produto brasileiro típico que encontra sua matéria-prima bruta na cultura popular do Nordeste, ligado ao projeto estético-político de descolonização” – se faz necessário lançar uma vista de olhos sobre o Teatro Épico, de Bertolt Brecht, de cuja proposta as concepções cinematográficas do cineasta brasileiro muito se aproximam.
Um dos pilares da proposta cinemanovista – o rompimento com o esquema da linearidade da ação, por meio de imagens que não possuem necessariamente relações de causalidade (“começo-meio-fim’) – encontra correspondência no “salto dialético” do Teatro Épico de Brecht, que propõe a quebra da unidade da ação dramática, herdeira da tradição do teatro aristotélico. Também a retomada da cultura épico-popular foi feita por Brecht, que reformulou, do seu ponto de vista, a tradição épica do teatro popular europeu, sobretudo o teatro medieval dos séculos XIII ao XV,[2] empregando o aspecto didático,[3] utilizado naquela forma teatral, e direcionando-o para um engajamento político.
De caráter essencialmente experimental, a imagem do Cinema Novo propõe uma desautomatização da consciência, buscando provocar no espectador uma reflexão idêntica à pretendida pelo “efeito-V”, ou “efeito distanciamento” de Brecht, que busca uma anulação da “empatia” (ou seja, a identificação do espectador com os personagens) do teatro tradicional. Este recurso brechtiano tem por objetivo “despertar” a percepção e eliminar a “ilusão burguesa”. De acordo com o ponto de vista de Brecht, o teatro burguês encerra uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que se baseia na empatia, na identificação personagem-platéia, com o objetivo de criar a “ilusão de realidade” – defendida pelas idéias naturalistas de Stanislavsky – essa identificação é, porém, permeada por uma separação entre o público e o palco, que estariam isolados entre si pela “quarta parede”. A implosão da quarta parede do teatro e do cinema naturalistas, tanto para Brecht como para Glauber, tem o objetivo de estabelecer um diálogo direto com o espectador, opondo-se deste modo à forma burguesa – e canônica – de fazer teatro e cinema.
A ênfase no gesto, e não no diálogo, também é outro ponto comum entre as propostas brechtiana e “glauberrochiana”. Com o objetivo de aumentar a desautomatização da percepção, liberando a consciência do espectador para a reflexão, o gesto é fundamental para a praxis política da arte, pois, para Glauber, assim como para Brecht, como observa Walter Benjamin, “a literatura não é obra, mas aparelho, instrumento (...), e seria tolice calar-se sobre os perigos imanentes de sua obra, sobre sua postura política e mesmo sobre os casos de plágio” (BENJAMIN, 1986: 124).
No entanto, é justamente na praxis política que as propostas de Glauber Rocha e de Brecht parecem divergir. Enquanto para Brecht o homem, senhor não do seu “destino” mas de suas ações, é o agente social por excelência, capaz de forjar e, portanto, modificar as suas próprias condições sociais, para Glauber, a cultura popular brasileira, vista por ele como espécie de “guardiã” dos valores tradicionais, que resistem à colonização “modernizante”, não é, porém, capaz de, efetivamente, agenciar uma ação política. Nesse paradoxo residiria, para o cineasta, todo o “impasse” e a “impossibilidade” do Terceiro Mundo: o “destino” do povo (sem identidade) brasileiro estaria irremediavelmente atrelado ao destino do colonizador, que conduz a cultura e a economia terceiro-mundista. Essa perspectiva trágica do pensamento de Glauber Rocha se acha presente em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), nos quais o povo surge como “entidade abstrata” (VENTURA, 2000: 210), representante do Brasil inculto e bárbaro, sempre à margem da modernização. Assim, enquanto no teatro brechtiano o determinismo, a fatalidade, o destino e o trágico não existem – e sim as ações concretas dos homens em sociedade, interagindo às circunstâncias, que podem ser modificadas politicamente –, em Glauber, a cultura popular, buscada por ele como “guardiã da nação”, não desafia – porque não tem forças suficientes nem consciência da sua posição de dominado – a dominação exercida pelo “complexo colonizador” do Ocidente.
Herdeiro de uma tradição que propõe o engajamento político da arte, e que se constituiria na sua própria “razão de ser”, o cinema de Glauber Rocha não é, porém, mera “importação” do modelo teatral proposto por Brecht. Muito ao contrário, a estética não apenas “experimental” mas sobretudo polêmica do cinema de Glauber Rocha, à maneira do teatro brechtiano, possui sua própria linguagem e sua própria proposta estética, permitindo repensar a questão da identidade cultural brasileira e, sobretudo, o modo de se produzir a cultura no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BENJAMIM, Walter. “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht”. In: ______. Obras escolhidas, vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 78-90.

BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. 1 e 2. São Paulo, Atlas, 1993.

MONTEIRO, Ronald F. “Do udigrudi às formas mais recentes de recusa radical do naturalismo”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70: Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80.

ROCHA, Glauber. “Cinema operação Nordeste”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ago. 1958.

____________ . Filme experimental: um tempo fora do tempo. Salvador, Angulos, n. 14, p. 103, maio 1959.

____________ . Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

____________ . Deus e o diabo na terra do sol (roteiro). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

____________ . “Tout la vie on parle”. Positif, n. 91. Paris, jan. 1968.

____________ . Folha de São Paulo, 30/05/1978.

____________ . Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/ Embrafilme, 1982.

ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1977.

VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

Notas:
[1] Como observa Ronald Monteiro, “o termo udigrudi foi inventado, parece, por Glauber Rocha, numa invectiva aos filmes do ‘underground’ caboclo.” (MONTEIRO, 1979/80: 126).

[2] Com o ressurgimento do teatro greco-latino, no século XVI, o teatro épico medieval sucumbe, cedendo lugar ao drama moderno, que atingiu seu auge no século XIX.

[3] Dividido em “sagrado” e “profano” – e substituindo a divisão tragédia-comédia, típica do teatro greco-romano – o teatro medieval se caracteriza por utilizar o humor como elemento cômico que satiriza as “imoralidades” sociais como a gula, a depravação das mulheres, a licenciosidade dos padres, etc. Assim, o riso, nesse tipo de teatro, possuía sobretudo a função de “corrigir” os costumes sociais, tornando-se, deste modo, didático, e procurando cumprir também uma função exemplar e moralizadora.