Tuesday, November 24, 2009

Os Atos Institucionais: lembranças de uma "Ditadura com D maiúsculo"

Isabel Pires

Os Atos Institucionais e seus respectivos Atos Complementares foram uma série de medidas arbitrárias que permitiram assegurar o pleno exercício do poder à ditadura militar que se instalou no Brasil de abril de 1964 a março de 1985, quando um civil, José Sarney, assume finalmente a presidência da República. Promulgadas entre 09/04/1964 e 14/10/1969, essas medidas de exceção receberam o nome de “Atos Institucionais” na evidente impossibilidade de serem reconhecidas como “Atos Constitucionais” – já que eram tudo, exceto subordinadas à Carta Magna do país.


O primeiro da série – que, a bem da verdade, não sabia que inaugurava série tão sinistra – foi redigido pelo jurista Francisco Campos e pelo advogado Carlos Medeiros da Silva e celebrava a “Revolução” ao mesmo tempo em que conferia poderes quase ilimitados ao chefe do Executivo. Entre outros desmandos, afirmava que o Congresso Nacional recebia sua legitimidade do Ato Institucional, e não ao contrário (!), além de conceder ao Alto Comando Revolucionário prerrogativas para cassar mandatos legislativos e suspender por dez anos os direitos políticos dos que fossem considerados “ameaças” à segurança do país, entre outras medidas. Com efeito, o Congresso Nacional foi o alvo principal desse Ato, tendo os parlamentares contrários aos militares sofrido cassações, expurgos e suspensão de direitos políticos, entre outras punições.

O quinto Ato Institucional, o famoso AI-5, promulgado em 13/12/1968 (uma sexta-feira), estabeleceu outras tantas arbitrariedades, como a suspensão de habeas corpus para qualquer cidadão, além de decretar o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado e a intervenção nos estados e municípios. O estado de sítio, de acordo com o AI-5, também poderia ser decretado por tempo indeterminado, assim como a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, o confisco de bens, a suspensão das garantias constitucionais de liberdade de reunião e de associação, a aposentadoria de ocupantes de cargos públicos e a cassação de mandatos eletivos. Também estabelecia a censura da imprensa, das correspondências, telecomunicações e diversões públicas.


Surgido num contexto de insatisfação popular generalizada, expressa pelas greves do operariado de Minas e Osasco em abril e julho de 1968, pela ação da Igreja, pela greve dos bancários do Rio e pela eclosão da guerrilha urbana, o AI-5 não visava combater um grupo isolado. Como observam Sebastião Cruz e Carlos Estevam Martins (1984), com a publicação do AI-5 “instaurou-se o controle absoluto. (...) As oposições, que tanto tinham falado de ditadura, viam-se agora diante de uma Ditadura com ‘D’ maiúsculo. Para começar, o novo instrumento de poder por meio do qual se institucionalizava o arbítrio não tinha data prefixada para deixar de existir. Simplesmente abolia, por prazo indeterminado, os limites constitucionais antepostos à ação governamental. Dali para diante, o presidente passava a ter à sua disposição um formidável arsenal de poderes excepcionais... (...). A repressão abateu-se sobre o país, atingindo pessoas e instituições. O Congresso foi posto em recesso. Quatro senadores e 95 deputados tiveram seus mandatos cassados. (...) Os delegados da censura instalaram-se nas redações dos jornais, nas emissoras de rádio e televisão, nas casas de espetáculo. As forças policiais e os serviços secretos passaram a atuar de forma desabrida e totalmente irresponsável, violando a privacidade dos lares, da correspondência e das comunicações, cerceando discricionariamente o exercício de todas as liberdades públicas. As detenções assumiram o caráter de seqüestros e se multiplicaram em ondas sucessivas. Todo cidadão, independentemente de classe, raça ou credo, tornara-se em princípio suspeito de prática de delitos contra a segurança nacional” (CRUZ e MARTINS, 1984, p. 37).


Outros Atos terríveis foram o AI-13 e o AI-14, promulgados a 05/09/1969. O primeiro estabelecia a pena de banimento permanente do país para qualquer brasileiro (e não apenas os políticos) considerado perigoso para a segurança nacional, enquanto o segundo restabelecia a pena de morte no Brasil (!!) em casos de “guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva”.


Em 14/10/1969, o Alto Comando do Exército expediu os últimos Atos Institucionais: o AI-16, que declarava vacantes os cargos de presidente e vice-presidente, fixava regras para a eleição dos próximos ocupantes desses cargos e estipulava a duração do novo governo até 15/03/1974; e o AI-17, pelo qual militares que houvessem atentado ou viessem a atentar contra a coesão das forças armadas poderiam ser transferidos para a reserva (embora com salários integrais). O AI-17 evidenciava assim a reação militar à insatisfação (e até mesmo revolta) que alguns militares, como os generais Syzeno Sarmento e Albuquerque Lima, demonstraram com a indicação de um colega deles - o general Médici - para a Presidência.

O Congresso Nacional, suspenso desde dezembro de 1968, foi reaberto pelos Atos Complementares (ao AI-16) de nºs 72 e 73, para a eleição presidencial, realizada em 25/10/1969, quando foi ratificada a escolha do general “quatro estrelas”1 Emílo Garrastazu Médici pelos votos da ARENA. No entanto, no dia 17/10/69, antes das eleições – ou seja, antes mesmo de ser declarado oficialmente presidente (!!!) –, Médici promulgou, garantido pelo AI-16, de 14/10/1969, e seus respectivos ACs, uma emenda na Constituição, fortalecendo ainda mais o Executivo, a Lei de Segurança Nacional e aumentando o prazo do estado de sítio, além de reduzir o número de cadeiras da Câmara dos Deputados e das Assembleias Estaduais. A emenda constitucional também determinava que o número de deputados federais por estados fosse definido segundo o número de eleitores registrados, e não pelo total da população do estado, como antes.

Essa emenda, totalmente arbitrária, promulgada por um presidente que ainda não havia sido eleito, evidenciava, conforme observa o historiador Thomas Skidmore, a fraqueza do Congresso, que “o impedia até de rever a lei mais importante do país” (SKIDMORE, 1988, p. 202). Skidmore relembra também, em seu livro, os casos de resistência à ditadura no Brasil, praticada tanto por guerrilheiros como por membros do clero, e a consequente prática repressiva (leia-se “tortura”) dos militares no combate aos opositores do “regime”. Uma dessas práticas infames e revoltantes, citada por Skidmore, foi o assassinato do estudante guerrilheiro Stuart Jones, líder do MR-8, movimento revolucionário que sequestrou, em 04/09/1969, o embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, em troca da libertação de 15 prisioneiros políticos. Foi essa ação da guerrilha, aliás, que suscitou a reação militar expressa nos Atos Institucionais nºs 13 e 14, promulgados no dia seguinte ao do sequestro do embaixador. O “banimento permanente” referido no AI-13 foi imediatamente aplicado aos 15 prisioneiros políticos trocados por Elbrick e enviados para o México.

Stuart Jones foi capturado pela ditadura em maio de 1971 e “morreu torturado. Foi atado à traseira de um carro com a boca no cano de descarga e arrastado em volta do pátio da prisão. (...) Jones tinha pai americano e mãe brasileira, esta uma desenhista de modas muito conhecida com o nome profissional de Zuzu Angel, que nunca recebeu qualquer explicação oficial sobre a morte de seu filho. Mulher de enorme persistência, ela protestou contra o silêncio do governo junto a quem quer que fosse, e sendo conhecida nos círculos da moda dos Estados Unidos e da Europa, esses protestos eram reproduzidos pela imprensa estrangeira. Quando o secretário de Estado Henry Kissinger visitou o Brasil em fevereiro de 1976, ela conseguiu despistar a fortíssima segurança e atirar em suas mãos documentos sobre a morte de seu filho para constrangimento e raiva dos funcionários do Ministério das Relações Exteriores. Ela estava convicta de que o governo planejara matá-la (deixou uma declaração a esse respeito), e na verdade morreu em 14 de abril [de 1976] em acidente de automóvel (...)” (SKIDMORE, op. cit., p. 241).

Mas não somente jovens guerrilheiros (e suas indefesas mães) foram alvo da repressão institucionalizada. Thomas Skidmore também relata que “o ano de 1969 vira a violência aumentar contra os religiosos. Em maio, o Padre Pereira Neto, um jovem sacerdote que trabalhava intimamente ligado a Dom Helder Câmara em programas para a juventude, foi linchado em Recife. Os matadores nunca foram identificados, mas poucos duvidaram que tal crime só podia ter sido cometido por alguém estreitamente ligado às forças de segurança. Em outros lugares, a polícia fazia batidas regularmente em conventos e escolas. Uma prisão de 40 suspeitos incluiu a madre superiora de um convento” (SKIDMORE, idem, p. 273).

Outro caso famoso e revoltante, citado por Skidmore, foi a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida a 25/10/1975 no DOI-CODI, em São Paulo. “Em outubro de 1975 Herzog soube por amigos que as forças de segurança do Segundo Exército estavam à sua procura. Num esforço sincero para cooperar, compareceu pessoalmente ao quartel daquela unidade. Ele não tinha a mínima idéia de que o serviço de inteligência daquele órgão militar o considerava um conspirador comunista./ No dia seguinte o comando do Segundo Exército informou que Herzog havia cometido suicídio em sua cela depois de ter assinado uma confissão declarando-se membro do Partido Comunista. São Paulo ficou espantado. Ninguém acreditava na versão de suicídio. Ali estava um membro proeminente do jornalismo subitamente morto, certamente por desmandos dos torturadores. O fato de Herzog ser judeu aumentava a assustada reação dos paulistas, porque houvera insinuações de anti-semitismo na conduta passada da linha dura. Estudantes e professores entraram em greve por três dias na Universidade de São Paulo e o sindicato dos jornalistas declarou-se em sessão permanente para exigir a abertura de inquérito, exigência feita também pela Ordem dos Advogados. Além disso, 42 bispos de São Paulo assinaram uma declaração denunciando a violência do governo” (SKIDMORE, ibidem, pp. 344-346).

Olhando para a “História do Brasil” recente, a impressão que se tem é a de que, ao promulgar o primeiro Ato Institucional, os militares enveredaram por um caminho desconhecido até para eles mesmos. Ditados pelas circunstâncias mais imediatas, os Atos Institucionais - estabelecendo condições que permitiram não apenas à ditadura militar brasileira "o pleno exercício do poder", mas também a mortandade brutal de tantos brasileiros - denotam a mais completa falta de planejamento, ao mesmo tempo em que deixam entrever a fragilidade de um governo que necessitava de todas as armas para exercer o poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CRUZ, Sebastião C. Velasco e; MARTINS, Carlos Estevam. “De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da ‘abertura’”. In: SORJ, Bernardo; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. 2ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, pp. 13-61.


SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964 a 1985. 8ª ed. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. [1988]

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1 A escolha de Médici como candidato à presidência foi baseada na decisão de que somente generais com patentes de quatro estrelas seriam elegíveis. Esta manobra visava afastar o nome do general Albuquerque Lima, cuja patente era de apenas três estrelas. Albuquerque Lima era um nome controverso entre os militares, que se incomodavam com suas críticas às políticas econômicas e suas ideias nacionalistas. O Alto Comando das Forças Armadas, responsável pela escolha do candidato, alegou então que o presidente deveria dar ordens a generais de quatro estrelas, e assim não poderia ter uma patente inferior a dos seus subordinados. Esta história nojenta está registrada em Skidmore (2004, pp. 197-199), que também informa que Albuquerque Lima não aceitou essa decisão sem reagir, escrevendo uma carta de protesto ao ministro do Exército.