Wednesday, October 21, 2009

A hora da estrela de Mademoiselle Charlotte

Isabel Pires
A revolução francesa me fascinou de repente. E foi quando resolvi escrever sobre a realidade dessa revolução. Qualquer que seja o que quer dizer “realidade” “dessa” “revolução”. O que narrarei, como mulher? – já que essa realidade me ultrapassa? Escreveria com lágrimas sobre barões guilhotinados e meninos amotinados? Pelo menos, o que escrevo não pede favor a ninguém – talvez implore algum socorro aos mortos. Foi quando Marat me fascinou de repente. Eu ia dizer que resolvi escrever sobre Marat? Mas Marat foi morto por uma mulher, o que me faria escrever não sobre ele, o conteúdo, mas sobre ela, que era pura forma. E por que eu escreveria sobre ela? Antes de tudo porque captei o apelo dela e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da Liberdade mas por motivo grave “de força maior”, como dizem os requerimentos oficiais, ou por “força de lei”. (O apelo da francesa já começa a me contaminar?) Não, não é fácil escrever sobre revoluções. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como espelhos despedaçados. Ah que medo de começar, mesmo já sabendo o nome da moça: mademoiselle Charlotte de Corday. Sem falar que a história me desespera por simples demais. O que me proponho contar parece fácil: está nos livros de História e à mão de todos os mouses. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que já está quase apagado, soterrado sob o pó de uma história tantas vezes (mal) contada. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível da própria História. Mas por enquanto não é confortável: para falar da moça tenho que imaginar Marat sem fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, ele, que era um revolucionário. Além de vestir-se com roupa velha rasgada. Tudo isso para impressionar a moça. Sabendo no entanto que talvez fosse melhor se apresentar de modo mais convincente a essa francesa que muito reclama de quem está neste instante mesmo mergulhado em um banho regenerador. (Quando penso que eu poderia ter nascido ela e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser – sinto culpa por não ter sido eu a matar Marat?) Estou procurando danadamente achar na existência de Charlotte pelo menos um topázio de esplendor. Até o fim talvez o vislumbre, ainda não sei, mas tenho esperança. (Mas não – ela pegou a faca) Marat: — Para desdenhar da moça tenho que me domar e para poder captá-la tenho que degustar frutas importadas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver a revolução. Também tive que me abster de sexo e de filosofias. Sem falar que não tenho mais contato com ninguém. (Todos se assustam com minha pele sem cor?) Voltarei algum dia à minha vida anterior? Duvido muito. Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio nem escrevo para não me contaminar com falsos luxos intelectuais. Pois como eu disse a revolução tem que se parecer com a revolução, instrumento meu. Ou não sou um revolucionário? Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de encenação, obrigo o respirar plebeu a me acompanhar nesse difícil entrecho. Charlotte: — Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausta da luta, não sou uma desertora. Com fúrias de desenvoltura estou usando a palavra já escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Verdade e cair no abismo povoado de gritos por demais iguais: o inferno da minha liberdade. Mas continuarei. O que se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que li sobre a revolução que jogaram no lixo, para o meu desespero, de Marat e de Charlotte – e que os mortos me ajudem a suportar o quase insuportável, já que de nada me valem os burgueses vivos, ainda que de fato alguns nobres tenham sido degolados. Nem de longe conseguiram igualar a tentativa de repetição artificial dessa revolução, nem mesmo como farsa. E quem sabe o que originalmente se passou no encontro de Charlotte com o revolucionário? É com humildade que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o encontro. Marat, de novo: — E eis que fiquei agora receoso dessa francesa. E a pergunta é: como luto? Verifico que luto de ouvido assim como aprendi inglês (e francês) de ouvido. Antecedentes do meu lutar? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando luto não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média me vê com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Mas um dia certamente me reverenciará. Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: Charlotte não tinha nenhuma técnica, nem estilo, ela era ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras de plágio o ato extremamente simples dessa francesa. Durante o dia eu faço, como Charlotte, gestos despercebidos por mim mesma. Pois foi dela um dos gestos mais despercebidos nesta história de que não tenho culpa e que saiu como saiu. A francesa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava ter direitos legalizados, ela, que era apenas um acaso, feita de fatos de que não tratam os jornais. Houve milhares como ela? Sim, havia. Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque gostaria de escrever sobre este ato que um dia foi um fato. É quando entro em contato com forças revolucionárias minhas, encontro através de mim o vosso Deus revolucionário. Marat? Marx? Babeuf? Para qual deles escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço estar numa galáxia longínqua e estranha dentro de mim mesma. Sou eu? Espanto-me com o meu próprio encontro. (Charlotte me incomoda tanto que fiquei oca. Estou oca desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama de sua missão. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e quebrar vidraças. Como vingar Marat? Ou melhor, como compensá-lo? Já sei: amando meu cão que não será guilhotinado como a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.) A submissão. E agora agora nem um cigarro posso mais acender – não sobraram espaços possíveis (talvez, os virtuais?) em que ninguém incomode quem fume. Vou para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que houve um tempo em que todos os morangos mofaram. Sim.

Thursday, October 08, 2009

Uma paráfrase

Meu Deus, só agora me lembrei que a gente plagia. Mas — mas eu também?!

(Paráfrase de “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas — mas eu também?!”, de Clarice Lispector, em A hora da estrela)

Monday, October 05, 2009

Andy Warhol, Walter Benjamin e os 15 minutos de fama

É comum atribuir-se a Andy Warhol, o "papa" da Pop Art, a frase que diz que, num futuro próximo, todos terão os seus quinze minutinhos de fama, graças à aparição pública de sua imagem. O que pouca gente diz (ou que a maioria omite, tanto faz) é que, na verdade, essa frase não é originalmente de Andy Warhol. Não se sabe se propositalmente ou não, o fato é que a célebre frase tornou-se repetida à exaustão - exatamente como os ícones pops que Warhol "seriava" em seus quadros -, lamentavelmente com autoria equivocada.
Walter Benjamin, em seu texto "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" - que, pelo visto, não é tão conhecido assim, nem se "reproduziu" tanto quanto a suposta frase de Andy Warhol -, já havia previsto a "fama instantânea de todos". Neste texto, escrito em 1935, o teórico da Escola de Frankfurt, que se dedicou aos estudos sobre a apropriação técnica da obra de arte na sociedade capitalista contemporânea, profetizou também a proliferação em massa de escritores (o que começa a se tornar uma "verdade virtual", demonstrada em tantos blogs). Diz Benjamin:
"No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela. Mas isso não é tudo. Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o direito de ser filmado. Esse fenômeno pode ser ilustrado pela situação histórica dos escritores em nossos dias. Durante séculos, houve uma separação rígida entre um pequeno número de escritores e um grande número de leitores. No fim do século passado, a situação começou a modificar-se. Com a ampliação gigantesca da imprensa, colocando à disposição dos leitores uma quantidade cada vez maior de órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais e regionais, um número crescente de leitores começou a escrever, a princípio esporadicamente. No início, essa possibilidade limitou-se à publicação de sua correspondência na seção 'Cartas dos leitores'. Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou reportagem. Com isso, a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor" (BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. V. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 184).
Observe-se que, no texto de Benjamin, há um grifo, como se o autor quisesse chamar a atenção para suas palavras. Evidentemente, elas tiveram bem mais que quinze minutos de fama, infelizmente divorciadas de quem primeiro as pronunciou.