Wednesday, December 21, 2005

Com Netuno em alto mar

Costumava sonhar com o mar – um mar revolto, em fúria, de ondas gigantes, inquietas, que devoravam tudo, tragando casas, pontes, pessoas, bichos. Outras vezes, estava à deriva, em mar alto, náufraga, sem porto onde ancorar. Minha porção portuguesa, feita de sal, nestas ocasiões acordava tremendo, e, banhada em suor, secretamente orava a Netuno, rogando-lhe clemência. Consultei o oráculo, às páginas mil e tantas: o mar era o inconsciente. Força poderosa, selvagem. Incontrolável. Ontem sonhei de novo com o mar. Mas desta vez foi diferente. Havia barquinhos, delicadamente pousados sobre a face plácida das águas, e o mar era um imenso cartão-postal em 3D. Suave luz arejava a paisagem, da qual eu podia dispor à vontade. Graduava a luz, misturando os tons. Trocava os barcos de lugar. Com um dedo, dava-lhes um peteleco, e eles viravam. Acordei trêmula, soluçando.
Da coletânea ainda não publicada menos ainda escrita, Pequenos guardados e perdidos.
(Também em: Revista Inimigo Rumor nº 16, 1º semestre 2004, p. 118)

Thursday, December 01, 2005

Machado de Assis e seus estudiosos equivocados

Para os estudiosos de Machado de Assis, é sempre prazerosa a notícia da publicação de mais uma obra sobre o escritor, ampliando assim a já extensa fortuna crítica que se acumula em torno do tesouro machadiano – composto pelos romances, contos, crônicas, peças teatrais e poemas –, legado a todo aquele que se interessa por literatura brasileira.

Uma publicação sobre Machado de Assis, sobretudo dirigida aos jovens, como o livro Para conhecer Machado de Assis, de Keila Grinberg, Lucia Grinberg e Anita Correia Lima, resenhado pelo jornalista André Luís Mansur nas páginas do caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, em 19/11/2005, é, portanto, digna de ser noticiada e, mais ainda, recebida com o devido louvor – apesar dos inúmeros reparos feitos pelo resenhista ao estudo sob enfoque.

No entanto, é justo um desses reparos que, por se tratar de informação por sua vez equivocada, que merece também reparo. O resenhista considera que “a pesquisa parece ter sido bem precisa quanto a datas, embora na linha do tempo que está no início do livro ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ apareça como sendo lançado em 1779 (sic), quando na verdade a data certa é 1881, ano que marcou o início do realismo na literatura brasileira”. Equívoco tanto de umas quanto de outro, considerando que a “data certa” da publicação do famoso livro machadiano, fonte inesgotável de estudos os mais diversos, é 1880, quando o romance foi publicado em folhetins na Revista Brasileira, de 15 de março a 15 de dezembro, suscitando igualmente aplausos e pasmos entre os leitores da época. A partir de janeiro de 1881, o livro já podia ser adquirido nas livrarias. Outro ponto equivocado da citada resenha é tomar o ano de 1881, e, nas entrelinhas, o romance machadiano, como marco do “início do realismo na literatura brasileira”. Entre os estudiosos de Machado, é consenso tomar a publicação das Memórias como marco divisório sim, mas da própria obra machadiana, que, com esse romance tão pouco “realista”, teria ingressado na “segunda fase”: a fase dos romances machadianos maduros e geniais, entre os quais estão Quincas Borba e Dom Casmurro.