Thursday, April 12, 2012

Brecht - Um modelo para o Teatro Épico

Após a Primeira Guerra Mundial, um método teatral relativamente novo foi tentado em alguns teatros alemães, durante 15 anos. Um método denominado épico por causa das possibilidades de descrição e referência que abriu, devido a características técnicas específicas, como comentários de coros e projeções escritas. Por meio de uma técnica não muito simples, os atores se colocam à distância do papel representado e a situação dramática é mostrada de um ponto de vista a partir do qual eles foram compelidos a se tornarem o objeto da crítica dos espectadores. Os defensores do Teatro Épico pretendiam que o novo sujeito da questão – a complicação do conflito de classes no momento do seu mais terrível clímax – pudesse ser mais facilmente controlado deste modo; assim, o processo social poderia ser apresentado juntamente com suas conexões casuais. Entretanto, tais experimentos trouxeram dificuldades para a teoria estética – muitas dificuldades.

É relativamente fácil estabelecer um modelo para o Teatro Épico. Quando trabalho com atores, costumo escolher um evento que pudesse ter acontecido em alguma esquina de rua, como exemplo de simplicidade, por assim dizer “natural”, do Teatro Épico: alguém que viu um acidente de trânsito apresenta o fato apreendido por ele como o desastre de fato ocorrido. Os espectadores podem não ter visto o acidente, ou podem tê-lo visto, mas “sob uma luz diferente” – o ponto essencial é que as testemunhas construam as ações do motorista ou da vítima, ou de ambos, de modo que os espectadores possam formar uma opinião a respeito do acidente.

Este exemplo da mais primitiva espécie de Teatro Épico pode ser facilmente compreendido. Mas deve-se tomar uma demonstração de esquina de rua como um modelo básico do grande teatro, o teatro de uma era científica? Se o leitor (ou ouvinte) decide que sim, e se ele compreende todas as implicações disto, irá se defrontar, podemos constatar, com assombrosas dificuldades. O modelo básico do grande teatro: isto significa que o Teatro Épico pode, em toda sua especificidade, ser rico, complicado, altamente desenvolvido, mas que não requer outro constituinte fundamental, além de uma demonstração de rua, como condição para ser um grande teatro e que, em contrapartida, não pode ser chamado de Teatro Épico, se algum dos principais constituintes da demonstração de rua estiver ausente. De modo que uma demonstração supre suficientemente um modelo para um grande teatro: até mesmo a inovação e a “intradicionalidade” desta afirmação são compreendidas, sem mencionar a provocação incondicional que oferece à crítica, a qual não pode realmente ser entendida.

Consideremos. O “evento” não é manifestamente a menor parte daquilo que compreendemos por um evento artístico. O demonstrador não precisa ser um artista. O que ele deve fazer para realizar seu objetivo, qualquer um, por propósitos práticos, pode fazer. Se ele não consegue reproduzir um movimento tão rápido quanto a vítima do acidente que está imitando, pode apenas dizer, por meio de uma explanação, “ele se moveu três vezes mais rápido”, que sua demonstração não será prejudicada. Nada se perde; antes, uma determinada limitação fortalece sua performance. A demonstração poderá sofrer interferências, se a sua habilidade transformá-la em algo diverso daquilo que foi anunciado. Ele tem de evitar com que todos gritem: “Aquele é o chofer! Como é real!”. Seu trabalho não é lançar encantamentos sobre ninguém. O demonstrador não pode tirar ninguém de sua vida diária e isolá-lo em uma “alta esfera”, nem tem de possuir poderes especiais de sugestão.

O fato decisivo é que a principal característica do teatro convencional está ausente da nossa cena de rua: a criação de ilusão. O procedimento do nosso demonstrador é, essencialmente, repetir algo. O incidente tem um lugar, a repetição é localizada. Se a cena teatral seguir a cena de rua neste aspecto, o teatro não estará longe de ocultar o fato de ser teatro, mais do que a demonstração da esquina da rua oculta o fato de que é apenas uma demonstração, mas pretende ser o incidente real. O fato de que a ação sofreu um reexame é bastante aparente. Assim é, de fato, o texto que foi decorado. Assim é o aparato do palco, toda a preparação. O que, então, vem a ser a “experiência”? É o momento atual que é apresentado, não uma “experiência” total? A cena de rua determina que a experiência que o espectador obtém deva ser semelhante. Sem dúvida, nosso demonstrador possui uma experiência anterior, mas ele não faz de sua demonstração uma “experiência” para a audiência. Apenas em parte ele usa igualmente a experiência do motorista e sua vítima. De outro lado, ele tenta torná-la uma experiência agradável para o espectador, entretanto, em grande parte, ele mesmo pode fazer a demonstração. Por exemplo: sua demonstração nada perde em valor se ele não reproduz o terror que o acidente suscitou; ela perderá, certamente, se ele o fizer. Ele não é um mero produtor de emoções. Acompanhá-lo em tudo isto é mudar completamente a função do teatro. Devemos estar de acordo sobre este ponto.

Nosso demonstrador não é, por assim dizer, contrário a todas as emoções que sua própria atuação produz, mas ele não as transmite simplesmente para a audiência. Geralmente, ele se posiciona e cria um modo, ou quadro mental, adaptado à sua interpretação do caso. As emoções e interpretações – e elas existem – que surgem em seu caminho, ele as combate interrompendo sua atuação e começando a debater. E então retoma a apresentação que foi mantida deste modo sob discussão.

O essencial para a cena de rua (e, deste modo, para a cena teatral também, se ela é considerada Épica) é a circunstância de que a demonstração possui um sentido socialmente prático. Se o nosso demonstrador deseja mostrar que um acidente é inevitável quando um pedestre ou um motorista comporta-se de certa forma, e evitável quando ele comporta-se de outra forma, ou se ele deseja mostrar o culpado, sua demonstração é prática em sua intenção, possui um sentido social.

De que modo a imitação pode ser completa? Isto depende totalmente do objetivo da demonstração. Nosso demonstrador não precisa copiar tudo o que as pessoas fizeram. Ele necessita apenas copiar algo, o suficiente para formar um quadro, uma imagem. A cena teatral geralmente forma muito mais do que uma imagem completa, de acordo com o leque dos seus interesses. Qual é, então, a conexão entre a cena de rua e o teatro? A voz do homem que estava correndo (para tomar um simples detalhe) pode não ter tomado parte no acidente. Contudo, uma diferença de opinião entre as testemunhas quanto ao grito “Guarda!” que eles ouviram ter sido da vítima ou de algum transeunte pode justificar a imitação de voz feita por nosso demonstrador. A demonstração mostrará que a voz era de um velho ou de uma mulher, ou pelo menos que era alta ou baixa: e assim a questão se decide. O poder da resposta, entretanto, depende de ter sido, a voz, de um homem educado ou não. Um tom “estridente” ou “suave” pode ser determinante para decidir se o motorista é mais ou menos culpado. Uma variedade de aspectos sobre a vítima também é relevante para a apresentação. O que a preocupava? Algo distraiu sua atenção? Se assim foi, o que houve, considerando-se todas as possibilidades? O que havia em seu comportamento que possa mostrar que ela se distraiu devido a uma determinada circunstância e não a outra? Etc., etc. Como se vê, nosso exercício da esquina da rua propicia a oportunidade para uma pintura certamente rica e múltipla dos homens. Contudo, um teatro que não deseje ir, em essência, além dos limites de nossa cena de rua, deve reconhecer certas limitações em sua imitação da vida.[1] O propósito serviu para justificar o preço pago.

Suponhamos que a demonstração seja abordada pelo ponto de vista dos “prejuízos”. O chofer tem medo de ser demitido, de ter sua licença cassada, de ser preso. A vítima tem medo de adoecer, de ir para um hospital, de perder o emprego, de ficar incapacitada – possibilidades inconvenientes para o trabalho. De tal modo é o campo de atuação do nosso demonstrador e suas características. A vítima podia estar acompanhada; o chofer podia estar com sua garota sentada ao seu lado. Tudo isto traz o fator social para a cena e, assim, os caracteres podem ser mais ricamente retratados.

Outro elemento essencial para a cena de rua é que o nosso demonstrador derive os seus caracteres inteiramente da ação deles. Ele imita suas ações e, deste modo, nos permite julgá-las. Um teatro que seguir este aspecto estará rompendo completamente com a prática do teatro convencional, que deriva as ações do caráter. Deste modo, o teatro convencional protege suas ações da crítica, pois elas são apresentadas como procedentes, inelutáveis, de acordo com as leis da natureza e, por fim, derivadas do caráter daqueles que as realizam. Para o nosso demonstrador, por outro lado, o caráter do homem demonstrado é algo que ele não precisa estimar com exatidão. Dentro de certos limites, este homem só pode ser de tal maneira, e isto não faz diferença. O demonstrador se interessa por coisas que acontecem, como acidentes de rua (todas as pessoas em cujo caráter se encontram as condições que ele formula, quem apresenta os traços que ele imita, induzirão à mesma situação).

Um personagem de teatro pode ser mais definidamente um indivíduo. Consequentemente, o teatro precisa estar numa posição de dizer que o seu “indivíduo” é um caso especial, e indicar as circunstâncias em que os processos sociais relevantes existem. Aquilo que a nossa demonstração pode apresentar é numericamente limitado: não escolhemos o modelo como uma prescrição para os nossos estreitos limites. Se o teatro deve ser mais “rico” do que a nossa cena de rua – e, contudo, não está, em essência, acima dela –, o dramaturgo terá de ter know how para encontrar muito no pouco. Ele não pode, de certa forma, adicionar mais riqueza, mas pode ser esperto para usar toda a riqueza disponível. A questão dos limites com os quais ele trabalha – os casos extremos – torna-se aguda.

Tomemos um detalhe. O nosso demonstrador poderia apresentar, durante horas, num tom excitado, as alegações do motorista, sem ficar exausto? (geralmente, não – ninguém, a não ser um mensageiro reportando para o seu povo uma entrevista com o rei, pode começar com: “Eu vi o rei barbado”). Uma situação precisa parecer um pouco com uma demonstração de esquina de rua, a qual, em virtude de ser tão pouco excitante (cerca de longas horas, etc.), deve ter encenada apenas uma parte específica. Feito isto, o tom não apenas pode, mas precisa ser excitado (continuando o exemplo acima, a cena pode permitir uma excitação se, por exemplo, o rei tiver jurado deixar sua barba como estava, até ele... etc.). Temos de adotar um ponto de vista a partir do qual o nosso demonstrador possa ceder sua pouca excitação à crítica. Somente quando assume um ponto de vista definitivo, nosso demonstrador pode se permitir imitar o tom excitado do motorista, notadamente se ele, por exemplo, ataca os motoristas por estes fazerem tão pouco para encurtar suas horas de trabalho (“Eles são desunidos, mas se algo dá errado, ficam exaltados! ‘Eu estive ao volante por dez horas...’”).

Se o teatro faz isto, ou seja, se, deste modo, está apto a oferecer ao ator um “ponto de vista”, terá de valer-se de alguns expedientes. Se o teatro pode excluir um largo aspecto na apresentação do motorista em mais algumas situações (e não apenas na situação do acidente de rua), em princípio, ele ainda não está indo além do modelo. Está apenas engendrando outra situação da mesma espécie do modelo. Uma cena do mesmo tipo da cena de rua permite demonstrar, com suficiente motivação, quanto emocionada parece a reclamação do motorista – ou de alguém que faz a comparação de vozes (como cadência, etc.). Para manter-se nos limites do modelo, o teatro deve apenas desenvolver constantemente a técnica pela qual as emoções são subordinadas à crítica do espectador. Isto, claro, não indica que o espectador está, a princípio, impedido de tomar parte em certas emoções que estão sendo representadas; mas, apesar delas, ele as critica; de fato, o taking off é uma forma especial (em consequência, uma fase) do criticismo. O demonstrador – no teatro, o ator – precisa empregar uma técnica pela qual ele pode apresentar o tom de voz da pessoa representada com certa reserva, certo distanciamento (permitindo ao espectador dizer: “Agora ele está excitado, não é comum, ainda que tarde, no final”, etc.). Em resumo, o ator precisa permanecer um demonstrador, apresentando a pessoa representada como uma pessoa diferente. Ou seja, ele não deve deixar fora da apresentação o “ele fez isto, ele disse aquilo”, mas não precisa se transformar completamente na pessoa representada.

Um elemento essencial da cena de rua consiste na atitude natural que o demonstrador assume – num duplo sentido. Ele deve contar sempre com duas situações: de um lado, age naturalmente como demonstrador (D1) e, de outro lado, permite à pessoa demonstrada (D2) agir naturalmente. Ele nunca esquece que não é D2, mas D1. Ou seja, aquilo que a audiência vê não é uma fusão de D1 e D2, um D3 independente, em que os contornos de D1 e D2 se perdem e do qual todas as contradições são eliminadas (claro que é isto o que fazemos no teatro moderno: Stanislavsky desenvolveu a idéia – e muito claramente). As opiniões e percepções de D1 e D2 não são coordenadas.

Podemos passar agora para um dos elementos especiais do Teatro Épico, o chamado efeito-A (efeito de alienação).[2] Resumidamente, este efeito deve fazer com que a técnica permita que, nos eventos humanos, possa ser apresentada a marca da distinção, em que algumas coisas requerem uma explicação, algumas não tão óbvias ou não tão somente naturais. O objetivo do efeito-A é fazer do espectador um crítico ativo da sociedade. Podemos mostrar o que este efeito-A significa para o nosso demonstrador da esquina de rua?

Imaginemos o que aconteceria se ele falhasse ao representar sem o efeito-A. A seguinte situação poderia acontecer. Um espectador poderia dizer: “Se a vítima, como você dá a entender, parou fora da rua à sua direita, não à sua esquerda, então...”. Nosso demonstrador poderia interrompê-lo e dizer: “Eu mostrei que ele parou fora, à esquerda”. Na discussão sobre o que houve, em sua demonstração, ele realmente parou à esquerda (ou direita), tal como fez a vítima. Assim, a demonstração pode ser tão diferente que o efeito-A se realiza. Agora o demonstrador atenta cuidadosamente para os movimentos, e executa-os também cuidadosamente, provavelmente numa lenta cadência, apresentando-os fora do efeito-A, que o “aliena” desta parte da ação, sublinhando toda a sua importância e tornando-o notável. Deste modo, o efeito-A prova ser útil, mesmo para o demonstrador da esquina de rua. Em outras palavras, ele ocorre até mesmo nas cenas mais banais, que pouco têm a ver com arte.

Mais facilmente reconhecível como elemento de alguma demonstração de rua é a imediata transição que pode ser feita da apresentação ao comentário, transição essa característica do Teatro Épico. O demonstrador, como frequentemente acontece, interrompe sua imitação com explicações. Os coros e as projeções do Teatro Épico, dirigindo-se diretamente à audiência, são exatamente interrupções desta mesma espécie.

Notar-se-á, acredito que não sem assombro, que eu não tenho chamado alguns dos constituintes da nossa cena de rua – ou, se se preferir, do nosso teatro – de artístico. Nosso demonstrador pode tornar a sua demonstração suficientemente bem sucedida com habilidades que, por objetivos práticos, todos possuem. O que é o valor artístico do Teatro Épico?

Não é acidental que o Teatro Épico esteja preocupado em construir o seu modelo a partir de uma demonstração de esquina de rua, ou que utilize a simplicidade, o teatro “natural”, para uma tarefa social cujas causas, significados e fins são práticos e terrenos. O modelo pode obter sucesso sem recorrer a explanações da arte teatral como “a urgência de autoexpressão”, “fazer do destino do outro o seu próprio”, “uma experiência do espírito”, “o impulso de diversão”, “o amor pela arte de contar estórias”, etc. O Teatro Épico, então, não interessa à arte?

Devemos ser sábios para que possamos colocar a questão de modo diferente: podemos utilizar habilidades artísticas para os propósitos de nossa cena de rua e, igualmente, para o nosso teatro? Sim, podemos. As energias artísticas estão à espreita, mesmo numa demonstração de esquina de rua. Existe uma capacidade artística em todos. Não se pode esquecer este ponto quando se falar de grande teatro. Sem dúvida, as habilidades que denominamos artísticas podem sempre ser chamadas à cena dentro dos limites estabelecidos em nosso modelo. Elas funcionarão como habilidades artísticas, mesmo quando não ultrapassam esses limites (e. g., quando uma total transformação de D1 em D2 tem lugar). Atualmente, o Teatro Épico não é concebível sem artistas e sem talento. Fantasia, humor, simpatia – sem estes e outros elementos semelhantes, ele não pode ser praticado. Deve ser entretenimento e, ao mesmo tempo, também deve ser instrutivo. Agora, como pode a arte se desenvolver, fora dos elementos da nossa cena de rua, sem nenhum elemento externo, sem adicionar nenhum elemento novo? Um teatro pode progredir – com o seu enredo inventado, seus atores treinados, seu discurso elevado, sua maquiagem, sua combinação de muitos atores? A demonstração “natural” deve ser suplementada por outras coisas, se procedemos dela para a demonstração “artística”? Não são as extensões do modelo que capacita-nos a alcançar mudanças fundamentais no Teatro Épico? Uma ideia momentânea pode nos convencer do contrário.

Tomemos o enredo da história. Nosso acidente de trânsito não foi inventado. Mas o teatro, como se sabe, não se ocupa exclusivamente de matéria inventada. Existem as peças históricas. Mesmo numa esquina de rua, uma história pode acontecer. Nosso demonstrador pode facilmente dizer: “O motorista é culpado, pois aconteceu tal como mostrei. Ele não seria culpado, se tivesse feito o que eu mostrarei agora”. E ele pode compor uma história e “demonstrá-la”.

Tomemos a memorização de um papel. Nosso demonstrador pode ser uma testemunha do processo. Ele pode decorar e estudar o exato modo de falar da pessoa sob juízo, cujo comportamento ele irá testemunhar. Ele pode apresentar perante a corte palavras que foram escritas, num papel previamente decorado.

Tomemos a preparação de um número de demonstradores. De tal modo uma demonstração combinada não tem, em si mesma e invariavelmente, objetivos artísticos. Pensemos na prática da polícia francesa: os policiais ordenam, na delegacia, que os principais participantes de um crime “resumam” certas situações decisivas.

Tomemos a maquiagem e a máscara. Pequenas modificações na aparência – um apanhado do cabelo, por exemplo, pode facilmente ser usado no âmbito de alguma demonstração não artística. Não se usa maquiagem somente no teatro. O bigode do motorista (para retornar à nossa esquina de rua) deve possuir um significado definido. Ele pode influenciar o depoimento da garota que dissemos que pode ter estado com ele. Nosso demonstrador pode trazer esta ideia para a sua demonstração, pelo fato de ter o motorista afagado uma barba imaginária quando se apressava em evidenciar que estava em companhia feminina. Desta forma, o demonstrador pode subtrair uma boa parte do valor do depoimento da testemunha. Passar daqui para o uso de uma barba real no teatro envolve, claro, uma pequena dificuldade – que também é percebida no caso da demonstração de rua. Nosso demonstrador pode, sob certas circunstâncias, colocar o chapéu do motorista – por exemplo, se deseja mostrar que ele estava bêbado (ele traz o chapéu torto). Sob certas circunstâncias, mas nem sempre – consideramos a passagem acima em casos extremos. Claro que, numa demonstração combinada com muitas pessoas (como mencionado), devemos usar trajes que nos permita distinguir as pessoas demonstradas. Trajes, sim – mas também com certos limites. A ilusão de que D1 = D2 não deve ser criada (o Teatro Épico pode impedir esta ilusão, exagerando especialmente os trajes e utilizando roupas que tenham a marca “teatral”). Além do mais, podemos estabelecer um modelo básico que, neste aspecto, substitui o outro, notadamente a demonstração dos ambulantes de rua. Ao vender gravatas, essas pessoas apresentam não apenas os homens mal vestidos, mas também os almofadinhas. Com um par de adereços e um pouco de truques, eles executam uma pequena cena sugestiva – na qual encaram as mesmas limitações que a nossa cena de acidente impôs ao nosso demonstrador (eles apanham gravata, chapéu, bengala, luvas e fazem uma sugestiva “cópia” de um homem do mundo, falando dele, e, além disso, como ele). Entre os vendedores de rua, também encontramos a utilização de versos com a mesma estrutura imposta pelo nosso modelo. Eles usam firmes ritmos irregulares, quer sejam jornais ou suspensórios aquilo que estão vendendo (ver Brecht: Líricas sem rima em ritmos irregulares).

Tais considerações mostram que podemos obter sucesso com o nosso modelo. Não existem diferenças básicas entre o teatro natural épico e o Teatro Épico artístico.

Nosso teatro da esquina de rua é primitivo. No tocante ao motivo, objetivo e significado, ele não avança muito. Mas é, incontestavelmente, um “evento” siginificativo. Sua função social é evidente. E ele controla todas as suas partes. A atuação é ocasionada por um incidente que está aberto a mais de uma interpretação, que de um modo ou de outro pode ser repetido, e que ainda não é um livro fechado, mas é consequente. Por isso, nossa opinião a seu respeito realmente interessa. Ela objetiva que a atuação faça uma tranquila consideração do incidente. Os meios correspondem aos fins. O Teatro Épico é um teatro totalmente artístico, com um complicado conteúdo e, adicionalmente, com um fim social em vista. Ao estabelecer a cena de rua como um modelo para o Teatro Épico, assinalamos a sua clara função social, ao mesmo tempo em que fixamos critérios para considerar os eventos sob exame significativos ou não. Entre as questões (frequentemente difíceis) sobre passagens particulares, entre todos os problemas, artísticos e sociais, que surgem quando uma atuação é preparada, o modelo épico coloca diretores e atores numa posição de exercício do controle com vistas a que a função social da totalidade do sistema permaneça clara e intacta.




Notas:
[1] Frequentemente, constatamos que demonstrações corriqueiras são imitações mais completas do que o nosso acidente de rua deve ser. Elas são mais cômicas. Nossos vizinhos (homens ou mulheres) podem imitar a ganância do nosso proprietário. Imitações desta espécie são mais abundantes, variadas. Uma investigação mais acirrada provará, entretanto, que mesmo uma imitação convenientemente mais complexa é apenas um meio de “pisar em um calo” particular. A imitação é um grupo de coisas, um segmento de uma realidade total, da qual os momentos em que os proprietários são “absolutamente racionais” são inteiramente omitidos – naturalmente, existem momentos deste tipo. Nosso vizinho está muito longe de oferecer um quadro completo: ele não poderia ter um efeito cômico. O teatro, que exclui um segmento grosseiro, incorre aqui em dificuldades que não devem ser censuradas. Ele, também, nos permite criticar o que demonstra – mas demonstra eventos muito mais complexos. E deve permitir-nos ser igualmente críticos positivos e negativos. Deve-se compreender o que significa obter a aceitação da audiência pela crítica. Nós temos modelos, claro, em nossa cena de rua, que é, entre todos os tipos de demonstração, a mais comum. Nosso vizinho e nosso demonstrador podem reproduzir o comportamento “racional” de alguém, bem como o seu comportamento “irracional”, apresentando-os ao nosso discernimento. Mas eles necessitam especificamente de comentários mediante os quais possam mudar o foco de sua apresentação – no caso, algumas coisas surgem durante a ação, os homens racionais tornam-se irracionais ou vice-versa. Aqui, o teatro enfrenta dificuldades (ver Brecht: Um Novo Estilo de Ação).
[2] Em alemão, V-Effekt, Verfremdungseffekt.







(Traduzido do inglês por Isabel Pires)