Fantasmas da informatização. Observações sobre o Orkut
Isabel Pires
Nesta primeira década do século XXI, início também de um novo milênio, as antigas especulações sobre a essência do ser, a busca da Verdade transcendente e do sentido da existência, as tentativas de compreender a origem das coisas – pilares básicos da filosofia ocidental – cedem cada vez mais lugar à aceitação da dúvida, das incertezas e da ausência de respostas definitivas, num processo iniciado ainda no século XX, o século que talvez passe à história – ou melhor, à História – como o “século das incertezas”, quem sabe até, o “século da desrazão”. Num mundo cada vez mais tecnológico, a ciência abdicou de vez do papel de oferecer respostas, ampliando, ao contrário, o leque das já inúmeras questões.
Cercado por tantos simulacros, cópias, clones, imagens fantasmáticas as mais diversas, fadadas a transformar o ser humano em mero espectro de si mesmo, o indivíduo não mais se preocupa com “conceitos”. Os conceitos do Ser e da Verdade, formulados pela filosofia platônica, e até mesmo o conceito do não-Ser do sofista Górgia, pouco a pouco vão sendo soterrados na poeira do tempo. Diante da possibilidade – tangível para alguns, meramente fantasiosa para outros – dos andróides, diante da realidade dos clones e do espaço virtual surge não um novo conceito, mas um princípio: o princípio do “trans-humano”.
Na sociedade do simulacro, tudo é fantasma. Mas, como não podia deixar de ser, a nova “sociedade do simulacro”, com suas luminosas e fantasmáticas imagens, é a mesma velha sociedade burguesa-capitalista, responsável tanto por expulsar os sombrios fantasmas medievais, exorcizando-os com sua “razão iluminada”, como por engendrar, ainda nos seus primórdios, os novos fantasmas: os fantasmas tecnológicos.
No curso do século XVIII, a introdução da maquinofatura na Inglaterra deu vida ao primeiro fantasma tecnológico – o fantasma da mecanização –, quando as máquinas passaram a substituir, em larga escala, os teares manuais, pondo fim, assim, às guildas de artesãos e a um modo-de-produção que, decididamente, ficou para trás. Essa revolução industrial marcou a entrada definitiva do mundo “civilizado” – isto é, ocidental e europeu – na modernidade tecnológica e econômica.
Dos relatos de Marx, contidos no primeiro livro de O capital, fica-se sabendo que este “fantasma”, gerado a partir da nova tecnologia em vigor, causou muito estrago. A figura medieval do mestre-artesão, em torno da qual se agrupavam os aprendizes e jornaleiros, tornou-se obsoleta diante das exigências dos novos tempos. O modo-de-produção que começava a se instalar tampouco foi capaz de aproveitar os artesãos na indústria. A mão-de-obra industrial era arrebanhada na enorme massa de camponeses que, expropriada da terra pelos grandes proprietários para a criação de carneiros que alimentavam a nascente indústria têxtil, era colocada à disposição, em troca de ínfimos salários, do produtor industrial.
Novas configurações na esfera da produção, nas primeiras décadas do século XX, introduziram o mundo capitalista na era do capitalismo financeiro e da produção fortemente monopolizada, voltada, paradoxalmente, para o consumo de um mercado sem fronteiras (leia-se, por exemplo, Coca-cola). Aprofundado no pós-guerra, esse processo, conhecido como globalização, gerou os fantasmas da onipresença e da onipotência, traduzidos, na ficção, pelo Big Brother, de George Orwell, e na teoria, pela invisível rede do poder, de Michel Foucault.
Com a intensificação da informatização, a partir da segunda metade do século XX, o fantasma passou a atender pelo nome de Simulacro, e já assombrou tanto o campo da ficção como o da teoria, sendo que, neste último campo, o “papa” do simulacro é o francês Jean Baudrillard, autor de Simulacros e simulações.
Grosso modo, as ficções que tratam do simulacro podem ser agrupadas em dois segmentos básicos. No primeiro, o mundo não passaria de uma “projeção virtual”, resultante de um programa de computador – como pode ser visto, por exemplo, na trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski –, e os seres humanos seriam as vítimas da ilusão criada em seus cérebros por máquinas, para controlá-los e escravizá-los. No segundo segmento, o simulacro diz respeito não ao mundo mas aos próprios indivíduos, tornados meros andróides programados para substituir a humanidade e, assim, inaugurar um mundo livre das mazelas “humanas, demasiado humanas”.
Essa mesma informatização, que engendrou delírios tecnológicos como o menino-andróide David, do filme Inteligência Artificial, parece estar gerando novíssimos fantasmas. Um deles é o Orkut.
Situado num entrelugar que não é nem realidade nem ficção – o espaço virtual –, o “site de relacionamentos” Orkut, bem como outros afins, como MySpace e Friendster, permite, ao mesmo tempo, tanto a simulação do mundo quanto a dos indivíduos. Este “ponto de encontro on-line” tem por objetivo primordial “conectar pessoas”. Quanto mais pessoas conectadas, melhor. Melhor para o Orkut, claro, e não para as pessoas que, ao se conectarem a ele, deixam de ser propriamente pessoas para serem meros “perfis”.
Quando o Orkut surgiu, em 2004, os internautas conectavam-se a ele por meio de um “convite” eletrônico, recebido, também eletronicamente, de algum conhecido já devidamente “conectado”, criando-se, assim, a falsa ilusão de seletividade, de pertencer a um mundo único, uma “elite”. No entanto, essa “aura” era logo desarticulada no aviso de que “Você está conectado a X milhares de pessoas”, e ainda no convite um tanto intimidador: “aumente a sua rede de amigos agora mesmo!”. Atualmente, é possível criar perfis no Orkut sem necessidade do tal convite, bastando para isso apenas um endereço eletrônico, um email qualquer.
No Orkut, a “esfera do público” e a “esfera do privado”, duramente teorizadas por autores de peso, como Habermas, simplesmente não existem. Ou melhor, não são “esferas”, e muito menos separadas. Tudo é público e tudo é privado ao mesmo tempo. Há os “perfis” individuais que, além de informações particulares, possuem espaços para “depoimentos de fãs”, “recados” e “álbum de fotografias”, e há as “comunidades”, as quais os “perfis” também podem se conectar, tornando-se “membros”, e participar de “fóruns” em que nada é debatido.
Embora volta e meia surjam na mídia notícias sobre coisas escabrosas – e ilegais – ligadas ao Orkut, como tráfico de drogas, crimes premeditados, etc., para cuja prática são utilizados “perfis falsos”, a comunidade on line, assim como suas concorrentes pelo mundo afora, oferece um mundo ideal, feito de fotos digitais e comentários piegas, atrás do qual se esconde uma gigantesca montanha financeira. Controvérsias sobre seus supostos benefícios à parte, como fazer amigos, encontrar pessoas, parceiros profissionais, etc., o fato é que o Orkut tornou-se, para muitos pais, o fantasma do momento, que vêem, impotentes, o tempo de estudo dos filhos ser indevidamente tomado, ou “orkutado”, como já o foi um dia pela agora inofensiva televisão.
Nesta primeira década do século XXI, início também de um novo milênio, as antigas especulações sobre a essência do ser, a busca da Verdade transcendente e do sentido da existência, as tentativas de compreender a origem das coisas – pilares básicos da filosofia ocidental – cedem cada vez mais lugar à aceitação da dúvida, das incertezas e da ausência de respostas definitivas, num processo iniciado ainda no século XX, o século que talvez passe à história – ou melhor, à História – como o “século das incertezas”, quem sabe até, o “século da desrazão”. Num mundo cada vez mais tecnológico, a ciência abdicou de vez do papel de oferecer respostas, ampliando, ao contrário, o leque das já inúmeras questões.
Cercado por tantos simulacros, cópias, clones, imagens fantasmáticas as mais diversas, fadadas a transformar o ser humano em mero espectro de si mesmo, o indivíduo não mais se preocupa com “conceitos”. Os conceitos do Ser e da Verdade, formulados pela filosofia platônica, e até mesmo o conceito do não-Ser do sofista Górgia, pouco a pouco vão sendo soterrados na poeira do tempo. Diante da possibilidade – tangível para alguns, meramente fantasiosa para outros – dos andróides, diante da realidade dos clones e do espaço virtual surge não um novo conceito, mas um princípio: o princípio do “trans-humano”.
Na sociedade do simulacro, tudo é fantasma. Mas, como não podia deixar de ser, a nova “sociedade do simulacro”, com suas luminosas e fantasmáticas imagens, é a mesma velha sociedade burguesa-capitalista, responsável tanto por expulsar os sombrios fantasmas medievais, exorcizando-os com sua “razão iluminada”, como por engendrar, ainda nos seus primórdios, os novos fantasmas: os fantasmas tecnológicos.
No curso do século XVIII, a introdução da maquinofatura na Inglaterra deu vida ao primeiro fantasma tecnológico – o fantasma da mecanização –, quando as máquinas passaram a substituir, em larga escala, os teares manuais, pondo fim, assim, às guildas de artesãos e a um modo-de-produção que, decididamente, ficou para trás. Essa revolução industrial marcou a entrada definitiva do mundo “civilizado” – isto é, ocidental e europeu – na modernidade tecnológica e econômica.
Dos relatos de Marx, contidos no primeiro livro de O capital, fica-se sabendo que este “fantasma”, gerado a partir da nova tecnologia em vigor, causou muito estrago. A figura medieval do mestre-artesão, em torno da qual se agrupavam os aprendizes e jornaleiros, tornou-se obsoleta diante das exigências dos novos tempos. O modo-de-produção que começava a se instalar tampouco foi capaz de aproveitar os artesãos na indústria. A mão-de-obra industrial era arrebanhada na enorme massa de camponeses que, expropriada da terra pelos grandes proprietários para a criação de carneiros que alimentavam a nascente indústria têxtil, era colocada à disposição, em troca de ínfimos salários, do produtor industrial.
Novas configurações na esfera da produção, nas primeiras décadas do século XX, introduziram o mundo capitalista na era do capitalismo financeiro e da produção fortemente monopolizada, voltada, paradoxalmente, para o consumo de um mercado sem fronteiras (leia-se, por exemplo, Coca-cola). Aprofundado no pós-guerra, esse processo, conhecido como globalização, gerou os fantasmas da onipresença e da onipotência, traduzidos, na ficção, pelo Big Brother, de George Orwell, e na teoria, pela invisível rede do poder, de Michel Foucault.
Com a intensificação da informatização, a partir da segunda metade do século XX, o fantasma passou a atender pelo nome de Simulacro, e já assombrou tanto o campo da ficção como o da teoria, sendo que, neste último campo, o “papa” do simulacro é o francês Jean Baudrillard, autor de Simulacros e simulações.
Grosso modo, as ficções que tratam do simulacro podem ser agrupadas em dois segmentos básicos. No primeiro, o mundo não passaria de uma “projeção virtual”, resultante de um programa de computador – como pode ser visto, por exemplo, na trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski –, e os seres humanos seriam as vítimas da ilusão criada em seus cérebros por máquinas, para controlá-los e escravizá-los. No segundo segmento, o simulacro diz respeito não ao mundo mas aos próprios indivíduos, tornados meros andróides programados para substituir a humanidade e, assim, inaugurar um mundo livre das mazelas “humanas, demasiado humanas”.
Essa mesma informatização, que engendrou delírios tecnológicos como o menino-andróide David, do filme Inteligência Artificial, parece estar gerando novíssimos fantasmas. Um deles é o Orkut.
Situado num entrelugar que não é nem realidade nem ficção – o espaço virtual –, o “site de relacionamentos” Orkut, bem como outros afins, como MySpace e Friendster, permite, ao mesmo tempo, tanto a simulação do mundo quanto a dos indivíduos. Este “ponto de encontro on-line” tem por objetivo primordial “conectar pessoas”. Quanto mais pessoas conectadas, melhor. Melhor para o Orkut, claro, e não para as pessoas que, ao se conectarem a ele, deixam de ser propriamente pessoas para serem meros “perfis”.
Quando o Orkut surgiu, em 2004, os internautas conectavam-se a ele por meio de um “convite” eletrônico, recebido, também eletronicamente, de algum conhecido já devidamente “conectado”, criando-se, assim, a falsa ilusão de seletividade, de pertencer a um mundo único, uma “elite”. No entanto, essa “aura” era logo desarticulada no aviso de que “Você está conectado a X milhares de pessoas”, e ainda no convite um tanto intimidador: “aumente a sua rede de amigos agora mesmo!”. Atualmente, é possível criar perfis no Orkut sem necessidade do tal convite, bastando para isso apenas um endereço eletrônico, um email qualquer.
No Orkut, a “esfera do público” e a “esfera do privado”, duramente teorizadas por autores de peso, como Habermas, simplesmente não existem. Ou melhor, não são “esferas”, e muito menos separadas. Tudo é público e tudo é privado ao mesmo tempo. Há os “perfis” individuais que, além de informações particulares, possuem espaços para “depoimentos de fãs”, “recados” e “álbum de fotografias”, e há as “comunidades”, as quais os “perfis” também podem se conectar, tornando-se “membros”, e participar de “fóruns” em que nada é debatido.
Embora volta e meia surjam na mídia notícias sobre coisas escabrosas – e ilegais – ligadas ao Orkut, como tráfico de drogas, crimes premeditados, etc., para cuja prática são utilizados “perfis falsos”, a comunidade on line, assim como suas concorrentes pelo mundo afora, oferece um mundo ideal, feito de fotos digitais e comentários piegas, atrás do qual se esconde uma gigantesca montanha financeira. Controvérsias sobre seus supostos benefícios à parte, como fazer amigos, encontrar pessoas, parceiros profissionais, etc., o fato é que o Orkut tornou-se, para muitos pais, o fantasma do momento, que vêem, impotentes, o tempo de estudo dos filhos ser indevidamente tomado, ou “orkutado”, como já o foi um dia pela agora inofensiva televisão.
2 Comments:
Olá. Como posso entrar em contato com você? Algum email?
Att,
olá. Meu email é isabelvpires@yahoo.com.br
Att
Isabel
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