Friday, October 28, 2011

Cidade de Papel

Isabel Pires


Quando finalmente abriu, com alguma dificuldade, por causa do braço dolorido, a persiana meio empoeirada do pequeno escritório, ele percebeu um tanto agastado que perdera muito tempo aquele dia com o trabalho, embora soubesse que pouca coisa de fato tivesse produzido, limitando-se a revisar o texto já bastante revisado. No céu de verão, os últimos raios de sol se esbatiam contra fiapos de nuvens douradas, dispersas pelo azul como cabelos revoltos de um anjo desleixado.
Suspensa por trás do vidro hermeticamente fechado, a cidade parecia de papel. Um imenso cartão-postal feito de suor, sangue, areia e pedra. Montanha e praia produzindo um calor de mil diabos. O ar condicionado, porém, acalmava o medo e a solidão que passeavam nas ruas apinhadas de gente lá embaixo.
Bruscamente, ele deixou a janela. Atirou-se à poltrona reservada às poucas visitas, a olhar vazio para as prateleiras cobertas de livros e revistas especializadas. Muitos desses livros e revistas continham os artigos que escrevera, debruçando-se infinitamente sobre outros livros e revistas, fabricando eternos palimpsestos, preso em um círculo vicioso, gastando enormes pedaços de um tempo que agora ele não podia mais dispor. Projetos pessoais adiados, desejos eternamente insatisfeitos em troca do seu nome impresso ou de um convite para alguma palestra. Pressentiu assim sua vida: uma tela com grandes claros, inacabada. Sempre por retocar. Uma infinidade de simpósios, palestras, seminários. Saguões de aeroportos e noites mal dormidas. O estresse das comissárias de bordo contido todo naquela rede que segura, corretamente penteados, os cabelos: “O senhor? Vai beber o quê?”.
Mais adiante, seu olhar esbarrou no arranjo de flores desidratado e brega, herança do antigo ocupante da sala, pendurado próximo à janela. Já perdera a conta das vezes que pedira à moça da limpeza para tirar aquilo de lá, mas, por trás daquele largo sorriso de dentes muito alvos, Rose – era o nome dela – parecia não escutá-lo.
Consultando o relógio de pulso, ele constatou que a sessão de radioterapia daquele dia estava perdida. Deu de ombros, com a mão espalmada no bolso da camisa, no gesto de pegar os cigarros. Lembrou, porém, que desde que o médico lhe diagnosticara o câncer de próstata, que também o aconselhara a parar de fumar. Começara com uma dor discreta nas costas, na altura dos rins, que ele ia adiando dia a dia para “ver depois”. Até que o incômodo estendera-se para os ombros, limitando drasticamente as suas atividades.
A porta abriu-se de repente. Era Rose, armada de vassoura e pá. “Dá licença, doutor?”. Rose esfregava a flanela encharcada de óleo de lustrar móveis na mesa já quase sem verniz, nas prateleiras descarnadas, e ia puxando conversa. Bastava ele perguntar “tudo bem, Rose?”, que um botão automático, do tipo “aperte o play”, disparava uma metralhadora falante. Outras vezes, porém, ela se fechava em copas, apesar do sorriso claro sempre aberto, e o play simplesmente não funcionava.
Enquanto Rose ainda recolhia o lixo, ele, um pouco agastado com o cheiro do óleo de peroba, dirigiu-se à mesa de trabalho, retirando de dentro da velha pasta de couro preto as laudas do artigo, presas por um clipe. De testa franzida, passeou por instantes os olhos pelo trabalho impresso, sentindo necessidade de revisá-lo mais uma vez. Por fim, juntou novamente as laudas e devolveu-as à pasta, inúteis. Ligou o computador. Iria revisar o trabalho na tela mesmo, decidira.
Moro em Costa Barros, ela disse logo no primeiro dia, como se dissesse moro ali na esquina. Rose tinha dois filhos: uma menina de sete anos e um menino de quatro. Seu atual marido não era o pai das crianças. Este, Rose perdera, grávida de oito meses. “Maior barrigão”. Estavam quase chegando em casa, ela, o marido e a menina. O assassino vinha em direção contrária. “Um tiro só, doutor”. O menino nasceu sem pai.
Preso por durex na parede atrás da mesa dele, o “mapa do Rio de Janeiro” apresentava uma cidade perfeitamente ordeira, apesar do seu desenho irregular. Uma cidade de papel, onde as sirenes da polícia, das ambulâncias e dos bombeiros não eram, em absoluto, necessárias. Sorte grande viver na Cidade Maravilhosa sem um arranhão.
Vista do alto, a cidade parecia caber na palma da mão, como o mapa dela, preso por durex na parede, cabia inteiro num só olhar. Do alto, encerrado naquela torre de vidro gelada, ele via a cidade como se não tivesse nada a ver com aquelas ruas e avenidas e artérias invadidas de sangue, suor, lágrimas, sorrisos, desespero e alegrias: um cidadão de gabinete. Exceto, talvez, quando saía de casa para trabalhar, atravessando as ruas dentro do carro fechado e refrigerado. De dentro do carro, o rés do chão da Cidade Maravilhosa parecia um tanto cinzento, com seus prédios de concreto e vidro fumê e seus tapetes de asfalto, cortados aqui e ali por algum inesperado canteiro verde, um outdoor colorido, uma copa de árvore retorcida à beira do rio de carros. Aqui e ali, muros pixados aliviavam a pesada paisagem urbana. A massa compacta de gente, essa sim, bem colorida e diversificada contra o fundo quase neutro, atravessando as avenidas como soldados enfileirados.
Relanceou o olhar pela janela e percebeu, com uma raiva impotente de injustiçado, que o ocaso lá fora era passageiro, se renovando sempre, enquanto o seu se tornava cada vez mais irremediável e definitivo. Olhou para Rose: ela falava algo sobre a inveja das vizinhas, o marido carinhoso que ela tinha, e que esse, não, esse ninguém ia lhe tirar. Trabalhador, pai de família, responsável. A metralhadora falante novamente disparada, enquanto, lá fora, o ocaso...
Voltou o olhar para a página virtual que o aguardava à sua frente, impassível. Precisava arranjar um título para o trabalho, mas sabia que suas melhores ideias o haviam abandonado. Balbuciou um título qualquer entre dentes. Depois o repetiu em voz alta, para testar-lhe o efeito. “O que disse?”. Era Rose, tentando estabelecer contato. Mas ele estava longe, não a escutava mais. Decidiu: era esse o título. Teclou as palavras no alto da página virtual à sua frente, quase apaziguado consigo mesmo. Retirou por instantes os olhos da tela fosforescente do computador, buscando mais uma vez a janela, mas esbarrou novamente o olhar no arranjo brega que já o tirava do sério há algum tempo.
“Rose”, ele ia falar, mas era sexta-feira. Toda sexta-feira, ele sabia, Rose largava o serviço mais cedo, por causa do pagode, “que disso eu não abro mão”. Rose na soleira da porta, prestes a atravessá-la, levando consigo a vassoura, o espanador, o saco de lixo e a pá. “Rose”, tentou ele, “tira, por favor, esse arranjo...”. Ela nem sequer se virou. “Segunda-feira, de manhã cedo, eu tiro”, ela disse, e se foi.

Friday, October 21, 2011

Raquel, depois que Ricardo foi embora1

Isabel Pires

O zumbido era ensurdecedor, rodopiando dentro de suas têmporas. Aos poucos, foi abrindo os olhos, e se deparou com aquela escuridão gelada e constante, rompida por um tênue fio de luz que penetrava pela rachadura da porta, lá em cima. Manhã? Tarde? Não saberia dizer. Tentou consultar o delicado relógio de pulso folheado a ouro, e ficou na mesma. Com toda aquela claridade, os ponteiros se confundiam, ficavam do mesmo tamanho e se embaralhavam, marcando horas fantasmagóricas. Para quê, afinal, precisava saber das horas?, refletia, consciente da sua condição de enterrada-viva. Mas não queria pensar. Sua cabeça doía, latejando uma dor lancinante, e isso era tudo. A garganta também doía, dilacerada, brasa viva dentro do seu corpo.
— Miserável! – o som rouco e quase inaudível de sua voz parecia rolar sem forças pelo ar rarefeito, ecoando tropegamente pelas partículas de poeira que infestavam o cubículo.
— Ele me paga! – me paaaaga, meeeee pagaaaaa – o som parecia se esbater pelos cantos e retornar, esfarrapado, espectro de si mesmo, assustando-a mais.
Vasculhou mais uma vez a bolsa, à procura do celular, em vão. Evidentemente, ele o havia retirado de lá, num momento de distração. Falha imperdoável. Como fora deixar se impressionar por velhos túmulos rachados e anjos de pedra decapitados? Que vacilo. Sem dúvida, fora imprudente ao extremo. Não podia se perdoar. Mordia os lábios, desesperadamente, constatando a sua demência. Sim, fora completamente idiota. Então não sabia que não podia confiar nele? Seu estômago também doía terrivelmente. Fumara todos os cigarros que haviam restado. E agora?
Deixou a cabeça pender, recostada à parede fria, os braços inermes ao comprido do corpo. Por um momento, sentiu-se, de fato, morta, e imaginava-se cinzenta e imóvel, dura e fria, perfeitamente integrada ao quadrilátero mortífero, envolvida pelos miasmas fétidos que se desprendiam vagarosamente da pedra das gavetas dos mortos em desintegração. Também ela desintegrando-se lentamente. Mas a dor espalhada pelo corpo pulsava quente, inquieta, anunciando-lhe misteriosamente que ainda vivia.
Ouviu um ruído repentino, longínquo. Ficou atenta.
— Ricardo? – ousou pronunciar o nome dele, um jato quente subitamente bombeando um sangue renovado em suas veias. Elas pulsavam, parecendo querer saltar. Sim, estava viva.
Aos poucos, conseguiu identificar o ruído: pareciam fracos pingos de chuva, tamborilando longe, em algum lugar lá fora. Fechou os olhos, apurando bem o ouvido. Porém, mais que o barulho fraco da chuva, que chegava dilacerado lá de fora, o cheiro vivo de terra molhada penetrava ardente e forte em suas narinas, poderoso, invadindo-a toda. Sim, estava viva.
Ela riu, histérica, uma risada descompassada e idiota, risada de quem já havia ultrapassado, de há muito, o precipício do desespero. Não, estava morta. E visualizou seu próprio esqueleto, metido nos farrapos da roupa que um dia fora elegante, sufocado junto com os restos da pequena capela pela fúria violenta da vida, as plantas se enroscando pelas paredes externas, disputando espaço, abafando as cores esmaecidas da morte com seu verde de vida. Via com terror um tufo de cabelos displicentemente caído ao lado do crânio a descoberto e, ridiculamente, o relógio de ouro, circundando com folga o pulso de osso. Ainda marcaria, implacavelmente, as horas?
Não, não estava morta, parecia ouvir dentro de si. Seu coração batendo angustiado dentro do peito, descompassado embora, mas vivo. Esmurrou com força as paredes, apenas para aquecer o sangue congelado nas veias, a pele fina mal recobrindo o sentimento de revolta em seus pulsos cerrados. Também eles doíam agora. Isso era, de algum modo, bom. Pela dor, podia sentir que ainda existia. Sentia que devia agarrar-se a este fio de esperança, ainda que fosse simplesmente para morrer no instante seguinte. Morta-viva, viva e morta, apenas isso.



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[1] Uma continuação do conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles.