Saturday, March 12, 2022

Apresentação da Dissertação de Mestrado "Literatura e Comunicação de Massa no Brasil: razão comunicativa versus razão instrumental"

A dissertação de Mestrado apresentada a seguir, de minha autoria, pode ser lida na íntegra no endereço eletrônico https://literaturaecomunicacaodemassanobrasil.blogspot.com

Isabel Pires

A arte não pode revelar a verdade sobre a arte sem a dissimular. (Pierre Bourdieu, in As regras da arte)

A técnica é em si mesma ótima, enquanto instrumento indispensável de vida humana evoluída, mas é essencialmente instrumento social e a sua maior ou menor incidência humana educativa depende enfim da maior ou menor humanidade da sociedade que a emprega. (Della Volpe, in Crítica de um paradoxo tardo-romântico)

Houve um tempo em que escrever era uma arte. Tomava-se de uma folha de papel em branco, e, com tinta, pena, galhofa e melancolia, no dizer de Brás Cubas, transformava-se a folha branca – talvez ainda com o auxílio de algum piedoso mata-borrão –, em página seleta de literatura. No papel branco, não se escrevia, apenas: o texto era pintado, esculpido, tecido, bordado, lavrado... Algumas vezes, alinhavado e até costurado. 

Hoje em dia, não se escreve – digita-se. Ou recorta-se, copia-se, cola-se e “deleta-se” o texto nesse artefato técnico que, ao lado do celular, concorre ao título de “oitava maravilha” do mundo. Os tempos mudaram. Paulo Coelho, o Mago da vez, entrou para a Academia Brasileira de Letras, instituição fundada e presidida por largo tempo por Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Entre um mago e outro, os critérios também mudaram.

Na primeira metade do século XX, Walter Benjamin percebeu, com perspicácia, as mudanças no interior da narrativa. Para ele, a primeira mediação técnica no texto é a que se opera justo entre a mão e a fala, quando a narrativa deixa de ser oral e passa a ser escrita. Benjamin percebia essa passagem como a “decadência da arte de narrar”.

Há mais de cem anos, Machado de Assis observava que, no Brasil de sua época, muito pouca gente sabia ler e escrever, e, entre estas, pouquíssimas sabiam escrever “letra de mão”. A letra cursiva era, então, uma técnica manual de escrita a que apenas as pessoas cultas do Brasil do século XIX tinham acesso.

No século XXI, o analfabetismo brasileiro, como fantasma a ser exorcizado, ainda persiste, tornando mais que nunca pertinente o conceito de “cultura ornamental” (Coutinho), de que se serviram alguns estudiosos para nomear a cultura da sociedade brasileira oitocentista, ao mesmo tempo burguesa e escravocrata. Em tempos de “globalização” e de “pós-modernidade”, os bens culturais no Brasil ainda continuam “ornamentais”, restritos à elite econômica e social do país. Este fato tem sérias repercussões sobre as intenções “modernizantes” dos governos, que esbarram sempre no velho problema do “fracasso escolar”. Por outro lado, apesar deste contexto desfavorável, não são poucas as crianças brasileiras que, muitas vezes, aprendem suas primeiras letras diretamente no teclado e na tela de computador, só depois então passando à velha e boa cartilha, a mesma em que aprenderam a ler seus avós. Talvez algum dia a “letra de mão” e o analfabetismo desapareçam em definitivo, tão completamente como desapareceram os bondes, de dentro dos quais se podia ver passar muitas coisas. Também eles passaram.

Desde o surgimento da imprensa, em 1450, literatura e técnica andam juntas, deixando sem ter muito o que fazer os famosos “copistas” medievais. A invenção de Gutenberg, indubitavelmente, deu início a uma revolução que viria a repercutir decisivamente na literatura, dando um importante passo para o processo de industrialização do livro, e, consequentemente, para a popularização da literatura.

A dissertação “Literatura e comunicação de massa no Brasil: razão comunicativa versus razão instrumental”, ao propor uma análise da relação da literatura brasileira – definida por Mattoso Câmara Jr. em seus Ensaios machadianos como uma “literatura meio ingênua e sem sofisticações” (CÂMARA JR, 1962, p. 51) – com os meios de comunicação de massa, resultantes de um intenso e extenso processo tecnológico, não tem por mira investigar a relação da obra literária com os artefatos técnicos, analisando as formas que a literatura brasileira assumiria diante da técnica.

O texto também não se dedica à análise da chamada “literatura de massa”, buscando antes suscitar, no diálogo entre a literatura produzida no Brasil e os mass media, questões em torno da problemática da “duplicidade cultural” brasileira. O caráter de duplicidade da cultura no Brasil já foi abordado por diversos autores, entre eles, Gilberto Freyre, Jacques Lambert, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta. Luiz Eduardo Soares (1999), em seu texto intitulado “A duplicidade da cultura brasileira”, chama a atenção para o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa – sobretudo a televisão – num Brasil estruturalmente dicotomizado.

Analisando o “dilúvio de imagens” tecnológicas no mundo contemporâneo frente às imagens criadas pela literatura, Italo Calvino adverte, no texto Visibilidade, que “estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de por em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens” (CALVINO, 1990, p, 107). No entanto, para o escritor italiano, a materialidade da escrita, embora frágil, feita de papel e tinta, ultrapassa a sua condição, e é a única capaz de conferir forma igualmente às realidades e às fantasias, à exterioridade e à interioridade, ao mundo e ao ego, à experiência e à imaginação, “compostos pela mesma matéria verbal”, transcrita em caracteres tipográficos (op. cit., p. 114).

Do nosso ponto de vista, as imagens tecnológicas e as imagens literárias não estariam em “concorrência”. Dos textos literários analisados ao longo da dissertação – “vozes literárias” que, resguardando a dimensão crítica da cultura, percebem a cultura tecnológica de uma perspectiva essencialmente crítica –, elas surgem intercambiantes, abrigando tanto o mito do aparato tecnológico como a linguagem literária, “sistema mítico” (Barthes) e híbrido por excelência. Essas as questões que, longe de esgotar, a dissertação apresentada apenas suscita, trazendo-as ao debate.

Observando com um pouco mais de atenção, percebe-se que o texto, não aleatoriamente, possui uma forma espiralada, em analogia com o símbolo do infinito: um “oito deitado” que, porém, não se “fecha”, pressupondo-se que, atrás de si, ele forma muitos outros “oito deitados”, infinitamente. A imagem do símbolo do infinito foi utilizada por Gustavo Bernardo, ao discutir o conceito de literatura. Para ele, o estabelecimento de tal conceito é uma questão impossível de se esgotar em si mesma, produzindo uma circularidade em espiral, à semelhança do “mito do Uroboro, a cobra que tenta desesperadamente devorar o próprio rabo, indicando os dois extremos do esforço intelectual humano: a necessidade e a impossibilidade” (BERNARDO, 1999b).

Ao abordar o diálogo da literatura com a tecnologia de massa, a dissertação toma como ponto de partida a implicação do naturalismo brasileiro de Aluísio Azevedo com o “olhar fotográfico”, em O cortiço. Com a fotografia, o processo de reprodução de imagens tornou-se acelerado, e “a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho” (BENJAMIN, 1986, p. 167). Também é ela que fornece a base para o pleno desenvolvimento do cinema, vasto campo da ficcionalidade e da técnica. Prosseguindo, o texto faz uma abordagem do contexto do pós-guerra, culminando na análise da expansão da “era da informação” e sua influência na literatura contemporânea brasileira, por meio da presença das “caixas pretas” (Flusser) tecnológicas nos textos literários.

Na segunda parte, o texto busca introduzir, na discussão “História versus literatura”, o discurso jornalístico – considerado como representante paradigmático do mass media – como uma terceira forma discursiva. Após fazer uma digressão até os folhetins e a Belle Époque do Brasil, a dissertação se encerra com a abordagem da chamada identidade brasileira, vista pelo olhar cético machadiano. Em espiral, pois – ou seja, parecendo regredir, mas não se fechando no mesmo ponto – o texto faz ainda uma aproximação da escrita machadiana com a técnica cinematográfica, retomando deste modo o ponto de vista de Benjamin, de que “se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia” (op. cit., p. 167). Assim, se a literatura do Naturalismo, de viés positivista, possui estreitos vínculos com a fotografia, como chamam a atenção diversos estudiosos, a escrita machadiana, contrapondo-se a ela, abre caminho para uma nova técnica de escrita e uma nova condição de ficcionalidade.

Segundo Mircea Eliade, a primeira função do mito é ordenar o caos, pois, “para viver no mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no ‘caos’ da homogeneidade e da relatividade do espaço profano” (ELIADE, s/d, p. 36). Com uma sequência não linearizada de análise, esta dissertação longe está de pretender erigir mitos, buscando, antes, desmi(s)tificá-los.         


SUMÁRIO 

PARTE I 

CAPÍTULO 1 – A FALÊNCIA DO PARADIGMA POSITIVISTA E O “SENTIMENTO DE ABSURDO”

1.1 – O mal-entendu naturalista   

1.2 – O pensamento ocidental e o sentimento de absurdo 

1.3 – O sujeito absurdo e o teatro de Nelson Rodrigues 

1.4 – As veredas do Grande Sertão e o absurdo roseano 

CAPÍTULO 2 – UM NOVO REFERENCIAL: A INFORMAÇÃO E O “HIBRIDISMO” DA LITERATURA 

       2.1 – Os “contos-reportagem” de Rubem Fonseca e a subversão dos valores sociais

2.2 – A palavra-imagem e o “teatro da dissolução” em Hotel Atlânticode João Gilberto Noll 

2.3 – As “caixas pretas” na literatura brasileira do final do século XX 

2.4 – O hibridismo na literatura regionalista da atualidade 

PARTE II 

CAPÍTULO 3 – AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA, HISTÓRIA E JORNALISMO 

3.1 – O surgimento do romance 

3.2 – Os primeiros jornais e a emergência da “razão prática” 

3.3 – O feuilleton francês e o folhetim brasileiro

3.4 – Imprensa e literatura na Belle Époque brasileira  

CAPÍTULO 4 – LITERATURA  VERSUS JORNALISMO: “DISPUTA DISCURSIVA” CONTEMPORÂNEA? 

     4.1 – O ceticismo nas relações entre literatura, História e jornalismo 

4.2 – Literatura, História e jornalismo em Machado de Assis: o olhar cético 

4.3 – O excêntrico Rubião: metade luxo, metade inculto

CONCLUSÃO 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

NOTAS 



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