Os cem contos que amei ler V (os últimos 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.
81. O Homem da Areia (E. T. A. Hoffmann)
82. O gato preto (Edgar A. Poe)
83. Sem olhos (Machado de Assis)
84. Os olhos que comiam carne (Humberto de Campos)
85. As rosas (Júlia Lopes de Almeida)
86. Onde estivestes de noite (Clarice Lispetor)
87. Crianças à venda. Tratar aqui (Rosa Amanda Strausz)
88. O horrível – conto de horror (Guy de Maupassant)
89. O encontro (Lygia Fagundes Telles)
90. O defunto (Thomaz Lopes)
91. Fechado na catacumba (H. P. Lovecraft)
92. O barril de Amontillado (Edgar A. Poe)
93. Uma amizade sincera (Clarice Lispector)
94. A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain (Marina Colasanti)
95. Família (Magali Garcindo de Sá)
96. WM (Lygia Fagundes Telles)
97. Gaetaninho (Antônio de Alcântara Machado)
98. Intestino grosso (Rubem Fonseca)
99. Conversa de bois (Guimarães Rosa)
100. O alienista (Machado de Assis)
O Homem da Areia
E. T. A. Hoffmann
Natanael para Lothar
Vocês devem estar bem
preocupados, pois não lhes escrevo há muito tempo. Minha mãe deve estar
zangada. Clara deve estar pensando que vivo num turbilhão de prazeres e que
esqueci inteiramente sua figura angelical e doce, impressa de forma profunda em
meu coração e em minha mente.
Mas não é nada disso.
Todos os dias, a cada hora, penso em vocês e a encantadora figura de Clara
aparece e torna aparecer em meus devaneios. Seus olhos límpidos sorriem para
mim com tanta graça quanto antigamente, assim que eu entrava em casa. Mas como
poderia lhe escrever com esta violenta perturbação de espírito que me destrói a
mente?
Uma coisa horrível
aconteceu comigo! Pressentimentos inquietante, terríveis, ameaçadores,
passam-me pela cabeça…
Se – pelo menos –
você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios olhos. Mas, tenho certeza,
vai pensar que sou um louco visionário. Para ser breve: a pavorosa visão que
tive, e cuja fatal influência tento em vão descartar, consiste simplesmente em
ter visto – no dia 30 de outubro, ao meio-dia – um vendedor de barômetros, que
entrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumentos. Além de não ter comprado
nada, ameacei jogá-lo pelas escadas abaixo, no que partiu bem depressa.
Você pode imaginar:
unicamente circunstâncias muito particulares – e que me marcaram bem lá por
dentro – poderiam ter feito com que esse pequeno acontecimento tenha se tornado
importante. O que é verdade. Estou juntando todas as forças para lhe contar,
com calma e paciência, alguns fatos da minha infância que lhe esclarecerão tudo.
Agora, ao começar a
narrativa, posso ouvir você rindo e Clara dizendo:
Isto é criancice!
Pode rir, eu lhe
peço. Pode debochar de mim, eu lhe peço. Mas Deus do céu!... Meus cabelos ficam
de pé e tenho a impressão de que se suplico a você para debochar de mim é
porque estou em crise de desespero, de loucura, igual à de Franz Moor ao
suplicar a Daniel. Mas vamos aos fatos.
Fora da hora das
refeições, quase não víamos papai, sempre muito ocupado com seu trabalho.
Depois do jantar, servido às sete horas, à moda antiga, íamos com mamãe ao
gabinete de papai e nos sentávamos em volta da mesa redonda.
Papai fumava,
enquanto bebia grandes copos de cerveja. Às vezes, contava histórias
maravilhosas, ficando tão distraído que o cachimbo se extinguia. Cabia a mim a
tarefa de acendê-lo com um pedaço de papel, o que me divertia bastante. Outras
vezes, nos dava livros ilustrados, permanecendo imóvel e silencioso em sua poltrona,
soprando nuvens espessas de fumo, que nos envolviam como nevoeiro. Nestas
noites, mamãe ficava muito triste e às nove horas em ponto nos dizia:
– Vamos para a cama,
crianças. O Homem da Areia está chegando, posso ouvir seus passos.
Realmente, eu também
escutava aquele passo lento, arrastado, subir os degraus. Era o Homem da Areia.
Certa vez, o barulho me amedrontou demais e perguntei à mamãe, que nos
acompanhava:
– Mamãe, quem é esse Homem
da Areia que sempre nos separa do papai? Como é que ele é?
– Meu querido, não
existe nenhum Homem da Areia – respondeu mamãe. – Quando eu digo o Homem da
Areia está chegando, quero dizer apenas que vocês estão com sono sem conseguir
mais ficar com os olhos abertos, como se tivessem jogado areia em seus olhos.
A resposta não me
deixou satisfeito. Pouco a pouco, minha imaginação de criança me fez acreditar
que mamãe nos dizia aquilo para não ficarmos amedrontados, pois eu continuava a
ouvir o Homem da Areia subindo os degraus. Cheio de curiosidade, querendo saber
mais a respeito dele e do que queria conosco, crianças, perguntei por fim à
velha governanta de minha irmãzinha quem era mesmo o Homem da Areia.
– Pois é, meu pequeno
Natanael, então você não sabe? É um homem mau, que vem procurar as crianças que
não querem ir para a cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam
ensanguentados, e os apanha, os enfia numa bolsa, e os carrega para a lua para
alimentar seus netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos
recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não são
boazinhas.
Desde então, a imagem
do Homem da Areia ficou gravada em meu espírito com cores atrozes. À noite, era
só ouvir o ruído de passos e eu tremia angustiado, com pavor. Mamãe só conseguia
arrancar de mim um grito, misturado ao meu choro:
– O Homem da Areia! O
Homem da Areia!
Corria, me refugiando
no quarto, e a terrível aparição do Homem da Areia me torturava a noite
inteira. Mais tarde, quando já tinha idade para saber que a história do Homem
da Areia, de seus netinhos e do ninho na lua, não era verdadeira, continuei
apavorado, com horror e repugnância, cada vez que eu escutava seus passos
subindo os degraus até o gabinete de papai e o bater violento da porta se
fechando.
Às vezes, demorava
demais para aparecer. Ou, então, suas vindas se tornavam frequentes. Isso durou
muitos anos e não conseguia me habituar ao pesadelo. Nada apaga de minha cabeça
a figura aterrorizante do Homem da Areia. Seu relacionamento com papai me
preocupava cada vez mais e um medo obtuso me impedia de falar a seu respeito.
Com os anos, porém,
germinou e cresceu dentro de mim o desejo de elucidar esse mistério, e ver o
misterioso Homem da Areia.
O Homem da Areia me
tinha posto na pista do maravilhoso, do fantástico, que se abrigam naturalmente
no espírito das crianças. Nada me dava mais prazer do que escutar, ou ler,
histórias aterrorizantes de feiticeiras, anões e doentes. Mas em primeiro
lugar, vinha o Homem da Areia, que eu retratava por meio de desenhos horríveis,
estranhos, nas mesas, nos armários, nos muros, com giz ou carvão.
Quando fiz dez anos,
mamãe me tirou do quarto das crianças e me cedeu um quarto pequeno, que dava
para o corredor, perto do gabinete do papai.
Tão logo soavam as
nove horas, escutávamos o desconhecido chegar e tínhamos de nos recolher
rapidamente. Lá de meu quarto o ouvia entrar no gabinete de papai, e, em
seguida, tinha a impressão de que um vapor diáfano, com cheiro estranho, se
espalhava pela casa. Minha curiosidade crescia, bem como a coragem e
determinação de conhecer a qualquer preço o Homem da Areia. Jamais, deslizando
de meu quarto até o corredor, após mamãe passar, conseguia pegá-lo de surpresa,
pois já tinha entrado assim que eu chegava ao local de onde poderia vê-lo. Afinal,
impulsionado por irresistível desejo, resolvi me esconder oportunamente no
próprio gabinete de papai e aguardar o Homem da Areia.
Certa noite, por causa
da tristeza de mamãe e do mutismo de papai, percebi que o Homem da Areia
deveria chegar. Finjo estar muito cansado, saio da sala antes das nove horas e
me escondo no cantinho perto da porta do gabinete de papai. A porta da rua
gemeu nos gonzos, passos lentos, arrastados, sonoros, atravessam o vestíbulo em
direção da escada. Mamãe passa apressadamente por mim, conduzindo as crianças.
Com cuidado, abro a porta do gabinete de papai. Ele estava sentado normalmente,
em silêncio, com as costas voltadas para a porta e não me viu. Fui, na ponta
dos pés, me esconder atrás da cortina que dissimula um guarda-roupa, colocado
bem perto da porta, onde papai pendura as vestimentas.
Os passos ressoam
cada vez mais próximo e escuto tosse, pigarro, estranho murmúrio. Meu coração
bate com força, por causa da ansiedade e da espera. Bem perto da porta, um
passo retumbante. A maçaneta gira com violência, as dobradiças rangem e a porta
é aberta ruidosamente. Embora sentindo medo, ponho a cabeça de fora, com
prudência. O Homem da Areia está no meio do gabinete defronte a papai, o clarão
das velas ilumina seu rosto. O Homem da Areia, o terrível Homem da Areia, é o
velho advogado Coppelius, que às vezes almoça conosco!
Porém a mais horrível
aparição não me causaria tanto espanto quanto me causou este Coppelius. Imagine
um homem grande, de espáduas largas, enorme cabeça deformada, com rosto lívido,
sobrancelhas peludas e grisalhas, embaixo das quais rebrilham dois olhos verdes,
arredondados como os dos gatos, o nariz gordo, grande, que tomba sobre o lábio
superior. A boca torta, que se contorce mais ainda ao compor um sorriso, quando
se formam duas manchas escarlates nas bochechas. Um som estranho, rangente, que
sai por entre os dentes cerrados.
Coppelius vestia
sempre um sobretudo cinzento, de corte antigo, paletó e culote também cinzentos,
meias pretas e sapatos com fivelas de strass.
Pequena peruca mal cobre seu pescoço, dois rolos postiços se elevam acima de
suas enormes orelhas vermelhas, grande laço bem apertado balança
perpendicularmente à sua nuca, deixando ver a fivela de prata fechar a gravata
pregueada. Todo um conjunto horrível e repelente.
Mas, o que nos chocava mais, crianças, eram suas mãos nodosas, peludas, nos inibindo de comer o que tocassem. Ele tinha percebido isso e se divertia tocando com as mãos, sob qualquer pretexto, o pedaço de bolo ou a fruta madura que nossa boa mãe tivesse posto em nossos pratos. Fazia o mesmo em dias de festa, quando papai nos dava um cálice de vinho açucarado. Passava rapidamente a mão pela borda do cálice ou o conduzia até seus lábios azulados, rindo diabolicamente ao ver que ousávamos demonstrar nossa irritação por meio de contidos soluços.
Nos chamava sempre de
“pequenas bestas” e nos proibia de abrir a boca em sua presença. Nós
amaldiçoávamos este homem odiento, repulsivo, que estragava nosso prazer quando
bem queria.
Mamãe parecia odiar
tanto quanto nós o repelente Coppelius, pois, tão logo ele aparecia, sua doce
alegria e maneiras suaves se transformavam em melancolia. Papai o tratava como
ente superior, de quem se deve suportar as manias e a quem não se pode irritar.
Bastava dizer uma palavra e seus pratos preferidos eram feitos e vinhos raros
abertos em sua homenagem.
Ao ver Coppelius, me
dei conta da verdade, terrível, ameaçadora: o Homem da Areia só podia ser ele!
Contudo, o Homem da Areia não era mais – para mim – aquele espantalho da
história da governanta, que roubava olhos de crianças para alimentar sua
ninhada de corujas na lua. Não! Era um monstro fantástico, odiento, e que, por
onde passava, levava a tristeza, a tormenta, a perdição neste mundo e no outro.
Eu permanecia
estático, como se estivesse enfeitiçado, correndo risco de ser punido se
descoberto, cabeça para fora da cortina. Papai recebeu Coppelius solenemente.
– Mãos à obra! –
Coppelius berrou com voz rascante, enquanto tirava o sobretudo.
Papai, silencioso,
taciturno, sacou o roupão, e os dois vestiram longas túnicas negras. Não reparei de onde as tiraram, papai abriu
um armário embutido de duas portas e descobri não ser o armário e, sim, um
nicho negro com fornilho. Coppelius aproximou-se dele, uma flama azul crepitou
na lareira. Todos os tipos de estranhos utensílios estavam esparsos por lá. Meu
Deus! Quando meu velho pai se inclinou sobre o fogo, me pareceu transformado.
Uma dor atroz e convulsiva contraíra suas feições honestas e doces, metamorfoseando-as
numa máscara feia, repelente, do demônio. Estava parecido com Coppelius! Esse
brandia tenazes incandescentes para retirar da fumaceira espessa massas
brilhantes e claras, as quais em seguida martelava com força. Tive a impressão
de perceber à sua volta rostos humanos, mas sem os olhos, com espantosas
cavidades negras e profundas em seu lugar.
– Olhos! Dê-me olhos!
– gritava Coppelius com voz surda, ameaçadora.
Violento pavor me fez
gritar muito alto. Saí de meu esconderijo e tombei sobre o soalho. Coppelius me
segurou:
– Pequena besta!
Pequena besta! – rosnava por entre os dentes.
Subitamente, me
levantou e jogou-me na lareira, as chamas queimando meus cabelos.
– Nós temos olhos
agora. Olhos. Belo par de olhos de criança – ciciava Coppelius.
Agarrou nas mãos um
punhado de brasas ardentes para jogá-las em meus olhos. Então, papai ergueu as
mãos unidas e suplicou:
– Mestre! Mestre!
Deixe os olhos de meu Natanael!
Coppelius riu
barulhentamente e gritou:
– Está bem! Que ele
conserve seus olhos! Que ele soluce durante todo o seu penar por este mundo!
Mas vamos observar de perto o mecanismo das mãos e dos pés!
Então me segurou com
força, fazendo minhas articulações estalarem, e girou minhas mãos e meus pés e
os tornou a girar, para lá e para cá:
– Não é bem isso!
Antes estava melhor! Este velho conhece seu ofício!
Ao murmurar assim,
Coppelius silvava também por entre os dentes, mas à minha volta tudo se tornou
confuso, sombrio. Súbita convulsão sacudiu meus ossos e nervos e desmaiei.
Um hálito doce e
quente bafeja-me a face, me despertando do sono da morte. Mamãe se inclinava
sobre mim.
– O Homem da Areia
ainda está aí? – balbuciei.
– Não, meu querido.
Já foi há muito tempo. Não vai mais machucar você – dizia mamãe, enquanto
beijava, acariciava seu filho renascido.
Por que vou continuar
fatigando você, Lothar, contando todos esses detalhes, quando tenho tantas
outras coisas importantes para narrar? Em suma, fui descoberto e cruelmente
maltratado por Coppelius. A ansiedade e o medo me causaram forte febre que me
atirou na cama durante semanas.
– O Homem da Areia
ainda está aí? – foram minhas primeiras palavras racionais, o sinal da minha
recuperação.
Ainda me falta narrar
o pior momento de minha infância, e você ficará convencido de que não é
necessário culpar meus olhos se tudo me parece descolorido, mas sim a fatalidade
sombria que estendeu – realmente – em torno de minha vida um véu de nuvens
opacas, que eu talvez só consiga dissolver através de minha morte.
Coppelius nunca mais
apareceu. Disseram que tinha saído da cidade.
Um ano se passou.
Certa noite, estávamos sentados em torno da mesa redonda, segundo nosso velho,
invariável costume. Papai, muito feliz, nos contava histórias engraçadas a
respeito das viagens que tinha feito em sua mocidade. Ao bater das nove horas,
escutamos a porta da rua girar nos gonzos e passos lentos e pesados
atravessarem o vestíbulo e subirem a escada.
– É Coppelius! – disse
mamãe empalidecendo.
– Sim. É Copellius – confirmou
papai com a voz embargada. Mamãe tinha lágrimas nos olhos:
– Mas, pai – ela se
lamuriou. – É necessário que venha aqui?
– Pela última vez –
ele respondeu. Pela última vez, eu juro. Mas vai com os garotos! Boa noite!
Fiquei petrificado,
não conseguia respirar direito. Mamãe me puxou pelo braço, ao me ver estático:
– Vem, Natanael!
Deixei que me
conduzisse até o quarto.
– Fica tranquilo.
Fica tranquilo e dorme. Dorme! – disse-me quando saía.
Porém, atormentado
pela angústia, presa de profunda inquietação, indescritível, não consegui
fechar os olhos. Via adiante de mim o odiento, horroroso Coppelius a mirar-me
com olhos faiscantes e rir com a expressão sinistra. Em vão, tentei pensar em
outra coisa.
Perto da meia-noite, estrondo
violento, qual arma de fogo, ribombou pela casa. Roçar de passos defronte à
porta de meu quarto. Em seguida, a porta da rua foi fechada estrepitosamente.
– É Coppelius! – gritei,
já fora de mim, pulando da cama. Ouviu-se um gemido. Depois, lamentações
agudas, desesperadas. Corri para o gabinete de papai. A porta estava aberta,
uma fumaceira sufocante me envolveu, a empregada gritou:
– Ai! Meu patrão! Meu
patrão!
Papai estirado no
chão. Morto. Defronte ao fornilho fumegante. Seu rosto, horrivelmente
desfigurado, estava queimando, negro. Minhas irmãs choravam, gritavam de dor à
sua volta. Mamãe desmaiara.
– Coppelius! Satanás
amaldiçoado! Você matou meu pai! – solucei até perder os sentidos.
Dois dias depois,
quando colocaram papai no caixão, suas feições haviam readquirido a calma, a
bondade de sempre. O que me consolou, pois imaginei que sua aliança com o
diabólico Coppelius o tivesse condenado à danação eterna.
A explosão tinha
acordado os vizinhos. A notícia do acontecimento se espalhou, chegando aos
ouvidos das autoridades, que tentaram intimar Coppelius a depor. Mas ele
desapareceu sem deixar vestígios.
Agora, se lhe digo
que o vendedor de barômetros era o infame Coppelius, ele não poderá vir como
presságio de acontecimentos funestos. Usava outras roupas, mas as feições de
Coppelius estão impressas indelevelmente em minha memória. Daí, sei que não
estou enganado. Aliás, ele nem trocou de nome. Pelo que me contaram, diz ser aqui
um mecânico piemontês, Giuseppe Coppola.
Estou determinado a
enfrentá-lo e a vingar a morte de meu pai, aconteça o que acontecer.
Não fale desse
terrível encontro com mamãe. Meus cumprimentos à doce, querida Clara.
Escreverei para Clara quando estiver mais calmo. Adeus, então etc. etc.
Clara para Natanael
É verdade que você não
me escreve há muito tempo, mas estou convencida de que continua comigo no
coração e na mente. Pois pensava em mim, com certeza, ao sobrescritar com meu nome
uma carta para Lothar. Abri a carta com alegria, e só compreendi o equívoco ao
ler estas palavras: “Ah, meu querido Lothar!”.
Não deveria ter
continuado a ler a carta e, sim, tê-la entregue a meu irmão. Porém, muitas
vezes você tinha brincado comigo, durante minha infância, por ser tão calma e
tão boa dona de casa que, se a casa ameaçasse desabar, eu teria ainda tempo de
ajeitar as cortinas antes de fugir. Entretanto, nem preciso dizer: o começo da
carta me deixou profundamente transtornada. Nem podia respirar direito, tudo se
embaralhava à minha volta. Ah, meu querido Natanael, o que seria aquela coisa
terrível que tinha acontecido com você? Nossa separação, há possibilidade de
nunca mais nos revermos? O pensamento me trespassou como aguda apunhalada.
Continuei a ler até o fim. Sua descrição do repelente Coppelius é pavorosa. Só
então soube da morte violenta, terrível, de seu velho e bondoso pai.
Meu irmão, a quem
entreguei o que lhe pertencia, tentou me tranquilizar, mas não conseguiu. O
fatídico mercador de barômetros Giuseppe Coppola me perseguia incessantemente e
– quase tenho vergonha de dizer – chegou até a perturbar meu sono, normalmente
profundo, fazendo-me ter sonhos horríveis. Todavia, já no dia seguinte, tudo me
pareceu melhor. Não fique, pois, rancoroso, meu bem amado, se Lothar disser a
você que – a despeito de seu estranho pressentimento em relação a Coppelius – eu
esteja alegre e despreocupada, como sempre.
Vou falar com toda a
franqueza: creio que todas essas coisas horríveis e apavorantes, relatadas por
você, existem apenas em sua imaginação e que a parcela de fatos reais e concretos
é muito pequena. O velho Coppelius era, sem dúvida, muito pouco atraente e como
não gostava de crianças, as crianças também começaram a não gostar dele.
Era natural que sua
mente de criança associasse o terrível Homem da Areia, da história da governanta,
ao velho Coppelius, o qual, mesmo se
você não acreditasse no Homem da Areia, permanece em sua memória como
fantástico monstro, inimigo jurado das crianças. Seu comportamento misterioso,
durante a noite, em companhia de seu pai, queria dizer, apenas, que eles
praticavam alquimia, secretamente. O que não podia deixar de afligir sua mãe,
pois deviam gastar muito dinheiro com isso. Sem contar o fato de que – como
acontece aos pesquisadores de laboratório –, desejoso de ter profundos
conhecimentos, seu pai se afastava da família. Seu pai – por causa de alguma
imprudência – causou a própria morte e Coppelius não é o culpado disso.
Sabe, ontem perguntei
ao nosso vizinho, o boticário, que tem muita experiência, se esse tipo de
manipulação química poderia causar explosões mortais e súbitas. “Sem dúvida”,
me respondeu, descrevendo com sua maneira verborrágica e detalhada como isso
poderia acontecer, empregando grande número de palavras bizarras, que não pude
reter em minha memória.
Agora você vai ficar
zangado com sua Clara. Você vai dizer: o espírito gélido de Clara é insensível
à radiação do mistério, que tantas vezes envolve o homem com seus braços
invisíveis. Você vai dizer que ela vê apenas a superfície multicolorida desse
mundo, ficando satisfeita como criança ao ver a fruta de casca dourada, que
armazena em seu interior veneno mortífero.
Ah, meu querido
Natanael, você não acredita, então, que até as almas serenas, francas,
despreocupadas, possam abrigar o pressentimento de uma potência hostil e
sombria que, oculta lá dentro de nós, tenta nos destruir?
Mas desculpe esta
jovem simples, se ouço tentar fazer você inferir o que penso desses tormentos
interiores. Sem dúvida, não conseguirei encontrar palavras adequadas e você vai
debochar de mim, não por causa de minhas ideias, mas da maneira desastrosa com
que as exprimo.
Se existe potência
que seja pérfida, sinistra e hostil em seus objetivos, e que tenha conseguido
colocar dentro de nós sua garra para nos apreender e nos arrastar por caminho
perigoso, nefasto – o qual espontaneamente não percorreríamos –, se tal
potência realmente existe, teria de se desenvolver dentro de nós mesmos,
enquanto nós evoluímos. Teria de ocupar o nosso eu. Só assim nós acreditaríamos
nela, cedendo-lhe o que necessita para cumprir sua missão secreta. Se tivermos
bastante firmeza e o espírito alimentado pelas coisas luminosas da vida para
conhecermos o que é, em verdade, esta influência estranha e hostil e para
seguirmos firmemente pelo caminho onde nos levam nossos gostos e nossa vocação,
então esta potência sinistra se cansa com o esforço que faz para se apropriar
de nossas características e se apresentar a nós como nosso próprio reflexo num
espelho.
É também certo,
acrescenta Lothar, que esta sombria força material, desde que nos abandonemos
voluntariamente a ela, atrai e fixa em nós certas imagens estranhas que o mundo
exterior joga em nosso caminho. De tal maneira, que somos nós mesmos que
atiçamos o espírito que parece falar através destas formas, exatamente como nós
temos a loucura de as imaginar. É o fantasma de nosso próprio eu que, através
de seu íntimo relacionamento conosco e de sua profunda influência sobre nossa
alma, nos precipita no inferno ou nos transporta aos céus.
Você bem vê, meu
querido Natanael, nós conversamos em profundidade, eu e Lothar, sobre as forças e as potências
obscuras, e ainda que o problema permaneça misterioso para mim, penosamente lhe
expus o essencial. Não consegui compreender bem as últimas palavras de Lothar,
praticamente adivinhei o que desejava dizer. Parece-me, todavia, que tem razão.
Suplico a você: tire de sua cabeça o feio advogado Coppelius e o mercador de barômetros Giuseppe Coppolla. Convença-se de que tais pessoas não têm poder sobre você. É acreditando nos hostis poderes deles que você pode, em verdade, torná-los nefastos. Se sua carta não demonstrasse em todas as linhas a profunda confusão de sua alma, se o seu estado não me afligisse até o fundo do coração, eu poderia, afinal, brincar a respeito do Homem da Areia advogado e do mercador de barômetro Coppelius. Readquira, eu lhe peço, a serenidade! Resolvi ser o seu gênio tutelar e se o terrificante Coppola viesse atormentar você em sonhos, eu o expulsaria com grandes explosões de riso. Não temo, nem um pouquinho, nem ele nem suas terríveis mãos. Advogado, não me convenceria a me privar de gulodice; Homem da Areia, não me arrancaria os olhos.
Sempre sua, meu bem-amado
Natanael, etc. etc.
Natanael para Lothar
Foi muito
desagradável para mim Clara ter aberto e lido a carta que escrevi para você
recentemente, embora fosse equívoco provocado por distração minha.
Ela me escreveu uma
carta recheada de filosofia abstrusa, em que, abreviadamente, me demonstra que
Coppelius e Coppola só existem em minha mente, fantasmas de meu próprio eu, e
se transformarão em pó deste que eu os reconheça como pó. Aliás, é difícil
acreditar que esse espírito – que cintila às vezes como um sonho doce e
gracioso, lá no fundo daqueles olhos de criança, claros e sorridentes – seja
capaz de distinções tão teóricas e pedantes. Invoca a sua autoridade. Vocês
falaram de mim. Portanto, você dá a ela cursos de lógica para ensinar-lhe que
tudo deve ser dissecado e passado pela peneira. Não tenha esse cuidado. Aliás,
é evidente que o mercador de barômetros Giuseppe Coppola não é, absolutamente,
o velho advogado Coppelius. Estou no curso de física de um professor que acaba
de chegar aqui. Tem o mesmo nome do célebre naturalista Spalanzani e é de
origem italiana, já conhece Coppola há muitos anos. Aliás, o sotaque dele trai
sua origem piemontesa. Coppelius era alemão, mesmo não sendo alemão de verdade,
segundo me parece. Não me sinto totalmente tranquilo. Você e Clara têm razão ao
me considerarem sonhador e hipocondríaco, pois não consigo me livrar da
impressão que me produz o maldito rosto de Coppelius. Estou feliz, pois saiu da
cidade, segundo me disse Spalanzani.
Esse professor tem o
corpo curioso. É um homenzinho rechonchudo, com pômulos salientes, nariz
delgado, lábios cheios, olhos pequenos e penetrantes. Mas você poderá
conhecê-lo melhor através do retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki num
almanaque de Berlim. Spalanzani se parece com o retrato.
Recentemente, subindo
pela escada, me dei conta de que uma cortina de renda guipure, em geral corrida por cima de uma
porta envidraçada, deixara fresta do lado. Não sei por que, dei uma olhada. Uma
jovem de porte encantador, grande, esbelta, magnificamente vestida, estava
sentada na sala, defronte a uma mesinha, onde descansa seus braços, as mãos
juntas.
Ela estava de frente
para a porta. Assim, pude ver todo o seu rosto angelical. Aparentemente, não
reparou em mim, e seus olhos pareciam parados, como se não tivessem vida, ou
como se estivesse dormindo com os olhos abertos. Não me senti à vontade e me
esgueirei para o anfiteatro vizinho. Mais tarde, soube que era a filha de
Spalanzani, Olímpia, há quem esconde com tanto cuidado que ninguém se aproxima
dela. Afinal, talvez ele tenha alguma razão, ela pode ser idiota ou qualquer
coisa assim. Por que escrevi tudo isso para você? Poderia ter contado tudo isso
melhor, e com mais detalhes, pessoalmente. Pois estarei aí dentro de quinze
dias. Preciso ver meu querido anjo, minha doce Clara. Quando então se dissipará
– confesso – o mal-estar que senti ao ler a sua carta. Por isso, não lhe
escreverei hoje.
Minha amizade etc.
etc.
Seria impossível
inventar algo mais estranho e mais surpreendente do que o sucedido com meu
pobre amigo, o estudante Natanael, e que resolvi contar para você, amável
leitor.
Alguma vez, seu
coração, espírito, pensamento estiveram concentrados em uma só coisa, que o
impedisse de ter qualquer outra preocupação? Você se sentia fermentar e ferver
e o sangue, em ebulição, palpitava nas veias, realçando a cor da face. Seu
olhar estranho parecia querer apreender no espaço vazio formas invisíveis a
todos os outros olhos e suas palavras se extinguiam em suspiro inquietantes. E
seus amigos perguntavam:
– O que aconteceu,
meu caro? O que é que você tem?
E você se esforçava
para descrever sua visão interior e seu colorido quente e suas sombras e luzes,
tentando entrar no assunto. Mas tinha a impressão de que seria necessário mostrar,
logo, com suas primeiras palavras, tudo o que você carregava de estranho,
magnífico, horrível, alegre, aterrorizante, para aferir instantaneamente os
ouvintes, como se fosse descarga elétrica. Todavia, todas as expressões, tudo o
que se exprime em palavras parecia incolor, glacial e morto para você.
Tentava procurar,
balbuciar, pedinchar palavras. Mas as tolas perguntas de seus amigos, como
ventos gelados, abaixavam o seu fogo interior, até apagá-lo. Se anteriormente,
como pintor audacioso, você tivesse esboçado com grandes traços atrevidos os
contornos de sua visão interior, seria fácil, então, ir acrescentando cores
cada vez mais quentes, e a multidão de formas diversas entusiasmaria seus
amigos, que se veriam, como você mesmo, retratados no quadro que jorrou de seu
coração.
Devo conversar,
amável leitor, que ninguém me interrogou a respeito da história do jovem
Natanael. Entretanto você sabe, sem dúvida: pertenço a essa linhagem singular
de escritores que não conseguem carregar consigo tais ideias sem imaginar,
prontamente, que todos os que estão perto deles, até mesmo o mundo inteiro,
gostariam de lhes perguntar:
– O que aconteceu,
hein? Conte-nos tudo, meu caro!
Assim, tive o desejo
furioso de contar a você o destino fatal de Natanael. Sua história, singular e
maravilhosa, absorvia meus pensamentos e, como me seria necessário preparar
você – ó meu leitor! – para admitir o fantástico, o que não é tarefa fácil, me
atormentava para que a saga de Natanael tivesse começo impressivo, original,
empolgante.
“Era uma vez...” É o
mais belo começo para qualquer narrativa, mas é muito prosaico.
“Na pequena cidade do
interior, S. vivia...” é um pouco melhor, permitindo, pelo menos, certa
gradação. Ou me colocando imediatamente medias
in re: “Vá para o diabo que o carregue! – gritou o estudante Natanael, com
olhar alucinado, cheio de furor e medo, quando o mercador de barômetros
Giuseppe Coppola...” Tinha acabado de escrever essas palavras, quando percebi:
o olhar furioso do estudante Natanael tinha qualquer coisa de cômico. Ora,
minha história não tem nada de risível. Eu não conseguia compor o discurso que
pudesse refletir – apenas um pouquinho – as cores ardentes de minha visão
interior.
Então, resolvi não começar a história. Meu caro leitor,
você terá a bondade de considerar as três cartas, que o amigo Lothar teve a
gentileza de me mostrar, como esboço da imagem que tentarei colorir, cada vez
mais. Talvez eu consiga, como bom retratista, captar algumas fisionomias tão bém
que, mesmo sem conhecer o original, você as julgará parecidas, chegando a
acreditar tê-las visto pessoalmente. Talvez – ó meu leitor – você chegue até a
pensar que não exista nada mais extraordinário ou mais louco do que a vida
real, e que apenas o poeta esteja capacitado a aprendê-la, como se fosse vago
reflexo de espelho mal polido.
Para esclarecer
imediatamente o que é necessário saber, acrescentarei aquelas cartas: logo após
a morte do pai de Natanael, Clara e Lothar, filhos de um parente afastado, que
também morrera deixando-os órfãos, foram acolhidos pela mãe de Natanael.
Natanael e Clara sentiam uma forte atração mútua, a qual ninguém objetava.
Assim, eles eram noivos, quando Natanael deixou sua casa para estudar em G. Sua
última carta estava datada dessa cidade, onde assistia às aulas do célebre
físico Spalanzani.
Neste momento,
poderia continuar tranquilamente meu relato. Mas a imagem de Clara está
vivamente presente em meus olhos e não consigo desviar dela o olhar, como fazia
sempre que me mirava com gracioso sorriso. Clara não podia ser considerada
bela, segundo parecer dos que fazem ofício de juízes da beleza. Mas os
arquitetos elogiavam as felizes proporções de seus membros, os pintores
julgavam muito sóbrios os contornos da nuca, espáduas e seios, embora ficassem
encantados com a suntuosa cabeleireira de Madalena e se apaixonassem pelo
colorido de Battoni. Um deles, sonhador famoso, comparava, bizarramente, seus
olhos a um lago de Ruysdael em que se refletem o azul puro de céu sem nuvens,
as flores dos bosques e toda a animação colorida, alegre da paisagem. Mas os
poetas e músicos iam mais longe, dizendo:
– O quê? Um lago? O
quê? Um espelho? Pode-se ver esta jovem sem que seu olhar esplendoroso derrame
sobre nós cantos, acordos celestiais e maravilhosos que penetram nossa alma,
onde tudo se eleva e desperta com um contato? Se o que cantamos não tem valor é
porque nós próprios não temos valor, eis o que podemos ler com precisão no
sorriso vivo, bailando nos lábios de Clara, ao cantarolarmos em sua presença
alguma coisa que imaginamos seja canto, mesmo sendo apenas sons esparsos, que se
entrechoquem confusamente.
E era verdade. Clara
tinha a imaginação de uma criança alegre, singela, pura; alma profunda, terna,
de mulher; a inteligência límpida e muito discernimento. Os espíritos obtusos
não conseguiam lhe ser agradáveis, pois sem falar muito – o que não fazia parte
de seu caráter quase taciturno – seu olhar claro e o pronto sorriso irônico
lhes diziam:
– Caros amigos, como
podem imaginar que eu sinta como sendo reais, dotadas de vida e de movimento,
visões nebulosas e vagas?
E por causa disso,
Clara tinha fama de ser fria, insensível e prosaica. Mas outros que sabem
captar a vida com sua transparente profundidade, consideravam a jovem sensível,
razoável e franca; e desses, nenhum mais do que Natanael, cujos pensamentos se
movimentavam com vigor e serenidade, no mundo da arte e da ciência. Clara
estava ligada com todo o coração a seu bem amado; as primeiras sombras que
escureciam sua vida apareceram no momento em que a deixou. Com que
deslumbramento ela se joga em seus braços, quando ele retorna à cidade natal,
conforme prometera a Lothar em sua última carta! E foi tudo como Natanael
esperava, pois, desde o momento em que viu Clara, não pensou mais no advogado
Coppelius, nem na carta racional dela. Todas as preocupações desapareceram.
Mas Natanael tinha
razão, quando escreveu para seu amigo Lothar dizendo que o repugnante mercador
de barômetros havia se introduzido em sua vida como poder hostil. Pois todos
notaram, já nos primeiros dias, que Natanael parecia diferente. Mergulhava em
divagações inquietantes, apresentava excentricidade não habituais em seu
comportamento. Todos os seres, e a vida inteira, não eram mais do que visões e
presságios para ele. Repetia sem cessar: todo homem que se julga livre é apenas
joguete de potências tirânicas ferozes, as quais é inútil resistir. E não há
mais nada a fazer, senão nos submetermos humildemente ao que o destino resolveu
nos impor. Chegava até a afirmar: é loucura acreditarmos que a criação – nas
artes e nas ciências – seja ato livre da vontade, pois o entusiasmo necessário
para criar não parte de nós, sendo desencadeado pela ação de algum princípio
superior, externo a nós.
A exaltação mística
repugnava ao racionalismo de Clara, mas parecia inútil tentar refutá-la. Era
necessário que Natanael tentasse demonstrar: Coppelius era o princípio do mal e
tinha se apropriado dele, Natanael, no momento daquela espera atrás da cortina,
e que o odiento demônio ainda perturbaria irremediavelmente a felicidade
amorosa deles, para Clara, então, se tornar muito séria e dizer:
– Sim, Natanael, você
tem razão. Coppelius é princípio
maligno, princípio hostil. Pode fazer coisas horríveis, é potência diabólica
que entrou em sua vida, mas apenas enquanto não o banir de seu espírito e de
sua mente. Enquanto você acreditar nele, existirá e atuará. Todo o poder dele
vem de sua crença nisso.
Natanael, irritado
com Clara, que só admitia a existência deste demônio no interior dele mesmo,
quis, então, ensinar-lhe a doutrina mística dos demônios e das potências
terríveis. Clara, vexada, pois fim à conversa, falando de outro assunto
completamente anódino, para despeito de Natanael. Ele, ao crer que esses
mistérios eram impenetráveis às almas frias e teimosas, não se deu conta de que
situava Clara entre pessoas inferiores, embora não renunciasse à tentação de
insistir no assunto.
Já pela manhã, no que
ela ajudava a fazer café, permanecia perto dela, lendo passagens escolhidas de
livros místicos, até que ela suplicasse:
– Mas meu querido
Natanael, imagine que eu finja que você é o espírito maligno que perturba o meu
café! Pois se eu largasse todas as minhas ocupações para ficar olhando você
como deseja, enquanto me faz uma conferência, o café se queimaria no fogo e não
teríamos Nada para comer.
Natanael fechou
bruscamente o livro e se trancou no quarto, envergonhado. Antigamente, possuía
certo talento para escrever narrativas interessantes e vivas, e Clara tinha
muito prazer em ouvi-las; mas agora, tudo o que produzia era em tom sombrio,
ininteligível, disforme, e mesmo que Clara não dissesse explicitamente, se dava
conta disso.
Nada era mais
cansativo para Clara do que assuntos entediantes; olhares e palavras
demonstravam, então, sua irresistível vontade de dormir. Ora, as invencionices de
Natanael eram profundamente fatigantes e a irritação que ele sentia por causa
do espírito frio e prosaico de Clara aumentava a cada dia. Por outro lado,
Clara não conseguia vencer a aversão por aquele misticismo sombrio, triste e
cansativo de Natanael. Por isso, foram se afastando lentamente, sem reparar
nisso.
A imagem do repelente
Coppelius foi empalidecendo na imaginação de Natanael – que percebeu isso – e muitas
vezes precisava se esforçar para o colorir mais fortemente em seus poemas, em
que o retratava como inacreditável espantalho. Por fim, pensou compor um poema
que falasse do sombrio pressentimento que tinha: Coppelius seria fatal à sua
felicidade.
Imaginava estar
ligado a Clara por amor sincero, mas, às vezes, parecia que um punho negro
intervinha em suas vidas para terminar com aquela alegria apenas esboçada. No
próprio dia em que se casavam, surge o horrível Coppelius, que toca os olhos
encantadores de Clara. Eles pulam fora no mesmo instante e quicam no peito de
Natanael como fagulhas sangrentas, queimando tudo em que batem.
Coppelius segura
Natanael e o joga numa roda de fogo, que girava como furacão, arrastando-o
barulhentamente, o estrondo de uma tempestade que chicoteia ferozmente vagas
escumosas, erguidas como gigantes negros de cabeça branca, em luta furiosa. Mas
em meio a essa algazarra selvagem, escuta a voz de Clara gritando:
– Então você não me
enxerga? Coppelius o enganou. Não foram meus olhos que queimaram seu peito.
Foram as gotas ardentes de seu próprio sangue. Ainda tenho os olhos, veja!
Natanael pensa: “É clara. Será minha por toda a eternidade!” Então, imagina que
o pensamento penetra com força no círculo de fogo, travando sua rotação. A
barulheira diminui de intensidade e se perde no abismo negro. Natanael olha
para os olhos de Clara, mas é a morte que olha para ele calmamente, com os
olhos de Clara.
Enquanto imaginava o
poema, Natanael permanecia muito calmo e seguro de si. Polia e corrigia cada
linha submisso à construção do verso, sempre desejando que todo o conjunto
ficasse perfeitamente coeso, harmônico e bem composto. Mas ao terminar o poema
e relê-lo em voz alta, sentiu-se tomado de pavor e inacreditável inquietação.
Lamuriou-se:
–Que voz é essa, tão
apavorante?
Logo em seguida, o
trabalho lhe pareceu, em suma, poema plenamente realizado e acreditou que
conseguiria inflamar a alma gélida de Clara, ainda que não percebesse por que
seria necessário inflamar Clara e para que serviria apavorá-la com imagens
terrificantes, que previam destino cruel e destrutivo em relação ao amor deles.
Natanael e Clara
estavam sentados lado a lado no pequeno jardim da casa, Clara muito contente,
pois há três dias – enquanto compunha o poema – Natanael não a perseguia com
sonhos e presságios. Natanael também falava alegre e vivamente de coisas interessantes,
até Clara lhe dizer:
–Por fim, reencontro
você. Viu só como conseguimos esquecer o horrível Coppelius?
Neste momento,
Natanael se lembrou de que trazia o poema e quis lê-lo. Tira-o do bolso e
começa a leitura. Como sempre, Clara não se preocupou com coisas entediantes.
Resignadamente, começou a tricotar. Mas como a nuvem sombria escurecia cada vez
mais, para de tricotar e fica olhando Natanael fixamente: empolgado por seu
poema, lágrimas lhe escorriam dos olhos e uma chama interior coloria as suas
faces. Ao terminar, suspira, segura a mão de Clara e geme como se sofresse dor
inconsolável:
– Ah Clara! Clara,
Clara, Clara!
Clara ou cerrou
contra o colo e lhe disse com voz doce, embora grave e lentamente:
– Natanael, Meu bem-amado
Natanael! Joga fora esse poema absurdo, demente, insensato!
Natanael dá um salto,
indignado, e grita, empurrando Clara:
–Autômato maldito,
sem vida!
Afastou-se, correndo,
enquanto Clara, profundamente ofendida, chorava com amargor: “Ai! Ele nunca me
amou, pois não me compreende”.
Lothar entra no
caramanchão e Clara teve de narrar o que tinha acontecido. Ele amava sua irmã
de todo o coração e cada queixa dela queimava como brasa e o descontentamento
que sentia há muito tempo por Natanael ia se transformando em cólera violenta.
Foi atrás de Natanael
e o recriminou pela conduta absurda em relação à sua bem-amada irmã, utilizando
palavras duras, que foram replicadas por Natanael, já pegando fogo também
“Fátuo, quimérico,
insensato”, dizia um. “Pobre de espírito, homem vulgar”, dizia o outro.
Resolveram duelar atrás do jardim, na manhã seguinte, com espadas afiadas,
conforme costume local dos estudantes. Eles iam para cá e para lá, sombrios e
mudos. Clara tinha escutado a violenta discussão e visto o mestre-d’armas
trazer à noite as espadas. Ela percebeu o que iria acontecer.
No local do duelo,
Natanael e Lothar sacam os sobretudos e permanecem calados, inquietos. Quando
iam se jogar um contra o outro, Clara chegou correndo pela passagem do jardim.
Ela soluçava ao gritar:
– Homens brutais,
aterrorizantes! Matem-me agora, antes de se baterem em duelo! Como poderia
continuar a viver neste mundo se meu noivo matasse meu irmão, ou meu irmão
matasse meu noivo?
Lothar deixa cair a
arma, abaixando os olhos sem dizer nada, enquanto todo o amor que Natanael
sempre sentiu pela encantadora Clara, durante os mais belos dias de sua
juventude, ressuscita, envolto por dilacerante melancolia. A arma mortífera cai
de sua mão, e se joga aos pés de Clara:
– Clara, minha bem
amada, meu único amor. Poderá me perdoar?
Lothar, meu querido irmão. Poderá me perdoar?
Lothar emocionou-se
com a profunda dor de seu amigo. Sob uma torrente de lágrimas, os três,
reconciliados, se abraçaram, jurando nunca mais se separarem, vivendo com
fidelidade e afeição constantes.
Parecia a Natanael
que tinha sacudido a pesada carga que o curvava até o chão e que, ao resistir à
potência sombria e carcerária, tinha salvo seu ser do aniquilamento. Após mais
três dias felizes junto a quem amava, retornou a G., onde teria de permanecer
mais um ano, para, em seguida, regressar definitivamente à cidade natal.
Tinham escondido de
sua mãe os fatos relacionados com Coppelius, pois sabiam que ela só pensava
nele com horror. Realmente, como acontecia com Natanael, ela julgava Coppelius
responsável pela morte do marido.
Quando Natanael quis
entrar em seu apartamento, ficou estupefato! A casa pegara fogo e unicamente as
paredes estavam de pé. Amigos corajosos e robustos tinham conseguido penetrar a
tempo no quarto de Natanael, situado no andar de cima, salvando seus livros,
manuscritos e instrumentos, embora o fogo tivesse eclodido no laboratório do
boticário que vivia no andar inferior e se espalhado de baixo para cima.
Carregaram tudo para a casa vizinha, lá alugando um quarto, onde Natanael se
instalou imediatamente.
Não deu maior
importância ao fato de que o professor Spalanzani morasse na casa defronte e
que poderia olhar da sua janela o quarto em que Olímpia ficava, muitas vezes
sozinha, reconhecendo nitidamente sua silhueta, embora as feições se tornassem
confusas, indistintas.
Porém, notou que
Olímpia permanecia sentada numa pequena mesa durante horas, na mesma posição,
sem fazer nada, do mesmo jeito em que a vira anteriormente, através da porta de
vidro, que ela mirava incessantemente.
Julgou não ter visto
talhe mais bonito. Mas, sempre pensando em Clara, esta Olímpia rígida,
estática, não o emocionava. Só tirava os olhos do livro de tempos em tempos
afim de olhar desinteressadamente para aquela bela estátua. E só.
Ia começar a escrever
para Clara, quando bateram suavemente à porta. Mandou que entrassem e surgiu o
rosto repugnante de Coppola. Natanael estremeceu, mas lembrou-se do que Spalanzani
disse de seu compatriota Coppola e do que tinha solenemente prometido à sua
noiva em relação a Coppelius, o Homem da Areia, e se sentiu envergonhado de seu
medo infantil de fantasmas. Fez esforço para se controlar e disse com voz suave
e calma:
– Não quero comprar
barômetros, meu amigo. Vá embora!
Coppola, porém,
entrou de vez no quarto e disse
com voz surda, a grande
boca se torcendo
num sorriso pavoroso,
enquanto os olhinhos perfurantes rebrilhavam debaixo dos longos cílios acinzentados:
– Ah! Barômetros non, barômetros non! Mas eu tere occhi também per vendere. Zoios lindos!
Espantado,
Natanael já gritava:
– Você é maluco! Como é que pode ter olhos? Olhos?
Olhos?
Coppola se
desembaraçou dos barômetros, enfiou os dedos nos enormes bolsos e sacou óculos
e lornhões, colocando-os sobre a mesa:
–He-he-he! Lunetas de nariz! Occhi beli! Enquanto
falava, ia tirando mais lunetas e mais outras de seus bolsos, até que a mesa
ficou toda cintilante, mar de
reflexões multicoloridas.
Milhares de olhos
pareciam dardejar olhares reluzentes
para Natanael, que não conseguia afastar os seus da mesa. Coppola sacava mais outras lunetas, e
olhares faiscantes se entrecruzavam, cada vez com mais fúria, projetando
clarões sangrentos, dirigidos contra o peito de Natanael.
Apavorado, loucamente apavorado, Natanael grita:
– Para, monstro!
Segurou o braço de Coppola, que já levava
a mão até o bolso
para sacar mais lunetas, embora
a mesa já estivesse recoberta por elas. Coppola se
desvencilhou calmamente dele,
enquanto debochava, dizendo:
– Ah! Non vuoi luneta!
Ma eu ter lonhone!
Já tinha
guardado todas as lunetas e já sacava binóculos de outro bolso, grandes e
pequenos. Natanael ficou mais calmo, logo que as lunetas foram guardadas, e,
pensando em Clara, convenceu-se de que esse pesadelo era fruto de seu cérebro.
Coppola não era mais um mágico ou
aparição apavorante, apenas honesto oculista, nada tendo a ver com Coppelius.
Além disso, os binóculos que Coppola colocara sobre a mesa não tinham nada de especial, sobretudo não eram fantásticos como as lunetas e lornhões.
Então, para não
ficar mal, resolveu comprar qualquer coisa de Coppola. Apanhou uma pequena
luneta de bolso, delicadamente trabalhada, olhando pela janela, a fim de testá-la.
Nunca tinha
visto lentes que aproximassem os objetos com tanta pureza,
acuidade e perfeição.
Sem querer,
olhou para o quarto
de Spalanzani. Olímpia estava
sentada, como sempre, defronte à mesinha, braços à frente, as mãos juntas. Só
então Natanael repara nos traços admiráveis do rosto de Olímpia. Apenas os
olhos lhe pareceram estranhamente fixos, mortos.
Mas como olhasse
insistentemente para ela através da luneta imaginou
que dos olhos de Olímpia se desprendessem vaporosos
clarões lunares. Parecia que a vida voltava para eles, pois flamejavam cada vez
mais vivamente, enquanto Natanael permanecia à janela, como se estivesse
enfeitiçado, contemplando sem se cansar a beleza celestial de Olímpia.
Um pigarro, um arrastar de pés o acordaram de seu encantamento. Coppola estava de pé, atrás dele:
– Tre zecchini!
Três ducados!
Natanael se esquecera do oculista – pagou, em seguida, o que devia.
– Buona luneta,
né? – perguntou Coppola com sua voz rouca, aterrorizante e seu sorriso
peculiar.
– Sim, sim – Natanael
respondeu irritado. – Adeus, meu amigo!
Antes de sair do
quarto, Coppola olhou Natanael de
soslaio. Olhar estranho, debochado – e desceu
rindo as escadas. Bem, pensou Natanael, está rindo de mim. Acho que paguei
caro por esta luneta, muito caro. Enquanto
pensava, teve a impressão de ouvir um estertor profundo reboar pelo
quarto, sinistramente. Mas tinha sido ele mesmo que suspirara. Clara, pensou,
tem razão de me considerar um idiota,
mais do que um idiota, por ficar
atormentado pela ideia de que paguei caro demais pela luneta.
Sentou-se em
seguida, para terminar sua carta para Clara, mas uma olhada pela janela revelou
que Olímpia permanecia sentada no mesmo lugar e, movido por força irresistível,
deu um pulo, pegou a luneta e ficou contemplando a sedutora Olímpia, até que o
companheiro e amigo Siegmund veio chamá-lo para irem à aula de Spalanzani.
Desta vez, a
cortina tinha sido cuidadosamente corrida à porta do quarto fatal. Nos dois
dias seguintes não viu mais Olímpia, ainda que não saísse da janela, mantendo a
luneta de Coppola nos olhos. Ao terceiro dia, até a janela foi coberta por uma
cortina. Desesperado, com pesar e
saudade, partiu para o campo.
A imagem
de Olímpia ia à sua frente, flutuando no ar, surgindo
dos tufos de plantas, a olhá-lo com grandes olhos fulgurantes
lá do fundo do claro riacho. A imagem
de Clara tinha desaparecido totalmente de seu coração. Só pensando em Olímpia,
se lamuriava, ao chorar muito alto:
– Ó
meu doce astro, minha estrela amorosa, você apareceu em meu horizonte para
apagar-se em seguida, me deixando apenas uma noite escura e sem esperança?
Ao voltar para
casa, reparou que a residência de
Spalanzani estava muito movimentada: portas às escâncaras, todo tipo de objeto
era levado para dentro. As janelas do primeiro andar também estavam abertas, e
pessoas atarefadas iam e vinham, espanando e varrendo
com grandes vassouras de crina; tapeceiros e marceneiros batiam,
martelavam. Natanael parou, no meio da rua, estupefato. Siegmund se
aproximou sorrindo:
– Pois é. O que é que você me diz de nosso velho Spalanzani?
Natanael
respondeu que não podia dizer coisa alguma, pois não tinha notícias do
professor, mas que notara, para sua surpresa, a grande agitação e barafunda que
reinavam naquela casa habitualmente
tão silenciosa e sombria. Então, Siegmund contou:
Spalanzani
deveria dar – no dia seguinte – grande festa com concerto e baile e meia universidade fora convidada. Todos diziam
que Spalanzani deixaria sua filha Olímpia aparecer em público pela primeira
vez, pois até então a tinha mantido escondida.
Natanael
encontrou em casa um convite e à hora marcada foi para a casa
do professor, quando já chegavam as
primeiras carruagens e as luzes da casa eram acesas nos salões elegantemente
decorados. Sociedade elegante e numerosa. Olímpia apareceu com roupa cara e de bom gosto. Não se podia deixar de admirar o
rosto de feições tão puras e o talhe perfeito. A curiosa curva do dorso e a
estreiteza da cintura de vespa deviam ser
feitas por um espartilho muito
apertado. O andar e sua atitude tinham qualquer
coisa de compassado, de rígido que algumas pessoas julgavam desagradável, mas era explicada pela
inibição que devia estar sentindo por causa da festa.
O concerto
começou. Olímpia tocava piano com virtuosismo e cantou uma canção patriótica, a
voz clara como cristal cortante. Natanael estava deslumbrado. De pé, na última
fila, não conseguia ver claramente o rosto de Olímpia à luz estonteante das
velas. Sem ninguém reparar, tirou do bolso a luneta de Coppola para mirar a bela Olímpia. Ah! Deu-se
conta, então, de que ela o olhava langorosamente, e seus traços se esvaneciam com seu olhar amoroso, fazendo-o arder
inteiramente. Parecia que as cascatas de notas exprimiam o júbilo celestial de alma iluminada pelo amor, e quando o
trinado final vibrou, prolongado, estridente, pelo salão, não conseguiu se
conter e – como se estivesse apertado por braços apaixonados – exclamou bem alto, com dor e deslumbramento:
– Olímpia!
Todos se viraram para ele e muitos começam a rir. O organista da catedral fez uma careta mais sinistra do que a
habitual, apenas murmurando: “Bem, bem.”
Terminou o concerto, o baile vai começar. “Dançar
com ela! Com ela!” era o
objetivo de todos os seus sentidos, de todos os seus esforços. Mas como fazer para criar
coragem de convidá-la, a rainha do baile? Nem mesmo ele soube como aconteceu:
quando a dança começou, estava perto de Olímpia, que ainda não tinha sido
tirada por ninguém, e, após balbuciar algumas palavras, segurou a mão dela.
A mão de Olímpia estava tão fria quanto o
gelo. Ele sentiu correr em suas
veias o frio terrível da morte. Olhou para ela: amor e desejo brilhavam naqueles olhos. Então, imaginou que as artérias daquela mão gelada
começavam a pulsar, a torrente de
sangue ficando mais aquecida. Ardendo
de desejo, Natanael enlaçou a bela
Olímpia e saíram dançando entre os
pares no salão.
Ele tinha a
ilusão de ser um bom dançarino, mas o ritmo inflexível dela, que muitas vezes o
fazia perder o passo, demonstrou logo como seu ouvido
falhava. Ainda assim, não quis dançar com nenhuma
outra mulher e, se pudesse,
teria batido em qualquer
um que se aproximasse de
Olímpia. Mas isso só ocorreu duas vezes. Olímpia sempre esteve disponível, para sua surpresa, e pôde convidá-la para dançar todas as
músicas.
Se Natanael
fosse capaz de ver qualquer outra coisa além
de Olímpia, não teria evitado discussões e brigas lamentáveis, pois
murmúrios de deboche e risos mal disfarçados eclodiam em todos os grupos
de jovens, sem que se soubesse o
motivo, embora não tirassem os olhos
irônicos de Olímpia.
Aquecido por muitos tragos e pela dança, Natanael
tinha abandonado sua natural timidez.
Juntinho de Olímpia,
segurando- lhe a mão, falava de seu amor em termos
inflamados que ninguém
poderia compreender, nem ele mesmo,
nem Olímpia. Bem, talvez ela, pois olhava-o fixamente e emitia pequenos suspiros:
– Ah-ah-ah!
E Natanael
respondia:
– Mulher sublime,
celestial! Exemplo do amor que nos prometem
na outra vida! Alma profunda
em que se reflete todo meu
ser!
Enquanto Olímpia apenas suspirava:
–Ah-ah-ah!
O professor
Spalanzani passou uma vez ou duas perto do feliz casal e os olhou sorrindo, com
expressão curiosamente satisfeita. Ainda que Natanael estivesse em outro mundo, pôde notar, de repente, que
tudo se escurecia aqui, neste mundo, na casa do professor Spalanzani. Olhando
ao redor, percebeu, para sua grande estupefação, que as duas últimas velas da
sala vazia ameaçavam apagar. A música e a dança já tinham terminado há muito tempo.
– Nos
separarmos! Nos separarmos! – exclama, sentindo vivo desespero, e beija
a mão de Olímpia e se inclina para a sua boca. Lábios gelados encontraram seus lábios ardentes e sentiu-se presa de
pavor, como se sentira ao tocar-lhe a fria mão. A lenda da morta noiva avivou-se em sua memória, de repente. Mas Olímpia o cerrava
contra o peito e os lábios dela pareceram reviver e ficar quentes.
O professor
Spalanzani atravessou a sala vazia,
lentamente. Seus passos retumbavam e
sua silhueta, rodeada por sombras movediças, tinha aparência terrível e
fantasmagórica.
– Diga que me ama, Olímpia!
Você me ama? Diga apenas uma palavra. Você me ama? – murmurava Natanael,
embora Olímpia apenas suspirasse: “Ah-ah-ah!”, enquanto se levantava.
– Meu doce astro, minha linda estrela de amor,
você se ergueu em meu céu e você
brilhará, iluminando minha alma para sempre – continuava Natanael.
– Ah-ah-ah!
– respondia Olímpia, enquanto se afastava. Natanael a seguiu e ficaram frente
a frente com o professor.
– Você teve uma conversa
muito animada com minha filha – disse o professor
sorrindo. – Se você tem prazer em conversar
com essa bobinha, sua visita será
sempre bem-vinda.
Natanael foi embora, carregando em seu coração
todo um céu radioso de claridade.
A festa de Spalanzani foi assunto das
conversas por vários dias. Ainda que o professor tivesse feito todos os
esforços para receber as pessoas esplendidamente, maliciosos criticavam as
coisas bizarras e incongruentes que ocorreram na festa, sobretudo a rígida,
muda Olímpia, à qual atribuíam, a despeito de sua beleza, a mais total
estupidez. Era a razão que citavam para explicar sua ausência permanente,
determinada por Spalanzani.
Natanael ouviu os comentários encolerizado, mas sem dizer nada, pois não valeria a pena
mostrar àqueles engraçadinhos que era a própria estupidez deles que os impedia de ver a alma
magnífica e profunda de Olímpia.
– Por
favor, meu caro – perguntou-lhe um dia Siegmund: – Podia me dizer como você,
um rapaz inteligente, conseguiu se
apaixonar por aquele rosto de cera, aquela boneca de madeira?
Natanael já ia explodir
de raiva, mas se conteve
rapidamente e respondeu:
– Diga-me, Siegmund, como os encantos
celestiais de Olímpia
escaparam aos seus olhos, em geral tão prontos a distinguir a beleza, e ao seu espírito
alerta? Mas agradeço a Deus! Assim
não há rival em você,
senão um de nós teria de verter todo o seu
sangue.
Siegmund
percebeu o estado do amigo e
concordou diplomaticamente com o que ele dizia, afirmando que em amor não se deve discutir sobre o objeto
da paixão, e acrescentou:
–
Mas é curioso que, em relação a Olímpia, tantos
companheiros pensem como eu. Nós achamos que ela é – não se zangue, meu irmão – muito
rígida e sem alma. Ela é bem-feita, tem o rosto
bonito, é verdade. Poderia até ser bela se o olhar não fosse despido de calor e de toda acuidade, se posso me exprimir
assim. O andar é estranhamente cadenciado e cada um dos movimentos parece
feito por mecanismo de relojoaria. Os gestos, o canto, têm ritmo odiosamente regular e sem alma como os
de uma caixa de música. E a maneira de dançar é igual. Achamos que esta Olímpia
tem qualquer coisa de sinistro e nós queremos ficar longe dela, pois temos a
impressão de que apenas finge ser criatura viva e que há algum lamentável equívoco nessa história toda.
Natanael não se
entregou ao sentimento de amargura que parecia querer tomar conta dele ao ouvir
tais palavras. Ele se controlou, contentando-se em dizer gravemente:
– Para vocês,
homens prosaicos e frios, pode ser que Olímpia pareça inquietante. Só às
sensibilidades poéticas se revela tal
organização! Apenas eu percebi seu olhar amoroso, que me iluminou
a alma e os pensamentos. É com o
amor de Olímpia que encontro por fim a
mim se entregar a conversas vãs e
vulgares, como o fazem outros
espíritos superficiais. Fala pouco, é verdade, mas suas raras palavras são como
hieróglifos de um mundo interior,
onde reinam o amor e o conhecimento
sublime da vida espiritual, contemplando a eternidade. Mas vocês não têm
intuição dessas coisas e o que ela diz para vocês são palavras jogadas fora.
– Deus o guarde,
meu irmão! – disse Siegmund com doçura,
quase com melancolia. – Mas acho que
você está no caminho errado. Conte comigo, sobretudo se... Mas não, não quero
dizer mais nada.
Natanael
percebeu, então, que o frio, prosaico Siegmund tinha muito carinho por ele, e
apertou cordialmente a mão que o
amigo lhe estendia.
Natanael
esquecera, completamente, a existência de Clara, tão amada antigamente. Sua
mãe, Lothar, todos tinham se esvanecido em sua
mente. Só vivia para Olímpia, a quem ia
ver todos os dias e para quem falava
com palavras exaltadas de suas almas,
coisas que Olímpia escutava com muita
discrição.
Natanael sacou
das profundezas de sua secretária tudo o que tinha escrito.
Poemas, fantasias, visões,
romances, novelas, aos quais eram acrescentados, diariamente, todos os tipos de sonetos,
estâncias, canções, envoltos pelo azul do céu, e que ele lia para Olímpia
durante horas, sem se cansar. Jamais
tivera tão magnífico ouvinte. Ela não bordava, nem tricotava, nem olhava
pela janela, nem dava de comer a seu pássaro, nem brincava com seu cãozinho favorito ou seu gatinho
mimado, nem enrolava pedaços de
papel entre os dedos. Nunca tinha de disfarçar um bocejo com tosse
forçada e ficava quieta por muitas horas, o olhar fixo, preso aos olhos do
namorado, sem o movimentar nem um pouquinho,
e esse olhar pouco a pouco ia se tornando luminoso. Só quando Natanael se
levantava, ao beijar sua mão, ela dizia:
– Ah-ah-ah! – e logo depois: – Boa-noite, querido!
Alma profunda,
alma maravilhosa, gemia Natanael ao retornar ao seu quarto, só você, apenas
você me compreende completamente. E tremia de felicidade ao pensar na concórdia
miraculosa que existia entre sua alma e a de Olímpia e que aumentava a cada
dia. Pois lhe parecia que ela se manifestava em relação às suas obras e ao seu
talento poético exatamente como ele teria feito, como se a voz de
Olímpia saísse de sua própria alma. O que, sem dúvida, era verdade, pois
Olímpia jamais pronunciou outras palavras além
das já mencionadas.
Mas se Natanael – em seus momentos de
lucidez e de bom-senso, como ao despertar pela manhã, por exemplo – se lembra da
passividade de Olímpia e de seu mutismo, se consola dizendo: “Que significam as palavras, as palavras! A expressão
de seus olhos celestiais diz mais do que toda a linguagem daqui de baixo. Como
poderia uma filha do céu se acomodar aos estreitos limites traçados pelas
miseráveis necessidades humanas?”
O professor Spalanzani parecia muito feliz com o
relacionamento de sua filha e Natanael, dando-lhe sinais inequívocos de sua aceitação. Quando Natanael teve coragem
– por fim – de fazer vaga de referência ao casamento com Olímpia, o professor
sorriu largamente, declarando que
daria à filha toda a liberdade de escolha.
Encorajado por essas
palavras, o coração
ardendo de desejo,
Natanael resolveu jantar no dia seguinte em casa de Olímpia a fim de
suplicar-lhe que dissesse, sem rodeios,
de maneira explícita, o que lhe tinha confessado há muito tempo o doce olhar
amoroso dela; ou seja, que ela
queria ficar com ele para sempre.
Procurou o anel
que sua mãe lhe tinha dado quando partira,
para oferecê-lo a Olímpia, em sinal
de sua eterna devoção e do presente
que lhe fazia de sua própria vida, que acabava de renascer e floresceria ao
lado dela. Nesse momento, as cartas de Clara e Lothar caíram no chão. Não as apanhou, porém. Encontrou o anel, colocou-o no bolso e foi para a
casa de Olímpia.
No patamar da
escadaria, escutou a algazarra que parecia vir do gabinete de Spalanzani: arrastar
de pés, ruído de vidro partido, trancos e golpes contra a porta, misturados a
palavrões e maldições.
“Deixe-a! Deixe-a!
– infame – patife – é a isso que sacrifiquei a minha vida e meus
trabalhos? – ha-ha-ha-ha! – não foi
o que nós apostamos – eu, fui eu quem fez os olhos – eu, os rolamentos – imbecil, com seus rolamentos – maldito cão relojoeiro
idiota – vai embora – Satanás – para – torneiro de cabeças de cachimbo – besta
infernal – para – vai embora – deixe-a!” As
vozes de Spalanzani e do terrível Coppola se entrecruzavam naquele furioso turbilhão. Natanael
precipitou-se pelo gabinete, sentindo uma angústia lhe apertar o peito.
O professor
segurava pelos ombros um corpo de mulher, enquanto o italiano Coppola o
segurava pelos pés. Puxavam, disputavam, para lá, para cá, lutando com furor pela sua posse. Natanael recuou,
tomado de horror, ao reconhecer o corpo de Olímpia. Ardendo em furiosa cólera,
quis reaver sua bem-amada daqueles enlouquecidos, mas naquele momento Coppola,
juntando suas forças de gigante,
torce o corpo e o arranca do professor, enquanto
lhe dá um soco tão violento, que ele tropeça e cai de costas por cima da mesa,
ao meio de garrafinhas, retortas, frascos e provetas. Todos os utensílios
voaram em mil pedaços, com grande retinir. Coppola, então, joga o corpo em seus
ombros e desce correndo as escadas, rindo seu riso horrível e estridente,
enquanto o manequim pendia sem graça, batendo ressoando nos degraus, com som de
madeira.
Natanael
permanece imóvel. Tinha visto tudo direitinho. O rosto de cera de Olímpia, de
mortal palidez, não tinha mais olhos, apenas cavidades negras. Era uma boneca
sem vida. Spalanzani rolava pelo
chão. Fragmentos de vidro tinham ferido
sua testa, seu peito, seus braços. O
sangue jorrava. Mas se recompôs:
– Corre atrás
dele, corre! Não fica aí parado. Coppelius roubou meu mais belo autômato.
Depois de ter trabalhado vinte anos, e sacrificar minhas forças e minha vida!
Os mecanismos, a linguagem, o andar, é tudo meu! Os olhos, os olhos é que
roubei dele. Maldito, condenado! Corre
atrás dele, me traz Olímpia de volta.
Olha aí os olhos dela!
Natanael viu,
então, dois olhos ensanguentados no soalho. Os olhos olhavam para ele. Spalanzani os segura com sua mão intacta e os joga contra Natanael.
Bateram com força em seu peito. Então a loucura enfiou nele suas garras
ardentes, lacerando-lhe alma e pensamentos. “Haha-ha! Roda de fogo,
roda de fogo,
gira, gira, alegremente, alegremente. Opa! Boneca de madeira, opa, linda boneca de
madeira!” E se atira contra o professor, agarrando-o pela garganta. E o teria
estrangulado, mas a barulheira tinha atraído pessoas, que acorrem em massa e
puxam Natanael, salvando o professor, imediatamente socorrido. Siegmund, apesar
de toda a sua força, não conseguia dominar o demente, que berrava sem parar:
“Boneca de madeira, gira, gira!”, agitando seus punhos fechados. Por fim,
unindo forças, um grupo o segura, o
joga por terra e o amarra. Suas palavras degeneram em rugido bestial,
inquietante. Foi carregado para o
hospício, se debatendo numa raiva assustadora.
Antes de contar,
amigo leitor, o que ocorreu depois com Natanael, posso garantir – se você tem
algum interesse no habilidoso mecânico, o fabricante de autômatos Spalanzani –
que as feridas dele curaram perfeitamente. Teve, porém, de deixar a
universidade, pois a história de Natanael fez grande escândalo, e se
considerava insolência ter introduzido fraudulentamente nos chás elegantes – Olímpia os tinha frequentado com sucesso – uma boneca
de madeira em lugar de pessoa
viva. Os juristas declararam até ser
fraude insidiosa, passível de punição ainda mais severa por ter sido imposta ao
público, em geral, com tanta astúcia, que ninguém – à exceção de alguns estudantes
particularmente inteligentes – tinha se dado conta disso.
Embora
atualmente todos bancássemos os espertos, pretendendo nos recordar da enorme
quantidade de fatos que denunciavam a
fraude. Mas esses próprios fatos não queriam
dizer muita coisa. A quem, por exemplo, pareceria suspeito que
Olímpia, segundo palavras de um dos elegantes tomadores de chá, espirrasse mais
vezes do que bocejava? Quando ela espirrava, dizia esse elegante, era a mola do
mecanismo escondido que dava corda a ela mesma, rangendo, etc.
O professor de poesia e eloquência cheirou rapé, bateu a tampa da tabaqueira, pigarreou e disse, em tom solene: “Honrada assembleia, senhoras e
senhores, não adivinharam onde se
esconde a lebre? Tudo isso não passa de alegoria, uma metáfora prolongada,
compreenderam? Sapient sa!”
Mas acontece
que muitos daqueles
honrados senhores não ficaram satisfeitos com essa coisa
toda. Essa história
de autômato ficou gravada
neles, produzindo, em seguida, terrível desconfiança em relação às figuras humanas em geral.
Para ficarem bem seguros de que não amavam uma boneca de madeira, alguns
namorados exigiam que sua bem-amada não cantasse no compasso
e nem dançasse ritmadamente; que ao ouvir uma leitura, bordasse ou tricotasse
ou brincasse com seu gatinho etc. Mas, sobretudo, não se contentasse apenas em
ouvir, que falasse algumas vezes e suas palavras fizessem supor fosse capaz de
pensar e sentir.
Algumas ligações
amorosas se tornaram mais sólidas e
mais agradáveis e outras foram desfeitas
rapidamente. “Assim, não se pode confiar em ninguém”, dizia tanto um quanto o outro.
Bocejavam demais nos chás, jamais espirrando, para não despertar suspeitas.
Como já
dissemos, Spalanzani teve de fugir, para evitar inquérito policial por haver
introduzido fraudulentamente um autômato na sociedade dos humanos. Coppola
também havia desaparecido.
Natanael acordou
um dia como se tivesse
saído de pesadelo
aterrador. Abriu os olhos,
sentindo indizível volúpia correr por seus membros num calor
suave e celestial. Deitado em sua
cama, Clara se inclinava sobre ele, e sua mãe e Lothar estavam ao lado.
– Por
fim, por fim, meu bem-amado Natanael, você ficou curado dessa grave doença.
Agora, você é meu novamente! – Clara dizia com voz enternecida, apertando
Natanael em seus braços, enquanto ele, acabrunhado de melancolia e langor,
deixava escorrer lágrimas ardentes, suspirando fundo: “Minha Clara, minha!”
Siegmund, que tinha fielmente acompanhado o amigo, chegou. Natanael estendeu a mão para ele:
– Você é amigo de verdade. Não me abandonou.
Todos os sinais
de demência desapareceram. Logo, os cuidados devotados de sua mãe, de sua noiva
e dos amigos lhe devolviam as forças.
Entrementes, a felicidade retorna
àquela casa, pois um tio velhinho, com quem ninguém
se importava, tinha morrido, deixando para a mãe de Natanael pequena fortuna, além de um imóvel situado perto da cidade. Era lá que desejavam se instalar: a mãe, Lothar, Natanael e
Clara, com quem ele deveria se unir em breve.
Natanael estava
mais calmo. Tinha
readquirido a inocência da infância e descoberto o coração admirável, divinamente puro de
Clara. Ninguém fazia alusões ao
passado. Só quando Siegmund foi se despedir, Natanael lhe disse:
– Por Deus,
irmão! Eu ia por um caminho ruim,
mas um anjo me reconduziu, em tempo, à estrada do céu! É Clara, esse anjo.
Siegmund não o deixou prosseguir, com medo de que as recordações dolorosas
ressuscitassem, com força devoradora.
Finalmente,
chegou a hora em que esses quatro felizes mortais iriam se instalar em sua nova
propriedade. Ao meio-dia, atravessaram as
ruas da cidade, pois tinham cumprido
várias obrigações. O alto campanário
projetava sua sombra gigantesca sobre a praça do mercado.
– Ah! – disse Clara.
– Vamos subir mais uma vez lá em cima para vermos
as montanhas ao longe.
Assim foi dito, assim foi feito.
Os dois,
Natanael e Clara, começaram a subir,
enquanto a mãe voltava para casa com uma
empregada. Lothar disse não querer subir todos aqueles degraus e ficaria
esperando embaixo. Os dois amorosos já estavam na alta galeria da torre, de
braços dados, olhando as florestas longínquas e atrás delas as montanhas azuladas, iguais a
uma cidade de gigantes.
– Repare só naquela moita cinzenta, engraçadinha, que parece avançar
para nós – disse Clara.
Natanael
instintivamente põe a mão no bolso, saca a luneta de Coppola e a dirige para
aquele ponto. Clara aparece enquadrada nas lentes.
Súbito, uma convulsão contrai suas artérias
e veias. Mortalmente pálido, via Clara,
mas logo, torrentes de fogo ardem, cintilantes, em seus olhos
desvairados. Urra!... Rugido horrível, de animal acuado. Depois, deu um salto no ar
e grita com voz forte, enquanto ria ameaçadoramente:
– Boneca de madeira, gira, gira! Boneca
de madeira, gira!
Em seguida,
agarrou Clara com violência – quer jogá-la no espaço –, mas Clara segura a
balaustrada, com mortal desespero, em seu pavor. Lothar ouviu as explosões de
raiva do demente e os gritos de infortúnio de Clara. Terrível pressentimento o faz subir a
escadaria de quatro
em quatro degraus.
A porta do segundo andar estava fechada! Louco de raiva
e ansiedade, joga-se contra a porta, que acaba cedendo.
Os gritos
de Clara soam mais fracos,
agora.
– Socorro! Salvem-me! – Ouvia os gritos lá de cima.
“Ela está morta, assassinada por este louco!”,
geme Lothar.
A porta da galeria também estava fechada, mas o desespero deu a Lothar a força que não tinha. Arrebenta a porta, que gira sobre seus
gonzos. Deus do céu! Clara, segura nos braços esticados de Natanael, está
suspensa no espaço, por cima da balaustrada, ainda agarrando as barras de ferro
com as mãos. Rápido como o relâmpago,
Lothar segura a irmã, puxa-a para trás e dá um
soco no rosto do demente, que tomba de costas, largando sua presa.
Lothar desce as
escadas correndo, a irmã em seus
braços. Está salva! Natanael começa a correr de um lado para outro da galeria, aos pulos, gritando:
– Roda de fogo,
gira, gira! Roda de fogo,
gira! As pessoas se juntaram
ao ouvir os gritos selvagens. Entre
elas se destacava a figura gigantesca do advogado
Coppelius, que acabara de
chegar à cidade, indo diretamente para o mercado. Queriam subir para prender o louco, mas Coppelius
começa a gargalhar e diz:
– Ora! Vamos
esperar que desça sozinho! – E levantou
o rosto, como todas as outras pessoas.
De repente, Natanael estaca, como se estivesse
congelado, se dobra sobre a
balaustrada, vê Coppelius, e dá gritos agudos: “Ah! Occhi belli!
Occhi belli!”, salta por cima dela.
Natanael jaz no pavimento, a cabeça arrebentada. E Coppelius desaparece na multidão.
Muitos anos
depois, disseram ter visto Clara, numa região longínqua, sentada ao lado de um
homem de boa aparência. Estavam de mãos dadas, na soleira da linda casa de
campo. Dois alegres garotos faziam travessuras à frente deles. A conclusão:
Clara acabou encontrando a tranquila
felicidade doméstica que convinha a seu caráter
benigno e a seu gosto pela vida.
Felicidade que Natanael, com sua
alma dilacerada, jamais lhe poderia ter dado.
[1817]
(In: O Homem da Areia. Trad. Ary Quintella.
Org. e apresentação Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012).
***
O gato preto
Edgar Allan Poe
Não espero nem peço que acreditem
nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de
escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus
sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente
não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha
alma. Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo, simplesmente,
sucintamente e sem comentários, uma série de eventos nada mais do que
domésticos. Através de suas consequências, esses acontecimentos me
terrificaram, torturaram e destruíram. Entretanto, não tentarei explicá-los
nem justificá-los. Para mim significaram apenas Horror, para muitos parecerão
menos terríveis do que góticos ou grotescos. Mais tarde, talvez, algum
intelecto surgirá para reduzir minhas fantasmagorias a lugares-comuns – alguma
inteligência mais calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta
perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto, nada mais que uma
sucessão ordinária de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância observaram minha
docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato
tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava
especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse um grande
número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos
mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta
peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui
derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer. Todos aqueles que
estabeleceram uma relação de afeto com um cão inteligente e fiel dificilmente
precisarão que eu me dê ao trabalho de explicar a natureza da intensidade da
gratificação que deriva de tal relacionamento. Existe alguma coisa no amor
altruísta e pronto ao sacrifício de um animal que vai diretamente ao coração
daquele que teve ocasiões frequentes de testar a amizade mesquinha e a frágil
fidelidade dos homens.
Casei-me cedo e tive a felicidade de
encontrar em minha esposa uma disposição que não era muito diferente da minha.
Observando como gostava de animais domésticos, ela não perdeu oportunidade para
me trazer representantes das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros,
peixinhos dourados, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal
notavelmente grande e belo, completamente preto e dotado de uma sagacidade realmente
admirável. Ao falar de sua inteligência, minha esposa, cujo coração não era
afetado pela mínima superstição, fazia frequentes alusões à antiga crença
popular de que todos os gatos pretos eram bruxas disfarçadas. Não que ela
jamais mencionasse esse assunto seriamente – e se falo nele é simplesmente
porque me recordei agora do fato.
Pluto – esse era o nome do gato – era
minha mascote favorita e era com ele que passava mais tempo. Era só eu que o
alimentava e o animal me acompanhava em qualquer parte da casa em que eu fosse.
De fato, era difícil impedi-lo de sair à rua comigo e acompanhar-me.
Nossa amizade perdurou desta forma
por diversos anos, durante os quais meu temperamento geral e meu caráter –
devido à interferência da Intemperança criada pelo Demônio – tinham (meu rosto
se cobre de rubor ao confessá-lo) sofrido uma mudança radical para pior. A cada
dia que se passava eu ficava mais mal-humorado, mais irritável, menos
interessado nos sentimentos alheios. Permitia-me usar linguagem grosseira com
minha própria esposa. Após um certo período de tempo, cheguei a torná-la alvo
de violência pessoal. Naturalmente, minhas mascotes sentiram a diferença em
minha disposição. Não apenas as negligenciava, como chegava a tratá-las mal.
Mas com relação a Pluto, entretanto, eu ainda conservava suficiente
consideração para conter-me antes de maltratá-lo, ao passo que não tinha
escrúpulos em judiar dos coelhos, do macaco e até mesmo do cão quando, por
acidente ou até mesmo por afeição, eles se atravessavam em meu caminho. Porém
minha doença cresceu cada vez mais – pois que doença é pior que o vício do
alcoolismo? – e, finalmente, até Pluto, que estava agora ficando velho e, em
consequência, um tanto impertinente, até Pluto começou a experimentar os
efeitos de meu mau humor.
Uma noite, ao chegar em casa bastante
embriagado, depois de um de meus passeios sem destino através da cidade,
imaginei que o gato estava evitando minha presença. Agarrei-o à força; e então,
assustado por minha violência, ele infligiu uma pequena ferida em minha mão com
os dentinhos. A fúria de um demônio possuiu-me instantaneamente. Nem sequer
conseguia reconhecer a mim mesmo. Minha alma original parecia ter fugido
imediatamente de meu corpo; e uma malevolência mais do que satânica, alimentada
pelo gim, assumiu o controle de cada fibra de meu corpo. Tirei um canivete do bolso
de meu colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta pela garganta e
deliberadamente arranquei da órbita um de seus olhos. Encho-me de rubor e meu
corpo todo estremece enquanto registro esta abominável atrocidade.
Quando a manhã me trouxe de volta à
razão – depois que o sono tinha apagado a maior parte do fogo de minha orgia
alcoólica –, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime
que havia cometido. Mas este sentimento foi no máximo débil e elusivo e a alma
permaneceu intocada. Novamente mergulhei em meus excessos e logo afoguei na
bebida toda lembrança de minha má ação.
Enquanto isso, o gato lentamente se
recuperou. A órbita vazia do olho perdido apresentava, naturalmente, uma
aparência assustadora, mas ele não parecia estar sofrendo mais nenhuma dor.
Andava pela casa, como de costume, mas, como se poderia esperar, fugia de mim
em extremo terror cada vez que chegava perto dele. Ainda me restava uma certa
parte de meu ânimo anterior e a princípio lamentei que agora me detestasse
tanto uma criatura que já me havia amado. Mas este sentimento logo deu lugar à
irritação. E então fui acometido, como se fosse para minha queda final e
irrevogável, pelo espírito da Perversidade. A própria filosofia não estudou
este espírito. E todavia, assim como tenho certeza de possuir uma alma vivente,
é minha convicção que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração
humano – uma das faculdades primárias e indivisíveis, um dos sentimentos que
dão origem e orientam o caráter do Homem. Quem já não se flagrou uma centena de
vezes a cometer uma ação vil ou meramente tola por nenhuma razão exceto sentir
que não devia? Não temos todos nós uma inclinação perpétua e contrária a nosso
melhor julgamento para violar as Leis, simplesmente porque compreendemos que
são obrigatórias? Pois foi este espírito de Perversidade, digo eu, que veio a
causar minha queda final. Foi este anseio insondável da alma, que anela por
prejudicar a si mesma, por oferecer violência à sua própria natureza, por
praticar o mal pelo amor ao mal e nada mais, que me impulsionou a prosseguir e
finalmente consumar a injúria que tinha infligido sobre a pequena besta
inofensiva. Uma manhã, a sangue-frio, passei-lhe um laço ao redor da garganta e
o pendurei no galho de uma árvore – enforquei-o com lágrimas nos olhos,
sentindo ao mesmo tempo o remorso mais amargo em meu coração –, assassinei o
pobre gato porque sabia que ele me tinha amado e porque eu entendia muito bem
que ele não me tinha dado razão alguma de queixa – matei-o porque sabia que ao
fazê-lo estava cometendo um pecado – um pecado mortal que iria manchar minha
alma imortal ao ponto de colocá-la – se isso fosse possível – fora do alcance
até mesmo da infinita misericórdia do Deus Mais Misericordioso e Mais
Terrível.
Na noite seguinte ao dia em que
pratiquei esta ação cruel, fui despertado do sono por gritos de “Fogo!”. As cortinas
de meu leito estavam em chamas. A casa inteira estava ardendo. Foi com grande
dificuldade que minha esposa, uma criada e eu mesmo escapamos da conflagração.
A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram consumidos e a
partir desse momento entreguei-me ao desespero.
Estou acima da fraqueza de tentar
estabelecer uma sequência de causa e efeito entre o desastre e a atrocidade.
Mas estou detalhando um encadeamento de fatos – e não desejo deixar imperfeito
um só dos elos da corrente. No dia que se seguiu ao incêndio, visitei as
ruínas. Todas as paredes tinham desabado, à exceção de uma única. Esta exceção
foi a de um aposento interno, uma parede não muito grossa, que se erguia mais
ou menos na metade da casa, justamente aquela contra a qual descansava a
cabeceira de minha cama. O próprio reboco tinha ali, em grande parte, resistido
à ação do fogo – segundo julguei, porque era feito de argamassa nova, talvez
ainda um pouco úmida. Em torno desta parede estava reunida uma grande multidão;
e muitas pessoas pareciam estar examinando um trecho especial dela, com
minuciosa atenção. As palavras “estranho”, “singular” e outras semelhantes
excitaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se estivesse gravado em bas
relief sobre a superfície branca, a
figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão
realmente maravilhosa. Havia uma corda esboçada ao redor do pescoço do
animal.
Da primeira vez que contemplei esta
aparição – porque dificilmente poderia chamá-la de algo menos assombroso –, meu
espanto e meu terror foram extremos. Mas, finalmente, o raciocínio e a reflexão
vieram em meu amparo. O gato, segundo recordava, tinha sido enforcado em um
jardim adjacente à casa. Logo que fora dado o alarme de incêndio, este jardim
ficou imediatamente cheio de basbaques, um dos quais provavelmente tinha
cortado a corda que prendia à arvore o gato e jogado o animal dentro de meu
quarto através de uma janela aberta. Talvez até mesmo a intenção fosse boa,
quem sabe queriam acordar-me do sono e lançassem o animal janela adentro para
esse fim. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima de minha
crueldade na própria substância do reboco recém-aplicado; o cal contido nele,
misturado à amônia proveniente da carcaça, com o calor das chamas, tinha então
realizado o retrato que contemplava agora.
Embora eu satisfizesse minha razão
assim rapidamente, se bem que não tivesse podido acalmar totalmente minha
consciência e tentasse desse modo descartar o fato assombroso que acabei de
descrever, isso não impediu que produzisse forte impressão sobre minha imaginação.
Durante meses não conseguia livrar minha visão interna do fantasma do gato; e,
durante esse período, retornou a meu espírito uma espécie de sentimento que se
assemelhava a remorso, mas não era exatamente isso. Cheguei ao ponto de
lamentar a perda do animal e a procurar, nos ambientes ordinários que agora
habitualmente frequentava, outra mascote da mesma espécie, cuja aparência fosse
semelhante e pudesse ocupar o vazio deixado pela primeira.
Uma noite eu estava sentado,
entorpecido de tanto beber, em um botequim da pior espécie, quando minha
atenção foi subitamente atraída para um objeto preto que repousava sobre a
tampa de uma das imensas bordalesas de gim ou de rum que constituíam o
principal mobiliário da peça. Há vários minutos eu já contemplava fixamente a
tampa desse barril, e o que agora me causava surpresa era o fato de que não
houvesse percebido antes o objeto que se encontrava sobre ele. Aproximei-me a
passos vacilantes, estendi a mão e toquei-o. Era um gato preto – um animal
muito grande –, tão grande quanto Pluto e extremamente parecido com ele em
todos os detalhes, salvo um: Pluto não tinha um pelo branco sequer em qualquer
porção de seu corpo; mas este gato tinha uma mancha branca bastante grande,
embora de formato indefinido, cobrindo-lhe quase inteiramente o peito.
Assim que o toquei, o animal
ergueu-se imediatamente, ronronou bem alto, esfregou-se contra minha mão e
pareceu encantado com minha atenção. Tinha encontrado a própria criatura que
vinha procurando. Imediatamente fui falar com o taverneiro e ofereci-me para
comprar o bichano, mas ele disse que o animal não lhe pertencia – que nunca o
tinha visto antes e que não fazia a menor ideia de onde tinha vindo ou a quem
pudesse pertencer.
Continuei com minhas carícias, e,
quando me dispus a ir para casa, o animal demonstrou estar disposto a me
acompanhar. Permiti-lhe que o fizesse; de fato, durante o caminho,
ocasionalmente parava, curvava-me e fazia-lhe carícias. Quando chegamos à casa
em que agora eu morava, ele familiarizou-se de imediato, adquirindo em seguida
as boas graças de minha esposa.
Quanto a mim, para meu
desapontamento, logo descobri que não gostava do animal. Isto era justamente o
reverso do que havia antecipado; porém – não sei como nem por que – o evidente
prazer que o gato achava em minha companhia me aborrecia e enojava. Lenta e
progressivamente, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se
transformaram em rancor e ódio. Evitava a criatura, sempre que podia; uma certa
sensação de vergonha e a lembrança de meu antigo feito de crueldade evitaram
que eu o machucasse fisicamente. Durante algumas semanas, eu não bati nele nem
o maltratei violentamente; mas gradualmente – muito gradualmente – comecei a
encará-lo com uma repugnância indescritível e a fugir silenciosamente de sua
presença odienta, como se estivesse tentando escapar do sopro sufocante de um
pântano ou do hálito pestilento de uma praga.
Sem a menor dúvida, o que originou
meu rancor pelo animal foi a descoberta, logo na manhã seguinte à noite em que
o trouxe para casa, de que ele, exatamente como Pluto, também tivera um dos
olhos arrancado. Esta circunstância, entretanto, só levou minha esposa a gostar
ainda mais dele, a qual, conforme relatei anteriormente, possuía em alto grau
aquela humanidade de sentimentos que em épocas passadas fora também um de meus
traços característicos e a fonte de muitos de meus prazeres mais simples e
puros.
À medida que aumentava minha aversão
pelo gato, seu amor por mim parecia crescer na mesma proporção. Seguia meus
passos com uma pertinácia que seria difícil fazer o leitor compreender. Onde
quer que me assentasse, vinha enroscar-se embaixo de minha cadeira ou saltar
sobre meus joelhos, cobrindo-me de carinhos nojentos. Se eu me erguesse para
caminhar, ele se intrometia entre meus pés e quase me fazia cair; ou, então,
cravava suas unhas longas e afiadas em minhas roupas e procurava, desta forma,
trepar até chegar a meu peito. Nessas ocasiões, embora eu ansiasse por
rebentá-lo à pancada, ainda me sentia incapaz de fazê-lo, em parte pela
recordação de meu crime anterior, mas especialmente – confessarei de imediato –
porque tinha absoluto pavor daquele animal.
Este pavor não era exatamente um
temor da possibilidade de algum dano físico, todavia não sou capaz de defini-lo
de outra forma. Estou quase envergonhado de admitir – sim, mesmo nesta cela de
condenado tenho quase vergonha de admitir – que o terror e horror que o animal
me inspirava tinham sido muito aumentados por uma das mais ilusórias quimeras
que teria sido possível conceber. Minha esposa me tinha chamado a atenção, mais
de uma vez, para o caráter da mancha de pelo branco que já mencionei e que constituía
a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu tinha morto.
O leitor há de lembrar que esta marca, embora grande, era originalmente muito
indefinida; porém, muito lentamente, de uma forma quase imperceptível, uma
forma que por muito tempo minha Razão lutou para considerar como meramente
fantasiosa, acabou por assumir um contorno rigorosamente distinto. Era agora a
representação de um objeto tal que a simples ideia de mencioná-lo me faz
tremer. Era por isso, acima de tudo, que eu detestava e temia tanto aquele
monstro e teria me livrado dele, se ao menos eu ousasse. Essa imagem, escrevo
agora, era a imagem de uma coisa horrível, uma coisa apavorante... a imagem de
uma FORCA! Ah, melancólico e terrível instrumento de Horror e de Crime – de
Agonia e de Morte!
E agora eis que me encontrava
realmente desgraçado, um miserável além da desgraça e da miséria da natureza
humana. E era um animal sem alma, cujo companheiro eu tinha destruído com
desprezo, era um animal sem alma que originava em mim – eu, que era um homem,
criado à imagem do Deus Altíssimo – tanta angústia intolerável! Ai de mim! Nem
de dia, nem de noite eu era mais abençoado pelo Repouso! Durante o dia a
criatura não me deixava por um único momento; e, de noite, eu me acordava de
hora em hora, despertado de sonhos cheios de um pavor indescritível, para
encontrar a respiração quente daquela coisa soprando diretamente sobre meu
rosto e seu enorme peso – um pesadelo encarnado do qual eu não poderia jamais
me acordar, oprimindo e esmagando eternamente o meu coração!
Sob a pressão de tormentos assim, os
débeis traços que restavam de minha boa natureza sucumbiram totalmente. Os maus
pensamentos se tornaram meus amigos íntimos, meus únicos amigos, logo os
pensamentos mais ímpios e mais maléficos. O mau humor de minha disposição
habitual transformou-se em um rancor indefinido voltado para todas as coisas e
para toda a humanidade; e os acessos de fúria súbitos, frequentes e
incontroláveis aos quais eu agora me abandonava cegamente e sem o menor remorso
eram descarregados – ai de mim! – precisamente sobre minha esposa, a sofredora
mais paciente e mais constante, que nunca emitia sequer uma palavra de queixa
ou de revolta contra mim.
Um dia ela me acompanhou, com a
intenção de executar alguma tarefa doméstica, ao porão do velho edifício em que
nossa pobreza atual nos obrigava a morar. O gato me seguiu pelos degraus
íngremes e, quando me fez tropeçar e quase me levou a cair escada abaixo,
deixou-me exasperado a ponto de enlouquecer. Erguendo um machado, esquecido em
minha cólera do medo infantil que até então havia impedido que levantasse um
dedo contra ele, dirigi um golpe ao animal que, sem a menor dúvida, teria sido
fatal se tivesse acertado onde eu queria. Porém a machadada foi impedida pela
mão de minha esposa a segurar-me o braço. Esta interferência me lançou em uma
raiva mais do que demoníaca: arranquei o braço de seu aperto e, com um único
golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem
soltar um único gemido.
Tendo cometido este assassinato
pavoroso, imediatamente, sem remorsos e da maneira mais deliberada possível,
voltei-me para a tarefa de esconder o corpo. Sabia que não podia removê-lo da
casa, tanto de dia como de noite, sem correr o risco de ser observado pelos
vizinhos. Uma série de projetos passou por minha cabeça. Durante algum tempo,
pensei em cortar o corpo em minúsculos fragmentos que depois destruiria no
fogo. Depois pensei em cavar-lhe uma cova no chão do porão. Também me passou
pela cabeça jogar o cadáver no poço que ficava no pátio; ou colocá-lo dentro de
uma caixa, como se fosse uma mercadoria, aplicando todos os cuidados que em
geral se dedica à preparação de tais volumes e contratando um carregador para
retirá-lo da casa. Finalmente, imaginei o que me pareceu ser um expediente
melhor que qualquer um desses. Resolvi emparedá-lo em um dos cantos do porão –
conforme dizem que os monges da Idade Média costumavam fazer com suas
vítimas.
O porão estava perfeitamente adaptado
para esse propósito. Suas paredes tinham sido muito mal-construídas e há pouco
tempo tinham sido novamente rebocadas com uma argamassa grosseira, que a umidade
do ambiente não deixara endurecer. Além disso, em uma das paredes havia uma
projeção, causada por uma falsa chaminé ou lareira que tinha sido preenchida
com tijolos na intenção de assemelhá-la ao restante das paredes do porão. Não
tinha dúvidas de que poderia facilmente retirar os tijolos neste ponto, enfiar
o cadáver e depois restaurar a parede inteira ao estado anterior, de tal modo
que olhar algum poderia detectar qualquer coisa suspeita.
Não me enganava neste ponto. Com um
pé de cabra retirei facilmente os tijolos e, depois de depositar o corpo
cuidadosamente contra a parede interna, ergui-o de modo a deixá-lo em pé,
apoiado contra a parede. Com pouca dificuldade recoloquei os tijolos e deixei a
estrutura precisamente da maneira em que se achava antes. Tendo trazido cal,
areia e uma porção de pelos de animais retirados de couros, como era costume na
época, preparei, com todas as precauções possíveis, uma argamassa que não podia
ser diferente da que recobria o restante da parede e com esta reboquei muito
cuidadosamente os tijolos que havia recolocado. Ao terminar, sentia-me
satisfeito com a perfeição do trabalho. A parede não apresentava o menor sinal
de que tinha sido modificada. Recolhi a caliça do chão com o cuidado mais
minucioso. Olhei ao meu redor triunfantemente e congratulei-me: “Pelo menos
desta vez não trabalhei em vão”.
Minha próxima tarefa era a de
procurar a besta que tinha sido a causa de tamanha desgraça, porque tinha,
finalmente, a firme resolução de matá-la. Se nesse momento tivesse podido
encontrá-la, seu destino estaria selado, mas aparentemente o animal ardiloso
tinha pressentido alguma coisa ou se amedrontado com a violência de minha raiva
anterior, evitando apresentar-se diante de mim enquanto durasse minha má
disposição. É impossível descrever ou imaginar a sensação de alívio profunda e
abençoada que a ausência da detestada criatura causou em meu peito. Melhor
ainda, o gato não apareceu nessa noite – e assim, ao menos por uma noite, desde
que o desgraçado se introduzira em minha casa, dormi profunda e tranquilamente;
sim, dormi o sono dos justos, mesmo que tivesse agora o peso de um assassinato
em minha alma!
Passaram-se o segundo e o terceiro
dias e meu atormentador não regressou. Novamente eu respirava como um homem livre.
O monstro tinha fugido aterrorizado e deixado para sempre minha companhia!
Nunca mais iria vê-lo! Minha felicidade era suprema! O remorso ocasionado por
minha ação tão negra e perversa praticamente não me perturbava. Algumas
perguntas haviam sido feitas, mas fora fácil responder. Até mesmo havia sido
feita uma busca pela polícia, mas naturalmente não haviam descoberto nada.
Pensei que minha felicidade futura estava assegurada.
Mas no quarto dia depois do
assassinato, uma patrulha da polícia retornou, muito inesperadamente, entrou em
minha casa e recomeçou a fazer uma investigação rigorosa do prédio. Achava-me
seguro, todavia, devido à impenetrabilidade do lugar em que escondera o
cadáver, e assim não me senti nem um pouco constrangido pela busca. Os policiais
ordenaram-me que os acompanhasse enquanto procuravam. Não deixaram nem canto
nem escaninho sem explorar. Finalmente, pela terceira ou quarta vez, desceram
ao porão. Não senti estremecer nem um só de meus músculos. Meu coração batia
calmamente como o de alguém perfeitamente inocente. Caminhei de ponta a ponta
do porão. Cruzei os braços e fiquei andando de um lado para outro. A polícia
finalmente satisfez-se e estava a ponto de partir, desta vez em definitivo. A
alegria em meu coração era grande demais para ser contida. Ansiava para dizer
ao menos uma palavra de triunfo e queria garantir-me duplamente de que eles me
julgavam inocente.
– Cavalheiros – disse finalmente,
enquanto o grupo subia as escadas –, estou encantado por ter desfeito todas as
suas suspeitas. Desejo a todos uma boa saúde e um pouco mais de cortesia. A
propósito, cavalheiros esta casa, esta casa é muito bem-construída. (Tomado de
um violento desejo de aparentar a maior naturalidade, falava sem prestar muita
atenção no que dizia.) Posso até dizer que é uma casa excelentemente
bem-construída. Estas paredes – já estão de partida, cavalheiros? –, estas
paredes são muito sólidas.
E foi neste ponto que, tomado por um
estúpido frenesi de bravata, bati pesadamente com uma bengala que tinha na mão
justamente sobre aquela porção da parede atrás da qual jazia o cadáver da
esposa que tinha apertado tantas vezes contra o peito.
Possa Deus escudar-me e proteger-me
das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a reverberação dos golpes que havia
dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma voz de dentro do túmulo! –
respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de
uma criança, mas rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo,
totalmente anormal e desumano – um uivo –, um guincho lamentoso, meio de horror
e meio de triunfo, tal como só poderia ter subido das profundezas do inferno,
um berro emitido conjuntamente pelas gargantas de centenas de condenados à
danação eterna, torturados em sua agonia, e pelos demônios que exultam em sua
condenação.
É tolice tentar descrever meus
pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede oposta. Por um
instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um
misto de espanto e profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços
robustos esforçava-se por esboroar a parede. Ela caiu inteira. O cadáver, já
bastante decomposto e coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os
olhos dos espectadores, na mesma posição em que eu o deixara. Mas sobre sua
cabeça, com a boca vermelha escancarada e uma chispa de fogo no único olho,
sentava-se a besta horrenda cujos ardis me tinham levado ao assassinato e cuja
voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro
dentro do túmulo!
[1843]
(Fonte: Internet)
***
Sem olhos
Machado de Assis
O chá foi servido na saleta das palestras íntimas às quatro visitas do casal Vasconcelos. Eram estas o sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o desembargador Cruz. A conversa, antes do chá, versava sobre a íntima soirée do desembargador; quando o criado entrou, passaram a tratar da morte de um conhecido, depois das almas do outro mundo, de um conto de bruxas, finalmente de lobisomem e das abusões dos índios.
– Pela minha parte – disse o Sr. Bento Soares –, nunca pude compreender como o espírito humano pode inventar tanta tolice e crer no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito às suas próprias ilusões; para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem feito...
– Que tem isso? – observou o desembargador apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse o chá –; a vida do homem é uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras.
– Queres mais chá, Maria? – perguntou a dona da casa à esposa de Bento Soares que acabava de beber a última gota do seu.
– Não.
O bacharel Antunes apressou-se a receber a xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça, que lhe rendeu o mais doce dos sorrisos.
– Eu acompanho o desembargador –, disse Bento Soares.
Enquanto o bacharel Antunes ampliava ao marido de Maria o obséquio que acabava de prestar a esta, com a mesma solicitude, mas sem receber do mesmo nem outro sorriso, e passava ao criado a xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas ideias acerca das abusões humanas. Bento Soares estava profundamente convencido que o mundo todo tinha por limites os do distrito em que ele morava, e que a espécie humana aparecera na Terra no primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento. Esta convicção diminuía ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e reduzia a história do planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e vários acontecimentos locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia tempos pré-soáricos. Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da carocha, mal podia compreender que houvesse homem no mundo capaz de ter crido neles uma vez ao menos.
A conversa porém bifurcou-se; enquanto o desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa algumas notícias relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas senhoras conversavam com o bacharel sobre um ponto de toilette... Maria do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo, porquanto as feições eram consoantes à estatura; tinha uns olhos miúdos e redondos, uma boquinha que o bacharel comparava a um botão de rosa, e um nariz que o poeta bíblico só por hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão, que, essa, sim, era um lírio dos vales – lilium convalium –, parecia arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu filho; e eu peço perdão desta mistura de cousas sagradas com profanas, a que sou obrigado pela natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num altar; mas, se movia os olhos, era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito peculiar de usar deles que enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia nessa noite um vestido cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as duas senhoras. Antunes, sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à esposa de Bento Soares, opinava que era geral acontecer o mesmo às demais cores; donde se pode razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais bela de Maria não era o vestido, mas ela mesma.
Uma contestação, em voz mais alta, chamou a atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento Soares dizia que o desembargador mofava da razão afiançando acreditar em almas do outro mundo; e o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas não era cousa que absolutamente se pudesse negar.
– Mas, desembargador, isto é querer supor que somos uns beócios. Pois fantasmas...
– Não me dirá nada de novo –, interrompeu Cruz –; sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não obstante, existem.
– Como as bexigas; também se diz muita cousa contra elas.
– Fantasmas! – exclamou Maria do Céu –. Pois há quem tenha visto fantasmas?
– É o desembargador quem o diz – observou Vasconcelos.
– Deveras?
– Nada menos.
– Na imaginação – disse o bacharel.
– Na realidade.
Os ouvintes sorriram; Maria fez um gesto de desdém.
– Se a entrada na Relação dá em resultado visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas às minhas ambições – observou o bacharel olhando para a esposa de Bento Soares, como a pedir-lhe aprovação do dito.
– Os fantasmas são fruto do medo – disse esta, sentenciosamente –. Quem não tem medo não vê fantasmas.
– Você não tem medo? – perguntou a dona da casa.
– Tanto como deste leque.
– Sempre há de ter algum – opinou Vasconcelos.
– Não tenho medo de nada nem de ninguém.
– Pode ser – interveio o desembargador –; mas se visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria apavorada.
– Alguma bruxa?
– O Diabo?
– Um defunto à meia-noite?
– Um duende?
Cruz empalidecera.
– Falemos de outra cousa – disse ele.
Mas o auditório tinha a curiosidade aguçada, e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam crescer o apetite. Os homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles. Cruz imolou-se ao sufrágio universal.
– O que eu vi foi há muitos anos – disse ele –; ainda assim conservo a memória fresca do que me aconteceu. Não sei se poderei ir até o fim; e desde já estou certo de que vou passar uma triste noite...
Uma risadinha de Maria do Céu interrompeu o desembargador.
– Prepare o auditório! – disse ela –. Vamos ver que a montanha dá à luz um ratinho.
Alguns sorriram; mas o desembargador estava sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de rapé, enquanto Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande silêncio; só se ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu. O desembargador olhou para os interlocutores, como a ver se era possível evitar a narração; mas a curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível resistir.
– Vá lá! – disse ele –; Contarei isto em duas palavras. Quando eu estudava em São Paulo raras vezes gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar algumas semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu primeiro e último namoro; paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a morte extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma casa da rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que parecia ter mais de cinquenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os dois moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de cima não tinha criado.
A primeira vez que o vi foi logo no dia seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor dei com ele na escada, que ia do primeiro para o segundo andar; de pé, com livro aberto nas mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a olhar de baixo para ele, durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a suspeitar se seria algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.
Dois dias depois, estando eu à noite em casa, perto das onze horas, a ler na minha sala, senti alguém bater-me à porta; fui abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na mão, talvez o mesmo que lia dois dias antes na escada, não sei.
– Venho incomodá-lo, não? – disse ele.
Fiz um gesto duvidoso, e fiquei a olhar para ele como quem espera uma explicação.
– O morador da loja – continuou ele – disse-me hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar uma cousa. Sabe hebraico?
– Não.
– É pena! - disse ele consternado.
Ficou alguns instantes silencioso a olhar para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:
– Ando a ver se meto dente numa passagem de Jonas.
Dizendo isto, sentou-se abrindo o livro sobre os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o nome daquela região; mas o que ele tinha naquele lugar das pernas eram dois verdadeiros pregos, tão magro estava. A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico. Esteve algum tempo ainda silencioso, até que continuou:
– Há aqui um versículo de Jonas, é o 11 do cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda?”. Como entende o senhor este versículo?
A ideia de que o vizinho era doido apoderou-se logo de meu espírito. Que outra cousa seria, vindo consultar a semelhante hora a um vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas? Também eu não tinha medo nesse tempo – tal qual como a Sra. D. Maria do Céu –, deixei-me estar quieto na cadeira, a olhar sem responder, contendo uma grande vontade de rir.
– Que lhe parece? – repetiu o vizinho.
– Que quer o senhor que me pareça?
– “Homens que não sabem discernir a mão direita da esquerda”; frase que, geralmente, tem um sentido óbvio, e vem a ser nada menos que isto: o profeta refere-se às crenças ninivitas. Jeová quer perdoar à cidade por amor dos meninos que ela encerra. Mas eu dou do texto uma interpretação que vai assombrar o mundo.
– Sim?
– Jonas não alude às crianças, mas aos canhotos que são os homens que não podem discernir a direita da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a importância da minha interpretação. Duas cousas se concluem dela: primeira, que os ninivitas eram geralmente canhotos; segunda, que o ser canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão nasceu uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao Diabo é estar fora do espírito bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.
A profunda convicção com que ele disse tudo isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim, confesso que me impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era concordar, declarando que a sua opinião era por força verdadeira.
– Não lhe parece? – disse ele –. Contudo, não sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém que me dissesse se o texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a expressão bíblica é essa ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei um livro. Afiança-me que não sabe hebraico?
– Não sei sequer o alfabeto.
– Nesse caso há de perdoar.
Dizendo isto, ergueu-se, fez-me uma cortesia e deu um passo para a porta. Ali parou e voltou-se.
– Esquecia-me dizer-lhe o meu nome; devia de ser a primeira cousa. Chamo-me Damasceno Rodrigues; moro há três anos aqui em cima, onde estou às suas ordens. Viva.
Não esperou que lhe dissesse o meu nome; curvou-se e saiu. Imaginam facilmente como fiquei; a vontade de rir foi o primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio e curiosidade. No dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca de Damasceno Rodrigues. Tirou-as e o que liquidei delas foi que o meu vizinho morava ali havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica; que vivia pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da vizinhança ou ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro ninguém o tinha por doido, mas que algumas velhas o supunham ligado com o Diabo. Esta crença, comparada com a ideia que o homem tinha a respeito do Canhoto, dava bem para uma anedota romântica que eu podia escrever logo depois que voltasse a São Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo alguns dias depois.
O segundo andar era antes um sótão puxado à rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais. Subi. Achei-o na sala, estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era tão velho e alquebrado como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um aparador, uma mesa, alguns farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de fios, tais eram as alfaias da casa de Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram duas, adornavam-se com umas cortinas de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a cômoda e a mesa havia alguns objetos disparatados; por exemplo, um busto de Hipócrates ao pé de um bule de louça, três ou quatro bolos, meio pote de rapé, lenços e jornais. No chão também havia jornais e livros espalhados. Era ali o asilo do vizinho misterioso.
Achei-o, como lhes disse, estirado na rede, a olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu falei-lhe e ele ergueu um pouco a cabeça.
– Quem é? – disse ele.
– Eu.
– O senhor?
– Seu vizinho de baixo.
– Ah! – disse ele erguendo-se –. Pode entrar.
– Não se incomode; vinha apenas pagar-lhe a visita.
Damasceno tinha-se levantado; e das cadeiras ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas, porque das outras duas, uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três pés somente.
– Não é incômodo – disse ele sorrindo –; dá-me até muito prazer.
O riso de Damasceno era pior que a seriedade; sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um gesto diabólico; à tudo resiste porém a ambição do escritor juvenil. Eu queria uma novela, e estava disposto a conversar com o Diabo em pessoa. Para dizer alguma cousa, falei-lhe na passagem de Jonas.
– Descobriu alguma cousa? – perguntei-lhe.
– Nada -–tornou ele –; mas cuida que pensei mais em semelhante assunto?
– Suponho.
– Qual! No dia seguinte deixei-o de lado.
– Entretanto, creio que era importante decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao Diabo...
Damasceno interrompeu-me com uma risadinha sardônica e gelada, que me tapou a boca. Não tive ânimo de continuar e faltava-me assunto para entretê-lo. Ele, entretanto, meteu as mãos nas algibeiras das calças e começou a andar de um para outro lado, ora cabisbaixo e silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma cousa que eu não podia perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice precoce, uma expressão de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar impunemente. Ao mesmo tempo era tão extraordinária a figura e tão singulares os costumes dele, que a gente tinha prazer em o conversar e atrair, quando menos por sair um pouco da vulgaridade dos outros homens.
Damasceno passeou cerca de oito minutos, sem me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de mim.
– Mancebo – disse ele –, quais são as suas ideias a respeito da lua?
– Poucas... algumas notícias apenas.
– Sei – disse ele desdenhosamente –; o que anda nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O que eu lhe pergunto...
– Adivinho.
– Diga.
– Quer saber se também suponho que o nosso satélite seja habitado?
– Qual! São devaneios, são conjecturas... A lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma ilusão dos sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto que a ciência ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em certos dias do mês, o olho humano padece uma contração nervosa que produz o fenômeno lunar. Nessas ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo, branco e luminoso! O círculo está nos próprios olhos do homem.
– Pode ser.
– Nem é outra cousa.
– Donde se conclui que todos somos lunáticos –, aventurei eu galhofeiramente.
– Talvez – redarguiu ele rindo muito.
Depois de rir, caiu na rede; as pernas, que andavam à larga nas calças aliás estreitas, cruzavam-se à maneira oriental, e ele ficou sentado defronte de mim.
– Lunáticos! – repetiu ele.
– Dada a sua teoria – expliquei eu.
– Teoria de lunático?
– Perdão.
Já me não ouvia; com os dedos no ar fazia figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e triângulos, rindo à toa, com o riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não havia dúvida; era uma alma sem consciência. Arrependi-me de alguma cousa que disse menos pousada, e procurei ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o irritar. Não me foi difícil; três vezes me despedi, sem que ele me respondesse; saí sem objeção.
Chegando ao meu aposento, senti alguma cousa semelhante ao prazer de um homem que foge a um perigo ou a um incidente desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem juízo não era segura. Eu cuidava ter diante de mim um espírito original; saía-me um louco: o interesse diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar ali as minhas relações com Damasceno.
Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intactas todas as molas do cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de cabeça e palpitações do coração.
– Temo que isto vá a acabar – disse ele à segunda vez.
– Não diga isso!
– Verá; estou à beira da eternidade; vou dar o salto mortal.
Não alimentei a conversa, e saí. Nessa noite contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me procurara com muitas instâncias dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era provavelmente alguma nova fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não queria animar os desvarios de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava em casa nem o procurei. Alta noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de cima. Subi devagarinho, colei o ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada mais ouvi.
Soube no dia seguinte que Damasceno adoecera. Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca fechava as portas, não foi preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado na cama, com os olhos cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por fora da coberta. Abriu os olhos, e sorriu ao ver-me.
– Que tem? – perguntei.
– Uma opressão no peito.
– Tomou alguma coisa?
– Que me fizesse mal?
– Não; algum remédio.
– Não tomei nada.
– Bem; é preciso ver o que isso é; vou mandar vir um médico.
Damasceno tinha os olhos cravados na parede; não me respondeu. Ia sair para dar ordens ao meu criado quando vi o enfermo sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava ao lado dos pés, clamar aflito:
– Não! Ainda não! Vai-te! Depois! Daqui a um ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda! Deixa-me!
Corri a Damasceno, falei-lhe, apalpei-lhe a testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se. Uma vez deitado, ficou arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os olhos para os pés da cama.
– O que é que sente? – perguntei.
Não disse nada; talvez me não ouvisse. Saí para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do enfermo. Estava dormindo. O médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou enfim alguma cousa, que imediatamente mandei preparar na mais próxima botica. Mandei a uma casa da vizinhança arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me a não sair de casa nesse dia.
Não contava com o amor; duas linhas escritas em uma folha de papel bordado – como se usava no meu tempo – vieram mudar a resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer muitas recomendações ao criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite achava-me em casa; fui ter logo com o doente. Achei-o sossegado.
– Entre, entre, meu amigo – disse ele –; deixe-me chamar-lhe assim porque não tenho ninguém mais a quem dê esse doce nome.
– Está melhor?
– Estou; mas são melhoras passageiras.
– Não diga isso.
– São. Isso há de acabar cedo; sabe o que é a morte?
– Imagino.
– Não sabe. A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.
– Pois matemos o verme–- disse eu, apresentando-lhe uma colher do remédio.
Damasceno olhou para o remédio e para mim e sorriu, com uma expressão de tranquilo ceticismo.
– Pobre moço! – disse ele depois de alguns instantes de silêncio.
– Vamos!
– Logo mais, amanhã, ou depois que eu morrer. Talvez ainda possa fazer algum beneficio ao meu cadáver. A alma não bebe água.
Insisti, mas foi baldado. Damasceno resistiu intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe pareceram excessivas começou a irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio, proveniente da exacerbação, cedi; fui ter com o criado que me referiu haver Damasceno tomado apenas uma colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o tranquilo.
A luz do quarto era pouca, e esta circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do pobre velho alienado não menos que às recordações que já me prendiam a ele, tornara a situação por extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o pulso; batia apressado; a testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos esses exames sem dizer nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à minha pessoa e à situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência do enfermo em continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de desânimo, e ao sair disse-me que era homem perdido.
A perspectiva não era para mim agradável. Não podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de assistir à sua morte naquela noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois colegas de São Paulo, residentes na Corte, pedindo-lhes que viessem passar a noite comigo. O criado saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.
No fim de alguns minutos, vi que Damasceno se agitava. Perguntei-lhe o que tinha.
– Nada – respondeu ele–-; mudo de posição. Que horas são?
– Nove e um quarto.
– O senhor pretende passar a noite comigo?
– Naturalmente.
O rosto do enfermo iluminou-se.
– Boa alma! – exclamou ele.
Depois procurou a minha mão e teve-a presa entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma expressão de agradecimento, que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e dura.
– Que lhe fiz eu para merecer tanta dedicação? – perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.
– Não falemos disso.
Damasceno calou-se.
– Que idade tem?
– Vinte e dois anos.
– Feliz! Feliz!
Calou-se outra vez e pareceu concentrar-se de novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para mim dizendo:
– Quero pagar-lhe os seus benefícios.
– Pagará depois.
– Não; há de ser já.
Ergueu o corpo, apoiando o cotovelo na cama, pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos de uma luz repentina e única.
– Mancebo – disse ele, com a voz cava –; não olhe nunca para a mulher do seu próximo!
– Sossegue – disse eu.
– Sobretudo não obrigue a que ela olhe para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda.
A gravidade com que ele proferiu estas palavras excluía toda a ideia de loucura. A própria fisionomia parecia revelar o regresso da consciência. Olhei para ele algum tempo sem responder, nem ousar pedir-lhe explicação. Damasceno fitou o ar com expressão melancólica, abanou a cabeça três vezes e suspirou. Depois a cabeça caiu sobre o ombro, e ele ficou algum tempo quieto. Ouvindo o sino das dez horas, abriu os olhos e voltou-se para mim.
– Por que se não vai deitar?
– Não tenho sono.
– Perder uma noite por causa de um desconhecido!
– Não se preocupe comigo; descanse, que é melhor.
Damasceno meteu a mão debaixo do travesseiro, como procurando alguma cousa. Era uma chave. Deu-ma.
– Abra-me a gavetinha da cômoda, a do lado da rua.
– E depois?
– Tire de lá uma caixinha.
Obedeci. A caixinha era de couro e teria um palmo de comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama e olhou mudo para ela. Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e ele tirou de dentro um pequeno maço de papéis.
– Se eu morrer – disse ele –, queime isto.
– Feche tudo, é melhor.
– Não é preciso. O que aí está é um segredo, mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há pouco que não consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu próximo? Pois bem; saberá o resto.
A curiosidade pendurou-se-me dos olhos e, apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele reparasse nisto, porque vi-o sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.
– São papéis de família – continuou Damasceno –; cousas que só a mim interessam. Há aqui porém uma cousa que o senhor pode ver desde já.
Dizendo isto, destacou do maço de papéis uma miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da luz e vi uma formosa cabeça de mulher, e os mais expressivos olhos que jamais contemplei na minha vida. Ao restituir a miniatura reparei que ele a desviou apressadamente dos olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre os papéis.
– Viu-a?
– Vi.
– Não me diga nada do que lhe parece. Imagino qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha há quinze anos, diante do original. Ela tinha vinte anos; eu, vinte e cinco...
Damasceno interrompeu-se; arrependia-se talvez; e eu não ousava, em tal situação, mostrar-me indiscreto e curioso. Ele entretanto atava o maço de papéis e a miniatura com um cadarço velho, e entregou-me tudo.
– Guarde. Jura que queimará isso?
– Juro.
Guardei no bolso o maço enquanto ele, reclinando o corpo, ficou tranquilo. Durante cinco minutos nada disse; começou a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de louco. Esta circunstância chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o retrato cousas sem valor, a que ele em seu desvario atribuía tamanha importância? Damasceno falou de novo.
– Guardou?
– Guardei.
– Deixe ver.
– Está aqui – disse-lhe eu, mostrando o embrulho.
– Está bem.
E depois de uma pausa:
– Eu era moço, ela, moça; ambos inocentes e puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.
– Um olhar!
– Era no interior da Bahia; Lucinda casara-se na capital com o dr. Adr... Não importa o nome; era médico como eu, mas rico e dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por Jeremoabo naquele tempo. Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele. A mulher era linda como o senhor a viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento. Havia nela tanta modéstia e recato – talvez medo –, que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Mas não era assim; o marido era cauteloso e suspeitoso; ameaçava-a e fazia-a padecer. Eu percebi isso, e a compaixão apoderou-se de mim. A compaixão é um sentimento pérfido; abstenha-se dele ou combata-o. Quem sabe se a que sente agora por mim não lhe dará mau resultado?
Estremeci ouvindo esta última palavra. Ele parou um instante e continuou:
– Lucinda não me olhava nunca. Era medo, era talvez uma intimação do marido. Se me falava alguma vez era secamente e por monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor pelo mais natural dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem repercussão. Um dia, em que a vi mais triste que de costume, atrevi-me a perguntar-lhe se padecia. Não sei que tom havia em minha voz, e certo é que Lucinda estremeceu, e levantou os olhos para mim. Cruzaram-se com os meus, mas disseram nesse único minuto – que digo? Nesse único instante – toda a devastação de nossas almas; corando, ela abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a confirmação de seu crime; eu deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No meio dessa sonolência moral em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à realidade da vida. Ao mesmo tempo achou-se defronte de nós a figura do marido. Nunca vi mais terrível expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma Medusa. Lucinda caiu prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a explicar nem a pedir explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à primeira manifestação silenciosa da cólera uma cousa mais apagada e mais terrível, uma resolução fria e quieta. Com um gesto despediu-me; quis falar, ele impôs-me silêncio com os olhos. Quase a sair, voltei e, apesar da oposição, expus-lhe toda a singularidade de seu procedimento. Ouviu-me calado. Vendo que nada alcançava e não querendo que sobre a infeliz pairasse a menor suspeita, nem que ela padecesse sem outro motivo mais grave, expus-lhe francamente os meus sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição que Lucinda me inspirara, protestando com todas as forças pela inteira dignidade da infeliz. Riu-se, e não me disse nada. Despedi-me e saí...
Estas recordações pareciam abater o enfermo. A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca; ele fez uma longa pausa, cobrindo os olhos com as mãos ocas e transparentes. Alguns minutos depois continuou:
– Passaram-se algumas semanas. Um dia, levado por necessidades de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em Lucinda e um pouco receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia morrido; e a pessoa que me deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não revelou mais nada, apesar de minhas instâncias. Que teria havido? A ideia de que o marido a houvesse assassinado apoderou-se de meu espírito; mas eu não ousava formular a pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera suicídio, de outros, que desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas doente e às portas da morte. Esta diversidade de notícias era claro indício de que alguma cousa grave se passava ou estava passando. Fui ter à propriedade do marido, resoluto a saber tudo e a salvar a vida da inocente, se fosse possível...
Damasceno interrompeu-se de novo. Estava cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por algum tempo a narração ou guardasse o fim para o dia seguinte, apesar da curiosidade que me picava interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita lucidez com que ele me referia aquelas cousas, a comoção da palavra, que nada tinha do vago e desalinhado da palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que me consultara acerca de Jonas e me expusera uma teoria nova acerca da lua? Enquanto, em meu espírito, resolvia esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito, como buscando melhor cômodo. A vela estava a extinguir-se, acendi outra e fui até à janela ansioso pelo criado e os dois amigos a quem escrevera. A rua estava deserta; apenas ao longe se ouvia o passo de um ou outro transeunte. Voltei ao quarto. Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado sobre os travesseiros.
– Não tenha medo – disse ele –, venha ouvir o resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o médico. Logo que soube que eu o procurara, veio receber-me contente. Disse-lhe francamente o que ouvira dizer a respeito da mulher, as opiniões e versões diferentes, a necessidade que havia de instruir o povo da verdade e retirar de sobre ele alguma suspeita terrível. Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me que eu fizera bem em ir vê-lo; que Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de cogitar na punição que daria ao olhar da moça, resolvera castigar-lhe simplesmente os olhos... Não entendi nada; tinha as pernas trêmulas e o coração batia-me apressado. Não o acompanharia decerto, se ele, apertando-me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até uma sala interior... Ali chegando... vi... oh! É horrível! Vi, sobre uma cama, o corpo imóvel de Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê”, disse ele, “só lhe castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh, nunca mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; Ele os vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu coração: “Os olhos delinquiram, os olhos pagaram!”.
A cabeça do enfermo rolou sobre os travesseiros, enquanto eu, aterrado do que ouvia e da expressão de sincero horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de mim como procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.
De repente, dando um estremeção, ergueu a cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da cama:
– Vai-te! – exclamou ele aflito –. Vai-te! Ainda não!... Olhe!... Olhe! Lá está ela! Lá está!... O dedo magro e trêmulo apontava alguma cousa no ar, enquanto os olhos, mortalmente fixos, resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana. Insensivelmente olhei para o lugar que ele indicava... Olhei; e podem crer que ainda hoje não esqueci do que ali se passou. De pé, junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensanguentadas.
Naquela meia luz da alcova, e no alto de uma casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e uma estranha aparição, confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a razão. Batia-me o queixo, as pernas tremiam-me tanto, eu ficara gelado e atônito. Não sei o que se passou mais; não posso dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos se me apagaram também, e perdi de todo os sentidos.
Quando dei acordo de mim, estava no meu quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara chamar. Ambos procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara no quarto de Damasceno; precaução ociosa, porque nada me lembrava então e o abalo fora tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel, entre a agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.
Acordei com sol alto. Pude então recordar a cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e gelar a alma. Quis ir ver o doente porque, apesar dos sucessos anteriores, interessava-me o pobre velho condenado a uma triste visão perpétua.
– É tarde! – disseram-me.
– Por quê?
– O doente morreu.
Senti que uma gota me brotava dos olhos, foi a única lágrima que ele obteve dos homens.
Meus colegas referiram-me que a morte sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado. Damasceno morreu a falar das mais desencontradas cousas: de guerras, de meteoros e de São Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar o sol, que dizia estar diante dele. Morreu enfim, ou antes, restituiu-se à eternidade, segundo a expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto que visitara por algum tempo a terra.
Não pude assistir ao enterro; estava abatido e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério. Com um deles fui dormir aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las debaixo do mesmo teto em que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o que pertencia a Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de algumas apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.
Só muitos dias depois atrevi-me a ver de novo o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não foi sem terror, e arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me reproduziu logo ante os olhos. Era miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo; eu compreendia não só a loucura de Damasceno, mas também a ferocidade do esposo.
O desembargador fez pausa, no meio do geral silêncio de constrangimento que sua narração produzira. Vasconcelos foi o primeiro que falou:
– Não podemos duvidar que o senhor visse a figura dessa mulher – disse ele –; mas como explicar o fenômeno?
– A dificuldade é maior do que pensa – acudiu o desembargador –. O episódio teve um epílogo.
– Ah!
– Quando referi a aparição a algumas pessoas, ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam o caso a um pesadelo. Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais tarde, já senhor de mim, determinei contar a catástrofe de Damasceno em um jornal que escrevíamos na Academia. Tratando de colher alguma cousa mais acerca do infeliz, vim a saber, com grande surpresa, que ele nunca estivera na Bahia, nem saíra do Sul. Já então não era só o interesse literário que me inspirava; era a liquidação de um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno. Casara aos vinte e dois anos em Santa Catarina, donde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto, encontrar-se com o original do retrato, aos vinte e cinco, solteiro, em Jeremoabo; finalmente, a miniatura que me confiara era simplesmente o retrato de uma sobrinha sua, morta solteira. Não havia dúvida; o episódio que ele me referira era uma ilusão como a da lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de alienado.
– Mas, sendo assim...
– Sendo assim, como vi eu a mulher sem olhos? Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é certo, tão claramente como os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os observadores da natureza humana lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um abismo ao pé de si? Como é que Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?
– O seu caso é talvez mais simples que esses todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com que o senhor visse o que ele supunha ver.
– Pois é pena! – exclamou o desembargador –, a história de Lucinda era melhor que fosse verdadeira. Que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com um ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos? Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?
Maria do Céu tinha seus olhos baixos. Quando o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu, ergueu-se, e a junto e de corrida se encaminhou para o bacharel Antunes. O bacharel fez o mesmo; mas foi dali a uma janela – talvez tomar ar –, talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraismo das Escrituras.
[Jornal das famílias, dez. 1876 a fev. 1877]
(In: Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, vol. 2).
***
Os olhos que comiam carne
Humberto de Campos
Na manhã seguinte à do aparecimento,
nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano,
obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao
estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o
sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os
olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a
visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais.
O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida.
Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero.
Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda.
Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar
de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela,
impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da
lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem.
Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem
docemente à porta.
– Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
– Esta lâmpada está queimada, Roberto? –
indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.
– Não, senhor. Está até acesa.
– Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto?
– exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.
– Está, sim, senhor. O doutor não vê
que está acesa, por causa da janela que está aberta.
– A janela está aberta, Roberto? –
gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.
– Está, sim, senhor. E o sol está até
no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas
mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego.
Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em breve
se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte
dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na
intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam
nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites
estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma
força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho
que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles
que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que
providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen,
de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez
que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou
defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista
passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse
gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e
não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus
olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as
suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor
alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento
deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua
invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços
foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por
ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de
fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde
a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de
operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e
de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe
vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na
fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e
ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos,
ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com
laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia
pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos
seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e
temesse tombar na voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando
ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro
d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no
seu espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a
sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os
passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem
se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar,
agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem
diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso
organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um
dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:
– Está tudo pronto... Vamos para a
mesa... Dentro de oito dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos
filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não
descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua
resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa.
Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro
branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o
clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube
nem viu.
O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contato, por meio de delicadíssimos fios de “hêmera”, liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contato direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações europeias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de
cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda
inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de
pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um
morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz
afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o
professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que
não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo,
pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas
ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas,
palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três
dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu
prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente
aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de
especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a
presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver
o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo
Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados,
apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até
que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido
da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A
emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de
gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel,
espera a sentença final do Destino.
– Abra os olhos! – diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em
torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em
contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê,
em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm
carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam,
caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos
vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na
ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua
frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam,
giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca
aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo
Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o
que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um
turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se
tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e
recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos
marcham para ele, tentando segurá-lo.
– Afastem-se! Afastem-se – intima, num
urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as
nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos
ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos
que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos,
transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...
[1932]
(In:
O monstro e outros contos. São Paulo:
Mérito, 1962.)
***
As rosas
Júlia Lopes de Almeida
O meu jardineiro era
um homem de feio aspecto, todo coberto de pelos eriçados, vermelhaço de pele e
de olhar desconfiado e sombrio.
Toda a gente me
dizia:
– Olha que aquele
sujeito compromete a tua casa! Põe-no fora!
Mas, como ele era
calado, metido consigo, e porque, principalmente, tratava muito bem das minhas
flores, eu levantava os ombros:
– Não era tanto
assim! O pobre homem! Aqueles modos de animal bravio, não os tinha decerto
por culpa sua!
E assim íamos vivendo.
Uma tarde, em
setembro, desci ao jardim. Que crepúsculo aquele! No céu, esgarçado de nuvens,
a lua, em foice, brilhava já, e com tamanha doçura, que dava vontade na gente
de não fazer outra coisa senão olhar para ela! Havia também no ar, transparente
e calmo, tal delicadeza de colorido, que a minha alma ficaria nela estática, se
os olhos, percorrendo tudo, não vissem logo a infinidade de rosas, que as
minhas roseiras prometiam.
– Quantos botões, Mãe
do Céu!
– Tudo isto abre
esta noite – resmungou com voz soturna o jardineiro... – Amanhã haverá centenas
de rosas no jardim!
A minha fantasia
desencadeou-se. Centenas de rosas frescas, todas abertas, deveriam dar uma
graça nova àquele recanto, pouco acostumado a semelhante fartura de flores.
Eu mesma queria colhê-las
ainda frescas de orvalho: mandaria um ramalhete à minha mãe, cobriria de rosas
a sepultura de minha filha, encheria de rosas a minha casa...
E, usando de uma
forma imperativa e severa, pouco comum em mim, disse ao medonho e hirsuto
jardineiro que não tocasse nenhuma flor! Seria eu quem as colhesse todas!
Ele curvou-se, em
obediência.
Nessa noite, fui cedo
para a cama, preparando-me para madrugar no dia seguinte. E tal era o meu
propósito, que peguei logo no sono doce e tranquilo.
Eram seis horas e já
eu estava no jardim. Como quem desperta de um sonho, apatetada, olhei à roda e
só vi folhas... Folhas e mais folhas verdes! Nem uma flor!
Gritei pelo
jardineiro, e ele veio, como por encanto, num momento, mas com tal jeito e tão
demudadas feições, que tive medo.
Os olhos, de
vermelhos, eram só sangue; a barba áspera, longa e ruiva estava revolvida como
por um vento de loucura, e nos grossos braços tisnados tinha sinais fundos de
unhadas...
– As minhas rosas?! –
perguntei-lhe, disfarçando o pavor que a sua figura estranha me infundia.
– Estão aqui! –
Disse ele, com voz grossa, como um baixo de órgão de catedral; e caminhou para
o quarto.
Fui atrás dele,
espantadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se não molhasse na relva –
cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo.
O quarto do
jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé de dois limoeiros da
Pérsia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta, havia uma latada de maracujá,
e, à esquina, encostados à parede, estavam os utensílios de jardinagem.
– Que quererá ele? –
perguntava a mim mesma. De repente, estaquei:
– Não entro – respondi,
a um gesto que me fazia.
– Então, olhe daí! – replicou
o homem bruscamente, escancarando a porta.
Encostei-me ao umbral
para não cair. No meio do quarto, sob uma avalanche de rosas perfumadíssimas,
entrevi o corpo de uma mulher.
– Era minha filha –
disse o jardineiro, entre soluços que mais se assemelhavam a uivos que a dor
humana; – um dia abandonou-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio bater
ao portão, muito chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora?!
Quis fazê-la jurar que desprezaria agora esse bandido, para viver só no meu
carinho... Só no meu carinho!... Eu havia de tratá-la com todo o mimo, como se
for uma criancinha... Fiz-lhe mil promessas, de joelhos, com lágrimas... Sabe o
que me respondeu, a tudo?! Que amava ainda o outro!
Cego de raiva,
matei-a; ah! matei-a e não me arrependo... Antes morta por um pai honrado do
que batida por um cão qualquer... Depois de morta... achei-a linda, linda! Mas,
coitadinha! vinha miserável, quase nua... tive pena, e para fazê-la aparecer
bem a Nossa Senhora, vesti-a de rosas!...
[1903]
(In: Ânsia eterna. Rio de Janeiro: Garnier,
1940, p. 261-264).
***
Onde estivestes de
noite
Clarice Lispector
As histórias não têm desfecho.
Alberto Dines
O desconhecido vicia.
Fauzi Arap
Sentado na poltrona,
com a boca cheia de dentes, esperando a morte.
Raul Seixas
O que vou anunciar é
tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam
no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas.
William
Harvey
A noite era uma
possibilidade excepcional. Em
plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de
hora e de uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão
embaixo aguardava em silêncio.
Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela
estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura
andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente
estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim
como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos
enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia
com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo
diriam: “Ah, Ah”. Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite.
Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente
para sofrer o perigo.
Os pântanos se exalavam. Uma estrela de enorme densidade
guiava-os. Eles eram o avesso do Bem. Subiam a montanha misturando homens,
mulheres, duendes, gnomos e anões – como deuses extintos. O sino de ouro
dobrava pelos suicidas. Fora da estrela graúda, nenhuma estrela. E não havia
mar. O que havia do alto da montanha era escuridão. Soprava um vento noroeste.
Ele-ela era um farol? A adoração dos malditos ia se processar.
Os homens coleavam no chão como grossos e moles vermes:
subiam. Arriscavam tudo, já que fatalmente um dia iam morrer, talvez dentro de
dois meses, talvez sete anos – fora isto que Ele-ela pensava dentro deles.
Olha o gato. Olha o que o gato viu. Olha o que o gato
pensou. Olha o que era. Enfim, enfim, não havia símbolo, a “coisa” era! a coisa
orgíaca. Os que subiam estavam à beira da verdade. Nabucodonosor. Eles pareciam
20 nabucodonosores. E na noite se desquitavam. Eles estão nos esperando. Era
uma ausência – a viagem fora do tempo.
Um cão dava gargalhadas no escuro. “Tenho medo”, disse a
criança. “Medo de quê?”, perguntava a mãe. “De meu cão.” “Mas você não tem cão.”
“Tenho sim.” Mas depois a criancinha também gargalhou chorando, misturando
lágrimas de riso e de espanto.
Afinal chegaram, os malditos. E olharam aquela sempiterna
Viúva, a grande Solitária que fascinava todos, e os homens e mulheres não
podiam resistir e queriam aproximar-se dela para amá-la morrendo mas ela com um
gesto mantinha todos a distância. Eles queriam amá-la de um amor estranho que
vibra em morte. Não se incomodavam de amá-la morrendo. O manto de Ela-ele era
de sofrida cor roxa. Mas as mercenárias do sexo em festim procuravam imitá-la
em vão.
Que horas seria? ninguém podia viver no tempo, o tempo
era indireto e por sua própria natureza sempre inalcançável. Eles já estavam
com as articulações inchadas, os estragos roncavam nos estômagos cheios de
terra, os lábios túmidos e no entanto rachados – eles subiam a encosta. As
trevas eram de um som baixo e escuro como a nota mais escura de um violoncelo.
Chegaram. O Mal-Aventurado, o Ele-ela, diante da adoração de reis e vassalos,
refulgia como uma iluminada águia gigantesca. O silêncio pululava de
respirações ofegantes. A visão era de bocas entreabertas pela sensualidade que
quase os paralisava de tão grossa. Eles se sentiam salvos do Grande Tédio.
O morro era de sucata. Quando a Ela-ele parava um
instante, homens e mulheres, entregues a eles próprios por um instante,
diziam-se assustados: eu não sei pensar. Mas o Ele-ela pensava dentro deles.
Um arauto mudo de clarineta aguda anunciava a notícia.
Que notícia? a da bestialidade? Talvez no entanto fosse o seguinte: a partir do
arauto cada um deles começou a “se sentir”, a sentir a si próprio. E não havia
repressão: livres!
Aí eles começaram a balbuciar mas para dentro porque a
Ela-ele era cáustica quanto a não disturbarem uns aos outros na sua lenta
metamorfose. “Sou Jesus! sou judeu!”, gritava em silêncio o judeu pobre. Os
anais da astronomia nunca registraram nada como este espetacular cometa,
recentemente descoberto – sua cauda vaporosa se arrastará por milhões de
quilômetros no espaço. Sem falar no tempo.
Um anão corcunda dava pulinhos como um sapo, de uma
encruzilhada a outra – o lugar era de encruzilhadas. De repente as estrelas
apareceram e eram brilhantes e diamantes no céu escuro. E o corcunda-anão dava
pulos, os mais altos que conseguia para alcançar os brilhantes que sua cobiça
despertava. Cristais! Cristais! gritou ele em pensamentos que eram saltitantes
como os pulos.
A latência pulsava leve, ritmada, ininterrupta. Todos
eram tudo em latência. “Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento”:
Goethe. Uma nova e não autêntica história brasileira era escrita no
estrangeiro. Além disso, os pesquisadores nacionais se queixavam da falta de
recursos para o trabalho.
A montanha era de origem vulcânica. E de repente o mar: a
revolta rebentação do Atlântico lhes enchia os ouvidos. E o cheiro salgado do
mar fecundava-os e triplicava-os em monstrinhos. O corpo humano pode voar? A levitação.
Santa Tereza d'Ávila: “Parecia que uma grande força me erguia no ar. Isso me
provocava um grande medo.” O anão levitava por segundos mas gostava e não tinha
medo.
– Como é que você se chama, disse mudo o rapaz, para eu
chamar você a vida inteira. Eu gritarei seu nome.
– Eu não tenho nome lá embaixo. Aqui tenho o nome de
Xantipa.
– Ah, quero gritar Xantipa! Xantipa! Olhe, eu estou gritando
para dentro. E qual é o seu nome durante o dia?
–Acho que é... é... parece que é Maria Luísa.
E estremeceu como um cavalo se eriça. Caiu exangue no
chão. Ninguém assassinava ninguém porque já eram assassinados. Ninguém queria
morrer e não morria mesmo.
Enquanto isso – delicada, delicada – o Ele-ela usava um
timbre. A cor do timbre. Porque eu quero viver em abundância e trairia o meu
melhor amigo em troca de mais vida do que se pode ter. Essa procura, essa
ambição. Eu desprezava os preceitos dos sábios que aconselham a moderação e a
pobreza de alma – a simplificação de alma, segundo minha própria experiência,
era a santa inocência. Mas eu lutava contra a tentação.
Sim. Sim: cair até a abjeção. Eis a ambição deles. O som
era o arauto do silêncio. Porque nenhum poderia se deixar possuir por
Aquele-aquela-sem-nome.
Eles queriam fruir o proibido. Queriam elogiar a vida e
não queriam a dor que é necessária para se viver, para se sentir e para amar.
Eles queriam sentir a imortalidade terrífica. Pois o proibido é sempre o
melhor. Eles ao mesmo tempo não se incomodavam de talvez cair no enorme buraco
da morte. E a vida só lhes era preciosa quando gritavam e gemiam. Sentir a
força do ódio era o que eles melhor queriam. Eu me chamo povo, pensavam.
– Que é que eu faço para ser herói? Porque nos templos só
entram heróis.
E no silêncio de repente o seu grito uivado que não se
sabia se de amor ou dor mortal, o herói cheirando mirra, incenso e benjoim.
Ele-ela cobria a sua nudez com um manto lindo mas como
uma mortalha, mortalha púrpura, agora vermelho-catedral. Em noites sem lua
Ela-ele virava coruja. Comerás teu irmão, disse ela no pensamento dos outros, e
na hora selvagem haverá um eclipse do sol.
Para não se traírem eles ignoravam que hoje era ontem e haveria
amanhã. Soprava no ar uma transparência como igual homem nenhum havia respirado
antes.
Mas eles espargiam pimenta em pó nos próprios órgãos
genitais e se contorciam de ardor. E de repente o ódio. Eles não matavam uns
aos outros mas sentiam tão implacável ódio que era como um dardo lançado num
corpo. E se rejubilavam danados pelo que sentiam. O ódio era um vômito que os
livrava de vômito maior, o vômito da alma.
Ele-ela com as sete notas musicais conseguia o uivo.
Assim como com as mesmas sete notas podia criar música sacra. Ouviram eles
dentro deles o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si, o “si” macio e agudíssimo. Eles eram
independentes e soberanos, apesar de guiados pelo Ele-ela. Rugindo a morte nos
porões escuros. Fogo, grito, cor, vício, cruz. Estou vigilante no mundo: de
noite vivo e de dia durmo, esquivo. Eu, com faro de cão, orgiático.
Quanto a eles, cumpriam rituais que os fiéis executam sem
entender-lhes os mistérios. O cerimonial. Com um gesto leve Ela-ele tocou numa
criança fulminando-a e todos disseram: amém. A mãe deu um uivo de lobo: ela
toda morta, ela, também.
Mas era para ter supersensações que para ali se subia. E
era sensação tão secreta e tão profunda que o júbilo faiscava no ar. Eles
queriam a força superior que reina no mundo através dos séculos. Tinham medo?
Tinham. Nada substituía a riqueza do silencioso pavor. Ter medo era a
amaldiçoada glória da escuridão, silente como uma Lua.
Aos poucos se habituavam ao escuro e a Lua, antes
escondida, toda redonda e pálida, tinha lhes abrandado a subida. Eram trevas
quando um por um subira “a montanha”, como chamavam o planalto um pouco mais
elevado. Tinham se apoiado no chão para não cair, pisando em árvores secas e
ásperas, pisando em cactos espinhosos. Era um medo irresistivelmente atraente,
eles prefeririam morrer que abandoná-lo. O Ele-ela era-lhes como a Amante. Mas
se algum ousasse por ambição tocá-la era congelado na posição em que estivesse.
Ele-ela contou-lhes dentro de seus cérebros – e todos
ouviram-na dentro de si – o que acontecia a uma pessoa quando esta não atendia
ao chamado da noite: acontecia que na cegueira da luz do dia a pessoa vivia na
carne aberta e nos olhos ofuscados pelo pecado da luz – a pessoa vivia sem
anestesia o terror de se estar vivo. Não há nada a temer, quando não se tem
medo. Era a véspera do apocalipse. Quem era o rei da Terra? Se você abusa do
poder que você conquistou, os mestres o castigarão. Cheios do terror de uma
feroz alegria eles se abaixavam e às gargalhadas comiam ervas daninhas do chão
e as gargalhadas reboavam de escuridões a escuridões com seus ecos. Um cheiro
sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de natureza
doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e pérolas e crianças
– a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de luz. Esta carne
que se move apenas porque tem espírito.
Das bocas escorria saliva grossa, amarga e untuosa, e
eles se urinavam sem sentir. As mulheres que haviam parido recentemente
apertavam com violência os próprios seios e dos bicos um grosso leite preto
esguichava. Uma mulher cuspiu com força na cara de um homem e o cuspe áspero
escorreu-lhe da face até a boca – avidamente ele lambeu os lábios.
Estavam todos soltos. A alegria era frenética. Eles eram
o harém do Ele-ela. Tinham caído finalmente no impossível. O misticismo era a
mais alta forma de superstição.
O milionário gritava: quero o poder! poder! quero que até
os objetos obedeçam as minhas ordens! E direi: move-te, objeto! e ele por si só
se moverá.
A mulher velha e desgrenhada disse para o milionário:
quer ver como você não é milionário? Pois vou te dizer: você não é o dono do
próximo segundo de vida, você pode morrer sem saber. A morte te humilhará. O
milionário: Eu quero a verdade, a verdade pura!
A jornalista fazendo uma reportagem magnífica da vida
crua. Vou ganhar fama internacional como a autora de “O exorcista” que não li
para não me influenciar. Estou vendo direto a vida crua, eu a estou vivendo.
Eu sou solitário, se disse o masturbador.
Estou em espera, espera, nada jamais me acontece, já
desisti de esperar. Eles bebiam o amargo licor das ervas ásperas.
– Eu sou um profeta! eu vejo o além! se gritava um rapaz.
Padre Joaquim Jesus Jacinto – tudo com jota porque a mãe
dele gostava da letra jota.
Era dia trinta e um de dezembro de 1973. O horário
astronômico seria aferido pelos relógios atômicos, cujo atraso é de apenas um
segundo a cada três mil e trezentos anos.
A outra deu para espirrar, um espirro atrás do outro, sem
parar. Mas ela gostava. A outra se chamava J.B.
– Minha vida é um verdadeiro romance! gritava a escritora
falida.
O êxtase era reservado para o Ele-ela. Que de repente
sofreu a exaltação do corpo, longamente. Ela-ele disse: parem! Porque ela se
endemoniava por sentir o gozo do Mal. Eles todos através dela gozavam: era a
celebração da Grande Lei. Os eunucos faziam uma coisa que era proibido olhar.
Os outros, através de Ela-ele, recebiam frementes as ondas do orgasmo – mas só
ondas porque não tinham força de, sem se destruírem, receber tudo.
As mulheres pintavam a boca de roxo como se fosse fruta
esmagada pelos afiados dentes.
O Ela-ele contou-lhes o que acontecia quando não se
iniciava na profetização da noite. Estado de choque. Por exemplo: a moça era
ruiva e como se não bastasse era vermelha por dentro e além disso daltônica.
Tanto que no seu pequeno apartamento havia uma cruz verde sobre fundo vermelho:
ela confundia as duas cores.
Como é que começara o seu terror? Ouvindo um disco ou o
silêncio reinante ou passos no andar de cima – e ei-la aterrorizada. Com medo
do espelho que a refletia. Defronte tinha um armário e a impressão era que as
roupas se mexiam dentro dele. Aos poucos ia restringindo o apartamento. Tinha
medo até de sair da cama. A impressão de que iam agarrar o seu pé embaixo da
cama. Era magríssima. O seu nome era Psiu, nome vermelho. Tinha medo de acender
a luz no escuro e encontrar a fria lagartixa que morava com ela. Sentia com
aflição os dedinhos gelados e brancos da lagartixa. Procurava avidamente no
jornal as páginas policiais, notícias do que estava acontecendo. Sempre
aconteciam coisas apavorantes para pessoas, como ela, que viviam só e eram
assaltadas de noite. Tinha na parede um quadro que era o de um homem que a
fixava bem nos olhos, vigiando-a. Essa figura ela imaginava que a seguia por
todos os cantos da casa. Tinha medo pânico de ratos.
Preferiria morrer a entrar em contato com eles. No
entanto ouvia os guinchos deles. Chegava a sentir-lhes as mordidas nos pés.
Acordava sempre sobressaltada, suando frio. Ela era um bicho acuado. Normalmente
dialogava consigo mesma. Dava prós e contras e sempre quem perdia era ela. Sua
vida era uma constante subtração de si mesma. Tudo isso porque não atendeu ao
chamado da sirene.
O Ele-ela só deixava mostrar o rosto de andrógina. E dele
se irradiava tal cego esplendor de doido que os outros fruíam a própria
loucura. Ela era o vaticínio e a dissolução e já nascera tatuada. O ar todo
cheirava agora a fatal jasmim e era tão forte que alguns vomitavam as próprias
entranhas. A Lua estava plena no céu. Quinze mil adolescentes esperavam que
espécie de homem e mulher eles iriam ser.
Então Ela-ele disse:
– Comerei o teu irmão
e haverá um eclipse total e o fim do mundo.
De vez em quando ouvia-se um longo relincho e não se via
cavalo nenhum. Sabia-se apenas que com sete notas musicais fazem-se todas as
músicas que existem e que existiam e que existirão. Da Ela-ele emanava-se forte
cheiro de jasmim esmagado porque era noite de Lua cheia. O catimbó ou a
feitiçaria. Max Ernst quando criança foi confundido com o Menino Jesus numa
procissão. Depois provocava escândalos artísticos. Tinha uma paixão ilimitada
pelos homens e uma imensa e poética liberdade. Mas por que estou falando nisso?
Não sei. “Não sei” é uma resposta ótima.
O que fazia Thomas Edison, tão inventor e livre, no meio
deles que eram comandados por Ele-ela? Gregotins, pensou o estudante perfeito,
era a palavra mais difícil da língua.
Escutai! os anjos anunciadores cantam!
O judeu pobre gritava mudo e ninguém o ouviu, o mundo
inteiro não o ouvia. Ele disse assim: tenho sede, suor e lágrimas! e para
saciar a minha sede bebo meu suor e minhas próprias lágrimas salgadas. Eu não
como porco! sigo a Torah! mas dai-me alívio, Jeová, que se parece demais
comigo!
Jubileu de Almeida ouvia o rádio de pilha, sempre. “O
mingau mais gostoso é feito com Cremogema”. E depois anunciava, de Strauss, uma
valsa que por incrível que parecesse chamava-se “O pensador livre”. É verdade,
existe mesmo, eu ouvi. Jubileu era dono do “Ao Bandolim de Ouro”, loja de
instrumentos musicais quase falida, e era tarado por valsas de Strauss. Era
viúvo, ele, quer dizer, Jubileu. Seu rival era “O Clarim”, concorrente na rua
Gomes Freire ou Frei Caneca. Jubileu era também afinador de pianos.
Todos ali estavam prestes a se apaixonar. Sexo. Puro
sexo. Eles se freavam. A Romênia era um país perigoso: ciganos.
Faltava petróleo no mundo. E, sem petróleo, faltava
comida. Carne, sobretudo. E sem carne eles se tornavam terrivelmente
carnívoros.
“Aqui, Senhor, encomendo a minha alma”, dissera Cristóvão
Colombo ao morrer, vestido com o hábito franciscano. Ele não comia carne. Se
santificava, Cristóvão Colombo, o descobridor das ondas, e que descobriu S.
Francisco de Assis. Hélas! ele morrera. Onde estás agora? onde? pelo amor de
Deus, responde!
De repente e bem de leve – fiat lux.
Houve uma debandada assustadiça como de
pardais. Tudo tão rápido que mais parecia terem se esvanecido.
Na mesma hora estavam ora deitados na
cama a dormir, ora já despertos. O que existira era silêncio. Eles não sabiam
de nada. Os anjos da guarda – que tinham tirado um descanso já que todos
estavam na cama sossegados – despertavam frescos, bocejando ainda, mas já
protegendo os seus pupilos.
Madrugada: o ovo vinha rodopiando bem
lento do horizonte para o espaço. Era de manhã: uma moça loura, casada com
rapaz rico, dá à luz um bebê preto. Filho do demônio da noite? Não se sabe.
Apuros, vergonha.
Jubileu de Almeida acordou como pão
dormido: chocho. Desde pequeno fora murcho assim. Ligou o rádio e ouviu: “Sapataria
Morena onde é proibido vender caro”. Iria lá, estava precisando de sapatos.
Jubileu era albino, negro aço com cílios amarelos quase brancos. Ele estalou um
ovo na frigideira. E pensou: se eu pudesse algum dia ouvir “O pensador livre”,
de Strauss, eu seria recompensado na minha solidão. Só ouvira essa valsa uma
única vez, não se lembrava quando.
O poderoso queria no seu breakfast comer
caviar dinamarquês às colheradas, estalando com os dentes agudos as bolinhas.
Ele era do Rotary Club e da Maçonaria e do Diners Club. Tinha o requinte de não
comer caviar russo: era um modo de derrotar a poderosa Rússia.
O judeu pobre acorda e bebe água da bica
sofregamente. Era a única água que tinha nos fundos da pensão baratíssima onde
morava: uma vez veio uma barata nadando no feijão ralo. As prostitutas que lá
moravam nem reclamavam.
O estudante perfeito, que não desconfiava
que era um chato, pensou: qual era a palavra mais difícil que existia? Qual
era? Uma que significava adornos, enfeites, atavios? Ah, sim, gregotins.
Decorou a palavra para escrevê-la na próxima prova.
Quando começou a raiar o dia todos
estavam na cama sem parar de bocejar. Quando acordavam, um era sapateiro, um
estava preso por estupro, uma era dona de casa, dando ordens à cozinheira, que
nunca chegava atrasada, outro era banqueiro, outro era secretário etc.
Acordavam, pois, um pouco cansados, satisfeitos pela noite tão profunda de
sono. O sábado tinha passado e hoje era domingo. E muitos foram à missa
celebrada por padre Jacinto que era o padre da moda: mas nenhum se confessou,
já que não tinham nada a confessar.
A escritora falida abriu o seu diário
encadernado de couro vermelho e começou a anotar assim: “7 de julho de 1974.
Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu! Nesta bela manhã de um sol de domingo, depois de
ter dormido muito mal, eu, apesar de tudo, aprecio as belezas maravilhosas da
Natureza-mãe. Não vou à praia porque sou gorda demais e esta é uma infelicidade
para quem aprecia tanto as ondas verdezitas do Mar! Eu me revolto! Mas não
consigo fazer regime: morro de fome. Gosto de viver perigosamente. Tua língua
viperina será cortada pela tesoura da complacência”.
De manhã: agnus dei. Bezerro de ouro?
Urubu.
O judeu pobre: livrai-me do orgulho de
ser judeu!
A jornalista de manhã bem cedo telefona
para sua amiga:
– Claudia, me desculpe telefonar num
domingo a esta hora! Mas acordei com uma inspiração fabulosa: vou escrever um
livro sobre Magia Negra! Não, não li o tal do Exorcista, porque me disseram que
é má literatura e não quero que pensem que estou indo na onda dele. Você já
pensou bem? o ser humano sempre tentou se comunicar com o sobrenatural desde o
antigo Egito com o segredo das Pirâmides, passando pela Grécia com seus deuses,
passando por Shakespeare no Hamlet. Pois eu também vou entrar nessa. E, por
Deus, vou ganhar essa parada!
Havia em muitas casas do Rio o cheiro de
café. Era domingo. E o rapaz ainda na cama, cheio de torpor, ainda
mal-acordado, se disse: mais um domingo de tédio. Com o que havia sonhado
mesmo? Sei lá, respondeu-se, se sonhei, sonhei com mulher.
Enfim, o ar clareia. E o dia de sempre
começa. O dia bruto. A luz era maléfica: instaurava-se o mal-assombrado dia
diário. Uma religião se fazia necessária: uma religião que não tivesse medo do
amanhã. Eu quero ser invejado. Eu quero o estupro, o roubo, o infanticídio, e o
desafio meu é forte. Queria ouro e fama, desprezava até o sexo: amava depressa
e não sabia o que era o amor. Quero o ouro mau. Profanação. Vou ao meu extremo.
Depois da festa – que festa? noturna? – depois da festa, desolação.
Havia o observador que escreveu assim no
caderno de notas: “O progresso e todos os fenômenos que o cercam parecem
participar intimamente dessa lei de aceleração geral, cósmica e centrífuga que
arrasta a civilização ao `progresso máximo', a fim de que em seguida venha a
queda. Uma queda ininterrupta ou uma queda rapidamente contida? Aí está o
problema: não podemos saber se esta sociedade se destruirá completamente ou se
conhecerá apenas uma interrupção brusca e depois a retomada de sua marcha”. E
depois: “O Sol diminuiria seus efeitos sobre a Terra e provocaria o início de
um novo período glacial que poderia durar no mínimo dez mil anos”. Dez mil anos
era muito e assustava. Eis o que acontece quando alguém escolhe, por medo da
noite escura, viver a superficial luz do dia. É que o sobrenatural, divino ou
demoníaco, é uma tentação desde o Egito, passando pela Idade Média até os
romances baratos de mistério.
O açougueiro, que nesse dia só trabalhava
das oito às onze horas, abriu o açougue: e parou embriagado de prazer ao cheiro
de carnes e carnes cruas, cruas e sangrentas. Era o único que de dia continuava
a noite.
Padre Jacinto estava na moda porque
ninguém como ele erguia tão limpidamente a taça e bebia com sagrada unção e
pureza, salvando todos, o sangue de Jesus, que era o Bem. Com delicadeza as
mãos pálidas num gesto de oferenda.
O padeiro como sempre acordou às quatro
horas e começou a fazer a massa de pão. De noite amassar ao Diabo?
Um anjo pintado por Fra Angélico, século
XV, voejava pelos ares: era a clarineta anunciadora da manhã. Os postes de luz
elétrica não tinham ainda sido apagados e lustravam-se empalidecidos. Postes. A
velocidade come os postes quando se está correndo de carro.
O masturbador de manhã: meu único amigo
fiel é meu cão. Ele não confiava em ninguém, sobretudo em mulher.
A que bocejara a noite toda e dissera: “t'isconjuro,
mãe de santo!” começou a se coçar e a bocejar. Diabo, disse ela.
O poderoso – que cuidava de orquídeas,
catleias, lélias e oncídios – apertou impaciente a campainha para chamar o
mordomo que lhe trouxesse o já atrasado breakfast. O mordomo adivinhava-lhe os
pensamentos e sabia quando lhe trazer os galgos dinamarqueses para serem
rapidamente acariciados.
Aquela que de noite gritava “estou em
espera, em espera, em espera”, de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na
leiteira que estava no fogo:
– Eu te pego, seu porcaria! Quero ver se
tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu
desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para
ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera.
Ela esperou, esperou e o leite não
fervia. Então, desligou o gás.
No céu o mais leve arco-íris: era o
anúncio. A manhã como uma ovelha branca. Pomba branca era a profecia.
Manjedoura. Segredo. A manhã preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus
tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta
Maria Mater Dei ora pro nobis pecatoribus.
Nunca et ora nostrae morte Amem.
Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a
taça de cristal que contém o sangue escarlate de Cristo. Eta vinho bom. E uma
flor nasceu. Uma flor leve, rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira
no ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada.
AMÉM
Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.
AMÉM
DEUS
FIM
Epílogo:
Tudo o que escrevi é verdade e existe.
Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite?
Ninguém sabe. Não tentes responder – pelo
amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.
[1974]
(In: Onde estivestes de noite (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.
43)
***
Crianças à venda. Tratar aqui
Rosa Amanda Strausz
Todos
disseram que Marialva era louca e desalmada quando ela pôs os filhos à venda.
Até o padre tentou demovê-la de ideia tão cruel. Mas nada adiantou. A mulher
era obstinada. “Quero que eles tenham um futuro melhor que o meu”, ela repetia.
Olhando
bem para o lugar, quem poderia condená-la? Um casebre miserável, perdido numa
curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada
por perto. Tinha parido nove filhos. Só restavam cinco quando decidiu
vendê-los. Não queria mais ver criança morrendo de fome doença em seus braços
sem que pudesse fazer nada para impedir.
O
primeiro a partir foi Tião, levado por uma família americana. Um mês depois da
viagem, chegou carta com foto do menino, limpo e sorridente, bem vestido e já mais
gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais.
Marialva enxugou as lágrimas e teve certeza de que fazia a coisa certa.
Em
seguida, foram Francineide, para o Rio de Janeiro, e Ronivon, para Curitiba.
Com
o dinheiro da venda dos três, Marialva comprou uma cabra, três galinhas, um
cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova.
O
seguinte seria Fabiojunio, que já estava encomendado por uma família que vivia
em Cruz Alta, uma cidade próxima. O casal chegaria dali há dois dias e Marialva
se esforçava para dar banho no menino e torná-lo mais apresentável.
–
Vê se não chora quando eles chegarem, senão eu te mato, viu? E nada de se sujar
porque o sabão já está acabando. Tem que ficar limpo até depois de amanhã.
Melhor nem se mexer muito, fique quieto dentro de casa.
Fabiojunio
olhava os preparativos meio assustado. Mas as fotos dos irmãos cercados de
conforto, carinho e comida já o tinham convencido. Tanto Tião quanto Francineide
e Ronivon pareciam muito felizes. Assim, quando chegou o casal, despediu-se da
mãe e de Simara – a irmã mais velha –, engoliu o choro e entrou no carro de
seus novos pais.
–
Mãe, a senhora não achou esses dois aí meio esquisitos, não? – perguntou a
menina assim que o carro sumiu na estrada.
–
Bobagem, menina. Rico é tudo esquisito mesmo.
Mas,
no fundo, achou que a filha tinha razão. Não sabia dizer direito o que era – se
a expressão meio vazia do casal, o jeito que eles tinham de olhar, meio fixo,
sempre para frente, a maneira de se moverem, lenta demais.
Bobagem,
repetiu mentalmente. Eram os mais ricos, os que tinham pago mais caro. Olhou
para as notas em cima da mesa. Dava para comprar um monte de sabão e botar Simara
para lavar roupa para fora.
O
problema era justamente a filha, que não parava de tagarelar. Menina
inconveniente. Tinha 10 anos, só por isso não dava mais para vendê-la. Ninguém
queria criança grande assim. Pois que ficasse quieta e ajudasse a fazer o
dinheiro render – porque aquele era o último.
Isso
era o que Marialva pensava. Menos de um mês depois da partida de Fabiojunio
chegou uma carta. Trazia uma foto do menino e mais dinheiro ainda. A mulher
ficou radiante.
–
Eles devem estar mesmo muito encantados com Fabinho para mandarem essa
dinheirama toda – disse ela arregalando os olhos.
Simara,
sempre desconfiada, examinava a fotografia.
–
Mãe, olha só...
Mas
a mulher arrancou a foto de sua mão.
–
Olha só digo eu, Simara! Sempre foi lindinho, o seu irmão. Mas com essas
roupas... Benza Deus! Parece um príncipe.
Na
foto, o menino estava de pé, em meio a um imenso jardim sem flores, mas com o
gramado muito bem cuidado, ao fundo do qual se via um casarão com a fachada
ornamentada. Vestia sapatos pretos de verniz, meias brancas, terninho
azul-marinho combinando com a bermuda, camisa branca de colarinho e gravata de
cetim cinza-claro. O cabelo estava penteado para trás, cheio de goma.
Simara
não se convencia. Todos os outros irmãos enviavam fotos em que apareciam
cercados de brinquedos, em parques, comendo doces, rindo, abraçados com a nova
família. Fabiojunio não. Estava sozinho, de pé, com os braços estendidos ao
longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia triste.
Simara
insistiu no assunto, mas Marialva proibiu a filha de prosseguir.
–
Gente chique é assim. Não fica pulando e gritando. Ele está é ficando educado –encerrou
a conversa.
***
Agora,
Fabiojunio aparecia de pé em um quarto amplo e ricamente mobiliado. Estava
diante de uma cama alta, de dossel talhado em madeira escura, e ao lado de uma
escrivaninha cuidadosamente arrumada. Não havia brinquedos à vista. A roupa não
era a mesma da foto anterior, mas muito parecida. E a expressão do menino também,
embora parecesse ainda mais pálido e tristonho.
–
Ele não está feliz – constatou Simara em voz alta, sabendo que a mãe não a
ouviria. Estava ocupada demais fazendo planos para o dinheiro que chegara. Já
dava até para pensar em comprar um fogão de verdade, com bujão de gás e tudo. E
teria comida para fazer todos os dias.
Na
verdade, teve muito mais do que isso. Todo mês chegava novo envelope com a foto
e mais dinheiro. Cega pela boa sorte repentina, mal olhava para o filho
impresso no papel. Ia direto para o maço de notas, contava-as avidamente,
sorria e fazia mais planos.
Apenas
Simara estava cada vez mais intrigada. A cada foto que chegava, parecia-lhe
mais evidente que havia algo muito estranho ocorrendo ao irmão. Sempre o mesmo
tipo de roupa, os ambientes luxuosos – mas antiquados e soturnos –, e a
expressão ausente, o olhar mortiço, a postura imóvel.
A
última foto era ainda mais impressionante. Solitário, sentado à cabeceira de
uma mesa imensa, de madeira escura e polida, Fabiojunio não olhava para a baixela
de prata à sua frente, nem para a louça filetada de ouro, nem para os talheres
de cabo de madrepérola. Seu olhar tampouco se dirigia para o fotógrafo. Parecia
fixar-se num ponto impossível, distante, muito além da realidade.
Intrigada
com aquilo, Simara foi até a casa do padre e pediu-lhe emprestada sua lente de
aumento. Já tinha visto o objeto algumas vezes depois das aulas de catecismo.
Parecia mágico, com seu poder de ampliar pequenos detalhes. Quando era menor,
adorava pegar a lente e observar a ponta de seu polegar, descobrindo as finas
linhas que desenhavam redemoinho em seus dedos.
Mas,
agora, não havia tempo para brincar. Botou a foto sob o vidro da lente e
examinou-a detidamente. Nem precisou procurar muito. Bastou-lhe focalizar os
olhos do irmão para encontrar a explicação de sua expressão vazia: estavam
furados. No lugar das córneas, havia apenas dois buracos negros, redondos e
perfeitos.
Com
um grito apavorado, Simara chamou o padre. O homem fez o sinal da cruz e
prontificou-se a acompanhar a menina até a residência do casal que tinha levado
Fabiojunio embora. Foi só o tempo de pegar uma pesada cruz de prata, um vidro
de água benta e o dinheiro da passagem de ônibus. Com um envelope nas mãos, a
menina o seguiu até a rodoviária
Cruz
Alta ficava há apenas sessenta quilômetros de distância. Duas horas de viagem
na condução velha e malcuidada. Simara sacolejava pela estrada, impaciente. O
padre, no entanto, ignorava a ansiedade da menina e traçava cuidadosamente seu
roteiro. Iriam primeiro à igreja local buscar informações sobre a família. Se
possível, levariam o pároco junto com eles até a casa. As fotos diziam
claramente que se tratava de um caso de bruxaria e não queria enfrentar uma
novidade daquelas sozinho.
Chamava-se
padre André, era jovem e destemido. Mas também inexperiente e humilde o
suficiente para admitir que não tinha a menor ideia do que fazer quando
encontrasse o estranho casal.
Não
custaram a encontrar a igreja nem a conseguir falar com o padre Leal, um
velhinho simpático, que cuidava da paróquia havia mais de trinta anos.
–
Estamos com sorte – confidenciou o padre André a Simara. – Há tanto tempo aqui,
ele deve conhecer a família.
O
padre Leal, no entanto, ficou perplexo ao ver o endereço que Simara lhe
mostrava.
–
Deve haver algum engano, meus filhos. Esse endereço não existe.
Com
um pressentimento ruim, Simara insistiu:
–
É muito importante, padre. Por favor, nos ajude a encontrar essa família.
–
Mas estou lhe dizendo, filha. Conheço o lugar, não existe casa nenhuma nesse
endereço. Essa rua não passa de uma velha estrada abandonada. Nem carroça passa
mais por lá.
Até
então, o padre André só observava a conversa. Mas decidiu intervir:
–
Padre Leal, temos motivos muito sérios para procurar essa casa – disse,
enquanto abria o envelope e espalhava as fotos sobre a mesa.
–
Veja isso.
O
velho pároco examinou as fotos com as mãos trêmulas enquanto ouvia o relato da
história feito por Simara. Por fim, deteve-se na que mostrava Fabiojunio no
jardim. Após observá-la por alguns instantes, mergulhou a cabeça entre as mãos,
murmurando:
–
Não consigo acreditar...
Simara
não se conteve e perguntou:
–
O senhor conhece essa casa?
O
religioso deu um profundo suspiro. Estava pálido e limitou-se a acenar
afirmativamente com a cabeça. Mal conseguia falar.
Mas
a menina era determinada. E não queria perder mais tempo.
–
Então, nos leve até lá. Acho que meu irmão está correndo perigo.
O
religioso limitou-se a balbuciar:
–
Seu irmão está morto.
Padre
André não se deu por vencido.
–
Precisamos da sua ajuda. Talvez ainda possamos salvá-lo. Tenho certeza de que
se trata de um caso de bruxaria.
O
velho o interrompeu:
–
Vou levá-los até o local.
Assim
que entraram no velho Dodge Dart do pároco, este olhou para o padre André e
disse:
–
Preparem-se para ver uma coisa terrível.
Com
o rosto amargurado, o religioso deu a partida no carro e recusou-se a responder
a qualquer pergunta durante o trajeto. Cerca de vinte minutos depois, saiu da
estrada principal e tomou um caminho abandonado e coberto de mato pelo qual o
veículo avançava com dificuldade crescente. Quanto mais andavam, mais ermo
tornava-se o local. Estava claro que havia muito tempo que ninguém passa passava
por ali.
Finalmente,
pararam num ponto a partir do qual seria impossível prosseguir com o carro. O
mato era tão alto que batia no peito dos dois homens e cobria a cabeça de
Simara. Saltaram, e o religioso suspirou:
–
A partir daqui, teremos que seguir a pé.
Nem
Simara nem padre André ousaram abrir a boca. Apesar do sol quente da tarde, a
luminosidade do lugar tinha um toque pouco natural. E um silêncio sepulcral
envolvia o caminho, como se ali não houvesse vida: nem insetos, nem animais,
nem mesmo o vento.
Depois
de uns dez minutos de caminhada, uma clareira abriu-se abruptamente. À frente
do grupo surgiu um imenso terreno abandonado. Nem nesse mato crescia ali, como
se a terra tivesse sido amaldiçoada.
Ao
olhar para a cena, Simara deu um grito. Ao longe, o casarão ornamentado. No
entanto, à sua frente, erguia-se uma ruína, abandonada havia muitos anos em
meio ao terreno desolado
Não
havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a casa como teria sido muitas
décadas atrás.
–
Vamos até lá – disse Simara energicamente. Ainda não conseguia acreditar no que
via.
Partiu
na frente, seguida pelos dois religiosos, ambos empunhando suas cruzes.
Não
tinha medo. Não sentia nada além de uma urgência imensa e de uma esperança meio
improvável de ainda encontrar o irmão. Abriu o pesado portão com um safanão e
foi entrando. Deparou-se com o saguão de entrada, o mesmo que já tinha visto
nas fotos. No entanto, agora, as paredes estavam descascadas, as vidraças das
janelas, quebradas, a bela escadaria de madeira que conduzia ao segundo andar,
destruída. E não existia mais nenhum dos móveis luxuosos que serviam de cenário
para as poses de Fabiojunio.
Viu,
logo à esquerda, o que deveria ter sido a sala de jantar. A mesa, a mesma onde
o irmão aparecera na última foto, ainda estava lá. Comida por cupins, não
passava de um monte de madeira podre, coberta por uma espessa camada de poeira
e fungos.
Cada
vez mais transtornada, percorreu todas os cômodos do térreo até sair no pátio
dos fundos, de onde podia se ver um antigo cemitério familiar e nove tumbas.
Correu
para lá.
Não
teve dificuldade em reconhecer o estranho casal que levara seu irmão nas
fotografias amareladas que decoravam as duas primeiras sepulturas. Ali, estava
a data da morte deles, ocorridas cerca de 50 anos antes. Próximos das tumbas
principais – as mais ricas e enfeitadas – havia sete pequenos jazigos. O último
era evidentemente recente e foi para ali que Simara correu. Sobre o túmulo, um
nome: Fabiojunio, a última foto que tinha sido enviada à família e a data:
apenas uma semana atrás.
Não tinha mais nada para ser visto ali. Tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que tinha descoberto. Deu meia volta e saiu enxugando as lágrimas enquanto andava cada vez mais rápido, seguida pelos dois religiosos que ainda empunhavam suas cruzes, sem saber muito bem o que fazer com elas.
A
viagem de volta foi lenta e silenciosa. O ônibus quebrou duas vezes e Simara só
chegou em casa no dia seguinte. Achava que encontraria a mãe preocupada, mas a
velha senhora estava radiante quando abriu a porta para a filha.
–
Por que você não disse que ia visitar seu irmão? – perguntou a mulher com um sorriso.
Antes
que a menina pudesse responder, a mãe mostrou-lhe um novo envelope.
–
Olha só, acabou de chegar! Veio com uma carta. E com ótimas notícias.
Simara
avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto dela,
vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do
corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o cemitério, embora a foto não
mostrasse cemitério algum. Só um bonito jardim, com um gramado muito bem
cuidado e árvores frondosas ao fundo.
Antes
que pudesse se recuperar do susto, a mãe perguntou:
–
Leu a carta? Eles ficaram encantados com você!
E
completou, sorridente:
–
E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me pagaram bem!
Diante
do olhar apavorado da menina, Marialva franziu o cenho e engrossou a voz:
–
Já para o banho. Está na hora de você também aprender a ser chique.
(In: Sete ossos e uma maldição. Contos. Rocco - Jovens Leitores. Disponível na Internet)
***
O horrível – conto de horror
Guy de Maupassant
A noite tépida descia lentamente.
As senhoras tinham ficado no salão da quinta. Os homens, sentados ou a cavalo nas cadeiras do jardim, fumavam diante da mesa abandonada, carregada de taças e cálices.
Seus charutos brilhavam como olhos na sombra espessa, de minuto em minuto.
Acabavam de narrar um terrível acidente acontecido na véspera: dois homens e três mulheres afogados à vista dos convidados em frente ao rio.
O General G... pronunciou-se:
— Sim, estas coisas são emocionantes, mas não são horríveis.
“O horrível – esta velha palavra – quer dizer muitíssimo mais que terrível. Um medonho acidente como este emociona. Para que se experimente o horror, é preciso mais que a emoção da alma e mais que o espetáculo de uma morte terrível. É preciso um calafrio de mistério ou uma sensação de pavor anormal, sobrenatural. Um homem que morre, mesmo nas condições mais dramáticas, não causa horror. Um campo de batalha não é horrível. Os crimes, os mais vis, raramente são horríveis.
Eis dois exemplos pessoais que me fizeram compreender o que se pode entender pelo horror.
O primeiro foi durante a guerra de 1870.
Nós nos retiramos para Pont-Audemer, depois de termos atravessado Rouen. O exército – vinte mil homens aproximadamente, vinte mil homens derrotados, debandados, desmoralizados, esgotados – ia reagrupar-se no Havre.
A terra estava coberta de neve.
A noite caía. Dede a véspera que não se comia. Fugia-se, porque os prussianos não estavam longe.
Toda a planície normanda, lívida, manchada pela sombra das árvores em volta das herdades, se estendia sob um céu negro, rude e sinistro.
Não se ouvia mais nada, na luz eterna do crepúsculo, além de um ruído confuso, brando e descompassado de tropas em marcha, de um bater de pés infinito, misturado de um vago tinido de equipamentos e de sabres. Os homens, curvados, arqueados, sujos, muitas vezes mesmo esfarrapados, arrastavam-se, apressavam-se sobre a neve com longo passo extenuado.
A pele das mãos colava ao aço das culatras, porque gelava terrivelmente nessa noite. Muitas vezes, eu via soldado tirar os sapatos para andar com os pés nus, de tanto que sofria com o calçado, e deixava em cada passada um traço de sangue.
Depois, no fim de algum tempo, sentava-se num campo para descansar alguns minutos, e não se levantava mais. Cada homem que sentava era um homem morto.
Tínhamos deixado atrás de nós muitos desses pobres soldados estropiados, que contavam tornar a partir imediatamente, desde que tivessem descansado um pouco as suas pernas inteiriçadas. Mas, mal cessavam de se mover, de fazer circular em sua carne cansada o sangue quase inerte, um entorpecimento invencível apoderava-se deles, pregava-os à terra, fechava-lhes os olhos, paralisava em segundos esta mecânica humana estafada. E eles se abatiam um pouco, com as testas apoiadas nos joelhos, sem, contudo, cair de todo, porque seus rins e seus membros tornavam-se imóveis, duros como um pau, impossíveis de dobrar ou de endireitar.
E nós outros, mais robustos, íamos sempre, gelados até a medula, avançando por uma força de movimento dado nessa noite, nessa neve, nessa planície fria e mortal, esmagados pelo pesar, pela derrota, pelo desespero, sobretudo oprimidos pela abominável sensação do abandono, do fim, da morte, do nada.
Percebi dois gendarmes que seguravam pelo braço um homenzinho singular, velho, sem barba, de aspecto verdadeiramente surpreendente.
Procuravam um oficial, porque acreditavam ter prendido um espião.
A palavra espião correu logo entre os estropiados e estes fizeram um círculo em volta do prisioneiro. Uma voz gritou:
— É preciso fuzilá-lo!
E todos esses soldados, que caíam de cansaço, que se conservavam de pé apoiados nas suas espingardas, tiveram subitamente esse arrepio de cólera furiosa e bestial, que impele as multidões ao massacre.
Eu quis falar. Era então o comandante do batalhão. Mas não se conheciam mais chefes. Teriam fuzilado a mim mesmo.
Um dos policiais disse:
— Há três dias que ele nos segue, pedindo a todo mundo informações sobre a artilharia.
Eu procurei interrogar este ser:
— Que andas fazendo? O que queres? Para que acompanhas o exército?
Ele balbuciou algumas palavras numa linguagem ininteligível.
Era deveras um estranho personagem, de espáduas estreitas, de olhar sonso, e tão perturbado diante de mim que não me restava mais dúvida alguma de que era mesmo um espião. Ele me considerava de cima a baixo, com um ar humilde, estúpido e manhoso.
Os homens à nossa volta gritavam:
— Ao paredão! Ao paredão!
Eu disse aos gendarmes:
— Respondeis pelo prisioneiro?
Não tinha acabado de falar quando um empurrão terrível me deitou por terra, e eu vi, por um segundo, o homem tomado pelos soldados furiosos, derrubado, ferido, arrastado à beira da estrada e lançado contra uma árvore, já quase morto, sobre a neve.
E logo fuzilaram-no.
Os soldados atiravam nele. Tornavam a carregar as armas e atiravam de novo, com um furor brutal.
Batiam-se para ter a sua vez. Desfilavam diante do cadáver e disparavam repetidas vezes, como se desfilassem diante de um féretro para lançar água benta.
Mas, de repente, um grito soou:
— Os prussianos! Os prussianos!
E eu ouvi, por todo o horizonte, o rumor imenso do imenso exército perdido que corria.
O pânico, nascido desses tiros sobre esse vagabundo, havia enlouquecido os próprios executores que, sem compreender que o pavor vinha deles mesmos, fugiram e desapareceram na sombra.
Eu fiquei só, diante do corpo com os dois gendarmes que, retidos pelo dever, haviam permanecido perto de mim.
Eles levantaram aquela carne moída, mole e sangrenta.
— É preciso revistá-lo – disse-lhes.
E dei uma caixa de fósforo de cera que tinha em meu bolso. Um dos soldados iluminava o outro. Eu estava em pé entre os dois.
O gendarme que revistava o corpo declarou:
— Vestido com uma blusa azul, camisa branca, calças e um par de sapatos.
O primeiro fósforo apagou-se. Acendeu-se outro. O homem continuou remexendo os bolsos:
— Uma faca de chifre, um lenço xadrez, uma caixa de rapé, um punhado de barbante, um pedaço de pão.
O segundo fósforo apagou-se. Acendeu-se o terceiro. O gendarme, depois de ter por muito tempo apalpado o cadáver, exclamou:
— É tudo.
Eu disse:
— Vamos despi-lo. Acharemos talvez alguma coisa contra a pele.
E, para que os dois soldados pudessem agir ao mesmo tempo, eu mesmo me pus a iluminá-los. Eu os via, ao clarão rápido do fósforo, tirar a roupa, peça por peça, pôr a nu este fardo de carne ainda quente e morta.
De súbito, um deles exclamou:
— Ah, meu comandante, é uma mulher!
Eu não vos poderia dizer que estranha e pungente sensação de agonia me oprimiu o coração. Não podia acreditar naquilo, e ajoelhei-me sobre a neve, diante dessa massa informe para ver: era mesmo uma mulher!
Os dois gendarmes, interditos e desmoralizados, esperavam que eu emitisse uma opinião.
Mas eu não sabia o que pensar, o que supor.
Então, o brigadeiro pronunciou-se lentamente:
— Talvez ela viesse procurar seu filho, que era soldado de artilharia, e de quem não tinha notícias.
E o outro respondeu:
— Talvez fosse isto mesmo...
Eu, que já tinha visto coisas bem terríveis, comecei a chorar. E senti, em face dessa morta, nessa noite gelada, no meio dessa planície negra, diante desse mistério, diante dessa desconhecida, assassinada, o que quer dizer a palavra horror.
Eu tive esta mesma sensação no ano passado interrogando um fuzileiro argelino, que era um dos sobreviventes da missão Flatters.
Vós conheceis os detalhes desse drama atroz. Mas há um que, decerto, ignoreis.
O coronel ia ao Sudão pelo deserto e cruzava o imenso território dos tuaregues, que são, nesse oceano de areia, que vai do Atlântico ao Egito, e do Sudão à Argélia, uma espécie de piratas comparáveis aos que antigamente assolavam os mares.
Os guias que conduziam a coluna pertenciam à tribo dos Chambaa, de Ouargla.
Um dia, montaram o acampamento em pleno deserto, e os árabes declararam que, como a fonte ainda estava um tanto distante, iriam recolher a água com todos os camelos.
Apenas um homem preveniu o coronel de que era uma armadilha. Flatters não acreditou, e acompanhou a caravana com os engenheiros, os médicos e quase todos os seus oficiais.
Eles foram assassinados junto à fonte e todos os camelos capturados.
O capitão do posto árabe de Ouargla, que ficara no acampamento, assumiu o comando dos sobreviventes, spahis e fuzileiros, e iniciaram a retirada, abandonando as bagagens e os víveres, por falta de camelos para transportá-los.
Então, eles partiram naquela solidão sem sombras e sem fim, sob um sol
devorador, que os abrasava de manhã à noite.
Uma tribo veio render-se, trazendo tâmaras. Estavam envenenadas. Quase
todos os franceses morreram e, entre eles, o último oficial.
Só ficaram alguns spahis, com seu
comandante Pebóguim, e mais alguns fuzileiros nativos da tribo Chambaa. Tinham
ainda dois camelos, que desapareceram uma noite com os árabes.
Em seguida, os sobreviventes compreenderam que teriam de devorar-se uns
aos outros e, logo que descobriram a fuga de dois homens com os dois animais,
os que ficaram se separam e começaram a andar, cada um de per si, na areia
macia, sob a cruel chama do sol. Conservavam entre si uma distância maior que a
de um tiro de fuzil.
Andaram, assim, o dia todo, levantando, em cada lugar, na extensão
abrasada e plana, essas colunas de poeira que denunciam, ao longe, quem caminha
pelo deserto.
Mas, numa manhã, um dos viajantes se desviou bruscamente, aproximando-se
de seu companheiro. E todos pararam para olhar.
O homem na direção de quem marchava o soldado faminto não fugiu. Caiu ao
chão e apontou a arma para o que se aproximava. Quando viu que o outro estava a
uma boa distância, atirou. Mas não o atingiu. Este continuou avançando e,
depois, assumindo a sua vez, matou o seu camarada.
Então, de todo o horizonte, acorreram os demais, para garantir a sua
parte. E o que havia matado, esquartejando o morto, distribuiu as postas.
E se separaram novamente aqueles aliados irreconhecíveis, até que o
próximo assassinato os unisse novamente.
Durante dois dias eles viveram daquela carne humana compartilhada. Em
seguida, voltou a fome, e o primeiro a matar matou outra vez. E, novamente,
como um açougueiro, trinchou o cadáver e o ofereceu aos companheiros, mantendo
apenas a sua parte.
E assim continuou a retirada de antropófagos.
O último francês, Pobéguim, morreu assassinado nas margens de um poço,
na véspera do dia em que chegou o socorro. Vós compreendeis agora o que é o que
eu entendo por horrível?”
Eis o que nos contou, naquela noite, o general G...
[escrito por volta de 1880]
(In: 125 contos de Guy de Maupassant. Org. Noemi Moritz Kon Trad. Amilcar Bettega. São Paulo: Companhia das Letras, 2009)
O encontro
Lygia Fagundes
Telles
Em
redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco.
Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos, tão retos que pareciam recortados
a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma
nuvem.
“Onde, meu Deus?! –
perguntava a mim mesma – Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?”
Era a primeira vez
que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora
além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao
campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo – disso estava bem certa – era
completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em
todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória?
Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também
já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi
tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”
Fui andando em
direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado
entre as pedras.
Um vapor denso
subia, como um hálito, daquela garganta de cujo fundo insondável vinha um remotíssimo
som de água corrente. Aquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se
nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os
encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria
eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”
Sacudi a cabeça,
não, a lembrança – tão antiga quanto viva – escapava da inconsistência de um
simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos
enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele
silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro.
Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a
nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um
perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?
Dirigi-me ao
bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto.
Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo
outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” – a razão
ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de
encantamento, se recusava a voltar.
Uma luz dourada
filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a
menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de
expectativa.
“A expectativa está
só em mim” – pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me
então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto
pisava naquele mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre
as árvores. “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” – fui repetindo a aspirar
o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da
folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.
“A cilada” – pensei
diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha.
Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o
galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a
teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfazê-la? Lembrei-me do sol,
lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares
e segui pela vereda.
“Agora vou
encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele
estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos
de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar
um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos
indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por
ali.
Apanhei um
pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho
podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu
estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se
estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os
segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me
captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” – disse e espetei um
espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se
for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela
minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.
Um pássaro cruzou
meu caminho num voo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei
a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o
caminho percorrido, labirinto sem – esperança. “Agora é tarde!” – murmurei e
minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”
A folha que
resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na
mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações
para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que
aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.
Enveredei por entre
dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram
enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou
encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”
Ao lado da fonte,
estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito
branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao
ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.
Aproximei-me. Ela
lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no regaço.
– Pensei que fosse
outra pessoa, estou esperando uma pessoa...
Sentei-me numa
pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado:
vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava
até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta
destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de
bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma
vermelha.
Fixei-me naquela
fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a
ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.
– Você mora aqui
perto?
–- Em Valburgo –
respondeu sem levantar a cabeça.
Mergulhara tão
profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo,
aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado
contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética
exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo
rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranquilamente
desesperada, se é que cabia tranquilidade no desespero. Perdera toda a
esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.
– Valburgo,
Valburgo... – fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me
lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.
– Fica logo depois
do vale. Não conhece Valburgo?
– Conheço –
respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais.
Com um gesto
indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto.
Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de
ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche
nessa mesma gravata?!”
– Eu esperava uma
pessoa – disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um
tronco.
– Gustavo?
Esse nome
escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse
sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.
– Gustavo – repetiu
ela e sua voz era um eco. Gustavo.
Encarei-a. Mas por
que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”
Fixei
obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo
álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia
agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A
cena esboçou-se esfumadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela
noite das vozes exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas
da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o
que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um
velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa
enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.
Moveu-se a máscara
entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo
na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis
se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua
camisa destacavam-se com uma nitidez atroz os rubis de suas abotoaduras. Um dos
homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena
explodiu em meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as abotoaduras
brilhando irregulares como gotas de sangue.
Senti o coração
confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos
dedos contra os olhos. – Era quase insuportável a violência com que o sangue me
golpeava as fontes.
– Você devia voltar
para casa.
– Que casa? –
perguntou ela abrindo as mãos.
Olhei para suas
mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era
parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.
– Por que não vai
procurá-lo? – lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é
que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.
Escurecia. Uma
névoa roxa – e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão – parecia envolvê-la
numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.
– Vou-me embora –
disse apanhando o chapéu.
Sua voz chegou-me
aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse
instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa
verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento
desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os
olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual
violência arrancou-a daquela apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico
quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com
os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis
retê-la..
– Há ainda uma
coisa!
Ela então voltou-se
para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio
da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de
pedra.
– Há ainda uma
coisa – repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas
mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o
mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram.
Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.
– Eu fui você –
balbuciei. – Num outro tempo eu fui você! – quis gritar e minha voz saiu
despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha,
o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que
minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta
esfumaçada se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia
acontecer.
– Não! – gritei,
puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que
ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados,
arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.
Fui atrás. O vento
me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria
alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a
pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores,
flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia
tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o
uivo do vento.
Assim que atingi o
campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um
brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda.
Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos
para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e
cavaleira se despencando no abismo.
[1958]
(In: Os melhores contos. São Paulo: Global Editora,
1984.)
***
O defunto
Thomaz Lopes
Quando
ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha
as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em
torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu
as mãos presas, sem movimento; e pareceu-lhe então que estava morto.
Como
é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde
está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por
que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa?
E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia.
De
novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas
bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os
espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma
vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.
E
sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!
Um
medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do “cadáver” que sente a seu
lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de
encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija
vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num
calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos,
mas tropeça. Que será?
E
como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois,
outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos
para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.
Em
vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um
novo esforço para erguê-la: em vão! Uma sepultura de mármore, como que
para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar
que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente
descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para
salvar os vivos. – Oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja.
E
novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço,
vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado,
que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se
atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo
no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um
trovão distante encerrado numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem
leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de
novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e
serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece
impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação;
com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na
onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num
ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho
inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo – e sente uma a uma
ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!
Exausto
de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em
degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria...
Veio
o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.
Era
vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o
Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se – assim como uma cidade
que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.
Vai-se
largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.
Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos – nem vivalma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: – Marcha! Marcha! – As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva – o defunto caminhava.
De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. – Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo – e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. – Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se “ele” ali estava oculto contemplando a felicidade do outro “ele”! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o voo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra – e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... – Mas ele era cadáver e, na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo – coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...
Um
raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.
*
* *
Despertou
suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva.
Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os
braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.
Pensou,
então, no seu sonho – e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles
dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não
era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra
e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu
ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar
a sua situação de morto.
Longas
horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre
e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze,
chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia
infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso,
abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o
enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à
morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem
esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...
*
* *
Ao
despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol – único que lhe levava à
cova a carícia de uma visita.
Admirando-se
de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma
fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas,
intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e
gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo
ficou. O dia inteiro – longo como um deserto; a noite inteira – vazia como o
silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia
estranguladora de comer e de beber.
Outra
vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!
O
enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho
de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole.
Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e
faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando
entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentar! A
fome que ela fizera crescer! – E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou
a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando
um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as – e, nu, selvagem,
rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus
braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando
a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando
aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o
estômago crispado pela fome.
Um
rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde
brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha.
Enlouquecera.
Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita – e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...
[1907, Histórias da vida e da morte]
(In: O conto fantástico. Antologia. Org. Jerônymo Monteiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959)
Fechado
na catacumba
H. P. Lovecraft
Não sei de crença mais absurda do que essa
associação convencional dos fatos simples às coisas serenas e banais de que
parece imbuída a psicologia das multidões. Em consequência de um bucólico lugarejo yankee, um inepto e obtuso agente funerário de aldeia e um descuido
desastroso no interior de um jazigo tumular, nenhum leitor de mediano entendimento podia esperar outro desfecho que não alegre,
embora grotesco ato de comédia.
Mas só Deus sabe como a tremenda história de George Birch, cuja morte agora me permite contá-la,
apresenta aspectos frente aos quais
as nossas mais sombrias tragédias são perfeitamente simples,
leves, pueris.
Birch, que abandonou a profissão, trocando-a
por outra, em 1881, jamais tocava nesse assunto, fugindo do caso o mais que
podia. Também o velho médico, Dr. Davis, que morreu há alguns anos, não emitira
a menor palavra a respeito. Geralmente se atribuía tal atitude à aflição e ao
abalo resultante de um fatídico descuido pelo qual Birch se fechara, durante
nove horas, na catacumba do cemitério de Peck Valley e de onde só conseguiu
escapar, empregando meios rudes e contundentes. Embora tudo isso fosse incontestável,
havia outras coisas mais negras que o pobre homem me confiou, sussurrando, no
seu delírio de ébrio já às portas da morte. Ele confiou em mim porque eu era o
seu médico e também, provavelmente, por sentir a necessidade de desabafar-se
com alguém depois do falecimento do Dr. Davis. Birch jamais se casara, nem
contava parente algum neste mundo.
Até 1881, fora empreiteiro dos enterros, em
Peck Valley e sempre se mostrara o tipo do individuo rude e primitivo de modos
e idéias. As práticas que ouvi se lhe atribuírem, hoje ninguém as acreditaria
possíveis, pelo menos, em uma cidade, e mesmo Peck Valley teria estremecido de
espanto se soubesse ao certo dos inescrupulosos processos do seu coveiro
exclusivo, tais como, por exemplo, a subtração dos custosos tecidos
amortalhantes, favorecida pela tampa fechada do caixão e a falta de respeito sacrílega na colocação e arranjo dos
restos mortais no ataúdes que fornecia, nem
sempre fabricados no comprimento adequado. Mas, acima de tudo, o coveiro era
moroso, relaxado e mau profissional. Apesar disso, não penso que fosse, no
fundo, mau sujeito. Julgo-o simplesmente duro de inteligência e ação, bronco,
desmazelado e beberrão, como a presente
história o demonstrará à sociedade, e além disso, sem o mínimo grau de
imaginação comum à maioria dos seres humanos, dentro do limite fixado pelo bom
senso.
Dificilmente sei por onde começar o caso de
Birch, uma vez que não possuo prática qualquer
de narrador. Mas como tenho forçosamente de fazê-lo, principiarei por aquele
frio dezembro de 1880, quando os campos gelaram de tal forma que impediram de
cavar-se sepulturas até o advento
da primavera e consequentemente reamolecimento do solo. Felizmente, a aldeia possuía pequenas proporções, o que
tornava muito baixo o seu coeficiente de mortalidade. Assim, foi possível
dar-se todas as cargas fúnebres do enterrador local um abrigo provisório na
única catacumba do cemitério. Com a inclemência do tempo, Birch ficou
dobradamente lerdo e parecia superar-se, a si mesmo, de relaxamento nos diversos misteres
da sua profissão. Jamais construíra ele ataúdes tão grosseiros e mal ajustados, nem mais
flagrantemente descurara antes os cuidados indispensáveis com a enferrujada
fechadura da cripta, cuja porta ele costumava abrir com um safanão e fechava
com desleixados pontapés.
Afinal veio o degelo e as sepulturas puderam
ser cavadas laboriosamente para os silenciosos frutos humanos, safra da
impiedosa segadora eterna e que pacientemente esperavam o repouso final da
última morada. Birch, embora maldizendo o afã, começou a remoção dos cadáveres,
numa desagradável manhã de abril, interrompendo-a, porém, antes do meio-dia,
devido à pesada chuva que cegava o cavalo da carreta, e depois de só ter
baixado um único defunto ao seio da terra. Este era Darius Peck, nonagenário, cuja cova ficava
perto da catacumba. O coveiro resolveu
começar, no dia seguinte, com
Matthew Fenner, velhinho miúdo que tinha o seu túmulo também não muito
distante. Acabou, porém, adiando o serviço para três dias depois, só voltando a
trabalhar na Sexta- feira Santa, dia quinze. Não sendo supersticioso, nenhuma
importância deu à data, se bem que, depois da história, sempre se recusou a
fazer qualquer serviço de importância neste fatídico dia. Certamente, os
acontecimentos daquela noite mudaram por completo, o feitio de George Birch.
Então, na tarde de Sexta-Feira Santa, quinze
de abril, o nosso homem se dirigiu à catacumba,
com o cavalo a puxar a carroça, a fim de apanhar o caixão de Matthew Fenner. A
verdade é que Birch já gostava da bebida, conforme ele próprio o confessou mais
tarde, muito embora, naquele tempo, ainda contraíra o vício desbragado pelo
qual procurou esquecer, na embriaguez, certos fatos penosos. O agente funerário
sentia-se, então, bastante entontecido e abstrato que esquecia o necessário incitamento ao seu cavalo que, vendo-se
assim dignificantemente
conduzido, relinchava, batia com as patas no solo e remexia continuamente a
cabeça, molestado pela chuva.
Entretanto, o dia mostrava-se claro e a aventura soprava, o que pôs o coveiro
contente, com a idéia de abrigar-se, ao abrir a porta de ferro e penetrar na
cripta cavada no flanco da colina. Um outro não teria gostado daquele recinto
úmido e malcheiroso, com oito esquifes dispostos cuidadosamente ao centro, mas Birch tinha
a alma já calejada pelo ofício e só se preocupava em não
errar a sepultura de cada um. Jamais esquecera os protestos levantados, quando
os parentes de Hanna Bixby, desejando transportar-lhe os restos para o
cemitério da cidade para onde se haviam mudado, encontraram, sob a lápide de
Hanna, a urna do Juiz Capwell.
O interior da catacumba mergulhava-se em
densa penumbra. Birch, no entanto, possuía excelente vista e não confundiu o
caixão de Fenner com o de Asaph Sawyer, embora fosse este muito semelhante
àquele. Com efeito, o ataúde de Sawyer destinava-se primitivamente a Matthew
Fenner, mas, à última hora, Birch pusera-o de lado, achando-o demasiado frágil
e tosco pois, num impulso de sentimentalismo agradecido, lembrou-se de quando o velhinho Fenner
o ajudara em uma
falência, cinco anos antes. Assim, deu ao seu bom protetor tudo o que de melhor
a sua arte poderia produzir. Mas, sendo demasiado sovina para desperdiçar o
material defeituoso, aproveitou o refugo, quando Asaph Sawyer morreu de febre
maligna. Este não gozava de bom conceito,
como cidadão, e muitas histórias corriam da sua quase desumana sede de vingança
e da sua memória tenaz que o impedia de esquecer ressentimentos reais ou
imaginários contra os desafetos. Assim, o empreiteiro fúnebre nenhum
constrangimento sentiu em reservar-lhe o ataúde mal feito que, naquele momento,
afastava para lado com um repelão, procurando o de Fenner.
Foi justamente então, quando punha as mãos
no caixão do bom velhinho, que o vento bateu
a porta, mergulhando tudo em negra escuridão. O estreito postigo só
deixava uma fraquíssima claridade e nenhuma virtualmente se coava pela chaminé
de ventilação do teto. O coveiro ficara, pois,
reduzido a um tatear inconsciente, caminhando hesitante, entre
os esquifes, na direção da
porta. Neste débil lusco-fusco, fez tanger a enferrujada aldrava,
sacudiu inutilmente as almofadas de ferro, espantando-se com a súbita
resistência da maciça porta. Compreendeu logo a realidade da situação e pôs-se
a gritar desesperadamente como se o cavalo, lá fora, pudesse fazer mais do que
responder-lhe com relinchos agudos e desolantes. A lingueta da fechadura,
longamente desleixada, quebrara-se finalmente, fechando, na catacumba, a
culpada vítima da própria negligência, como em ratoeira.
A coisa devia ter acontecido cerca das três
horas e meia da tarde. Birch, dotado de temperamento fleumático e prático, não
gritou por muito tempo, pondo-se logo a procurar, às apalpadelas, algumas
ferramentas que lembrava haver visto amontoadas em um canto. Não há, contudo,
certeza se ele avaliou de pronto todo o horror e a impressionante fatalidade da
sua crítica situação, mas o simples fato de se ver encerrado em local fora do
caminho de qualquer ser humano seria bastante para fazer perder a cabeça ao
mais valente indivíduo. A tarefa do dia fora assim desgraçadamente interrompida
e a não ser que a sorte trouxesse até ali algum excursionista errante, Birch
teria de ficar enclausurado durante toda a noite e ninguém podia saber por
quanto tempo mais. Logo que encontrou
o monte de ferramentas, o enterrador escolheu um martelo e um escopo e
voltou à porta, passando por sobre os caixões. O ar começara a ficar
excessivamente empestado, mas ele não atentou em semelhante detalhe,
tão ocupado estava
em atacar o pesado e corroído metal da fechadura. Teria certamente
então dado tudo por uma lanterna acesa ou um simples toco de vela, mas, na
falta de qualquer iluminação bastante, martelava, às cegas, da melhor maneira
que podia.
Percebendo, porém, que o fecho resistiria
inexoravelmente, pelo menos a tão frágeis instrumentos, naquelas tenebrosas
condições, Birch olhou em torno, na esperança de achar outros possíveis meios
de safamento. A catacumba se cavava na encosta de uma elevação, de modo que o
ventilador atravessava vários pés de terra, eliminando assim qualquer
visibilidade de evasão por aquele lado. A clarabóia losangular, tendida bem
alto, sobre a porta, na fachada de tijolos, parecia- lhe mais suscetível de ser
alargada, embora à custa de rudes esforços. Os olhos do homem nela se fixaram
longamente, enquanto espremia o cérebro, em busca do meio de subir e
alcançá-la. Não havia ali espécie alguma de escada e os nichos destinados a
receber as urnas, situados nas paredes laterais e do fundo, não lhe dariam
acesso, muito distantes, à parte superior da porta. Só restava, portanto, o uso
dos próprios esquifes, à guisa de degraus. Fixando o pensamento nesse sentido,
estudo o melhor meio de colocá-los. Calculou que a altura de três caixões
superpostos lhe seria bastante para chegar à clarabóia, mas quatro lhe tornaria
o trabalho ainda mais fácil. As urnas fúnebres era bem niveladas e podiam ser
empilhadas solidamente. Sem mais demora, pôs-se a imaginar como deveria dispor
os oito féretros para construir uma plataforma escalável, cujo piso superior se
constituísse de quatro deles, verticalmente arrumados. Enquanto pensava, só
lamentava não tê-los feito com absoluta solidez. Agora, se a sua imaginação
chegou a desejar que os caixões estivessem vazios, é francamente duvidoso.
Finalmente, decidiu encostar uma base de
três ataúdes à porta e colocar sobre esta duas camadas de dois féretros cada
uma e, em cima de tudo, um único caixão, servindo de estrado. Tal disposição
podia ser erguida com o mínimo de tropeços e lhe forneceria a altura desejada.
Ainda melhor, assim só se utilizaria de dois caixões, na base, para suportar a
superestrutura, deixando o terceiro, como um degrau disponível, para o caso de
ser-lhe necessário maior altura. E o prisioneiro labutou, na penumbra espessa,
erguendo os defuntos com nenhuma cerimônia, naquela muda de torre de babel.
Vários féretros começaram a estalar no decurso da operação e Birch resolveu reservar o de Matthew Fenner, pela sólida
construção, para encimar a pilha, de modo que, ao trabalhar na clarabóia, os
seus pés encontrassem a superfície mais firme possível como apoio.
Por fim, a torre foi terminada e, com os
braços doloridos, Birch fez uma pausa, durante a qual se sentou no primeiro
degrau da estranha escada. A seguir, subiu cautelosamente, com as ferramentas, até a clarabóia, cujos bordos era m de tijolos e que, lhe parecia, não lhe seria difícil dilatar do suficiente para
escapulir daquela fúnebre prisão. Ao ressoar das primeiras marteladas, o
cavalo, lá fora, relinchou em tom que tanto podia ser de encorajamento como de mofa. Em ambas as
hipóteses, a manifestação da alimária se tornava adequada, pois a imprevista
tenacidade da camada de tijolos, de frágil aspecto à vista, simbolizava um
verdadeiro comentário sardônico à falacidade das esperanças terrenas e exigia
um trabalho merecedor dos mais acalorados incitamentos.
Caiu a noite, que encontrou o coveiro ainda
mourejanto. Agora, trabalhava exclusivamente pelo tato, pois grandes nuvens
repentinamente aglomeradas eclipsaram a lua. Embora o progresso geral fosse
medíocre, ele se sentia animado com a extensão das erosões produzidas no alto e
no fundo da clarabóia. Estava firmemente convicto, enfim, de que conseguiria
libertar-se por volta da meia-noite. Abstraído de reflexões opressivas sobre o
tempo, o lugar e a companhia empilhada sob os seus pés, Brich ia
filosoficamente lascando os pétreos tijolos. Praguejava, quando um estilhaço o
atingia no rosto e ria-se quando outros se projetavam sobre o cada vez mais
enlevado cavalo que pastejava, amarrado ao cipreste. De vez em quando, julgava
a abertura tão adiantada que tentava por ela passar o corpo e, ao assim
proceder, tanto se remexia que os esquifes embaixo, dançavam e estalavam.
Esperava, entretanto, não ter de elevar mais a plataforma por meio de um quinto
ataúde, pois o buraco se encontrava no nível exato de ser transposto logo que
as dimensões permitissem a passagem.
Devia ser, pelo menos, meia-noite, quando
Birch decidiu empreender a travessia da clarabóia. Cansado e suarento, a
despeito das inúmeras pausas, desceu ao chão e sentou-se um momento sobre o
esquife inferior, a fim de reunir as forças para o esforço final e o salto para
o exterior. O cavalo, faminto, relinchava repetida e fracamente, enquanto o seu
dono fazia votos para que ele parasse com aqueles lúgubres apelos. Birch
sentia-se paradoxalmente pouco entusiasmado. No momento de realizar a ambiciosa
libertação, assautou-o um como quase medo de iniciá-la, pois a coisa se revestia de intemerata rudeza
dos heróicos tempos medievais. Ao galgar de novo os caixões, já rachados, ele
percebeu, apreensivo, o próprio corpo mais pesado ainda, especialmente quando,
depois de atingir a plataforma, ouviu um estalo forte de madeira que acabava de
ceder. Fora-lhe inútil escolher o caixão mais sólido para encimar o macabro
andaime. Tão pronto voltara a descansar sobre ele o peso do corpo, a tampa
rompeu-se, fazendo-o baixar duas jardas sobre uma coisa mole, de que jamais
imaginara, um dia, haver de sentir, sob os pés, a muralhante e gosmenta
friagem. Estonteado pelo barulho ou pelo fétido que se desprendera, vigoroso,
até o lado de fora, o cavalo emitiu um berro estridente, demasiado selvagem
para chamar-se um relincho, e mergulhou na
noite de piche, louco de pânico, seguido do estrépito infernal da carroça,
arrastada aos trambolhões cegos.
Naquela angustiosa situação, Birch se
encontrava agora impotente para atravessar a
clarabóia já alargada, mas resolveu reunir as energias para uma
tentativa desesperada. Tendo conseguido agarrar-se à beira da abertura pela
ponta dos dedos, dispunha-se a alcançar-se, pela força dos braços, quando notou uma estranha pressão como se
alguém o puxasse para baixo, pelos calcanhares. Então, pela primeira vez,
naquela noite, ele sentiu medo. Sim. Porque, embora se debatesse, esperneando
furiosamente o mais possível, não conseguiu sacudir fora a misteriosa garra que
lhe prendia os pés, em uma tração contínua. Dores horríveis, como de chagas
cruéis, percorriam-lhe a barriga da perna e, em seus espírito, dançava, num
vértice de horror supersticioso, a inequívoca realidade, a prova material; o
lascar das tábuas, os pregos arrancados e todos os demais ruídos característicos da madeira que se parte. Não era,
portanto, uma ilusão dos sentidos, um fenômeno alucinatório gerado pelas
circunstâncias. Pô-se a lutar, dando de pernas, em contorções ainda mais
frenéticas, até passar a um estado de semidesmaio, em que os seus desvairados
movimentos continuaram, ao acaso, automáticos. De repente, sem saber como,
viu-se livre, já com o corpo metido na clarabóia.
Somente o instinto o guiou, no trágico
caminho sinuoso através da abertura e ao rastejar que seguiu o baque surdo da
sua queda, no exterior, sobre o chão úmido. Birch não podia caminhar e a lua
nascente deve ter testemunhado a horrível cena daquele homem delirante,
arrastando os tornozelos em sangue, na direção do pequeno pavilhão do
cemitério, os dedos espasmódicos enterrando-se na relva enegrecida, em pressa
febril, o corpo, porém, respondendo com a clássica lentidão desesperante de que
procura fugir dos fantasmas, nos pesadelos. Evidentemente, ali não havia
perseguidor algum, pois que Birch estava só e acordado, quando Armington, o
guarda da necrópole, atendeu a seu fraco batido à porta.
O guarda levou-o para uma cama de reserva e
mando o filho, Edwin, chamar o Dr. Davis. O pobre empreiteiro de enterros se
achava em perfeito estado de conhecimento, mas nada dizia sobre o acontecimento, murmurando apenas raras
palavras como: “Ai! Meus tornozelos! Largue-me!... Fechado na catacumba...”.
Pouco depois, chegou o médico com a sua maleta de remédios, fez perguntas
insistentes ao ferido e removeu-lhe as roupas de cima, os sapatos e as meias.
As feridas (ambos os artelhos se apresentavam horrivelmente dilacerados sobre o
tendão de Aquiles) intrigaram grandemente o velho doutor e, a seguir, quase o
aterrorizaram. O interrogatório, com efeito, ultrapassou o terreno médico e as
mãos do esculápio tremiam visivelmente ao contribuírem os retalhados membros de
espessas ataduras, como se ele quisesse, sobretudo, ocultar aquelas chagas, o
mais depressa possível.
Realmente, as perguntas angustiosas e
solenes do Dr. Davis tornavam-se mais do que estranháveis, pois deixavam bem
patente a intenção de arrancar do infeliz coveiro até o mais insignificante detalhe
da sua pavorosa aventura, o que era inadmissível em médico. Davis mostrava-
se singularmente ansioso pos saber se Birch tinha a certeza absoluta de quem
era o caixão que servia de
plataforma, de como ele o identificara em plena escuridão e finalmente, por que
maneira o distinguira da duplicata de qualidade inferior, mais tarde ocupada
pelo corpo do mal-afamado Asaph
Sawyer. Em suma, por que artes o sólido ataúde de Fenner cedera assim tão
facilmente? O profissional, antigo médico da aldeia, assistira, naturalmente,
aos funerais de ambos, como também os havia atendido nas suas derradeiras
enfermidades. Até mesmo no enterro de Sawyer, muito se admirara de como se
arranjara o vingativo fazendeiro defunto para acomodar os longos ossos em tão diminuto caixão, feito sob as medidas
do pequeno Fenner.
Após duas longas horas, o Dr. Davis partiu,
insistindo com o paciente para convencer-se de que as suas feridas só poderiam
ter sido causadas por pregos de pontas soltas estilhaços agudos de madeira.
Nada mais explicaria o acontecido, com lógica e verossimilhança, acrescentou.
Sobretudo, recomendou-lhe ainda falar o menos possível sobre o caso e, em
nenhuma hipótese, permitisse que ouro médico lhe tratasse aqueles ferimentos.
Birch seguiu esses conselhos o resto da sua vida, até que um dia, me contou a
sua história. Depois de examinar-lhe as cicatrizes já velhas e esbranquiçadas, achei
que ele fizera
muito bem em manter-se discreto. Do acidente, o pobre homem saira aleijado, pois fora cortado o tendão principal, mas, para mim, a sua
maior invelidez operou-se- lhe na própria alma. De temperamento outrora tão
fleumático, o seu raciocínio guardou, depois do fato, transtornos imperecíveis
e comovia observar-se-lhe as reações e certas alusões causais, como
“sexta-feira, catacumba, caixão” e outras palavras menos diretamente
significativas. O seu cavalo assustado, regressara a casa, nas a razão do pobre
homem nunca mais retornou ao lugar devido. Ele trocou a profissão, mas, para sempre,
algo lhe ficou, penando-o. Talvez fosse apenas o medo, ou o medo envolto em
espécie estranha de implacável remorso pelas más ações do seu passado. Ademais, a bebida só veio agravar o que
ele tencionava aliviar com a embriaguez.
O Dr. Davis, ao deixá-lo,
naquela noite, pegara uma lanterna e se dirigira à catacumba. A luz
iluminava vagamente os destroços dos tijolos espalhados, a fachada esburacada e
o velho cipreste, de cujo tronco ainda pendia o segmento do cabresto
arrebentado pelo equino, em pânico. O trinco
da pesada porta de ferro abriu-se à primeira pressão da maçaneta
exterior. Endurecido pela antiga prática das autópsias, o médico
entrou e correu o olhar em torno, contendo a náusea física e moral que o mau
cheiro e tudo mais ali provocavam. De repente, deixou escapar um grito e, logo
depois, teve um extremeção que lhe pareceu mais terrível do que um berro de
dor. E correu desabaladamente para o pavilhão do cemitério, onde, contra todas
as regras da compostura, agarrou o doente pelas roupas, levantando-o, com
força, atirou-lhe uma série de cochichos frenéticos que entraram pelos ouvidos
do ferido, fervilhantes como vitríolo.
— O caixão era de Asaph, Birch – sibilou-lhe
o doutor, justamente como eu pensava. – Reconheci-lhe o cadáver pela dentadura
a que faltavam incisivos superiores. Pelo amor de Deus, jamais mostre os seus
ferimentos a quem for! O corpo estava completamente putrefeito, mas, ainda
assim, nunca vi expressão tão nítida de vingança satisfeita como a das suas
feições já enegrecidas. Nunca, juro-o, em toda a minha vida! Bem sabe o demônio
tenaz que era ele para vingar-se. Ainda deve estar lembrado de como arruinou o
velho Raymond, trinta anos depois da demanda de terras entre ambos e como
matou, a pisadas, o cãozinho inofensivo que o perseguira, latindo, fez um ano
em agosto... Era o diabo em figura de gente e penso que a sua teoria de olho
por olho e dente por dente tinha tanta ferocidade que resistiu à própria morte.
O seu ódio... meu Deus!... eu não o quisera,
jamais, sobre mim!
Então, por que você o foi provocar, Birch?
Por ter sido um sujeito miserável, não te censuro ter-lhe dado um caixão
refugado. Mas sempre exageras as coisas! Há limites que se devem respeitar, a todo preço, e conhecias muito
bem o tamanho do velhinho Fenner!
Nunca mais se me apagará
da memória, enquanto
vivo for, o quadro que então presenciei. O caixão de Asaph estava por terra, atirado longe. A sua cabeça
esfacelada e tudo mais, dentro, resolvido. Já muita coisa neste mundo, mas uma,
doravante, ficará insuperável! Olho por olho! Francamente, Birch
teve o que merecia. O crânio esmigalhado de Asaph embrulhou-me o estômago, mas a
outra extremidade do corpo fez-me pior. Aqueles tornozelos cortados rentes para
que o defunto coubesse no caixão feito para Matt Fenner!
[1925]
(In: sitelovecraft.com, a partir de texto publicado originalmente em 1979 na revista Spektro nº 9. Título original: “In the vault”. Trad. desconhecida)
O barril de Amontillado
Edgar Allan Poe
Suportara eu, enquanto possível, as mil
ofensas de Fortunato, mas quando se aventurou ele a insultar-me, jurei me
vingar. Vós que tão bem
conheceis a natureza de minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi
alguma ameaça. Afinal, eu
deveria vingar-me. Isto era um ponto definitivamente assentado, mas essa
resolução definitiva excluía a ideia de risco. Eu devia não só punir, mas punir
com impunidade. Não se desagrava uma injúria, quando o castigo recai sobre o
desagravante. O mesmo acontece quando o vingador deixa de fazer sentir sua
qualidade de vingador a quem o injuriou.
Fica
logo entendido que nem por palavras, nem por fatos, dera eu causa a Fortunato
de duvidar de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a fazer-lhe cara
alegre, e ele não percebia que meu sorriso agora se originava da ideia de sua
imolação.
O
Fortunato tinha o seu lado fraco, embora, a outros respeitos, fosse um homem
acatado e até temido. Orgulhava-se de ser conhecedor de vinhos. Poucos
italianos têm o verdadeiro espírito do "conhecedor". Na maior parte,
seu entusiasmo adapta-se às circunstâncias do momento e da oportunidade, para
ludibriar milionários ingleses e austríacos. Em matéria de pintura e
ourivesaria era Fortunato semelhante a seus patrícios, um impostor, mas em
assunto de vinhos velhos era sincero. A este respeito, éramos da mesma força.
Considerava-me muito entendido em vinhos italianos, e, sempre que podia,
comprava-os em larga escala.
Foi ao
escurecer duma tarde, durante o supremo delírio carnavalesco, que encontrei meu
amigo. Abordou-me com excessivo ardor, pois já estava bastante bebido. Estava
fantasiado, com um traje apertado e listado, trazendo na cabeça uma carapuça
cônica, cheia de guizos. Tão contente fiquei ao vê-lo, que não cessava de
apertar-lhe a mão. E disse-lhe:
— Meu
caro Fortunato, foi uma felicidade encontrá-lo. Como está você bem-disposto
hoje! Mas recebi uma pipa dum vinho, dado como Amontillado, e tenho minhas
dúvidas.
— Como?
— disse ele. — Amontillado? Uma pipa? Impossível. E no meio do carnaval!
— Tenho
minhas dúvidas — repliquei —, mas fui bastante tolo em pagar o preço total do
amontillado, sem antes consultar você. Não consegui encontrá-lo e tinha receio
de perder uma pechincha.
—
Amontillado!
— Tenho
minhas dúvidas.
—
Amontillado!
— É
preciso desfazê-las.
—
Amontillado!
— Se
você não estivesse ocupado... Estou indo à casa de Luchesi. Se há alguém que
entenda disso, é ele. Terá de dizer-me...
— Luchesi
não sabe diferençar um Amontillado dum Xerez.
— No
entanto, há uns bobos que dizem por aí que, em matéria de vinhos, vocês se
equiparam.
— Pois
então vamos.
— Para
onde?
— Para
sua adega.
— Não,
meu amigo. Não quero abusar de sua boa vontade. Vejo que você está ocupado.
Luchesi...
— Não
estou ocupado coisa nenhuma... Vamos.
— Não,
meu amigo. Não é por isso, mas é que vejo que você está fortemente resfriado. A
adega está duma umidade intolerável. Suas paredes estão incrustadas de salitre.
— Não
tem importância, vamos. Um resfriado à-toa. Amontillado! Acho que você foi
enganado. Quanto a Luchesi, é incapaz de distinguir um Xerez dum Amontillado.
Assim
falando, Fortunato agarrou-me o braço. Pondo no rosto uma máscara de seda e
enrolando-me num capote, deixei-me levar por ele, às pressas, na direção do meu
palácio.
Todos
os criados haviam saído para se divertirem no carnaval. Dissera-lhes que só
voltaria de madrugada e dera-lhes explícitas ordens para não se afastarem de
casa. Foi, porém, o bastante, bem o sabia, para que se sumissem, logo que virei
as costas.
Peguei
dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o através de
várias salas até a passagem abobadada, que levava à adega. Desci à frente dele
uma longa e tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado. Chegamos por fim ao
sopé e ficamos juntos, no chão úmido das catacumbas dos Montresors.
Meu
amigo cambaleava e os guizos de sua carapuça tilintavam, a cada passo que dava.
— Onde
está a pipa? — perguntou ele.
— Mais
para o fundo — respondi —, mas repare nas teias cristalinas que brilham nas
paredes desta caverna.
Ele
voltou-se para mim e fitou-me bem nos olhos, com aqueles seus dois glóbulos
vítreos que destilavam a reuma da bebedice.
—
Salitre? — perguntou ele, por fim.
— É,
sim — respondi. — Há quanto tempo está você com essa tosse?
— Eh!
Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! — pôs-se ele a tossir e durante muitos minutos não
conseguiu meu pobre amigo dizer uma palavra.
— Não é
nada — disse ele, afinal.
— Venha
— disse eu, decidido. — Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico,
respeitado, admirado, amado. Você é feliz, como eu era outrora. Você é um homem
que faz falta. Quanto a mim, não. Voltemos. Você pode piorar e não quero ser
responsável por isso. Além do que, posso recorrer a Luchesi...
—
Basta! — disse ele. — Esta tosse não vale nada. Não me há de matar. Não é de
tosse que hei de morrer.
— Isto
é verdade... isto é verdade — respondi — e de fato, não era minha intenção
alarmá-lo sem motivo. Mas acho que você deveria tomar toda a precaução. Um gole
deste Médoc nos defenderá de umidade.
Então
fiz saltar o gargalo duma garrafa, que retirei duma longa fileira empilhada no
chão.
— Beba
— disse eu, apresentando-lhe o vinho.
Levou a
garrafa aos lábios com um olhar malicioso. Calou-se um instante e me
cumprimentou com familiaridade, fazendo tilintarem os guizos.
— Bebo
pelos defuntos que repousam em torno de nós — disse ele.
— E eu
para que você viva muito.
Pegou-me
de novo pelo braço e prosseguimos.
— Estas
adegas são enormes — disse ele.
— Os
Montresors eram uma família rica e numerosa — respondi.
— Não
me lembro quais são suas armas.
— Um
enorme pé humano dourado, em campo blau; o pé esmaga uma serpente rastejante,
cujos colmilhos se lhe cravam no calcanhar.
— E
qual é a divisa?
— Nemo me impune lacessit.
—
Bonito! — disse ele.
O vinho
faiscava-lhe nos olhos e os guizos tilintavam. Minha própria imaginação se
aquecia com o Médoc. Havíamos passado diante de paredes de ossos empilhados,
entre barris e pipotes, até os recessos extremos das catacumbas. Parei de novo
e desta vez atrevi-me a pegar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.
— O
salitre! Veja, está aumentado. Parece musgo agarrado às paredes. Estamos
embaixo do leito do rio. As gotas de umidade filtram-se entre os ossos. Venha,
vamos antes que seja demasiado tarde. Sua tosse...
— Não é
nada — disse ele. — Continuemos. Mas antes dê-me outro gole de Médoc.
Quebrei
o gargalo duma garrafa de De Grave e entreguei-lhe. Esvaziou-a dum trago. Seus
olhos cintilavam, ardentes. Riu e jogou a garrafa para cima, com um gesto que
eu não compreendi.
Olhei
surpreso para ele. Repetiu o grotesco movimento.
— Não
compreende? — perguntou.
— Não.
— Então
não pertence à irmandade?
— Que
irmandade?
— Você
não é maçom?
— Sim,
sim, sim, sim — respondi.
— Você?
Maçom? Não é possível.
— Sou
maçom, sim.
—
Mostre o sinal — disse ele.
— É
este — respondi, retirando de sob as dobras de meu capote uma colher de
pedreiro.
— Você
está brincando — exclamou ele, dando uns passos para trás. — Mas vamos ver o
Amontillado.
— Pois vamos
— disse eu, recolocando a colher debaixo do capote e oferecendo-lhe, de novo,
meu braço, sobre o qual se apoiou ele pesadamente. Continuamos o caminho em
busca do Amontillado. Passamos por uma série de baixas arcadas, demos voltas,
seguimos para a frente, descemos de novo e chegamos a uma profunda cripta, onde
a impureza do ar reduzia a chama de nossos archotes a brasas avermelhadas.
No
recanto mais remoto da cripta, outra se descobria menos espaçosa. Nas suas
paredes alinhavam-se restos humanos, empilhados até o alto da abóbada, à
maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior
estavam assim ornamentados. Do quarto haviam sido afastados os ossos, que
jaziam misturados no chão, formando em certo ponto um montículo de avultado tamanho.
Na parede assim desguarnecida dos ossos, percebemos um outro nicho, com cerca
de quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não
parecia ter sido escavado para um uso especial, mas formado simplesmente pelo
intervalo entre dois dos colossais pilares de teto das catacumbas e tinha como
fundo uma das paredes de sólido granito, que os circunscreviam. Foi em vão que
Fortunato, erguendo a tocha mortiça, tentou espreitar a profundeza do recesso.
A fraca luz não nos permitia ver-lhe o fim.
— Vamos
— disse eu —, aqui está o Amontillado. Quanto a Luchesi...
— É um
ignorantaço! — interrompeu meu amigo, enquanto caminhava, vacilante, para
diante e eu o acompanhava rente aos seus calcanhares. Sem demora alcançou ele a
extremidade do nicho e, não podendo mais prosseguir, por causa da rocha, ficou
estupidamente apatetado. Um momento mais e ei-lo acorrentado por mim ao
granito. Na sua superfície havia dois anéis de ferro, distando um do outro
cerca de dois pés, horizontalmente. De um deles pendia curta cadeia e do outro
um cadeado. Passar-lhe a corrente em torno da cintura e prendê-lo, bem seguro,
foi obra de minutos. Estava por demais atônito para resistir. Tirando a chave,
saí do nicho.
— Passe
sua mão — disse eu — por sobre a parede; não poderá deixar de sentir o salitre.
É de fato bastante úmido.
Mais uma vez permita-me implorar-lhe que
volte. Não? Então devo positivamente deixá-lo. Mas é preciso primeiro
prestar-lhe todas as pequeninas atenções que puder.
— O
Amontillado! — vociferou meu amigo, ainda não recobrado do espanto.
— É
verdade — repliquei —, o Amontillado.
Ao
dizer estas palavras pus-me a procurar as pilhas de ossos, a que me referi
antes. Jogando-os para um lado, logo descobri grande quantidade de tijolos e
argamassa. Com estes materiais e com o auxílio de minha colher de pedreiro,
comecei com vigor a emparedar a entrada do nicho.
Mal
havia eu começado a acamar a primeira fila de tijolos, descobri que a
embriaguez de Fortunato se tinha dissipado em grande parte. O primeiro indício
disto que tive foi um surdo lamento, lá do fundo do nicho. Não era o choro de um homem embriagado.
Seguiu-se então um longo e obstinado silêncio. Deitei a segunda camada, a
terceira e a quarta e depois ouvi as furiosas vibrações da corrente. O barulho
durou vários minutos, durante os quais, para gozá-lo com maior satisfação,
interrompi meu trabalho e me sentei em cima dos ossos. Quando afinal o tilintar
cessou, tornei a pegar na colher e acabei sem interrupção a quinta, a sexta e a
sétima camadas. A parede estava agora quase ao nível de meu peito. Parei de
novo e, levantando o archote por cima dela, lancei uns poucos e fracos raios
sobre o rosto dentro do nicho. Uma explosão de berros fortes e agudos,
provindos da garganta do vulto acorrentado, me fez recuar com violência.
Durante um breve momento hesitei. Tremia. Desembainhando minha espada, comecei
a apalpar com ela em torno do nicho, mas uns instantes de reflexão me
tranquilizaram. Coloquei a mão sobre a alvenaria sólida das catacumbas e
senti-me satisfeito. Reaproximei-me da parede. Respondi aos urros do homem.
Servi-lhe de eco... ajudei-o a gritar... ultrapassei-o em volume e em força.
Fui fazendo assim e por fim cessou o clamor.
Era
agora meia-noite e meu serviço chegara ao termo. Completara a oitava, a nona e
a décima camadas. Tinha acabado uma porção desta última e a décima primeira.
Faltava apenas uma pedra a ser colocada e argamassada. Carreguei-a com
dificuldade por causa do peso. Coloquei-a, em parte, na posição devida. Mas
então irrompeu de dentro do nicho uma enorme gargalhada, que me fez eriçar os
cabelos. Seguiu-se-lhe uma voz lamentosa, que tive dificuldade em reconhecer
como a do nobre Fortunato. A voz dizia:
— Ah!
Ah! Ah!... Eh! Eh! Eh!... Uma troca bem boa de fato... uma excelente pilhéria.
Haveremos de rir a bandeiras despregadas lá no palácio... Eh! Eh! Eh!... a
respeito desse vinho... Eh! Eh! Eh!
— O
Amontillado! — exclamei eu.
— Eh!
Eh! Eh!... Eh! Eh! Eh!... Sim, o Amontillado. Mas já não será tarde? Já não
estarão esperando por nós, no palácio, minha mulher e os outros? Vamos embora.
— Sim —
disse eu —, vamos embora.
— Pelo amor de Deus, Montresor!
— Sim —
disse eu —, pelo amor de Deus!
Aguardei
debalde uma resposta a essas palavras. Impacientei-me. Chamei em voz alta:
—
Fortunato!
Nenhuma
resposta. Chamei de novo:
—
Fortunato!
Nenhuma
resposta ainda. Lancei uma tocha, através da abertura remanescente, e deixei-a
cair lá dentro. Como resposta ouvi apenas o tinir dos guizos. Senti um aperto
no coração... devido talvez à umidade das catacumbas. Apressei-me em terminar
meu trabalho. Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a. Contra a
nova parede, reergui a velha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal
algum os remexeu. In pace requiescat!
[1846 - revista Godey's Lady's Book]
(In: Histórias extraordinárias. Contos. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970)
***
Uma amizade sincera
Clarice Lispector
Não é que fôssemos amigos de longa
data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento
estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que
nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que
não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando
encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos
tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou
a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos
com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em
qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez
experimentada.
Já nesse tempo apareceram os
primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava,
encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não
sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos
comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da
amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de
cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar
calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais
encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar
deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. A procura desta,
eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais
decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu
sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se
mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí,
foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha
guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos,
preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto –
eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade
é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido
tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que
havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera.
Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um
espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a
amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma
palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números:
inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três
são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no
apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar
favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de
uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que
fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias,
sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira
aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão
minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do
mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito
maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia
paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no
curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade
caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é
que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já
tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos
escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo.
E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer
em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha
mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite
em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os
ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que
tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se
presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta
prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho.
Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de
ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que
estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura
– seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro,
sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de
contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada.
Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.
(In: A legião
estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 95-98).
***
A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain
Marina Colasanti
Quando o coágulo de sangue explodiu na cabeça de Jeffrey Curtain, algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento viu-se subitamente decepado do corpo.
Sem espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão.
– O Dr. Jewett acha que não há esperança – repetia a enfermeira em voz baixa, aos eventuais visitantes. – O Sr. Curtain poderá viver indefinidamente, mas não tornará a ver. Nem se mexerá, nem pensará. Apenas respirará.
De fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação do restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel regularidade com que durante tantos anos lhe haviam fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada manhã se barbeasse dando partida para mais um dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de refeições para a mesa de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos que produzia para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões encarregados de fornecer aquele ar indispensável para.
Jeffrey teria ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de Jeffrey continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito estado de funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se como se deles não necessitasse. Assim como não necessitava de visão ou da audição.
Cortadas as ligações que o haviam ancorado ao resto do corpo, o cérebro de Jeffrey Curtain não dava mais ordens. E os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa craniana cujos orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo, o cérebro pensava.
Talvez fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até então se assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na óssea escuridão da sua caverna. Jeffrey Curtain havia-se livrado para sempre da escravidão da coerência. Sua mente, solta, tudo se permitia, tudo realizava.
Aos poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças abriam-se feito conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse.
Crescia a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés – ou seria da nuca? – a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro, buscando alcançar-lhe o coração.
Na cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto.
E todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito.
Mas Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silencio ou se para preencher com suas palavras o silêncio que dele parecia emanar.
Sem que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, um silêncio cheio de sons e palavras tecia sua sinfonia no cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele havia precisado se expressar de forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado para outros. Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou fraturas. A fabulação, que havia sido sua forma de viver, tornava-se sua vida. E ali deitado, imóvel, Jeffrey criava e costurava uma após a outra, as imagens da longa narrativa.
Um neurologista – fama convocada para validar o que vários outros já haviam afirmado – tentou convencer Roxanne de que era inútil dispensar o tamanho cuidado ao enfermo. “Se Jeffrey tivesse consciência do seu estado”, disse em voz autoritariamente piedosa, “desejaria morrer. Desejaria libertar-se da prisão do próprio corpo.”
Mas Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do próprio corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos poucos sobre a cama, não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta. Antes, havia sido necessário ocupar-se dele, vigiar seus alarmas, suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para atender sua fome inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo, e às suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora, quando, impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram elas que o serviam.
De alguma forma, poder-se-ia dizer que Jeffrey não tinha consciência do seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não falar ou mover-se parecia tão menor que se via excluído.
Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxanne da intensa movimentação que o habitava. Sem gesto que o cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e voava, voava.
Longas vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey deixava-se ficar, girando apenas ao redor de um pensamento, envolvendo-o nos fios prateados das suas ideias, aprumando-lhe as formas e o sentido, até vê-lo crescer, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os sinos badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu som cortasse o ar pesado do cheiro de remédios.
Os anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a vender uma parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma faixa de jardim à direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável.
E no entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara e ainda parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o marido.
Amava, em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela teimava em sobrepor a esta pálida coisa cada dia menor e mais leve, coisa quase humana que ainda transportava da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, como se carregasse um fardo ou um feto.
– Que mais posso eu fazer? – perguntava-se puxando de leve as cortinas, não fosse o sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento perceptível, parecia voltar-se sempre em direção à luz.
Uma luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de Jeffrey, naquela tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que seu corpo o chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios aos seus lhe chegavam como ruído de cachoeira, ou vento, ou cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as maçãs do seu rosto abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsá-lo da caverna.
O fio do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz.
Roxanne, que cochilava na cadeira ao pé da cama, acordou sobressaltada. Estendeu a mão para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo de olhá-lo, soube que estava sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo, segurou-a com a outra, e deixou-se ficar. O sol se pôs. O perfume dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o coaxar das rãs pairou sobre o peitoril da janela.
Só então
Roxanne levantou-se.
(In: O leopardo é um animal
delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)
***
Família
Magali Garcindo
de Sá
Nunca
havia ninguém no corredor sombrio. Ali as moças não paravam. Chegavam ainda
cegas do sol, tateando as paredes. Havia muita luz naquela ilha, do lado das
janelas dos quartos o sol crescia e explodia no momento em que as moças
acordavam ou cantava sua melopeia quando parecia escorregar na lápide pelo
horizonte. O corredor se iluminava com a luz artificial, mas ninguém
acreditava. As moças continuavam sempre só a passar. Havia de vez em quando uma
criada mais solitária ainda do que outras criadas, inclinada, limpando a poeira
com pano molhado; a pressa de corpos encurralados, a cópia das mulheres da
família, o rosto distante da Mãe, pequenos recados em sussurros, risos cortados
pelo bater de alguma porta. O corredor desabitado – uma pausa, um olhar atento
para as portas fechadas por onde passavam cabeças cansadas e sonolentas na
intimidade de muitas mulheres, cabelos trançados e água fria.
A
distração de Isabel era pensada e profunda, coisa de cérebro de peixe nos
abismos, tempo no leito cercado de mar verde de folhas exuberantes. Isabel se
levantava sempre a horas diferentes, não escutava muito, falava às vezes
mostrando a todos que também vivia e mastigava uma alma separada. Podia causar
sofrimento, como quando no momento mais ingênuo seu olhar deslizava para dentro
de um outro olhar que não o podia aparar – também os outros viviam uma hora amarga,
ou simplesmente um sorriso oculto, inconfessável, como em todas as famílias, o
sofrimento da ironia aguda.
Mariana
era cautelosa pois não tinha passado. Apenas do pai ela conservava uma vaga
lembrança. Não reconhecia as irmãs nem a mãe. Por isso estava sempre olhando
muito para elas para que seus traços se tornassem familiares. Mas tinha o olhar
doce quando era chamada à atenção. Era difícil acertar com as tarefas
domésticas. Andava sempre grudada em alguém, imitando e lamentando a falta de
prática. Não adiantava repetir o aprendido, pois o futuro arrancava dela logo
todos os trunfos, tudo voltava a ser o antes, morto, ausência. Ela sofria
porque sabia o que era ser vagamente conhecedora de uma biografia, quando
seguia o caminho das fotos do álbum, mas não sabia explicar que perderam quase
tudo. Esforçava-se para ser igual, mas ainda não tinha ideia do que a vida lhe
exigiria quando desaparecessem a casa e o corredor com a família. Todos os
outros a ajudavam involuntariamente tecendo comentários sobre a sua pessoa,
embora não adivinhassem o que estavam fazendo. Apenas tinham a mesma intuição
que o álbum de retratos. O rosto de Mariana não era triste de saudade, era
aflito para agarrar fatos e sentimentos, mas o presente e o futuro já
apodreciam em suas raízes.
Lorena,
suave passarinho revoluteando sobre a mãe e as irmãs, com suas túnicas brancas
vaporosas, era também solene, às vezes, desfilando no pomar e arrastando o vestido sempre longo. Ela levava as mensagens da família, as ordens assim
pareciam simples desejos de anjos que perdoavam tudo. Era responsável pelo
funcionamento da casa, o que todos viam como um fato da natureza humana.
Clarice
era sábia. Tinha uma chave, que escolhera entre todas as outras do molho que a
mãe trazia preso à cintura e que tilintavam fazendo brilhar os olhos dos cães.
A chave do quarto de despejo. Ela sabia que ali podia encontrar coisas
perdidas, mas sobretudo coisas rejeitadas, e que aprenderia mais do que todos
sobre a família, mas também sobre o exterior, o mundo lá fora eram as sobras, o
mundo era também a escuridão dos esbarrões no corredor, que não significavam
nada, ela precisava achar um sentido, e sabia que a bagunça nesse quarto era
como a pergunta de uma esfinge amorosa, cuja resposta levaria a outras
perguntas; o prêmio era o desconhecido.
Um
pássaro empalhado gargalhando com o bico entreaberto, uma coroa de princesa que
fora de Lorena, a rede de um gladiador de histórias de circos romanos, livros
velhos, imóveis e teimosos, como toda escrita. Até o ar ali ensinava a
procurar. A intensidade, o tamanho do desprezo a comoviam. Como poderia
carregar tanto abandono, tantas crianças que choravam remelentas agarradas à
saia da Mãe e das criadas, um choro que não dava trégua, que já se cansara de si
mesmo. Como poderia encarar o Pai vingador de tudo aquilo, como era o seu
olhar, ela ousaria tanto? Todos esses toucados velhos e lindos ela
experimentava, todos aqueles broches eram como insígnias que ela usaria para
conquistar o mundo, sempre um resto de Mãe e das irmãs que a impelia para
frente, a pergunta era um consolo, a sua bagagem neste vagão do trem para o
futuro e para fora deste quarto sem janelas cuja porta ela esquecia trancada.
Quantos crimes haviam sido cometidos por essas coisas para merecerem ser
lembradas como coisas passadas? Ela era a sua única chance, um vento de morte a
arejar os velhos comprometidos com a passagem do tempo. Ainda era livre. Para o
futuro se sentia só. E partiria quando estivesse realmente só. A humanidade era
“quando”?
Letícia
imaginava a ruína da casa, com porcos que vinham comer o que sobrar dos
cadáveres. Era um dia sombrio sempre durante todo o ano, talvez durante toda a
vida. Dos segredos da casa esse era o mais bem guardado. Ela mentia para o sol.
A primeira visão fora durante um eclipse, confundido com imensa nuvem vagarosa,
protótipo de todos os segredos, um véu negro recortado do tamanho da Terra. Era
Lorena, morta, de bruços, o braço direito estendidos sob a face direita, um
risco de barro na têmpora direita, esse mistério da beleza macerada nas
fronteiras entre o incompreensível e a inveja que não logra destruir tudo.
Lorena era a rainha, sua vítima, seu alimento. Letícia não saberia defender-se
caso fosse interrogada. Mas nunca teria que prestar contas no cemitério de sua
fome, os porcos eram culpados, esses que perambulavam distraídos e nunca seriam
julgados pois eram os últimos. No entanto Letícia era bela, mas ainda não
aprendera a diferença entre as pessoas, entre a beleza e a beleza. Ela não era
mais frágil que Mariana, mas seguramente desejaria o futuro da irmã se soubesse
que ela era apenas aparência, uma casca apesar de dolorida, porque o seu
passado era uma grande esteira negra de espaço sideral, este sim vazio de
sentido, que a perseguia.
A
Mãe era uma senhora muito magra, metabolizava sua vida irrealizável, tudo o que
as cinco filhas lhe haviam trazido em alegria e aflições, mas as aflições se
transformavam numa outra espécie de alegria, ao final tudo era bem-aventurança,
a primeira alegria virava aflição e a aflição glória de ter vivido tudo, e os
olhos se enchiam de mundo, de universo, tanto que tinha receio de olhar para
trás e para frente e de sentir a gota d’água do presente, a vida transbordava
de intensidade, como a taça de champagne do seu último brinde.
Ela
engolia tudo, mesmo o que nunca poderia digerir, mas bastava uma tarde passada
em seu quarto, as persianas baixas, sentada na pequena bergère, sem lanche,
vendo finalmente o escuro que tocava primeiro o chão, a noite que penetrava
fria pelas gretas. Alguma coisa durante essas horas latejava dentro da cabeça,
não era dor, ou era dor indolor, um ritmo sem melodia. Essa tarde virava o
destino da família. A Mãe vinha jantar em silêncio, em plena metamorfose, todos
viam a fome e as fezes escuras sobre a mesa e sabiam: o dia seguinte seria
feliz.
O
Pai sabia que a vida não tinha começo. Mas quando descia a montanha, a alma
ofegante, na volta de seu passeio matinal, vinha sempre com uma pergunta sobre
o começo da família. Não se lembrava de ter carregado o peso de seis mulheres
quando era criança, ao contrário, era carregado para sua cama, quase
adormecido, o rosto encostado num colo vaporoso, fora embalado até a idade
madura pela mesma cadeira de balanço, não se lembrava quando o corpo da mãe
desaparecera, mas parece que a vida se resumia a uma vaga decisão de caminhar
corajosamente, caminhar sempre para a frente, abandonar definitivo e
desesperado a mão do próprio pai, continuar na trilha sentindo sede e fome, com
a sensação de felicidade vencendo tudo, não sabia desde quando, não tinha
decidido caminhar tanto, seu corpo se desprendia sozinho, ia na frente do
cansaço.
Quando
entrava de volta em casa surpreendia-se ao passar pelo corredor escuro. Ele
tampouco se detinha ali, mesmo ele que era um ser estranho na casa desde que
Mariana quisera tornar-se sua companheira das coisas vagas. O rosto dela era
devastado pela ausência de quase tudo e ele não podia segurá-la com ambas as
mãos como queria, não conseguia definir a vida de ambos, achava as coisas mal
paradas, sofria quando pensava na idade da filha, não suportava quando ela lhe
pedia ajuda com um olhar desumano de angústia. Ele tinha todas as lembranças
mas desconhecia as origens. Mariana, ao contrário, não duvidava de seu passado
esquecido.
O
Pai era delicado com Letícia, a grande assassina. Ele pressentia a chegada dos
porcos, que tinham o rosto dela, todos, e adivinhava a insensatez de seus
sonhos. Sabia que devia salvar a família, mas a solidão a que ela se reduzia
era bem a solidão em que ele se perdia nos momentos em que a violência se
aproximava dele. Sabia de seus esforços para se afastar dessa intensidade, e a
delicadeza era a medida certa contra o canibalismo; o segredo de Letícia não
era hipocrisia, como não havia mentira em seu combate de morte contra a vocação
de animal predador. Por pouco ele não destruía todas essas mulheres, mas
preferia adorá-las, elas eram carne e osso, eram sangue, pele, corpos que
resistiriam se as almas os abandonassem e isso era admirável. A distância de
homem. O Pai acordava todas as manhãs inocente. Mas a primeira coisa que lhe
acontecia era respirar o hálito da esposa. E ele não se rendia à rotina.
Eram
tantas mulheres! E esse corredor com todas as entradas e saídas, ponto cego de
um labirinto onde sua alma vagava desde que souberam que a esposa não era mais
uma, que eles jamais estariam juntos só os dois, eles que nunca haviam estado
juntos. A vida se tornara ainda mais o que é: sem resposta, um caminho que já
existia antes de tudo – uma jornada para os cegos famintos. E as meninas foram
nascendo, os quartos se povoando de olhos castanhos e camisolas brancas,
cordões de ouro com santinhos de devoção, na cozinha um cheiro perene de pão e
bolos. O Pai exercitava sua virtude sem saber. Era um tempo melhor, pois agora
ele sabia o que fazer apesar de que lhe faltasse destreza.
No fundo todos guardavam o segredo do corredor, maior que o segredo de Letícia, porque era conhecido e todos se calavam e todos o evitavam. Talvez Mariana tivesse razão em não se preocupar com o desaparecimento de tudo.
(In:
Revista Ficções (contos), Ano IX, Número 16, Março de 2007, p. 74 a 79.)
WM
Lygia Fagundes
Telles
A
chuva mansa e o céu de aço. Na mesa do Doutor Werebe, o relógio branco marca
três horas, três horas em ponto. Cheguei há pouco e a enfermeira pediu que
esperasse. Então, como vão as coisas? ele vai perguntar enquanto acende o
cigarro. Como vai minha irmã? pergunto eu. O silêncio ajuda a abrir o
intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo, para ajudá-la
preciso eu também descer aos infernos. E no terceiro dia ressuscitar dos
mortos, rezo muito, mas não aos santos limpos, rezo aos outros, aqueles
rasgados por espinhos, por demônios. Rezo principalmente a São Francisco de
Assis com seus olhos cosidos e mãos furadas, ele pode ajudar minha irmã, ele e
Doutor Werebe que me acompanha nessa descida e me levanta e anima quando
tropeço, fiquei demais envolvido. Como vão as coisas? me pergunta enquanto acende o cigarro. Acendo
o meu. E sem nenhuma pressa, começamos a falar nela.
Vou
até a porta envidraçada que dá para o pátio. No vidro embaçado, com o dedo
escrevo um W e um M, duas letras recortadas na folhagem brilhante de chuva, o
resto é névoa. Minhas iniciais e as iniciais dela, Wanda e Wladimir, uma
família de nomes começando com W, mamãe se chamava Webe. Wanda, minha irmã. Por
esse W ela foi subindo ágil com seu passo elástico, atingiu a ponta aguda da
letra e ficou equilibrada lá no alto, bailarina de malha cor-de-rosa se
apurando no seu exercício mais raro, as sapatilhas de cetim num prolongamento
do ângulo. Desequilibrou-se e rolou pela encosta da letra até ficar comprimida
no fundo, nesse segundo vértice que toca o chão. No escuro, presa entre as duas
paredes, ela continua até agora. Seu silêncio é suave porque ela é suave. Mas o
olhar não vai além da parede em frente. Wanda, minha irmã, não quer mais vestir
sua linda malha e tentar subir de novo?
Doutor
Werebe não responde. É preciso esperar, ele disse. Espero. Teve uma crise na
infância, mamãe me falou nos meses em que foi obrigada a passar na sua
cabeceira quando ela era ainda uma menininha. Recuperou-se. Aprendeu bailado.
Línguas. Cinco anos mais velha do que eu e tão mais desenvolvida, nesse tempo
vivíamos numa casa luxuosa, mamãe era uma artista importante e bonita, com
muitos homens em volta. Tantos empregados, mas era Wanda quem cuidava de mim,
quem me contava histórias. Quando resolveu me ensinar a ler comprou um quadro
negro e uma caixa de giz de todas as cores, nos intervalos eu desenhava.
Aprendi o EME com facilidade mas resisti ao DÁBLIO, me lembro como ela ria
quando minha língua enrolava no blio.
Mas o DÁBLIO não passa de um EME de cabeça para baixo, explicou enquanto
escrevia um grande W seguido de um M – Não é simples? Dei uma cambalhota e
fiquei plantado nas duas mãos, Assim, Wanda? É uma letra assim? Ela me segurou
pelos pés, apertou-os contra o peito. E retomando o giz, foi enchendo o quadro
negro de dáblios e emes, chegou até a moldura, escreveu na moldura, invadiu a
parede e contornou a janela, subiu na estante, o giz se esfarelando nas
lombadas dos livros, no chão, W M W M W M W M W M W M – Não é fácil? Não é
fácil? ia perguntando sem poder parar. Fiquei na maior excitação, dando gritos
até mamãe vir lá de dentro e me sacudir enfurecida, Quer fazer o favor de parar
com isso? Foi a Wanda, eu denunciei mas ela continuou me sacudindo, Vai parar?
Mamãe era uma atriz famosa mas agitada como um vento de tempestade. Ou estava
estudando algum papel em meio de crises de angústia (era uma perfeccionista) ou
estava dando entrevistas ou experimentando roupas ou telefonando, levava o
telefone para o quarto, deitava e ficava horas falando com uma amiga ou algum
amante. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, a cara sempre enlambuzada de
creme. Não tomava conhecimento nem de Wanda nem de mim. Atrás de um móvel ou
pela fresta da janela eu a via entrar e sair se queixando, se queixava muito
das pessoas. Do tempo curto que a obrigava a correr e nessa corrida ia perdendo
coisas, Onde está meu lenço, meu perfume, minha chave, minha echarpe?! Leva
esse menino daqui! gritou certa vez que me aproximei mais. Wanda me consolou
com sorvete de chocolate e com a história do Martinho Pescador que pescou um
peixe encantado e o peixe lhe suplicou que o soltasse, em troca lhe daria o que
pedisse. Quero uma casa, pediu o pescador que vivia numa tapera. Voltou e
encontrou a mulher de vestido novo, radiante no palacete mais bonito do bairro.
Só uma tarde durou esse contentamento porque de noite a mulher já começou a se
queixar, ao invés de uma casa tão banal, bem que o tolo do marido podia ter
pedido um palácio, Vai lá e pede um palácio! Ele foi, pediu um palácio e quando
voltou, ela já estava resmungando, de que adiantava tanto mármore e ouro se não
tinha o poder? Volta ao peixe, ordenou, quero ser rei! Depois começou a se
queixar de novo, era tão limitado o poder do rei que não chegava ao reino dos
céus, Agora quero ser papa! Mas um dia se sentou no trono da igreja, chamou o
Martinho Pescador e mandou-o de volta à praia, Diga ao peixe que quero ser
Deus! Deus? Perguntou o peixe. E aí tudo revirou. Chegou em casa e encontrou a
mulher esfarrapada e chorando na porta da casa. Embora menino, de modo obscuro
eu associava mamãe com a mulher de Martinho, que não sossegava. Estreava a peça
e vinham as críticas. Os telegramas. As homenagens. Então ficava macia, o
sorriso flutuante igual ao da deusa da gravura, uma roliça mulher coroada de
anjos numa gôndola puxada por dois cisnes brancos. Vem brincar com a mamãe,
chamava por entre as plumas do seu négligé.
Eu ia mas nunca ficava muito à vontade, atento ao primeiro sinal de
impaciência: tinha sempre um crítico que se omitia e um outro que foi meio
ambíguo – mas por que o público do último sábado não aplaudiu de pé? A
desconfiança crescia numa conspiração: apontava inimigos, descobria tramas.
Irritava-se quando o telefone tocava sem parar ou quando as pessoas a abordavam
na rua pedindo autógrafos, retratos. Mas quando chegou o tempo em que o
telefone ficou calado e as pessoas não se viravam para vê-la, caiu no mais
completo desespero. Os vasos vazios de flores. As pessoas distraídas. O tremor
de excitação durava até a hora do carteiro, Hoje não veio carta? Nem hoje nem
ontem, só convites para exposições ou avisos de banco que eram rasgados com
tanto ódio que comecei a rezar para que eles não chegassem mais. Sobrava o
jornal que costumava deixar para depois, nunca entendi por que reservava para o
fim o jornal. Ia diretamente à página de arte, percorria os textos, Não fui
mencionada? E quem sabe alguma referência na página seguinte. Ou na outra, ô!
que insipidez, que vazio. Dobrava o jornal com uma crispação que eu ouvia de
longe. Passava os cremes, tomava as pílulas e ia dormir. Para recomeçar tudo
quando acordava e zonza ainda queria saber, Ninguém telefonou? Fingia alívio:
ótimo. Mas o maxilar endurecia. Evitava Wanda porque Wanda ficou moça, não
suportava sua juventude. E me evitava porque eu era parecido com meu pai,
aquele que um dia saiu para comprar fósforos e nunca mais apareceu. Na afobação
do sucesso, achou bom mesmo que ele tivesse sumido. Mas assim que começou a
envelhecer o ódio que fora curto voltou revigorado. Na estreia de uma peça que
queria demais fazer (perdeu o papel para uma mais jovem) ficou em tal estado
que tirei dinheiro da sua bolsa, corri à floricultura e lhe mandei um imenso
ramo de rosas com um cartão: Para a maior atriz do mundo, de um fervoroso
admirador.
Durante
uma semana ela se alimentou dessas rosas. Ficou apaziguada. Sonhadora. Quando
começou a se crispar de novo, mandei-lhe um disco. E uma caixa de bombons e em
seguida outro disco com o dinheiro que eu ia tirando escondido. Fiz uma pausa
quando ela se impacientou, Mas por que esse imbecil de admirador não aparece
nunca? Vai ver, é um negro! E rasgou o cartão. Wanda cuidava dela, cuidava de
mim. E ainda achava tempo para marcar a roupa com nossas letras, tão pessoais
as toalhas de banho com um dáblio e um eme bem grande em vermelho, me enrolava
neles para me enxugar. Quando me deitava podia senti-los quase invisíveis
bordados no canto da fronha. Ou no guardanapo. As letras tinham floreios na
ponta da caneta de prata, mas eram despojadas por entre os arabescos de ferro
do portão: W M. Wanda teve um momento de cólera quando mamãe descobriu que era
eu quem estava lhe tirando dinheiro, as flores foram ficando mais caras. Mas no
dia seguinte mesmo – era meu aniversário –, deixou no meu quarto um bolo com um
W M escrito no creme de chocolate. Sentamos os três em redor do bolo. Flutuante
como nos dias antigos, mamãe vestiu um longo decotado e me ofereceu uma pequena
tartaruga que batizamos com vinho, Eu te batizo, Wamusa! Muito fina na sua
malha de um rosa-envelhecido, Wanda dançou para mim, só para mim, desde que
mamãe polidamente continuava a ignorá-la. Depois prendeu no meu pulso uma
corrente com as iniciais gravadas na plaquinha de prata: W M. Beijei as letras,
beijei mamãe e guardei a tartaruguinha no bolso. Minha família. Uma estranha
família diferente das outras, mas nessas diferenças não estaria o nosso
vínculo? Dormi mal, com um curioso sentimento de que devia ficar em vigília.
Madrugada ainda, pulei da cama: em todos os meus livros e cadernos, nas capas e
nas folhas internas, os dáblios e os emes se multiplicavam em todos os tamanhos
e cores. Tentei apagá-los: o crayon e
a aquarela, o carvão e o nanquim eram irremovíveis. Encontrei minha irmã na
cozinha comendo uma fatia do bolo da véspera, o ar ajuizado de uma mocinha
disciplinada, esperando a hora da aula de alemão. Negou mas acabou confessando,
em prantos, que não pudera resistir a uma espécie de comando que a possuía e a
obrigava a marcar tudo que ia encontrando, até a exaustão. Enxuguei suas
lágrimas, Não se preocupe, Wanda, não se preocupe. Direi no colégio que perdi
os livros, como é esqueça em alemão?
Os
dias ocos, muitas vezes já falei sobre esses dias que vieram em seguida, quando
a tempestade mudou de rumo. Ficou a brisa por entre os cabelos de minha mãe que
parecia menos infeliz enquanto escrevia suas memórias. Atarefada com aulas,
Wanda mostrava a carinha de quem se propõe um trabalho sério. O problema dos
livros resolvido, assumi a responsabilidade com a ajuda de um psicólogo do
colégio. Esse relaxar por dentro e por fora, essa calma curiosidade por uma
nuvem, por uma folha que tomba e que se examina com amor e inocência – era isso
ser feliz? Achei graça quando no tronco do abacateiro dei com as duas letras
entalhadas a canivete, mas recuei estarrecido quando entrei no seu quarto: nas
paredes, nos móveis, em superfícies e reentrâncias, no chão e nos espelhos o W
M furiosamente desenhados. Ou abertos a canivete. Passei a mão na poltroninha
de couro rasgada de alto a baixo, o algodão escapando do dáblio, mais
eviscerado do que o eme. No canto do quarto, a tartaruguinha marcada até o
cerne lívido da carapaça.
Fui
cambaleando até o quarto da mamãe. Ela escrevia suas memórias mas devia estar
num pedaço triste, tinha o olhar apagado. A Wanda, onde ela foi? perguntei.
Mamãe apertou minha mão e começou a chorar: Mas meu querido, a Wanda morreu faz
tanto tempo! Você fica falando nela, fica falando e faz tanto tempo que ela
morreu! Acariciei seus cabelos que já estavam completamente grisalhos, quando
deixara de pintá-los? Sim, mamãe, é claro, não falo mais, eu disse. Ela cruzou
os braços na mesa e pousou neles a cabeça. Dormiu. Dormia em meio de uma frase,
de um gesto, envelhecera tão rapidamente. Saí e andei sem parar. Mamãe e suas
pílulas. Wanda e suas letras. O começo daquelas letras foram naquele
quadro-negro? Mas o que significava isso, vontade de afirmação? De posse?
Lembrei-me da sua longa enfermidade na infância, mamãe não entrou em minúcias
mas se referiu ao medo que ela tinha das pessoas, do escuro. Estaria se
transferindo para as iniciais? Se buscando nelas? Tanta pergunta me confundiu.
Me abrasei na dúvida: e se com essa minha cumplicidade eu estivesse apenas agravando
o seu estado? Acabei a noite descendo num inferninho, com uma gentil putinha
sentada em meus joelhos. Tinha olhos de amêndoa doce e dentes perfeitos, devia
andar pelos dezoito anos. Os ombros estreitos, a franja negra e lisa. Você é
chinesa? perguntei. Só a mamãe, disse examinando a plaquinha da minha pulseira.
Riu quando deu com as letras, Mas meu nome também começa assim, quer ver? E,
molhando o dedo no copo, escreveu na mesa: Wing. Levei-a para um hotel. Por
dois dias esqueci Wanda, mamãe, esqueci aquele eme andando de cabeça para
baixo, plantado nas mãos – esqueci tudo em meio ao gozo, eu estava precisado
desse gozo feito de pausas amenas, Wing só falava amenidades com sua voz mais
leve do que a asa de uma borboleta. Na noite do terceiro dia, comprei para ela
um pacote de cerejas – era tempo de cerejas –, deixei-a instalada no pequeno
hotel com o seu toca-discos e fui para casa. Encontrei Wanda de malha
cor-de-rosa, estava ensaiando. Falei sobre o meu pobre amor chinês que achei na
zona e ela me abraçou e rodopiou comigo, então eu tinha um amor? Quis conhecer
ela imediatamente. Depois, eu prometi, depois eu a trago aqui. Foi buscar uma
garrafa de vinho para comemorar: se eu estava amando, ela também amava, porque
a única coisa que podia nos salvar (me encarou com gravidade) era o amor. Mamãe
tinha ido ao teatro com uma amiga. Ouvimos música, bebemos, acabei dormindo ali
mesmo no sofá. No sonho tão real vi Wanda aproximar-se de mim com uma expressão
má. Veio devagar, bailarina pisando branda. Inclinou-se. Mas o que trazia
escondido? Voltei a cara para a parede na hora em que a ponta da lâmina riscou
um W e um M na palma da minha mão. Os talhes seguros, nem rasos nem fundos, na
medida exata. A dor fria escorrendo devagar. Quando acordei, o sol já entrava
pela janela e queimava minha boca. Não tive forças de olhar a mão que latejava.
Amarrei nela um lenço e fui procurar um psiquiatra para Wanda. Indicaram-me seis, um deles era o Doutor
Werebe. Wanda resistiu, tinha horror de análises, de sanatórios. Em casa,
comigo e com a mamãe ao lado, ainda se aguentava, mas no dia em que embarcasse
nesse mar jamais voltaria, disse esfregando as mãos num pânico de criança.
Tranquilizei-a, mas quem falou em internamento? Ficaria com a gente, convivendo
com a nossa loucura razoável. E pedi-lhe a lâmina, o canivete: tinha que me
prometer que não marcaria mais nada. Ela beijou a palma da minha mão ainda
inchada e me entregou sua pulseira de iniciais, um presente para minha Wing.
No
fim desse mês mamãe morreu. A amiga atriz foi visitá-la e a encontrou caída no
banheiro, segurando o vidro de pílulas. Foi acidente? perguntei, e o médico do
pronto-socorro olhou-a mais demoradamente, estava serena na morte: Quem pode
dizer? Comprei um ramo de rosas igual ao que ela costumava receber do admirador
anônimo e Wanda então me abraçou em prantos: Quer dizer que era você? Ficamos
no velório de mãos dadas, falando em voz baixa sobre mamãe. Sobre nós mesmos. A
noite estava gelada, mas era quente o hálito de Wanda me contando como lhe
fazia bem a análise. Contei-lhe o quanto me fazia bem o amor. Quando fui buscar
a tampa do caixão, vacilei num desfalecimento, outra vez?! Fechei os olhos: sob
as pontas dos dedos, apalpei as duas letras apressadamente cavadas na madeira
polida. Com as unhas, tentei aplacar as farpas enquanto olhava para minha irmã
ali encostada na porta, silhueta espiralada de uma bailarina em descanso. Mas
por que, Wanda? perguntei-lhe na volta do cemitério. Você tinha prometido, Wanda!
Por que? Ela não se perturbou: marcara o caixão como marcara nossos pertences,
mamãe gostava, como eu, das pequenas marcas da posse. Até na morte. Onde o mal?
Ouço vozes na saleta, Doutor Werebe está conversando com a enfermeira. Então, como vão as coisas? vai me perguntar com sua simpatia profissional, nos primeiros momentos fica profissional. Como vai minha irmã? pergunto eu. Volto sempre há alguns acontecimentos que me parecem as portas do labirinto: a tarde em que encontrei Wing com os olhos inchados de tanto chorar, Por que chorou Wing? Ela fechou as janelas, desceu as persianas e me abraçou com força, demoradamente, Entra em mim, pediu. Wing sabia que eu não gostava de nada escuro entre nós dois, fazia parte do gozo ver seus olhos se estreitando até escorrerem diluídos para dentro dos meus, Wing, a luz! Não obedeceu, ela que era obediente: Deixa ficar assim, pediu. Quando acendi o abajur, tentou esconder depressa os seios, seus lindos, seus pequeninos seios horrivelmente tatuados com W e um M azul-marinho em cada bico. Cobri-a com o meu corpo, Wing, minha amada, por que você deixou que ela fizesse um horror desses, eu não te avisei? Não respondeu. Seu olhar atônito ficou cravado em mim, mas do que eu estava falando? Que Wanda? Pois então não me lembrava? Fomos os dois ao homem das tatuagens que prometeu ser discreto, apenas duas letrinhas – ah, por favor, não queria mais esse assunto. Eu te amo, ficou repetindo, eu te amo. Nem todas as letras do mundo iam interferir nesse amor. Quando eu cheguei, Wanda estava na sua poltroninha, folheando um velho álbum de retratos. Será este o pai? Será que ainda está vivo? perguntou. Quando viu que não respondi, fechou o álbum e ficou olhando para dentro de si mesma. Tomei-lhe as mãos singularmente infantis: Wanda, querida, não podemos continuar desse jeito, tenho sido seu cúmplice, fico encobrindo tudo, está errado, está errado! Agora, até Wing dizendo, para te proteger, que não foi com você ao homem das tatuagens. Quero que saiba que amanhã falo com Doutor Werebe, se ele achar que você está precisada de um tratamento mais intenso, se aconselhar o sanatório, promete que não vai resistir? Que não vai desobedecer? Ela ficou me olhando através do espelho e seu rosto secreto era um reflexo do meu. Depois ajoelhou-se aos meus pés e com a ponta do dedo escreveu um dáblio e um eme na poeira dos meus sapatos.
Apago
no vidro da janela as duas letras feitas no bafo. Aqui ela não vai ser
maltratada, disse o Doutor Werebe. Nem você. Fale só se tiver vontade, está me
compreendendo? A chuva fortalecida faz tremer o arvoredo no meio do pátio.
Começo também a tremer, por que o Doutor Werebe está demorando? Ele é bom, me
dá a mão enquanto descemos juntos até a ressurreição da carne, ele me ajuda
quando tropeço com a minha carga nos braços, Doutor Werebe, está pesado demais
para mim! digo e ele me segura. Na realidade, Wanda não pesa mais do que uns
trinta quilos, mas fica de ferro quando começamos a descida. E precisamos eu e
ela ir até o fundo do fundo, lá onde fica o hotel, corro sabendo o que vou
encontrar e ainda assim continuo correndo, subo a escada, abro a porta e a
primeira coisa que vejo é o toca-discos ligado, a agulha girando na zona
silenciosa girando girando no silêncio e a cadeira tombada não sei quanto tempo
tombada e a agulha na zona encontrei Wing na zona ela sentou no meu colo e a
franja e os olhos de amêndoa doce meu pobre amor chinês de ombros estreitos
entra em mim pedia e o gozo cálido eu te amo eu te amo eu te amo entra em mim
disse e a certeza de que ela estava fria na zona de silêncio como a agulha.
Onde está você Wing? gritei quando vi o jornal aberto no chão e a data a data
com a gota de sangue respingada era a véspera pisei no respingo estatelado duro
e adiante a mão pendendo para fora da cama com sua linda pulseira de prata fui
subindo pelo frio sanguinolento do braço passando agachado debaixo da pulseira
como o fio que escorreu sem sujá-la não esqueça esse detalhe sem sujá-la fui
subindo pelo fio ressecado como fazia Wanda com sua malha subindo na letra até
ficar hasteada em cima Wing Wing não abra a porta! Wanda vai pedir vai implorar
mas não abra e agora esse rasgão na roupa e esse peito rasgado Wanda morreu faz
tanto tempo mamãe disse e não sabia que ela era inaparente porque eu ia atrás
apagando os rastros por onde ela passava mas se eu limpar essa crosta no peito
de Wing vai aparecer o W M de lábios azuis de tão frios deixando entrever bem
no vértice seu pequenino seu amado coração.
(In:
Seminário dos ratos. Contos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 87 a 97)
Gaetaninho
Antônio
de Alcântara Machado
–
Chi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho
ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o
Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu ouviu o palavrão.
–
Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.
Grito
materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a
mãe e viu o chinelo.
–
Subito!
Foi-se
chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno.
Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de
futebol. Fingiu tomar à direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela
esquerda porta a dentro.
Eta
salame de mestre!
Ali
na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só
mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de
Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O
Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade.
Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não
era vantagem.
Mas
se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho
enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que
beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia
Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de
lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a
roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não.
Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão
lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz!
Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha,
outro de gravata verde), e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas,
nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o
Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito.
Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem
por um instantinho só.
Gaetaninho
ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o Ahi, Mari! Todas as manhãs
o acordou.
Primeiro
ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia
Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu
remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de
substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou,
matutou escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu
um cocre danado de doído.
Os
irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade
quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não
haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
O
jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava
ligando.
–
Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
–
Meu pai deu uma vez na cara dele.
–
Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O
Vicente protestou indignado:
–
Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho
voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O
Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com tronco
arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho
ficou pronto para a defesa.
–
Passa pro Beppino!
Beppino
deu dois passos e meteu pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião
sardento e foi parar no meio da rua.
–
Vá dar tiro no inferno!
–
Cala a boca, palestrino!
–
Traga a bola!
Gaetaninho
saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No
bonde vinha o pai de Gaetaninho.
A
gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
–
Sabe o Gaetaninho?
–
Que é que tem?
–
Amassou o bonde!
A
vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às
dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e Gaetaninho
não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro
de um caixão fechado com flores por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as
ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
[1927, in Brás, Bexiga e Barra Funda, contos]
(In: Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1961, p. 18-21)
***
Intestino grosso
Rubem Fonseca
Telefonei para o Autor, marcando
uma entrevista. Ele disse que sim, desde que fosse pago – “por palavra”. Eu
respondi que não estava em condições de decidir, teria primeiro de falar com o
Editor da revista.
“Posso lhe dar até sete palavras
de graça, você quer?”, disse o Autor.
“Sim, quero.”
“Adote uma árvore e mate uma
criança”, disse o Autor, desligando.
Para mim as sete palavras não
valiam um tostão. Mas o Editor pensava de maneira diferente. Foi combinado um
valor por palavra, diretamente entre eles.
Marquei um encontro com o Autor
em sua casa. Ele me recebeu na biblioteca.
“Quando foi que você começou a
escrever?”, perguntei, ligando o gravador.
“Acho que foi aos doze anos.
Escrevi uma pequena tragédia. Sempre achei que uma boa história tem que terminar
com alguém morto. Estou matando gente até hoje.”
“Você não acha que isto denota
uma preocupação mórbida com a morte?”
“Pode ser também uma preocupação
saudável com a vida, o que no fundo é a mesma coisa.”
“Quantos livros você tem aqui
nesta sala?”
“Cerca de cinco mil.”
“Você já leu todos?”
“Quase.”
“Você lê diariamente? Quantos?
Qual a velocidade?”
“Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido.”
“Quando foi que você foi
publicado pela primeira vez? Demorou muito?”
“Demorou. Eles queriam que eu
escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia.”
“Quem eram eles?”
“Os caras que editavam os livros,
os suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do
pastoreio, os guaranis, os sertões da vida. Eu morava num edifício de
apartamentos no centro da cidade e da janela do meu quarto via anúncios
coloridos em gás néon e ouvia barulho de motores de automóveis.”
“Por que você se tornou um
escritor?”
“Gente como nós ou vira santo ou
maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no
poder, fiquei entre escritor e bandido.”
“Já ouvi acusarem você de
escritor pornográfico. Você é?”
“Sou, os meus livros estão cheios
de miseráveis sem dentes.”
“Os seus livros são bem vendidos.
Há tanta gente assim interessada nesses marginais da sociedade? Uma amiga
minha, outro dia, dizia não se interessar por histórias de pessoas que não têm
sapatos.”
“Sapatos eles têm, às vezes. O que falta, sempre, é dentes. A cárie surge, começa a doer, e o pilantra, afinal, vai ao dentista, um daqueles que tem na fachada um anúncio de acrílico com uma enorme dentadura. O dentista diz quanto custa obturar o dente. Mas arrancar é bem mais barato. Então arranca doutor, diz o sujeito. Assim vai-se um dente, e depois outro, até que o cara acaba ficando somente com um ou dois, ali na frente, apenas para lhe dar um aspecto pitoresco e fazer as plateias rirem, se por acaso ele tiver a sorte de aparecer no cinema torcendo para o Flamengo num jogo com o Vasco.”
O Autor levanta-se, vai até a
janela, e olha para fora. Depois apanha um livro na estante.
“Mas não escrevo apenas sobre
marginais tentando alcançar a lumpen bourgeoisie; também escrevo sobre gente
fina e nobre. Você leu este livro, Cartas da duquesa
de San Severino?
O duque de San Severino é um homem muito rico, que não gosta da esposa, a jovem
e linda duquesa de San Severino. A mãe do duque, a velha duquesa de San
Severino, não gosta da nora, pois esta, ao casar-se com o seu filho, era uma simples
baronesa. A jovem duquesa sofre terríveis momentos no castelo, principalmente
durante os solenes jantares, quando são discutidas árvores genealógicas – a família
do duque vai até Pepino, o Breve, enquanto a da ex-baronesa começa no século XVII
apenas. Não podendo suportar essas humilhações e ofensas, a jovem duquesa
decide ser psicanalisada por um professor maduro e sábio, por quem ela, afinal,
se apaixona. Mas o analista se recusa a ter relações físicas com a jovem
duquesa, alegando tratar-se de uma transferência e não de um gesto espontâneo
de amor. Desesperada, a jovem duquesa passa a se interessar pela criação de
orquídeas raras, o que a redime de todos os sofrimentos. É claro que isto é apenas
um resumo de uma história colorida e edificante, plena de interessantes caracterizações,
num estilo que permite ao leitor penetrar no núcleo central do significado da
palavra sem muito esforço, mas, nem por isso, de maneira menos gratificante. É
um romance que tem flores, beleza, nobreza e dinheiro. Reconheça que isto é algo
que todos almejamos obter.”
“E há também a presença da ciência,
na pessoa do psicanalista: um símbolo?”
“Deliberadamente cândido. Escrevi
o livro à maneira de Marcel Proust, evidentemente. No início do livro, a jovem
duquesa recorda os seus tempos de menina, ainda baronesinha, nos jardins do palácio,
degustando madeleines ao entardecer, aprendendo a dançar o minueto e a tocar
cravo. Depois segue-se a morte horrível do pai, o velho barão, no naufrágio do
Lusitânia; a loucura da mãe, a velha baronesa, internada numa clínica da Suíça,
localizada entre pinheiros e picos cobertos de neve. Finalmente o casamento
frustrado, o romance com o professor Klein, e a criação de orquídeas. O livro termina
com as orquídeas, uma espécie de hino bucólico e panteísta.”
“E a jovem duquesa tem todos os
dentes, presumo.”
“Bem, alguns são postiços. Mas isso não é dito muito claramente. Para que desapontar os leitores? Apenas, numa passagem, eu me refiro à dificuldade que ela tem de comer um pêssego, uma citação poética – do I dare etc. – para bons entendedores. Além do mais, os dentes são brancos, perfeitos. Já foi dito que o que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita.”
Levantei-me e estendi a mão,
pedindo o livro que o Autor segurava. Na capa tinha um anão negro, em vez de
uma jovem duquesa. O título do livro era O anão que era
negro, padre, corcunda e míope.
“Este livro foi interpretado de várias maneiras, inclusive como pornográfico. Vamos falar de pornografia?”
“Joãozinho e Maria foram levados
a passear no bosque pelo pai que, de conchavo com a mãe dos meninos, pretendia
abandoná-los para serem devorados pelos lobos. Ao serem conduzidos pela
floresta, Joãozinho e Maria, que desconfiavam das intenções do pai, iam
jogando, dissimuladamente, pedacinhos de pão pelo caminho. As bolinhas de pão
serviriam para orientá-los de volta, mas um passarinho comeu tudo e, depois de
abandonados, os meninos, perdidos no bosque, acabaram caindo nas garras de uma
feiticeira velha. Graças, porém, à astúcia de Joãozinho, ambos afinal
conseguiram jogar a velha num tacho de azeite fervendo, matando-a após longa
agonia cheia de lancinantes gemidos e súplicas. Depois os meninos voltaram para
casa dos pais, com as riquezas que roubaram da casa da velha, e passaram a
viver juntos novamente.”
“Mas isso é uma história de
fadas.”
“É uma história indecente,
desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está
impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é
tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. Essas
crianças, ladras, assassinas, com seus pais criminosos, não deviam poder entrar
dentro da casa da gente, nem mesmo escondidas dentro de um livro. Essa é uma
verdadeira história de sacanagem, no significado popular de sujeira que a
palavra tem. E, por isso, pornográfica. Mas quando os defensores da decência
acusam alguma coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções
sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente
referidos como palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por
tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já
disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia
e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.”
“E as palavras são influenciadas
por isso?”
“É claro. A metáfora surgiu por
isso, para os nossos avós não terem de dizer – foder. Eles dormiam com,
faziam o amor (às vezes em francês), praticavam relações, congresso sexual, conjunção carnal,
coito, cópula, faziam tudo, só
não fodiam. Eu tive um professor de direito tão
eufêmico que, quando queria descrever um caso de sedução – que, como você sabe,
se caracteriza legalmente pela cópula – falava latim: introductio penis intra
vas. Os filólogos e linguistas também são pessoas presas ao tabu. Gostaria que
algum filólogo, um dia, escrevesse um livro intitulado: Foder.
Essas restrições ao chamado nome feio são atribuídas por alguns antropólogos ao
tabu ancestral contra o incesto. Os filósofos dizem que o que perturba e alarma
o homem não são as coisas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito
delas, pois o homem vive num universo simbólico, e linguagem, mito, arte,
religião são partes desse universo, são as variadas linhas que tecem a rede
entrançada da experiência humana. Em 1884, um neurologista francês, Gilles de
la Tourette, descreveu um comportamento anormal em que o paciente grita a todo
instante palavras consideradas obscenas. O praguejar é acompanhado de um tique
muscular. Esse conjunto de sintomas recebeu o nome de síndrome de la Tourette.
Até hoje suas causas não foram adequadamente esclarecidas, tanto que não existe
uma cura definitiva. Pensando que talvez a doença seja uma reação contra a
rigidez intolerável da ordenação tabuística, um médico americano desenvolveu
uma técnica terapêutica que consiste em fazer o paciente repetir as
obscenidades o mais alto e o mais rápido possível, até à exaustão. Imagine esta
cena, passada no consultório de um psicólogo, idêntica a um trecho da prosa delirante
de Burroughs. O paciente tem amarrados no corpo eletrodos ligados a uma máquina
cujo funcionamento é sincronizado com um metrônomo. Esse metrônomo controla a
velocidade em que os palavrões devem ser gritados – até duzentos por minuto.
Você conseguiria gritar duzentos palavrões por minuto?”
“Acho que não”, respondi,
enquanto colocava outra fita no cassete.
“No caso de você não gritar as
obscenidades com a velocidade necessária, choques elétricos obrigam-no a manter
o ritmo. O tratamento parece ter como objetivo criar no paciente um mínimo de
inibição, ou seja, por não suportar, por falta de alívios temporários, a inibição
que sofre, o indivíduo explode, sendo levado a um tipo de comportamento antissocial
que exige a reimplantação de novo invólucro inibitório. O erro me parece ser a pressuposição
de que as inibições sejam necessárias ao equilíbrio individual. Parece-me mais
verdadeiro o oposto – as inibições sem possibilidade de desopressão podem
causar sérios males à saúde dos indivíduos. Uma sábia organização social
deveria impedir que fossem reprimidos esses comunicativos caminhos de alívio
vicário e de redução de tensão. As alternativas para a pornografia são a doença
mental, a violência, a bomba. Deveria ser criado o Dia Nacional do Palavrão.
Outro perigo na repressão da chamada pornografia é que tal atitude tende a justificar
e perpetuar a censura. A alegação de que algumas palavras são tão deletérias a
ponto de não poderem ser escritas é usada em todas as tentativas de impedir a
liberdade de expressão.”
“Você não acha que a pornografia
falada está desaparecendo? Nos campos de futebol coros de meninas entoam
esportivamente canções como esta, que ouvi domingo: Um, dois, três, quatro,
cinco, mil. Eu quero que o Flu vá pra puta que pariu.”
“Ambas as palavras, puta e pariu,
derivam do palavrão-chave, que é foder. É evidente que, no caso, as palavras
estão tendo um efeito catártico, de alívio de tensões e pressões. Esse fenômeno
é mais observável sempre que ocorre a regimentalização dos indivíduos, em tempo
de guerra ou mesmo na paz, nos quartéis, nos asilos, nas prisões, nas escolas, nas
fábricas, nos núcleos urbano-industriais de alta concentração demográfica.
Nesses casos o uso de palavras proibidas é uma forma de contestação antirrepressiva.
Mas basicamente a pornografia que ainda existe hoje é resultado de um latente preconceito
antibiológico da nossa cultura. Lembro-me de ter lido as queixas de uma
escritora que receava que, de tanto ser abusada, distorcida, transformada em
lugar-comum, a linguagem pornográfica acabaria deixando de ser o lado avesso da
nobre linguagem da religião e do amor, e nada restaria para exprimir o fausto
da obscenidade, que, para muitas pessoas, aliás, é metade do prazer do ato
sexual.”
“Seu livro, O anão etc.,
pode ser considerado pornográfico?”
“A maioria dos livros
considerados pornográficos se caracteriza por uma série sucessiva de cenas eróticas
cujo objetivo é estimular psicologicamente o leitor – um afrodisíaco retórico.
São evitados todos os elementos que possam distrair o leitor do envolvimento
unidimensional a que ele é submetido. São livros de grande simplicidade
estrutural; com enredo circunscrito às transações eróticas dos personagens. As
tramas tendem a ser basicamente idênticas em todos eles, há apenas diferenças
de grau na escatologia e na perversão. Desde que não seja excessivamente
exposta a esse tipo de literatura, a maioria dos leitores é estimulada por ela.
Não há nada mais chato do que a saturação erótica barata. A própria
complexidade do livro mencionado por você, O anão etc., exclui o
livro dessa categoria. Você sabe que não existe anão algum no livro. Mesmo
assim alguns críticos afirmam que ele simboliza Deus, outros que ele representa
o ideal da beleza eterna, outros ainda que é um brado de revolta contra a
iniquidade do terceiro mundo.”
“Mas outros também já disseram
que o livro não passa de um pirão de vulgaridades gratuitas, erotismo cru e ações
grosseiras, desnecessárias e fúteis, temperado por uma mente suja.”
“Pirão ou ensopado? Já disseram
coisa parecida do Joyce.”
“Você se acha parecido com o
Joyce.”
“Odeio o Joyce. Odeio todos os
meus antecessores e contemporâneos.”
“Daqui a pouco a gente fala
disso. Não gostaria de sair da pornografia, por enquanto, está bem? A leitura
de livros pornográficos pode levar o indivíduo a um comportamento mórbido ou antissocial?”
“Ao contrário. Para muitas
pessoas seria aconselhável a leitura de livros pornográficos, pelos mesmos
motivos catárticos que levavam Aristóteles a propor aos atenienses que fossem
ao
teatro.”
“Então, para essa gente, o ideal
seria um teatro pornográfico?”
“Exatamente. Isso que se chama
pornografia nunca faz mal, e às vezes faz bem.”
“Mas muitas pessoas, inclusive
alguns educadores, psicólogos, sociólogos, não pensam assim.”
“Há pessoas que aceitam a
pornografia em toda parte, até, ou principalmente, na sua vida particular,
menos na arte, acreditando, como Horácio, que a arte deve ser dulce et utile.
Ao atribuir à arte uma função moralizante, ou, no mínimo, entretenedora, essa
gente acaba justificando o poder coativo da censura, exercido sob alegações de
segurança ou bem-estar público.”
“Por falar em segurança. Existe
uma pornografia terrorista?”
“Existe, e, ao contrário das
outras pornografias, ela tem um código anafrodisíaco, em que o sexo não tem nem
glamour, nem lógica, nem sanidade – apenas força. Mas a pornografia terrorista é
tão estranha que já foi chamada de pornografia science fiction. Exemplos
destacados desse gênero são os livros do Marquês de Sade e de William
Burroughs, que causam surpresa, pasmo e horror nas almas simples, livros onde não
existem árvores, flores, pássaros, montanhas, rios, animais – somente a natureza
humana.”
“O que é natureza humana?”
“No meu livro Intestino grosso eu
digo que, para entender a natureza humana, é preciso que todos os artistas
desexcomunguem o corpo, investiguem, da maneira que só nós sabemos fazer, ao
contrário dos cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o corpo e
a mente, esmiúcem o funcionamento do animal em todas as suas interações.”
“A pornografia, como, por
exemplo, as viagens espaciais e o sarampo, têm futuro?”
“A pornografia está ligada aos órgãos
de excreção e de reprodução, à vida, às funções que caracterizam a resistência à
morte – alimentação e amor, e seus exercícios e resultados: excremento, cópula,
esperma, gravidez, parto, crescimento. Esta é a nossa velha amiga, a
pornografia da vida.”
“Existe uma pornografia da morte,
como queria Gorer? Desculpe citar nominalmente alguém, sei que você não gosta,
mas foi você que criou o precedente, citando Aristóteles, Joyce e Horácio.”
“Sim, ela está se criando. À
medida que a cópula se torna mais mencionável e o seu coro de menininhas entoa
nos estádios de futebol cantigas com palavrões da velha pornografia, vai sendo
escondida uma coisa cada vez menos mencionável, que é a morte como um processo
natural, resultante da decadência física, que é a morte pornográfica, a morte
na cama, pela doença – e que se torna cada vez mais secreta, abjeta, objecionável,
obscena. A outra morte – dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta,
esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas pela Televisão hoje, como as histórias
de Joãozinho e Maria antigamente. Está surgindo, pois, uma nova pornografia, a
que poderíamos denominar de pornografia de Gorer.”
“Você disse, pelo telefone, o
lema, adote uma árvore e mate uma criança. Isso significa que você odeia a
humanidade?”
“Meu slogan podia ser, também,
adote um animal selvagem e mate um homem. Isso não porque odeie, mas ao contrário,
por amar os meus semelhantes. Apenas tenho medo de que os seres humanos se
transformem primeiro em devoradores de insetos e depois em insetos devoradores.
Em suma, tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo,
criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de
regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que
a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo,
para os filhos comerem. Aliás é chegado o momento de fazermos, nós os artistas
e escritores, um grande movimento cultural e religioso universal, no sentido de
se criar o hábito de nos alimentarmos também com a carne dos nossos mortos,
Jesus, Alá, Maomé, Moisés, envolvidos na campanha. Está havendo um terrível
desperdício de proteínas. Swift e outros já disseram coisa parecida, mas
estavam fazendo sátira. O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica,
o Canibalismo Místico.”
“Você comeria o seu pai?”
“Em churrasco ou ensopadinho, não.
Mas em forma de biscoito, como foi mostrado naquele filme, eu não teria a menor
repugnância em devorar o meu pai. É possível ainda que alguém queira devorar a
mãe assada, inteirinha, como uma galinha, para depois lamber os dedos e os beiços,
dizendo, mamãe sempre foi muito boa. É uma questão de gosto.”
“Você escreve os seus livros para
um leitor imaginário?”
“Entre meus leitores existem também
os que são tão idiotas quanto os legumes humanos que passam todas as horas de
lazer olhando televisão. Eu gostaria de poder dizer que a literatura é inútil, mas
não é, num mundo em que pululam cada vez mais técnicos. Para cada Central
Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos
antes mesmo da bomba explodir.”
“Existe uma literatura
latino-americana?”
“Não me faça rir. Não existe nem
mesmo uma literatura brasileira, com semelhanças de estrutura, estilo,
caracterização, ou lá o que seja. Existem pessoas escrevendo na mesma língua,
em português, o que já é muito e tudo. Eu nada tenho a ver com Guimarães Rosa,
estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas
afiam o arame farpado. Passamos anos e anos preocupados com o que alguns
cientistas cretinos ingleses e alemães (Humboldt?) disseram sobre a
impossibilidade de se criar uma civilização abaixo do Equador e decidimos arregaçar
as mangas, acabar com os papos de botequim e, partindo de nossas lanchonetes de
acrílico, fazer uma civilização como eles queriam, e construímos São Paulo,
Santo André, São Bernardo e São Caetano, as nossas Manchesteres tropicais com
suas sementes mortíferas. Até ontem o símbolo da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo eram três chaminés soltando grossos rolos negros de fumaça
no ar. Estamos matando todos os bichos, nem tatu aguenta, várias raças já foram
extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas
viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas
foram comidas nos restaurantes típicos, aqueles em que o sujeito vai, pede
capivara à Thermidor, prova um pedacinho, só para contar depois para os amigos,
e joga o resto fora. Não dá mais para Diadorim.”
“Mas existe ou não existe uma
literatura latinoamericana?”
“Só se for na cabeça do Knopf.”
“O que você quer dizer com isso
de escrever o seu livro? É este o conselho que você dá aos mais jovens?”
“Não estou dando conselhos. Mesmo
porque o sujeito pode tentar escrever a Comédie humaine aplicando à sua
ficção as leis da natureza ou a Metamorfose, rompendo essas
mesmas leis, mas cedo ou tarde ele acabará escrevendo o seu livro, dele. Cedo ou
tarde acabará sujando as mãos também, se persistir.”
“Última pergunta: você gosta de
escrever?”
“Não. Nenhum escritor gosta
realmente de escrever. Eu gosto de amar e de beber vinho: na minha idade eu não
deveria perder tempo com outras coisas, mas não consigo parar de escrever. É
uma doença.”
“Acho que já temos bastante”, eu
disse desligando o gravador.
Depois de transcrita a entrevista
fui ao Editor.
“Esta entrevista parece um
Dialogue des Morts do classicismo francês, de cabeça para baixo”, eu disse.
“Vamos publicar assim mesmo”,
disse o Editor.
Telefonei para o Autor.
“Você disse duas mil seiscentas e
vinte e sete palavras e nós vamos lhe mandar o cheque respectivo.”
O Autor nem agradeceu. Mais uma
vez desligou o telefone na minha cara.
“Esses escritores pensam que
sabem tudo”, eu disse, irritado.
“É por isso que são perigosos”,
disse o Editor.
[1975]
(In: Contos reunidos. Org. Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 460-470. Publicado originalmente em Feliz Ano Novo)
***
Conversa de bois
Guimarães Rosa
“- Lá vai! Lá vai! Lá vai!…
– Queremos ver… Queremos ver…
– Lá vai o boi Cala-a-Boca
fazendo a terra tremer!…”
(Coro do Boi-Bumbá)
Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens,
é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas.
Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte,
poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o
mundo, por qualquer um filho de Deus?!
– Falam, sim senhor, falam!… – afirma o Manuel Timborna, das
Porteirinhas, – filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa
infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam
todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; – Manuel Timborna,
que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele
mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.
– Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: … “Visa sub obscurum
noctis pecudesque locutae. Infandum!…” Mas, e os bois? Os bois também?…
– Ora, ora!… Esses é que são os mais!… Boi fala o
tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.
– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado
ponto e pouco…
– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.
E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do
Mata-Quatro, onde, com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se
truncam as derradeiras roças da Fazenda dos Caetanos e o mato de terra ruim
começa dos dois lados; ali, uma irara rolava e rodopiava, acabando de tomar
banho de sol e poeira – o primeiro dos quatro ou cinco que ela saracoteia cada
manhã.
Seriam bem dez horas, e, de repente, começou a
chegar – nhein… nheinhein… renheinhein… – do caminho da esquerda, a cantiga de
um carro-de-bois.
O cachorrinho-do-mato, que agora lambia, uma a uma, as patinhas,
entreparou. Solevou o focinho bigodudo e comprido, com os caninos de cima
desbordando, e, de beiços cerrados, roncou o seu crepitar constante, ralado
contra o céu-da-boca.
Mas o outro som foi aumentando, e o carro já estava muito perto.
Com um rabeio final, o papa-mel empoou-se e espoou-se nas costas, e
andou à roda, muito ligeiro, porque é bem assim que fazem as iraras, para
aclarar as ideias, quando apressa tomar qualquer resolução. Girou, corrupiou,
pensou, acabou de pensar, e aí correu para a margem direita, sempre arrastando
no solo os quartos traseiros, que pesam demais. E, urge, urge, antes de pegar
toca, parou, e trouxe até à nuca, bem atrás de uma orelha, uma das patas de
trás, para se coçar.
O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a
estrada, estridente.
O bichinho mediu, com viva olhada, um arco de círculo, escolhendo o
melhor esconderijo: ao pé do pé de farinha-seca, num emaranhado de curuás, balieiras
e sangues-de-cristo. Com dois saltos e meio, e mais meia-volta, aninhou o corpo
cor de hulha, demasiado indiscreto para a paisagem. Deixava apontar a cabeça e
o pescoço, meio ruivos, mas as flores do curuá, em hissopes alaranjados,
estavam camaradissimamente murchas, as folhas baixas de balieira eram rubras, e
o resto a poeira fazia bistre, ocre, havana, siena, sujo e sépia. Somente os
olhos poderosos de um gavião-pombo poderiam localizar a irarinha, e, mesmo
assim, caso o gavião tivesse mergulhado o vôo, em trajetória rasante.
Sim e mais, mascarava-se o perfume, sobrado de forte e coisa nenhuma
agradável, inseparável do cãozinho silvestre: porque as frutas da trepadeira
cheiravam maduramente a maçãs.
Por aí se vê que a irara era genial, às vezes; mas, no fundo, não
passava de uma mulherzinha teimosa, sempre a suplicar: – Me deixem espiar um
pouquinho, que depois eu vou-me embora…
Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva de
trás da restinga, o menino guia, o Tiãozinho – um pedaço de gente, com a
comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças arregaçadas, e
a camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas
esvoaçantes.
Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois palmos
da sua cabeça, avançavam os belfos babosos dos bois da guia – Buscapé,
bi-amarelo, desdescendo entre mãos a grossa barbela plissada, e Namorado,
caracu sapiranga, castanho vinagre tocado a vermelho – que, a cada momento,
armavam modo de querer chifrar e pisar.
Segue-seguindo, a ativa junta do pé-dá-guia: Capitão, salmilhado, mais
em branco que em amarelo, dando a direita a Brabagato, mirim-malhado de branco
e de preto: meio chitado, meio chumbado, assim cardim. Ambos maiores do que os
da junta da guia.
Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coice: Dançador, todo branco,
zebuno cambraia, fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama, Brilhante, de
pelagem braúna, retinto, liso, concolor. Ainda maiores do que os seus
dianteiros da contra-guia.
E, atrás – ladeando o cabeçalho – conformes, enormes, tão tamanhões o
quanto bois podem ser, os sisudos sócios da junta do coice: Realejo,
laranjo-botineiro, com polainas lã de brancas, e Canindé, bochechudo, de
chifres semilunares, e, na cor, jaguanês.
Escangalhando o chão com as cintas ferradas das rodeiras, gemendo no
eixo a sua cantilena, rolava, por último, a bárbara viatura, arrastada aos
solavancos. E a irara virava a carinha para todas as bandas, tão séria e moça e
graciosa, que se fosse mulher só se chamaria Risoleta.
Mas, aí, o carreiro, o Agenor Soronho, homenzão ruivo, de mãos
sardentas, muito mal-encarado, passou rente ao papa-mel, que estremeceu, ao
ver-se ao alcance do ferrão temperado da vara de carrear. Felizmente, o carro
chiava e guinchava como nunca. Porque a cachorrinha-do-mato é sestrosa e não
pode parar um instante de rosnear; e, além disso, estava como que hipnotizada,
pela contemplação do bicho-homem e pelos estalidos chlape-chlape das alpercatas
de couro cru.
Distanciava-se a complicada caravana. Então, a irara Risoleta fez o
cálculo do tempo de que dispunha. Olhou para cima, espiou para o caminho da
direita, a ver se também dali não surgia alguma coisa digna de observar-se, e,
depois, numa coragem, correu empós a comitiva, vai que avançando espevitada,
vem que desenxabida recuando, sumindo-se nas moitas, indo até lá adiante,
namorar o guieiro, mas gostando maismente de se emparelhar com o churrião; não
podia, nem jeito, admitir que os grandes buracos das rodas fossem os óculos de
tirar barro, de dar passagem à lama nos atoladiços: eram, isso sim, ótimas
janelas, por onde uma irara espreitar.
Maneira seja, pôde instruir-se de tudo, bem e bem.
E, tempo mais tarde, quando Manuel Timborna a apanhou, – Manuel Timborna dormia
à sombra do jatobá, e o bichinho veio bisbilhotar, de demasiado perto, acerca
do bentinho azul que ele usa no pescoço, – ela só pôde recobrar a liberdade a
troco da minuciosa narração.
Como aquele trecho da estrada fosse largo e nivelado, todos iam
descuidosos, em sóbria satisfação: Agenor Soronho chupando o cigarro de palha;
o carro com petulância, arengando; a poeira dançando no ar, entre as patas dos
bois, entre as rodas do carro e em volta da altura e da feiúra do Soronho; e os
oito bovinos, sempre abanando as caudas para espantar a mosquitada,
cabeceantes, remoendo e tresmoendo o capim comido de-manhã.
Só Tiãozinho era quem ta triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio
duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando os bois.
E, por tudo assim sem história, caminharam um quilômetro ou mais.
Começou, porém, a esquentar fora de conta. Nem uma nuvem no céu, para
adoçar o sol, que era, com pouco maio, quase um sol de setembro em começo:
despalpebrado, em relevo, vermelho e fumegante.
Então, Brilhante – junta do contra-coice, lado direito – coçou calor, e
aí teve certeza da sua própria existência. Fez descer à pança a última bola de
massa verde, sempre vezes repassada, ampliou as ventas, e tugiu:
“Boi… Boi… Boi…”
Mas os outros não respondem: continuam a vassourar com as caudas e a
projetar de um para o outro lado as mandíbulas, rilhando molares em muito bons
atritos.
Dando-se que Brilhante fala dormindo, repisonga e se repete, em sonho de
boi infeliz. Assim por assim, o pelame preto compacto põe-no por baixas
vantagens, qual e tal, em quente de verão, comborço que envergasse fraque,
entre povos no linho e brim branco. Que por isso, ele querer toda vez, no
pasto, a sombra das árvores, à borda da mata, zona perigosa, onde mil muruanhas
– tavãs e tavoas – tão moscas, voejam, campeando o mole e quente em que
desovar. Também que lá, medo ao veneno, a gente tem de pastar com completa
cautela: Tubarão, irmão de Brilhante e seu antigo par de junta, morreu, faz mês
e meio, ervado de timbó. Coisando por tristes lembranças, decerto, bem faz que
Brilhante já carregue luto de-sempre. Mas, perpetuamente às voltas com bernes,
bichos, carrapichos, e morcegos, rodoleiros, bicheiras, só no avesso da vida,
boas maneiras ele não pode ter.
Todavia, ninguém boi tem culpa de tanta má-sorte, e lá vai ele tirando,
afrontado pela soalheira, com o frontispício abaixado, meio guilhotinado pela
canga-de-cabeçada, gangorrando no cós da brocha de couro retorcido, que lhe
corta em duas a barbela; pesando de-quina contra as mossas e os dentes dos
canzís biselados; batendo os vazios; arfando ao ritmo do costelame, que se abre
e fecha como um fole; e com o focinho, glabro, largo e engraxado, vazando baba
e pingando gotas de suor. Rebufa e sopra:
“Nós somos bois… Bois-de-carro… Os outros, que vêm em manadas, para
ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e
pastando, e vão-se embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses
todos não são como nós…”
– Eles não sabem que são bois… – apoia enfim Brabagato, acenando a
Capitão com um esticão da orelha esquerda. – Há também o homem…
– É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta… –
ajunta Dançador, que vem lerdo, mole-mole, negando o corpo. – O homem me
chifrou agora mesmo com o pau…
– O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar
muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É
comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da
gente.
– Mas eu já vi o homem-do-pau-comprido correr de uma vaca… De uma vaca.
Eu vi.
– Quieto, Buscapé!… Sossega, meu boizinho bom… – clama o menino guia.
Não é à toa que Buscapé é um boi china, espantadiço e pois pernalongo,
que avança distanciando muito as patas e costuma relar com os cascos brutos os
calcanhares do guia. Mais ao jeito que ele é mogão e mal-armado, que, se
tivesse bons estrepes, na parelha de testa um perigo seria.
Mas Agenor Soronho estranhou qualquer lance:
– Vigia aí, Tiãozinho! Vi um bicho raboso mexer no matinho… Alguma bisca
de lobo, ou um jaguapé. Isso são criaturas p’ra vagarem de-noite, não sei o-quê
que andam querendo a esta hora em beira de estrada, p’ra assustar os bois!
Brabagato curvou-se, chegando o focinho, com veneta de lamber o
entre-chifres de Capitão:
– Um homem não é mais forte do que um boi… E nem todos os bois obedecem
sempre ao homem…
– Eu já vi o boi-grande pegar um homem, uma vez… O homem tinha também um
pau-comprido, e não correu… Mas ficou amassado no chão, todo chifrado e pisado…
Eu vi!… Foi o boi-grande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabaça-na-cacunda…
– Ele é bonito, esse um… – profere Dançador, que por sinal dá retrato de
zebuíno-nelorino: na cabeçorra quase de iaque – testa lomba, grãos de olhos,
cara boba, mais focinho – e na meia giba da cruz; mas ajunta outro tanto de
sangue sertanejo, e a mistura põe-lhe um pré-corpo entroncado, dilatado e
corcovado, de bisão.
Acolá, longe adiante, onde as árvores dos dois lados se encontram e
encartucham e o caminho se fecha aos olhos da gente, apontaram de repente uns
cavaleiros. Vêm chegando. Para que eles possam passar, mesmo tendo de contornar
o barranco, Tiãozinho detém os bois.
– Boas tardes, seu Agenor! Que é que vão carreando?
– Umas rapadurinhas pretas, mais um defunto… É o pai do meu guia, que
morreu p’r’ amanhecer hoje…
– Virgem Santa, seu Agenor! Imagina, só, que coisa triste… – Os homens
se descobrem. – E de que foi mesmo que o pobre morreu, seu Agenor, ele que era
tão amigo do senhor…?
– A gente não sabe… Da doença antiga lá dele… O coitado andava penando.
– Pobrezinho do menino!… – exclama a moça do silhão. E, a tais palavras,
Tiãozinho, que já estava meio quase consolado, recebe inteira, de volta, sua
grande tristeza outra vez.
Brabagato aproveitou a parada para se deitar. Desce o corpo, dobrando as
quatro pernas, tudo muito complicado, e os joelhos como que se quebram
completamente – parece que os garrões vão ao sovaco, cai a quartela na canela e
bate o braço no boleto. Amontoa-se no fundo sulco da beira da estrada; e
Capitão não reclama: sustenta a canga, inclinando o cogote, e descai as
orelhas, enviesando olhos mornos. Mas Brabagato camba para o outro lado, depois
de extrair a cauda, que, por afã e por engano, lhe ficara imprensada embaixo, e
enxota as moscas passeantes pelo lombo e pelas ancas de montanha
branca-e-preta.
Os cavaleiros se despedem. Mas, agora, a moça do silhão joga uma
espiadela e murmura, enojada, qualquer coisa a respeito da falta de escrúpulos
de se acondicionarem cadáveres em cima de rapaduras.
– Vamos’embora, vamos’embora…
– Vam’, boi!…
Tiãozinho quase não tem fala, mas Soronho brande a vara o brada seu
mau-humor. Brabagato se reajoelha e acaba de aprumar-se, em dois tempos e três
ferroadas. Os outros rompem adiante, com pronta pressa. As tiradeiras se
retesam, de argola a argola. E os bois todos batem cascos, acertando a normal
locomoção.
– Oung! Moung! – bufa Canindé, monótono, arrepiando o fio branco do
dorso, e repuxando, dos ilhais às primeiras costelas, a pelagem conjugada – de
cada lado uma risca preta e uma risca vermelha, muito largas, salpicadas de
branco, na descida do flanco e na corda do flanco, pois que é muito bonito um
boi jaguanés. Bufa e fala, pé por pé para caminhar:
– Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos
pensar como o homem!…
Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzis de
madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro,
resmunga:
– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar
como o homem…
– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os
homens… Por que é que tivemos de aprender a pensar?…
– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros…
– Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O
medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… É ruim ser
boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem:
tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…
– Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom… É
melhor do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda
haverá boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram… E mesmo o
catingueiro-branco está com as moitas só comidas a meia altura… É bonito poder
pensar, mas só nas coisas bonitas…
“É isso mesmo… Só o que é bonito… O que é manso e bonito… Eu até queria
contar uma coisa… Sabia de uma coisa… Sabia, mas não sei mais”… As orelhas de
Brilhante murcharam, e a cabeça sobe e desce. “Não encontro mais aquilo que eu
sabia… Coisa velha… Também, vem tanta coisa para a gente pensar!… Vêm, como os
mosquitos maus, da beira do mato… Perto do homem, só tem confusão…”
– Boi ôa, boi!… Dianho!… – grita seu Soronho.
Mais não foi que Brabagato, o chamurro pintado, que de-manhã pastou
algum talo de capim-roseta, e agora talvez esteja sentindo dor qualquer, no
terceiro ou no quarto estômago seu, e quer ruminar de focinho alto; e
acontecido que Capitão é um couro-grosso mal mestiçado de franqueiro, que anda
pesa-pendendo e cheirando chão, foi quebrado de desjeito, quando o companheiro
de trela sungou a cabeça de repente. – Moung?! – Hmoung-hum!… – E badala o
cincerro, do pescoço, porque Capitão vem de guampa afoita, oblíquo, querendo
mesmo ferir.
E então, calmo, rediz Dançador, voz tão rouca, de azebuado, com tristeza
no tutano:
– Não podemos mais deixar de pensar como o homem… Estamos todos pensando
como o homem pensa…
Péssima dupla, esta da contra-guia: Brabagato, mal-castrado, tem muito
brio e é fogoso; e Capitão é um boi sonso, e pois mau como uma vaca na
menopausa. Por isso, e porque um e outro têm chifres verdes – se a gente furar,
para pôr as argolas, darão sangue – prende-lhes os cangotes a soga rija, em vez
das chifradeiras dos outros cingeis. Divergem as cabeças, e a junta se bifurca,
o quanto permite o ajoujo, que essa é a única maneira de se darem as costas.
Logo Brabagato recua o corpo, trazendo a canga até à base das hastes. Mas o
cornil resiste. E já o carreiro, que vinha quase que só determinando coice e
contra-coice, chega de lá, balanceando a vara.
– Capitão!… Brabagato!… – O ferrão cata lombos, palhetas e espáduas, e
os bois dois se aquietam, com os flancos em marmelada, a sangrar.
Mas o caminho vai. E alongam-se para diante, na paisagem luminosa, as
sombras songas dos bois.
– Estamos todos pensando que nem o homem?… Você,
o-que-gosta-de-pastar-a-beira-da-cerca-do-pasto-das-vacas?!…
– Sou o boi Brabagato.
– E o-que-deita-para-se-esconder-no-meio-do-meloso-alto?
– Sou o boi Namorado.
– E o boi-da-noite-que-saiu-do-mato? Boi Brilhante, boi Brilhante?!… Que
foi que ele disse?…
“Estou caçando e não acho… Mas não vamos pensar como o homem… Esperem…
Ainda não encontrei aquilo…”
– O-quê?…
“Só o que for manso e o que for bonito… Também, assim, não posso… Não
sei o que é que o carro diz, gritando tanto… Só os cavalos é que podem entender
o carro…”
O sol agora está dois degraus mais alto. A poeira deixou de ser
vermelha: é parda, parecendo cinza fina. Estão num baixadão de campo, de
semi-arbustos, flechinha e capim-lanceta, todo encalombado de surujes de
cupins.
Vem a voz de outro carreiro, gritando. Fazem a volta, acolá, outras
juntas: seis parelhas, puxando um carretão, que arrasta imenso toro acorrentado
– um tronco de tamboril, tal de metros de diâmetro, lavrado no mato.
Tiãozinho sorri para o menino-guia. Soronho saúda os carreiros. E os
bois de cá espiam os bois do carretão: com outros, mal conhecidos: Tinhorão,
Marechal, Cantagalo e Murici. Também deitam olhares, mas vão afanados, que o
peso é pesado: debruçando os perfis cuneiformes; colgados nas jugulares das
brochas; bijungidos, dois a dois paralelos, – anca a anca, chifre a chifre, pá
a pá.
Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, outra vez.
– Esperta, boi!…
Agora, o carreiro, sim, que é homem maligno. O dia, para ele, amanheceu
feliz, muito feliz. Mas, mesmo assim por assim, só porque está suando, não
deixa de implicar:
– Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!… Não vê que a gente
carreando defunto-morto, com essa cantoria, até Deus castiga, siô?!… Não vê que
é teu pai, demoninho?!… Fasta! Fasta, Canindé!… Ôa!… Ô-ôa!… Anda, fica novo,
bocó-sem-sorte, cara de pari sem peixe!… Vai botar azeite no chumaço, que senão
agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega fogo em tudo, com o diabo p’r’ajudar!…
Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo de que o
homem desse nele com a vara-de-ferrão. Falta de justiça, ruindade só. Foi o
carreiro mesmo quem apertou a chaveta da cantadeira, hoje cedo; e até estava
enjerizado, na hora, falando que Tiãozinho era um preguiçoso, que não prestava
nem para ajeitar o carro nem para encangar os bois.
Clamando, xingando, Agenor Soronho vem para a traseira, onde está
pendurado o chifre de unto. Estende-o ao menino, e dá uma espiada lá para
dentro. Atrás, o carro estava sem tampo: só com uns sedenhos, esticados a
diferentes alturas, entre os muitos fueiros, para impedir que, a cada tranco, a
carga se fosse derramando.
Em cima das rapaduras, o defunto.
Com os balanços, ele havia rolado para fora do esquife, e estava
espichado, horrendo. O lenço de amparar o queixo, atado no alto da cabeça, não
tinha valido de nada: da boca, dessorava um mingau pardo, que ia babujando e
empestando tudo. E um ror de moscas, encantadas com o carregamento duplamente
precioso, tinham vindo também.
Soronho volve depressa a cara e vai encostar-se à cheda do lado direito,
onde a esteira de caniço, alta, o isola do fúnebre viajante.
Mas, acolá, nos encangamentos, prorrompe novo reboliço.
– Olha esses bois, aí, diabo!… Capitão! Brabagato!…
Treta e teima. Alguma mutuca voandeja passou e pinicou a orelha de
Brabagato, que estava de olhos fechados e atribuiu a ofensa a Capitão. Virou,
raivado. Entestam. Reentestam. E estralam as chifrancas.
Soronho fincou a aguilhada, e Tiãozinho correu, atarantado, sem saber se
oleava o cocão ou se acalmava os dois da guia, que, ouvindo bulha lá atrás,
pensavam que havia ordem para caminhar.
– Ôa!… – Dá de-prancha, com a vara, nos topetes dos bois, que desviam
para fora os nós dos joelhos, e travam pausa, imóveis perfeitamente. Então o
candieiro volta para azeitar o eixo, depois de deixar a vara apoiada no peito
da canga – obstáculo esse que Buscapé e Namorado resguardam com respeito.
Mas Agenor Soronho olhou para o sol, enrugando a cara. Pisca, pisca, e
mais se enfeza.
– Que martírio!… De vez que não acaba mais com isso, ou tu pensa que os
outros vão ficar no arraial com o cemitério aberto; esperando a gente?!…
– Já vou, seu Soronho… Já vai…
– É, nheinhein?!… Ai, que sina, esta minha, trabalhando em sol e chuva,
e inda tendo de aguentar este mamão-macho sem preceito!… Tu fala macio, mas
p’ra trabalhar comigo tu não presta… Mais em antes eu queria um rapazinho
carapuçudo e arapuado, que fosse mal-criado mas com sustância que nem eu, p’ra
trabucar… Que me importa, se a gente chega de noite no arraial?! O pai não é
meu, não… O pai é seu mesmo… Só que tu não tem aquela-coisa na cara… Mas,
agora, tu vai ver… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!…
Chora-não-chora, Tiãozinho retoma seu posto. “O pai não é meu, não… O
pai é seu mesmo…” Decerto. Ele bem que sabe, não precisa de dizer. É o seu pai
quem está ali, morto, jogado para cima das rapaduras… Deixou de sofrer… Cego e
entrevado, já de anos, no jirau… Tiãozinho nem se lembrava dele de outro jeito,
nem enxergando nem andando… Às vezes ele chorava, de-noite, quando pensava que
ninguém não estava escutando. Mas Tiãozinho, que dormia ali no chão, no mesmo
cômodo da cafua, ouvia, e ficava querendo pegar no sono, depressa, para não
escutar mais… Muitas vezes chegava a tapar os ouvidos, com as mãos. Malfeito!
Devia de ter, nessas horas, puxado conversa com o pai, para consolar… Mas
aquilo era penoso… Fazia medo, tristeza e vergonha, uma vergonha que ele não
sabia bem por que, mas que dava vontade na gente de querer pensar em outras
coisas… E que impunha, até, ter raiva da mãe…
– Ôa!… Ôa, boi teimoso… Buscapé, demônio!
Ah, da mãe não gostava!… Era nova e bonita, mas antes não fosse… Mãe da
gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito… Que não
tivesse mexida com outro homem nenhum… Como é que ele ia poder gostar direito
da mãe?… Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse
conta, batesse… Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era quem
estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho… E
era melhor, mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele capeta!… Ruço!…
Entrão!… Malvado!… O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr… Vivia
dentro da cafua… Só não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava
gemendo; mas não gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe,
cochichando os dois, fazendo dengos… Que ódio!…
O caminho, descurvo, vai liso para a frente. E, lá léguas, meão roxo, é
o Morro Selado, onde mora um sujeito maluco, que tem ouro enterrado no chão.
Pobre do pai!… Tiãozinho tinha de levar a cuia com feijão, para comer
junto com ele, porque nem que a mãe não tinha paciência de pôr comida na boca
do paralítico… E ela, com seu Soronho, tinham, para comer, outras coisas,
melhores… Deviam de ter… Mas, com isso, Tiãozinho não se importava… O que doía
era o choro engasgado do pai, que não falava quase nunca… Mas Deus havia de
castigar aquilo tudo, Não estava direito, não estava não!…
– Cristo! Cris-pim-cris-pim-cris-pim-crispim!
Um par de joãos-de-barro arruou no caminho, pouco que aos pés de
Tiãozinho. Galinhando aos pulos, abrem bico e papo, num esganiço de alarido,
mesmo de propósito, com rompante. Arrepicam e voam embora, soprando penas.
Marido e mulher.
– Ôa, Namorado!… – E Tiãozinho faz meia-volta e dá uma corrida
de-costas, pelejando para conter os da guia, golpeando-lhes as testorras e
picando-os com o ferrão. Foi Namorado, o boi vermelhengo, que tomou um repente
e chegou a catucar o candieiro, com uma cornada de-través. Mas, agora, está
pondo olhos mansos, em fito desconsolado, enquanto Buscapé se socorna.
Boi urubu é boi Brilhante, que afunda cachaço e cara, angular, para o
chão da frente. Preto e movente, assombra, que nem estranho enorme bicho
d’água, com óleo e lustro no pêlo, esgueirando-se a custo, quase rampante. E
boi Brilhante pensa falado:
“Estou andando e procurando… As coisas pequenas vêm vindo, lá de trás,
na cabeça minha, mas não encontro as coisas grandes, não topo com aquilo, não…”
Ora caminhando de frente, ora aos recuões, Tiãozinho tem de ficar
espertado, porque os bois agora deram para se agitar. Se o guia pega a pensar
demais, se descuidando, logo se alerta com o bafo quente nas orelhas e a baba
lhe respingando na nuca.
– Ôa, Namorado!…
Também, quem tem a culpa d’eles ficarem assim desinquietos é o carreiro,
que vem picando os bois, à toa, à toa, sem precisão. É mau mesmo. “Mas, agora,
tu vai ver!… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!”… P’ra que falar isso?!…
Seu Soronho sempre não xingou, não bateu, de cabresto, de vara-de-marmelo, de
pau?!… E sem ter caso para mão brava, nem hora disso, pelo que ele lidava
direito, o dia inteiro, capinando, tirando leite, buscando os bois no pasto,
guiando, tudo… Mas Tiãozinho espera… Há-de chegar o dia!… Quando crescer,
quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho… Ah, isso vai!… Há-de
tirar desforra boa, que Deus é grande!…
Um mandiocal. O cafezal: de cimo a chão, moita e folha. As bananeiras.
“Bhu! Muff”… De repente, boi Brilhante projetou a cabeça, que sai do
enquadramento – canga, canzis e brocha – como o pescoço de um jabuti que se
desencaixa para beber chuva. E fanha, e funga:
“Achei a coisa, aquilo!… Foi o boi que pensava de homem,
o-que-come-de-olho-aberto…”
– Era o boi Rodapião…
“Era o boi Rodapião. E foi. Chegou, um dia, não se sabe…
– Veio de-manhã…
“Pequeno ele, pouco chifre, vermelho café de-vez… Era quase como nós,
aquele boi Rodapião… Só que espiava p’ra tudo, tudo queria ver… E nunca parava
quieto, andava p’ra lá e p’ra cá…”
– Eu também pastei junto, com esse boi Rodapião…
Estão passando agora em frente à Fazenda do seu Gervásio. Os cachorros
vêm fazer algazarra cá embaixo na estrada, só para assustar os bois. Agenor
Soronho manda no que é seu: – Canindé, Realejo!… Ôa, Brabagato! Ô’r’vai!… -; e
grita mais pelo Diabo, que “diabo” é o seu refrão.
A casa está aberta, mas não se vê ninguém. Todos foram ao canavial, pois
é o começo do tempo de corte, marcar a cana caiana que vão moer amanhã
de-manhã.
– Vamos, Buscapé!… Va-amos!…
O casarão avarandado já ficou para trás, com a latomia dos cachorros e
as frondes do laranjal. Tiãozinho começa a cansar. Que calor!… E a poeira seca
a goela da gente. Estará sentindo dor-por-dentro no pescoço? São Brás! São
Brás!… Não quer penar como o Didico da Extrema, que caiu morto, na frente de
seus bois…
Tinha só dez anos o Didico, menor do que Tiãozinho. Mas trabalhava
muito, também. Foi num dia assim quente, de tanta poeira assim… Ele teve de ir
carrear sozinho, porque era o carro pequeno, só com duas juntas e carga pouca,
de balaios de algodão. Na hora de sair, se queixou: – “Estou com uma coisa me
sufocando… Não posso tomar fôlego direito, nem engolir… E tenho uma dor aqui…”
(Lá nele, Didico)…
Ninguém se importou; falaram até de ser manha, porque o Didico era
gordinho e corado, parecendo um anjo de estampa, de olhinhos gaiteiros e azuis.
Mas estava custando muito a voltar. Nunca mais aparecia com o carro. E
foram encontrá-lo, lá longe, na covanca da Abóbora-d’Água, já frio. Os bois
haviam parado, para não pisar em cima, e estavam muito quietos, pois às vezes
eles gostam de ficar assim. Menos os da guia, que tinham mascado e comido quase
toda a roupinha do pobre do Didico… – São Brás!…
Vão por um tracto de campo ondulado, com pastagem áspera de capim-guiné
verde-azul. Só aqui ou ali uma árvore: ou pau-doce ou pau-terra ou pau-santo,
quase sempre com um ninho de guaxe pendurado de um galho, como enorme coador de
café.
E aí, que todos estugam as passadas, boi Brilhante desdorme, em velho
vezo de conversação:
… “Comigo, na mesma canga, prenderam o boi Rodapião… Chegou e quis espiar
tudo, farejar e conhecer… Era tão esperto e tão estúrdio, que ninguém não podia
com ele… Acho que tinha vivido muito tempo perto dos homens, longe de nós,
outros bois… E ele não era capaz de fechar os olhos p’ra caminhar… Olhava e
olhava, sem sossego. Um dia só, e foi a conta de se ver que ninguém achava
jeito nele. Só falava artes compridas, ideia de homem, coisas que boi nunca
conversou. Disse, logo: – Vocês não sabem o que é importante… Se vocês puserem
atenção no que eu faço e no que eu falo, vocês vão aprendendo o que é que é
importante… – Mas, por essas palavras mesmas, nós já começamos a ver que ele
tinha ficado quase como um homem, meio maluco, pois não…”
– Ôa!
Estacam todos, bois e carro, no meio do chapadão. Foi o guia Tiãozinho,
que teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído de repente até
aos pés. Depôs a vara no chão, depressa, porque estava até vermelho, só em
camisão e perninhas magrelas, que vergonha. E agora está-lhe custando para
amarrar a tira de pano na cintura e ficar composto outra vez.
Com o céu todo, vista longe e ar claro – da estrada suspensa no planalto
– grandes horas do dia e horizonte: campo e terras, várzea, vale, árvores,
lajeados, verde e cores, rotas sinuosas e manchas extensas de mato – o sem-fim
da paisagem dentro do globo de um olho gigante, azul-espreitante, que esmiúça:
posto no dorso da mão da serrania, um brinquedo feito, pequeno, pequeno:
engenhoca minúscula de carro, recortado; e um palito de vara segura no corpo de
um boneco homem-polegar, em pé, soldado-de-chumbo com lança, plantado, de um
lado; e os boizinhos-de-carro de presépio, de caixa de festa. E o menino
Tiãozinho, que cresce, na frente, por mágica. Pronto. As calças não vão cair
mais!
Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial. Também, com tudo tão
triste, carreando o pai para a cova, coitado do pai… Mas, deve de ter subido
para o Céu, direito, na mesma da hora… Na véspera de morrer, de-noite, ele
ainda pedira para Tiãozinho tirar reza junto… E Tiãozinho puxara o terço,
cochilando… Estava com muito sono, porque tinha ido, a pé, ao Marçal Velho,
levar um recado… Depois da salve-rainha, o pai pôs nele a benção, e ele deitou
no enxergão, para dormir logo, esquentando os molambos… Também não adiantou
nada estar dormindo no mesmo canto; só deu fé daquela tristeza toda foi quando
viu a mãe, chorando, sacudindo-o para levantar. Aí, Tiãozinho tinha chorado
também…
Mas, a mãe, por que é que ela havia de chorar?! por que? Ela não gostava
do pai… Tiãozinho pouco pudera ver, pelos buracos da parede de pau-a-pique,
quando eles estavam lavando o corpo… A cafua se enchera, não cabendo, de gente…
E seu Agenor Soronho estava muito galante com todos. Estava mesmo alegre,
torcendo as pontas do bigode vermelho, mas fazendo de estar triste, às vezes,
de repente… E até quando Tiãozinho, zonzo de tanta confusão, se sentara na
pedra que faz degrau na porta da cozinha, o carreiro tinha vindo consolar sua
tristeza, dizendo que daí em diante ia tomar conta dele de verdade, ia ser que
nem seu pai…
Os vizinhos bem que estavam às ordens, para carregar cristão defunto.
Mas eram seis léguas apuradas, e, como seu Agenor estava mesmo para levar uma
carga de rapadura do Major Fréxes, dispensou os préstimos para o cortejo, e
atrelou quatro juntas, porque na volta ia trazer o carro cheio, com os rolos de
arame farpado que estavam esperando por ele, na estação do arraial…
Não havia caixão: só o esquife tosco, entre padiola e escada, com as
barras atadas com embira e cipó. Ajeitaram o morto em cima do ladrilhado das
rapaduras. Tiãozinho, já pronto, esperava no seu lugar, com muita pressa de
sair, porque aquilo tudo estava sendo ruim demais… A mãe ficara na porta,
chorando sempre, exclamando bobagens, escorada nas outras mulheres todas, que
ajudavam a chorar… E o resto do povo tinham feito o pelo-sinal e virado as
costas, porque faz mal a gente ficar espiando um enterro até ele se sumir.
O caminho-fundo corta uma floresta de terra boa, onde cansa a gente
olhar para cima: árvores velhas, de todas as alturas – braçudas braúnas, jequitibás
esmoitados, a colher-de-vaqueiro em pirâmides verdes, o lanço gigante de um
angico-verdadeiro, timbaúbas de copas noturnas, e o paredão dos açoita-cavalos,
escuros. Cheiro bom de baunilha, sombra muito fresca, cantos de juritis,
gorgear de bicudos, o trilo batido da pomba-mineira, e, mais longe, mais
dentro, na casa do mato, o pio tristonho do nhambu-chororó.
Tiãozinho atrasa o passo, para aproveitar. Mas ainda está triste. Não
quer pensar no pai depois – tem medo de pôr a ideia no corpo que vem em-riba da
pilha das rapaduras. Só aguenta pensar nele de-em-antes, na cafua… Pega a
imaginar outras coisas. Fala os bois, sem precisão: – Buscapé!… Brabagato!… –
Depois, faz força para se lembrar dos nomes das vacas todas do seu Major
Gervásio: Espadilha… Bolívia… Azeitona… Mexerica é a turína. Porcelana é a toda
branca, desmochada. Guiamina é a preta, de cinturão branco no cilhador…
Mas, o chapéu na cabeça? Não pode… Tira o chapeuzinho de palha, que
também não tapa o sol e nem nada. Vai levar na mão. Também… Não quer pensar
mais no pai em-antes. Mas não tem ideia para poder deixar de pensar… O pai
gemendo… Rezando com ele… E se rezasse também agora?… Devia…
E começa a rezar, meio alto, só como sabe, enquanto a estrada sai do
mato para o calorão do cerrado, com enfezadas arvorezinhas: muricis de pernas
tortas, manquebas; mangabeiras pedidoras-de-esmola; barbatimãos de casca rugosa
e ramos de ferrugem; e, no raro, um araticum teimoso, que conseguiu enfolhar e
engordar.
Da garupa de Brabagato a cauda cai como uma cobra grossa, oscilando, e o
pincel zurze o ar, quase nos chifres de Brilhante, que fechou de todo os olhos
e vergou o toutiço.
…“Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!… Estúrdio…
“Quando a gente não saía com o carro, e ficava o dia no pasto, ele
falava mais em-mais. Uma vez, ele disse: – Nós temos de pastar o capim, e
depois beber água… Invés de ficar pastando o capim num lugar só em volta, longe
do córrego, p’ra depois ir beber e voltar, é melhor a gente começar de longe, e
ir pastando e caminhando, devagar, sempre em frente… Quando a gente tiver sede,
já chegou bem na beira d’água, no lugar de beber; e assim a gente não cansa e
tem folga p’ra se poder comer mais! – E ele foi logo fazendo assim, do jeito
como tinha falado; mas nós nem podíamos pensar em fazer que nem ele. Porque a
gente come o capim cada vez, onde o capinzal leva as patas e a boca da gente…
“Outra vez, boi Rodapião disse: – Quando o boi Carinhoso ficou parado,
na beirada do valo do pasto, e não quis comer de jeito nenhum, o homem veio e
levou o boi Carinhoso no curral, e pôs p’ra ele muito sal, no cocho… Se nós
ficarmos também sem comer, todos, parados na beirada do valo, o homem nos dará
milho e sal, no curral, no cocho grande… – E ele fez assim mesmo, e aquilo deu
certo; e boi Rodapião comeu sal muito e ficou alegre. Nós, não.”
O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio um
silêncio. E todos, de olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça coisas mais
fundas que o pensamento e o sonho, e, assim, sem pressa, chegam ao vau do
ribeirão.
Está um mormaço pesado, mas o ribeirão corre debaixo de árvores, no
bem-bom. Tiãozinho entra, até os joelhos, na água, fria que faz cócegas. Molha
os pulsos. O chapeuzinho furado é peneira para vazar. Então, ele abaixa as
mãozinhas juntas, e bebe.
A junta da guia, com simetria perfeita, baixa os três arcos da canga,
para trazer as belfas ao rés da correnteza; e, abrindo as fuças em conchas
moles, os bois sorvem, demoradamente.
De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o molhado das
caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que santos de
grandes, e cheirando forte a bondade, bois companheiros, que não fazem mal a
ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de pessoa amiga da
gente!… E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé, e passa também mão de
mimo no pescoço de Namorado – imóveis, os dois.
Todos já beberam; mesmo Realejo não tem mais sede: mantém o focinho
abaixado, só porque, no limo que se esfiapa das pedras do fundo, supõe talvez
uma raça de capim de luxo, que deve de ser macio…
Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo:
– Vam’bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?!… Carece de ficar aí a
vida inteira, feito estaca de dentro d’água, feito esteio de moinho?!… Vamos,
Canindé!… Dançador! Vamos!…
Quando as rodas entram no córrego, Agenor Soronho não se molha, porque
já está trepado, entre o pigarro e a chavelha, no cabeçalho, que avança como um
talhamar. E fez bem, porque, depois da passagem, por metros, há um alagadiço
perene: um tremembé atapetado de alvas florinhas de bem-casados e de longos
botões fusiformes de lírios.
– Entra p’ra o lado de lá, que aí está embrejado fundo… Mais, dianho!…
Mas não precisa de correr, que não é sangria desasada… Tu não vai tirar o pai
da forca, vai?… Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez!…
Deus que me perdoe de falar isso, pelo mal de meus pecados, mas também a gente
cansa de ter paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar… Ôi, seu
mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama!… – E Soronho ri, com estrépito e
satisfação.
Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr
vida nele outra vez…” Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a morte
veio buscar?! Havia de ter sido tão bom!…
Os bois tafulham as munhecas, com cloques sonoros; quando desatolam,
para outra passada, a água suja escorre, chorrilhando, para encher os moldes
dos cascos, e, no mais mole, as bainhas – as fundas cisternas cavadas pelos
mocotós.
Enlameado até à cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o
carreiro… Deixa eu crescer!… Deixa eu ficar grande!… Hei de dar conta deste
danisco… Se uma cobra picasse seu Soronho… Tem tanta cascavel nos pastos… Tanta
urutu, perto de casa… Se uma onça comesse o carreiro, de noite… Um onção
grande, da pintada… Que raiva!…
Mas os bois estão caminhando diferente. Começaram a prestar atenção,
escutando a conversa de boi Brilhante.
… “Então, boi Rodapião ainda ficou mais engraçado de-todo. Falava: – A
gente deve de pensar tudo certo, antes de fazer qualquer coisa. É preciso andar
e olhar, p’ra conhecer o pasto bem. Eu conheço todos os lugares, sei onde o
capim é mais verde, onde os talos ficam quase o dia inteiro molhados de
orvalho, p’r’a gente poder pastar mais tempo sem ter sede. Sei onde é que não
dá tanto mosquito, onde que a sombra, e o limpo do chão; e, pelo jeito do
homem, sei muitas vezes o que é que ele vai fazer… Olho p’ra tudo, e sei, toda
hora, o que é o melhor… Não tenho nunca dor-de-barriga, porque não pasto por
engano capim navalha-de-mico, no meio do jaraguá… Vocês não fazem como eu, só
porque são bois bobos, que vivem no escuro e nunca sabem porque é que estão
fazendo coisa e coisa. Tantas vezes quantas são as nossas patas, mais nossos
chifres todos juntos, mais as orelhas nossas, e mais: é preciso pensar cada
pedaço de cada coisa, antes de cada começo de cada dia…
“E nós não respondíamos nada, porque não sabemos falar desse jeito, e
mesmo porque, cada horinha, as coisas pensam p’r’a gente…
“Mas boi Rodapião ia ficando sempre mais favorecido com suas artes, e
era em longe o mais bonito e o mais gordo de nós todos. Até que chegou um dia…”
– Firme, Realejo!… Canindé, boi bom!…
Vão descer uma rampa de grande declive, e os bufalões destamanhos da
junta do coice aguentam o peso do carro, fazendo freio e firmando no chão os
cascos, fendidos como enormes grãos de café.
– Vamos!…
A traquitana continua a se afundar morro abaixo, agora uma ladeira mais
calma, com as juntas da frente apressadas, as ferragens tinindo e toda a
apeiragem fazendo balbúrdia, nas chapas e nos ganchos.
Mal o caminho se deita, Canindé solta uma interjeição bovina pouco
amável: sim de orelhas, sopro frouxo e três oitavos de mugido; e Realejo faz
qualquer monossílabo, com ironia também soprosa, de ventas dilatadas,
contraídas as falsas-ventas. Mas, lá na guia, obliquando a carantonha, comenta
Buscapé:
As coisas corriam lisas, como um córrego… Passavam as touceiras do
bengo, ligeiras… Passavam as moitas, subindo o morro… Corria o capim-angola,
ainda em mais correnteza… Eu estou com fome. Não gosto de puxar o carro… Queria
ficar pastando na malhada, sozinho… Sem os homens.
– Eu acho que nós, bois, – Dançador diz, com baba – assim como os
cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, começo e
fim. O homem, não: o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas,
crescer, mudar de forma e de jeito… O homem tem partes mágicas… São as mãos… Eu
sei…
Mas já Brilhante endureceu as orelhas, soslaiando Dançador:
… “Chegou um dia, nós reparamos que já estava trecho demais sem chover.
Tempo e tempo. Coisa como nunca em antes tinha sido. Quase que nem capim seco
não tinha mais, e a gente comia gravetos, casca de árvores, e desenterrava raiz
funda, p’ra pastar. Foi ruim…
“Então, os homens vieram, e chamaram todos os bois p’ra fora do pasto
rapado, e foram levando a gente p’ra longe. Muitos dias, muito longe. Depois,
chegamos… E puseram os bois nós todos num pasto diferente, desigual de todos os
pastos, e que era todo num morro frio, serra a-pique, sem capim conhecido de
nenhum de nós… Aí a gente pegou a comer, quase sem levantar as cabeças… Mas, o
boi Rodapião…”
Lés a lés, de mato para mato, cruzou uma borboleta grande, uma panã-panã
de céu e brilho, que, a cada vez redonda de abrir asas, parecia tornar a se
recortar e desdobrar de um papel azul.
… “– O bebedouro fica longe, – disse o boi Rodapião. – Cansa muito ir
até lá, p’ra beber… Vou pensar um jeito qualquer, mais fácil… Pensando, eu
acho…
“Aí, nós nem respondemos. Aquilo era mesmo do boi Rodapião. Porque eu
não tinha precisado de pensar, p’ra achar onde era que estava o bebedouro, lá
em baixo, mais longe.”
– Brilhante, vaca diabo!…
Lá vem seu Soronho, que nem um demônio, pernas e pernas, caminhando nas
tiradeiras esticadas, pulando entremeio às juntas, e achando jeito para meter o
aguilhão na cruz espessa de Realejo e na cernelha pontuda de Dançador.
Tiãozinho baixa a cabeça, e aperta a vara na mão, com mais força. O
raio!… Bem que ele podia cair… Mas não cai. Agenor Soronho, na sua terra, é o
melhor carreiro do mundo. Pisando nos paus e correntes, vai de cambão em
cambão, como um imenso macaco; chega até cá na guia, para fazer colo, e então
salta no chão, que nem um artista decirco-de-cavalinhos, mas zangando com
Tiãozinho e caçoando dos bois.
– O que tu ‘tá tretando aí, não me fala!…
Agora é preciso cuidado e lentidão de passo, pois a estrada tora entre
despenhadeiro e barranco. – Õa, boizinho, ôa! – avisou já Tiãozinho, olhando
para cada um deles, assustado, quase que pedindo para passarem com modos,
pelo-amor-de-deus: Buscapé, Namorado; Capitão, Brabagato. E Brilhante:
… “Mas boi Rodapião foi espiando tudo, sério, e falando: – Em todo lugar
onde tem árvores juntas, mato comprido, tem água. Lá, lá em-riba, quase no topo
do morro, estou vendo árvores, um comprido de mato. Naquele ponto tem água! – E
ficou todo imponente, e falou grosso: – Vou pastar é lá, onde tem aguada perto
do capim, na grota fresca!…
“Eu também olhei p’r’a ladeira, mas não precisei nem de pensar, p’ra
saber que, dali de onde eu estava, tudo era lugar aonde boi não ir. Mas boi
Rodapião falou como o homem: – Eu já sei que posso ir por lá, sem medo nenhum:
a terra desses barrancos é dura, porque em ladeira assim parede, no tempo das
águas, correu muita enxurrada, que levou a terra mole toda… Não tem perigo, o
caminho é feio, mas é firme. Lá vou…
“Eu não disse nada, porque o sol estava esquentando demais. E boi
Rodapião foi trepando degrau no barranco: deu uma andada e ficou grande;
caminhou mais, ficou maior. Depois, foi subindo, e começou a ficar pequeno, já
indo por lá, bem longe de mim…”
– E daí? E foi?
“Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira
feia e chão solto… Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se
levantar mais do lugar das suas costas…”
– E foi?
“Ajudar eu não podia e nem ninguém… Chamei os outros, que não vinham e
não estavam de se ver… Aí, olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando… E então
espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando desses urubus,
uns e muitos… E fui-m’embora, por não gostar de tantos bichos pretos, que
ficaram rodeando aquele boi Rodapião.”
– E nunca se soube se tinha água no alto do morro, então?
“Contei minha história, agora vou cochilar… Sei não.”
Mas, agora, está ali defronte um carro quebrado, e as juntas de bois,
folgando em ordem, mais no alto, na escarpa.
– Ôi Tiãozinho, vamos devagar e para aí mais adiante. É o carro da
Estiva, com o João Bala carreando… Eli, espandongado… Diabo! Despencou
morro-abaixo, vamos ver só o que foi… A modo e coisa que… ‘Tá’í! O que é que
adianta esse gosto bobo de ter todos os bois laranjos, de uma cor só?… Ah, esta
subidinha ladeira do Morro-do-Sabão não é brinquedo cujo p’ra qualquer um não!…
Eu sempre falo: p’ra carrear fazendo zoeira, e dando ferroadas, e gritando,
todo-o-mundo é fácil… Mas não tem muita gente capaz de saber falar o gado
direito, nem determinar o coice na descida, nem espertar a guia e zelar a
contra-guia na subida, nem fazer um colo bem feito, nem repartir o movimento
com lição…
– Ôa, Dançador!… Ôa… Espera aí, Tiãozinho, que eu vou lá ver o Bala, que
está com cara de cachorro que quebrou panela, todo amontado no sem-jeito…
Mal que prosa de carreiro é coisa de si por si engraçada, pois estão
sempre arrumando a voz, por traquejo de fazer a fala, e só no sestro de esticar
olho para os dois lados da frente, que nem vigiando seus bois; mas, desta vez,
Agenor Soronho está olhando mesmo de-propósito, todo de-luxo com os estragos do
carro do outro:
– Oh, seu João Bala!… Que pouca sorte da nenhuma foi isso por aí com o
senhor?…
– O que foi, foi o que o senhor está vendo, seu Angenor!…
– Chí-i!… Partiu a cheda, o cabeçalho, no encontro… Ví-i!… O chazeiro do
outro lado não teve nada, mas rachou o tabuleiro também … Vai ser um despesão,
muito mais do que uns seiscentos e cinquenta mil-réis ou o dobro, só p’ra poder
mandar consertar uma má metade dos estragos… E tinha muita coisa dentro?
– Só tinha, graças-a-deus, aqueles dois pipotes de cachaça, porque eu ia
era buscar a família do patrão no arraial…
– Vigia só como é que espatifou tudo! São coisas que acontecem com
qualquer um de nós; nenhum carreiro mestre, com certeza de mão, não está livre
disto… Inda tem cachaça ali um pouquinho, p’ra se aproveitar… Mas, como é que o
desmando se deu, seu João Bala?
– Com’é? Ora, seu Angenor, como é que havia de poder ter sido?!… O
senhor, carreiro velho, calejado, não está vendo a sola e a sovela? Não foi
vergonha nenhuma p’ra mim. A gente aí vinha subindo o morro… Tudo ia indo
direito. Eu estava dentro do carro, mesmando… Mas, de repente, quando eu vi,
foi a coisada toda desandando morro abaixo: primeiro, foi um estralo… E eu vi
que tinha rebentado o rabo da tiradeira do contra-coice…
– Ô diabo!
– Ficou feio, seu Soronho! Ficou feio. Deus e demo, que o carro
descambava p’ra trás, feito doido, tinindo e arrastando a junta cio coice, que
foi a única que ficou presa, com os bois enforcados quase. Aquilo eles vinham
que vinham mesmo, ajuntando o capim nos cascos e arrastando o capim p’ra trás!…
– Credo!
– Mas, aí, quando eu vi que estava ali estava morto sem santos-óleos,
clamei o nome de Nossa Senhora, porque pular é que eu não podia pular mais…
Então, me deu um repente, e eu fiquei brabo e gritei ordens: – Segura, Camurça!
Segura, Melindre!… – Ai, meus boizinhos da minha junta do coice, boizinhos
bons, de peso e sujeição!…
– Sei deles… Bois de lei…
– Ara, se ara!… Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque
foram que me salvaram!… Só eu gritar, e eles estacando e estribando, e não
arredaram mais. Foi mesmo no lugar da ladeira a pique, ali no meio do
escorregador da descida… Sem desageração, mas era só o carro fazendo p’ o p’ra
descer, e cortando, sem licença de aluir do lugar, porque Melindre mais Camurça
sojigavam o chão com os cascos, mas não entregavam o corpo!… Eu mesmo nunca vi
bois p’ra terem tanto poder desse jeito: aquilo eles garraram a sapatear,
virando roda, e ficaram tremendo assim:
– E pois?
– Aí eu aproveitei, e torei fora… Se tivesse demorado um tiquinho mais
p’ra saltar, estava moído: porque foi só mais outro estralo, e partiram os
tamoeiros e o resto, e os bois ficaram soltos, e até garraram a subir o morro
todo, numa corrida como se tivessem ficado malucos só nessa hora, e então foi
que o carro tiniu direito, saindo p’ra banda de fora da estrada e dando de-rabo
por essas pirambeiras… Foi tudo num relance tão ligeiro, que só depois é que eu
vi que tinha visto…
… Mas, bonito, foi! Foi bonito!… O diabo espatifou lá em baixo, e as
pipas de cachaça ele tangeu p’ra longe. ‘Magina, se não fossem os meus
boizinhos abençoados!… Olha só como é que estão lá em-riba me esperando… Ei,
Camurça mais Melindre, ensinadinhos, certos de fala, bons de ouvido… Em
qualquer descida mais pior, era só eu mostrar a vara p’ra os dois, e eles, que
são bois-mestres de coice, iam sentando, e a canga jogando a junta p’ra riba!
Por mesmo que as outras relaxassem, estava tudo firme em casa…
… Agora, o material é que não prestou paga: nem um apeiro p’ra ter valia.
Só essas tiradeiras de pau, sem um palmo de corrente p’ra reforçar… Tinha de
dar no que deu! O que é que eu podia fazer, seu Angenor, de melhor?!
– Ah, pois, decerto, seu João Bala! Até, se alguém me perguntar, vou
dizer isto mesmo, p’ra todo-o-mundo… Mas, por falar nisso, olhe aqui, que eu me
vou indo, em-desde que não posso ajudar em nada, porque estou levando ali
defunto-morto p’ra se enterrar no arraial…
– Virgem!… Quem é o tal, seu Angenor?… Ah, é o pobre do seu Jenuário?!…
Pois vá com Deus, companheiro, que por ora eu não preciso’mesmo de adjutório,
porque mandei o meu guia ir buscar gente no Monjolo, que graça-a-deus não é
longe… Até, enquanto isso, eu vou ficar rezando um padre-nosso e umas três
ave-marias, por alma do pobre do falecido… A gente deve de se consolar é com
uns assim, no pior do que nós, o senhor não acha? Agora, vou ver algum resto
daquela cachacinha, só p’ra não deixar desperdiçar. O senhor não quer? Bom,
p’ra o fígado e p’ra estômago ruim, não é mesmo muito bom, não. Té outro dia,
seu Angenor!…
Agenor Soronho volta para o seu carro, abanando o corpo de sorridente.
Foi tapar a traseira.
– Bestagem!… Patranha de violeiro ruim, que põe a culpa na viola. Tião,
esperta, que eu quero mostrar p’ra esse João Bala como é que a gente sobe o Morro-do-Sabão!…
E vou em pé no cabeçalho, que é só p’ra ele ver como é que carreiro de verdade
não conhece medo, não!… Vamos, Brabagato!… Namorado!… Realejo!… Vamos!…
Vai Tiãozinho, vão os bois, vai o carro, que empina para entrar na
subida, rangendo a cantoria rezinguenta.
– Va-amos!… – As jugadas avançam, dançando as cangas nos cangotes, e
Soronho grita e se mexe, curvando e levantando o busto, com os braços abertos e
segurando com as duas mãos a vara, na horizontal: – Olha aí, Tiãozinho, tu que
é também um guia brioso, conversa por mim com esses bois!… Vamos bonito,
Dançador! Brabagato, boi meu!…
– Ôô-a!…
A subida brava acabou, com fadiga para todos e glória para Agenor
Soronho.
– Uf! Pfú… – sopra Brilhante.
– Muh! Muung!… – tuge Brabagato.
– Oon! Oung!… – bufa Buscapé.
E desde que o carro acaba de virar para trás das rodas a dobra do
espigão, até alcançar a chapada de terra vermelha, são trezentos e cinquenta
metros de silêncio, antes de Dançador voltar a cara, espiando, e de Capitão
perguntar:
– Que é que está fazendo o carro?
– O carro vem andando, sempre atrás de nós.
– Onde está o homem-do-pau-comprido?
– O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta está trepado no
chifre do carro…
– E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois?
– O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar… Ele
está babando água dos olhos…
Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, com o facão alto
e escorregoso, no meio, separando as regueiras feitas pelas enxurradas e pelas
rodeiras de outros carros e carretões. Os bois avançam de sobremão. Calados. Só
tilinta o cincerro, quando Brabagato cabeceia. Aí, de coice a guia, por via
cruzada, vem outra informação:
– O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro… O
pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormindo… Por isso é que ele
parou de picar a gente.
Pela mesma rota – Namorado a Capitão, Brabagato a Dançador, Brilhante a
Realejo – viaja a conversa dos bois dianteiros:
– O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele também está
dormindo. Dorme caminhando, como nós sabemos fazer. Daqui a pouco ele vai
deixar cair o seu pau-comprido, que nem um pedaço quebrado de canga… Já babou
muita água dos olhos… Muita…
Os guardas do cabeçalho devolvem a fala:
– O homem está escorregando do chifre-do-carro!… Vai muito pouco de cada
vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do
chifre-do-carro… Se ele cair, morre…
Outra vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é
transmitida a visão da guia:
– O bezerro-de-homem quase cai nos buracos… Ele está mesmo dormindo…
Daqui a pouco, ele cai… Se ele cair, morre…
Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão só uma pequena
porção dele vigie, talvez. O resto flutua em lugares estranhos. Em outra parte…
E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre e leve… Não
sente mais raiva… O dia desesquentou, refrescou, mesmo.
– Mmuh… – Boi Canindé sacudiu o perigalho, e engrolou: – Que é o que
está dizendo o boi Dançador?
– Que nós, os bois-de-carro, temos de obedecer ao homem, às vezes…
– O homem não sabe.
– O bezerro-de-homem não sabe… O nosso pensamento de bois é grande e
quieto… Tem o céu e o canto do carro… O homem caminha por fora. No nosso
mato-escuro não há dentro e nem fora…
– É como o dia e a noite… O dia é barulhento, apressado… A noite é
enorme…
– O bezerro-de-homem sabe mais, às vezes… Ele vive muito perto de nós, e
ainda é bezerro… Tem horas em que ele fica ainda mais perto de nós… Quando está
meio dormindo, pensa quase como nós bois… Ele está lá adiante, e de repente vem
até aqui… Se encosta em nós, no escuro… No mato-escuro-de-todos-os-bois… Tenho
medo de que ele entenda a nossa conversa…
– É como o dia e a noite… A noite é enorme.
– Olha! Escuta!… Escuta, boi Brabagato; escuta, boi Dançador!
– Que foi? Que há, boi Buscapé?
– É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é que está dizendo o boi
Capitão?!
– Mhú! Hmoung!… Boi… Bezerro-de-homem… Mas, eu sou o boi Capitão!…
Moung!… Não há nenhum boi Capitão… Mas, todos os bois… Não há bezerro-de-homem!…
Todos… Tudo… Tudo é enorme… Eu sou enorme!… Sou grande e forte… Mais do que seu
Agenor Soronho!… Posso vingar meu pai… Meu pai era bom. Ele está morto dentro
do carro… Seu Agenor Soronho é o diabo grande… Bate em todos os meninos do
mundo… Mas eu sou enorme… Hmou! Hung!… Mas, não há Tiãozinho! Sou
aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas!… Não, não, sou o
bezerro-de-homem!… Sou maior do que todos os bois e homens juntos.
– Mû-úh… Mû-ûh!… Sim, sou forte… Somos fortes… Não há bois… Tudo… Todos…
A noite é enorme… Não há bois-de-carro… Não há mais nenhum boi Namorado…
– Boi Brabagato, boi Brabagato! … Escuta o que os outros bois estão
falando. Estão doidos?!…
– Bhúh!… Não me chamem, não sou mais… Não existe boi Brabagato!… Tudo é
forte. Grande e forte… Escuro, enorme e brilhante… Escuro-brilhante… Posso mais
do que seu Agenor Soronho!…
– Que estão falando, todos? Estão loucos?!… Eu sou o boi Dançador… Boi
Dançador… Mas, não há nenhum boi Dançador!… Não há
o-que-tem-cabeça-grande-e-murundu-nas-costas… Sou mais forte do que todos… Não
há bois, não há homem… Somos fortes… Sou muito forte… Posso bater para todos os
lados… Bato no seu Agenor Soronho!… Bato no seu Soronho, de cabresto, de vara
de marmelo, de pau… Até tirar sangue… E ainda fico mais forte… Sou Tião…
Tiãozinho!… Matei seu Agenor Soronho… Torno a matar!… Está morto esse carreiro
do diabo!… Morto matado… Picado… Não pode entrar mais na nossa cafua. Não
deixo!… Sou Tiãozinho… Se ele quiser embocar, mato outra vez… Mil vezes!… Se a
minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não deixo… Ralho com a minha
mãe… Ela só pode chorar é pela morte do meu pai… Tem de cuspir no seu Soronho
morto… Tem de ajoelhar e rezar o terço comigo, por alma do meu pai… Quem manda
agora na nossa cafua sou eu… Eu, Tiãozinho!… Sou grande, sou dono de muitas
terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas… Ninguém pode mais nem
falar no nome do seu Soronho… Não deixo!… Sou o mais forte de todos… Ninguém
pode mandar em mim!… Tiãozão… Tiãozão!… Oung… Hmong… Mûh!…
Tranco… tranco… Bate o carro, em traquetreio e solavanco. Mas, no
caminho escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados, Tiãozinho não cai
nem escorrega, porque não está de-todo adormecido nem de-todo vigilante. Dormir
é com o Seu Soronho, escanchado beato, logo atrás do pigarro.
De lá do coice, voz nasal, cavernosa, rosna Realejo. E todos falam.
– Se o carro desse um abalo maior…
– Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo…
– O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.
– Ele está na beirada…
– Está cai-não-cai, na beiradinha…
– Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de
correr, sem pensar, de supetão…
– E o homem cairia…
– Daqui a pouco… Daqui a pouco…
– Cairia… Cairia…
– Agora! Agora!
– Mûung! Mûng!
– … rolaria para o chão.
– Namorado, vamos!!!… – Tiãozinho deu um grito e um salto para o lado, e
a vara assobiou no ar… E os oito bois das quatro juntas se jogaram para diante,
de uma vez… E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado, com um guincho
do cocão.
– Virgem, minha Nossa Senhora!… Ôa, ôa, boi!… Ôa, meu Deus do céu!…
Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda esquerda lhe colhera mesmo o
pescoço, e a algazarra não deixou que se ouvisse xingo ou praga – assim não se
pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de desencarnar. Tanto
mais que, do cabeçalho ao chão, a distância é pequena; e uma rodeira de carro,
bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos,
pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de
madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão…
– Mô-oung!… Que é que estão falando os bois de trás?
– Que tudo o que se ajunta espalha…
– Que tudo o que se ajunta espalha.
– Mû-û? … Que é que estão dizendo os bois da guia?
– Nenhum não sabe.
Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido. Tiãozinho. – “Meu Deus!
Como é que foi isto?!… Minha Nossa Senhora!…” – Sentado na beira dum buraco.
Com os pés dentro do buraco. – “Eu tive a culpa… Mas eu estava meio cochilando…
Sonhei… Sonhei e gritei… Nem sei o que foi que me assustou…” – Com os bois
olhando. Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz. E sem atinar
com o que fazer. – “Minha Virgem Santíssima que me perdoe!… Meus boizinhos
bonitos que me perdoem!… Coitado do seu Agenor! Quem sabe se ele ainda pode
estar vivo?!…” – Fazer promessa. Todos os santos. Rezar depressa. E gente
chegando. Os dois cavaleiros. – Sossega, meu filho! Nem um gole d’água, p’ra
dar a este menino. Sem água para a goela seca. Ajuda aqui, Nhô Alcides! Goela seca.
Tremor. Já é de-tardinha. Desentala o corpo!… Quase degolado, o pobre do
carreiro. Não quero ver. Chorando outra vez. – “Coitado do seu Agenor!… Era
brabo, mas não era mesmo mau-de-todo, não… Tinha coração bom… Mas, não foi por
meu querer… Juro, meu Nosso Senhor!…” – Com jeito, seu Quirino! Credo, Nhô
Alcides, já tinha outro defunto aqui dentro!… Meu pai. Não tem culpa. Tristeza.
Frio. O sol foi-s’embora. Mas é preciso ajudar. Estou bem, não tive nada.
Negócio urgente de Nhô Alcides. Seu Quirino carreia. A cavalo mesmo. Os bois
querem caminhar. – “Vamos, Buscapé! Namorado, va-amos!…
E logo agora, que a irara Risoleta se lembrou de que tem um sério
encontro marcado, duas horas e duas léguas para trás, é que o caminho melhorou.
Tiãozinho – nunca houve melhor menino candieiro – vai em corridinha, maneiro,
porque os bois, com a fresca, aceleram. E talvez dois defuntos deem mais para a
viagem, pois até o carro está contente – renhein… nhein… – e abre a goela do
chumaço, numa toada triunfal.
[1946]
(In: Sagarana (Contos). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.)
***
O
alienista
Machado
de Assis
Sumário
CAPÍTULO
I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES
CAPÍTULO
II – TORRENTES DE LOUCOS
CAPÍTULO
III - DEUS SABE O QUE FAZ
CAPÍTULO
IV - UMA TEORIA NOVA
CAPÍTULO
V - O TERROR
CAPÍTULO
VI - A REBELIÃO
CAPÍTULO
VII - O INESPERADO
CAPÍTULO
VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO
CAPÍTULO
IX - DOIS LINDOS CASOS
CAPÍTULO
X - RESTAURAÇÃO
CAPÍTULO
XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ
CAPÍTULO
XII - O FINAL DO § 4º.
CAPÍTULO
XIII - PLUS ULTRA!
CAPÍTULO
I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES
As crônicas da vila de
Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra
e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em
Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo
el-rei alcançar dele que ficasse em
Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da
monarquia.
— A ciência, disse ele
a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em
Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as
curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta
anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco
anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele,
caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante
escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia
condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade,
dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para
dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes.
Se além dessas prendas – únicas dignas da preocupação de um sábio –, D. Evarista
era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto
não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação
exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às
esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole
natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois
quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria,
releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou
consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher
um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a
bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua
resistência – explicável, mas inqualificável –, devemos a total extinção da
dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o
inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no
estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou
especialmente a atenção – o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral.
Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante
matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a
ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros
imarcescíveis” – expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era
modesto, segundo convém aos sabedores.
—
A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna
do médico.
— Do verdadeiro médico,
emendou Crispim Soares, boticário da
vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí,
entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer
caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova,
na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha
defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão
Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara
para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de
Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe
daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a
curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que
dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter
os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de
demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido
dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom,
vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são
precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada.
Quem é que viu agora meter todos
os doidos dentro
da mesma casa?
Enganava-se o digno
magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha
cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os
hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara
veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que
não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no
frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo,
atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que
o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice
eminente.
A Casa Verde foi o nome
dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira
vez apareciam verdes em
Itaguaí. Inaugurou-se com
imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até
remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às
cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os
parentes tiveram ocasião de ver o
carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados.
D. Evarista, contentíssima com a glória
do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi
uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la
duas e três vezes, apesar dos costumes
caseiros e recatados do século, e não só
a cortejavam como a louvavam; porquanto – e este fato é um documento altamente
honroso para a sociedade do tempo –, porquanto viam nela a feliz esposa de um
alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham
inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.
CAPÍTULO
II – TORRENTES DE LOUCOS
Três dias depois, numa
expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o
mistério do seu coração.
— A caridade, Sr.
Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal
das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: “Se
eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. O
principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os
seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do
fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com
isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo,
continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas
as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram
mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao
cabo de quatro meses, a Casa Verde
era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma
galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara
a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns
casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do
almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos,
de antíteses, de apóstrofes,
com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e
Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira,
três meses antes, jogando peteca na rua!
— Não digo que não,
respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é
todos os dias.
— Quanto a mim, tornou
o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel,
segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as
línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão
não trabalhe...
— Essa pode ser, com
efeito, a explicação divina do
fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é
impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso
trato...
—
Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos
por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio.
O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se
estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa
feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha
saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das
salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um
desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a
fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas
depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado
estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim
do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas
tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe,
que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um
ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a
púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês
engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na
testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
—
Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie
era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de
Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças
a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro,
e não acabava mais. Não falo dos casos
de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de
Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o
adorasse, e as penas do inferno
aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque
imaginava que no dia
em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do
céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no
papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a
paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias
hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou
por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário
Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução
de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da
roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para
somente cuidar do seu ofício. —A Casa Verde, disse ele ao vigário,
é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e
o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado – e acrescentava –,
com o único fim de dizer também uma chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao
papa.
Uma vez desonerado da
administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus
enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes
principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses,
monomanias, delírios, alucinações diversas.
Isto feito, começou um
estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de
acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências;
inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação
mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie,
antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado
corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante,
um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as
substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os
que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de
sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho
levava-lhe o melhor e o mais
do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse,
porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas
vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
CAPÍTULO
III - DEUS SABE O QUE FAZ
Ilustre dama, no fim de
dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia,
ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava
fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e
senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como
lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada;
depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva
como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que
meia dúzia de lunáticos...
Não acabou a frase; ou
antes, acabou-a levantando os olhos ao teto – os olhos, que eram a sua feição
mais insinuante –, negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da
aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão
Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu
aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo
menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o
alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou
sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal,
duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte
quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por
entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:
— Consinto que vás dar
um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu
faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que
posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma
coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho
do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela
povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os
ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar
os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de
semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu – um sorriso
tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este
pensamento:
— “Não há remédio certo
para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo;
doulhe o Rio de Janeiro, e consola-se”. E porque era homem estudioso tomou nota
da observação.
Mas um dardo atravessou
o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido
que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha
pelas estradas.
—Irá com sua tia,
redarguiu o alienista.
Note-se que D. Evarista
tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro
lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque
era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro
que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.
— Que importa? Temos
ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres
ver?
E levou-a aos livros.
D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois
levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil
cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto
ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao
ouvido com a mais pérfida das alusões:
—Quem diria que meia dúzia
de lunáticos...
D. Evarista
compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:
— Deus sabe o que faz!
Três meses depois
efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho
deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura
achava-se em Itaguaí cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva
que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram
tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D.
Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de
ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa
o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto
e policial, não era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia
achar-se ali misturado com a gente de juízo.
— Adeus! soluçaram
enfim as damas e o boticário.
E partiu a comitiva.
Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da
besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo
horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem
vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e
saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.
CAPÍTULO
IV - UMA TEORIA NOVA
Ao passo que D.
Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava
por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases
da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco
para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil
assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.
Um dia de manhã – eram
passadas três semanas –, estando Crispim Soares ocupado em temperar um
medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
—Trata-se de negócio
importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu.
Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente
da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem
nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram
separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que
os fâmulos lhe ouviam muita vez: —“Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador,
torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda,
aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não
é? aí tens o lucro, biltre!”—E muitos outros nomes feios, que um homem não deve
dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é
um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa
Verde.
Simão Bacamarte
recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de
circunspeção até o pescoço.
— Estou muito contente,
disse ele.
— Notícias do nosso
povo? perguntou o boticário com a voz trêmula. O alienista fez um gesto
magnífico, e respondeu:
—Trata-se de coisa mais
alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo
a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares,
senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência
que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até
agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se,
para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No
conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e
desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os
exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu
o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim,
apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um
demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala,
Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura
vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se
admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma
coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr.
Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso, muito
gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto à ideia de
ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a
modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra
coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e
acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressão não tem equivalente no
estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e
povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar
uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara,
e da matriz; – ou por meio de matraca.
Eis em que consistia
este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar às
ruas do povoado, com uma matraca na mão.
De quando em quando
tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam – um remédio
para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a
melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes
para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que
possuía. Por exemplo, um dos vereadores a – aquele justamente que mais se opusera
à criação da Casa Verde – desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras
e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado
de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas
pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação
perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade,
verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso
século.
— Há melhor do que
anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.
E o boticário, não
divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor
começar pela execução.
— Sempre haverá tempo
de a dar à matraca, concluiu ele. Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e
disse:
— Suponho o espírito
humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a
pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os
limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as
faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
O Vigário Lopes a quem
ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que
era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não
merecia princípio de execução.
— Com a definição
atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente
delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a
cerca?
Sobre o lábio fino e
discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o
desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias
entranhas.
A ciência contentou-se em estender a mão à teologia – com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.
CAPÍTULO
V - O TERROR
Quatro dias depois, a
população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido
à Casa Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi
recolhido hoje de manhã.
— Mas, na verdade, ele
não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...
Costa era um dos
cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda
de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio
no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança,
como entrou a dividi-la em empréstimos, sem *usura, mil cruzados a um, dois mil
a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos,
estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria
enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da
abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente.
Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele
assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe
piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se
lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente
os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava
com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores
lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado,
com certa perfídia: — “Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga”. Costa
não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida. — “Não admira,
retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu”. Costa
era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato,
atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira.
Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar
que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de
empréstimo ao devedor.
—Agora
espero que... – pensou ele sem concluir a frase.
Esse último
rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os
sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais
acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos,
com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o
conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este
pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois
dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa
emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de
ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a
consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa,
dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e
contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis –ou mansos, e
até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o
pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e
perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista.
Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava
que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A
última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém
mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do
Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava
no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara
os cabedais que...
— Isso, não! isso, não!
interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que
recebeu, a culpa não é dele.
— Não?
— Não, senhor. Eu lhe
digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando
estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia,
pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine
como ficou.
A cara era um pimentão;
todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem
feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio
(Deus lhe fale n’alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem
olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga: —“Todo o seu
dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o
sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor;
foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na
pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe
a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a
a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a
na galeria dos alucinados.
A notícia desta
aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém
queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na
Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o
de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros;
edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira
à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a
vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele
levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente
a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras
coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia
jurar.
— Você, que é íntimo
dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...
Crispim Soares
derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos
atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação
sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o
colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo
isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio,
porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito,
soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios
científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma
pessoa humana.
— Há coisa, pensavam os
mais desconfiados.
Um desses limitou-se a
pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir
uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas
havia mais – a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo
contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas –
e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera
no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim
pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na
contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa
Verde, mais nobre do que a da Câmara. Entre a gente ilustre da povoação havia
choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa
do albardeiro – um simples albardeiro, Deus do céu!
— Lá está ele embasbacado,
diziam os transeuntes, de manhã.
De manhã, com efeito,
era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado,
durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,
embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um
gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e
estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama
ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
— Agora lá está o
Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro
dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo)
usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo
escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas
até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser
admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao
boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a
alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez
padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava
desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa...
— Não, senhor, acudiu
vivamente Crispim Soares.
— Não?
— Há de perdoar-me, mas
talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são
os outros que o admiram a ele e à obra. —E contou o uso do albardeiro, todas as
tardes, desde cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica
alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro,
ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia
incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias
próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar
uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o
braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava a
seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim,
que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as
mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer
que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele.
Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da
casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante,
devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus,
apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de
Itaguaí; redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste,
não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
— A Casa Verde é um
cárcere privado, disse um médico sem clínica.
Nunca uma opinião pegou
e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul
e de leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante a semana que
se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas – duas ou três de
consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram
admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se
as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania
do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em
Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,
com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam
nada, tal era o produto diário da imaginação pública.
Nisto chegou do Rio de
Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais
comitiva – ou quase toda – que algumas semanas antes partira de Itaguaí. O
alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários
outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do
marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da
história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas
extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito – balbuciou uma palavra e
atirou-se ao consorte –, de um gesto que não se pode melhor definir do que
comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio
como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu
os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois
minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em
marcha.
D. Evarista era a
esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde.
Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as
flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes – porque o eminente
confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo – D. Evarista
voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava
do Rio de Janeiro, que ele não via desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista
respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O
Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua
das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram
mesmo marrecas – feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima.
O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais
bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, demais,
sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas
casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...
— A propósito de Casa
Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a
senhora vem achá-la muito cheia de gente.
— Sim?
— É verdade. Lá está o
Mateus...
— O albardeiro?
— O albardeiro; está o
Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
— Tudo isso doido?
— Ou quase doido,
obtemperou padre.
— Mas então?
O vigário derreou os
cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo;
resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D.
Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um
ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio,
não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.
— Sem dúvida... sem
dúvida... ia pontuando o vigário.
Três horas depois cerca
de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o
jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes,
discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era
a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade,
vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de
Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas
coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao
ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista
fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando
três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um
dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos,
pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em
que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus”,
disse ele, “depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola
da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a
outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista”.
D. Evarista baixou os
olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e
audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do
alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue.
O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus
que removesse qualquer episódio trágico – ou que o adiasse ao menos para o dia
seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir
consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava
de ser atraente ou bonita. Uma simples água morna. Verdade é que, se todos os
gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta ideia fê-la tremer outra vez,
embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e,
levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que
era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a ideia
relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor
que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe
adequada a um arroubo oratório. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do
que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode
à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o “dragão
aspérrimo do Nada” esmagado pelas “garras vingadoras do Todo”; e assim outras
mais ou menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens
grandes e nobres...
— Pobre moço! pensou o
alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno
sem gravidade, mas digno de estudo...
D. Evarista ficou
estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na
Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o
ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração
do moço fora audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como
explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme,
pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício
e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem
estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma
lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam
fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um
desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de
trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava
alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância
de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às
vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação
das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes
pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante
de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que,
uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele,
tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber
estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de
olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à
Casa Verde.
— Devemos acabar com
isto!
— Não pode continuar!
— Abaixo a tirania!
— Déspota! violento!
Golias!
Não eram gritos na
rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror
crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo, para que
Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes
que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação.
Note-se – e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história – note-se
que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão
extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de
sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve
ceder ao interesse público. E acrescentava: — é preciso derrubar o tirano!
Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte
fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.
— Não me dirão em que
é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio. E ninguém lhe respondia; todos repetiam
que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro,
acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da
cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que
tinha eram alguns sujeitos que dizendo-se taciturnos ou alegando andar com
pressa mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na
verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos,
e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras,
mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e era
inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse
este trecho:
La bocca sollevò dal
fiero pasto Quel
“seccatore”...
mas uns sabiam do ódio do padre,
e outros pensavam que isto era uma oração em latim.
CAPÍTULO
VI - A REBELIÃO
Cerca de trinta
pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.
A Câmara recusou
aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a
ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por
movimentos de rua.
—Voltai ao trabalho,
concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos
agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da
rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de
cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis
e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos
da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do
espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram tratados de
graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...
— É falso!
interrompeu o presidente.
— Falso?
— Há cerca de duas
semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando
de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado
pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato
tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o
alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o
instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que
arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro,
depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um
mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa
Verde – “essa Bastilha da razão humana” – expressão que ouvira a um poeta local
e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele.
Imagine-se a situação
dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue.
Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora
a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde – “Bastilha da razão humana” – achou-a
tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar
alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado,
manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:
— Nada tenho que ver com a
ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem
nos afirma que o alienado não é o alienista?
Sebastião Freitas, o vereador
dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência
mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao
menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias
na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de
átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas
prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios
legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado: — Bastilha da razão
humana!
Entretanto a arruaça crescia. Já
não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha
familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o
Canjica – e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A
ação podia ser restrita – visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de
educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e
os trezentos que caminhavam para a Casa Verde – dada a diferença de Paris a
Itaguaí – podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.
D. Evarista teve notícia da
rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa
ocasião um vestido de seda – um dos trinta e sete que trouxera do Rio de
Janeiro – e não quis crer.
— Há de ser alguma patuscada,
dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama
de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora;
eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque
assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita,
olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A
risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para
ficar igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra
o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua
Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de
sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror
petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao
moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante
de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a
realidade vinha jurar por ele.
— Morra o alienista!
bradavam as vozes mais perto.
D. Evarista, se não
resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de
perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela
ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os
olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto
ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos
mentais.
D. Evarista chamou
pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e
perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
— Você não ouve estes gritos?
perguntou a digna esposa em lágrimas. O alienista atendeu então; os gritos
aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da
cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e
tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse
um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir
esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se
recolhesse, que não fizesse nada.
— Não, não, implorava a digna
senhora, quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não,
que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida,
que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.
— Abaixo a Casa Verde! bradavam
os Canjicas.
O alienista caminhou para a
varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e
parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias
de desespero. — Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do
alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar;
os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro,
agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os
amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse
da paciência do povo como fizera até então.
— Direi pouco, ou até não direi
nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.
— Não pedimos nada, replicou
fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos
despojada dos infelizes que lá estão.
— Não entendo.
— Entendeis bem, tirano; queremos
dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso
desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma
contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é
coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de
alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a
administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me
negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em
comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque
seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.
Disse isto o alienista e a
multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha
serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a
multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro.
O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à
demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse
momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo;
pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do
alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e
constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o
seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado
por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou
nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez
a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor
dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação
e quis bradar-lhes: — Canalhas! covardes! – mas conteve-se e rompeu deste modo:
Meus amigos, lutemos até o fim! A
salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o
cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e
amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra
daquele indigno.
E a multidão agitou-se, murmurou,
bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que
tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.
— Vamos! bradou Porfírio,
agitando o chapéu.
— Vamos! repetiram todos.
Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.
CAPÍTULO
VII - O INESPERADO
Chegados os dragões
em frente aos Canjicas houve um
instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse
mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam,
o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela
estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja
resposta consistiu nestes termos alevantados:
— Não nos
dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os
cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e
com eles a salvação de Itaguaí.
Nada mais imprudente
do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes
crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por
parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar
sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa;
alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram
escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela
exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço
dos dragões – qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram – passou
subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos
Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os
soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a
um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto
das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente
contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio,
declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.
A revolução
triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e
guiou para a Câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao
vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão
destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais
comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de
governo começava a enrijar-lhe os quadris.
Os vereadores, às
janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão,
e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse
dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o
tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Esta frase foi proposta por Sebastião
Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os
colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras
aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O
presidente não desanimou: — Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos
que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo. — Sebastião insinuou que
melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar
com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o
barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança,
intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali
para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o
governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora
não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não
podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram.
O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo
ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de – “Protetor da vila
em nome de Sua Majestade, e do povo”. Expediram-se
logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma
exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens
de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:
“Itaguaienses!
Uma Câmara corrupta e
violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública
tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos
dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime
consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se
sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! Não vos
peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a
fazenda pública, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai
com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O Protetor da vila em
nome de Sua
Majestade e do povo
Porfírio Caetano das
Neves”.
Toda a gente advertiu
no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns,
não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo
era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista
metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e
sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato
intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a
esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído
o terrível cárcere.
O dia acabou
alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação,
o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio.
Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O
barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou
negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era
aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre
Lopes recusou abertamente o seu concurso.
— Em todo caso, Vossa
Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro,
dando à fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o Padre Lopes
respondeu, sem responder:
— Como alistar-me, se
o novo governo não tem inimigos?
O barbeiro sorriu;
era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila,
toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham
saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No
geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da
Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.
CAPÍTULO
VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO
Vinte e quatro horas
depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio
do governo – foi a denominação dada à casa da Câmara – com dois
ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava
ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o
alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror
do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. —Vai
prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura
moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição
possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: – a privança do alienista
chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a
simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele
sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o
golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia
que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe
bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por
ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão, é verdade, sed victa Catoni,
pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão
não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da
república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha
situação é outra.
Insistindo, porém, a
mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer;
declarou-se doente e meteu-se na cama.
— Lá vai o Porfírio à
casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama;
vai acompanhado de gente.
— Vai prendê-lo,
pensou o boticário.
Uma ideia traz outra;
o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a
ele na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim
Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os
esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são
unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao
lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita
perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou
resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando,
mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus
protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia
com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração,
sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a
importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe
que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio
importante, mas não tardava.
Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.
CAPÍTULO
IX - DOIS LINDOS CASOS
Não se demorou o
alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir,
e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não
constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde.
— Engana-se Vossa
Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo
intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos
doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a
questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as
questões científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a
aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto – por força que há de
haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.
O alienista mal podia
dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício,
a prisão dele, o desterro, tudo, menos...
— O pasmo de Vossa Senhoria,
atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do
governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação,
pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade
que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação.
A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta,
pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do
governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao
menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência.
Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o
concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma
satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres
aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa
Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de
pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância
e benignidade.
— Quantos mortos e
feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou
espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco
feridos.
— Onze mortos e vinte
e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou
que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de
poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos
da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao
que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente
no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo
não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista
podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse
contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de
Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera
fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem
modéstia, mas impassível como um deus de pedra.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.
— Dois
lindos casos!
— Viva o ilustre
Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.
O alienista espiou
pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta
pessoas que o aclamavam:
— ...porque eu velo,
podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai
em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem,
meus amigos, é a base do governo...
— Viva o ilustre
Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.
— Dois lindos casos! murmurou o alienista.
CAPÍTULO
X – RESTAURAÇÃO
Dentro de cinco dias,
o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo governo.
O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro
barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava “vendido ao ouro de
Simão Bacamarte”, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais
resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da
insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um
grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro
desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o
ato de Porfírio! Era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia
crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a
difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação,
da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior,
deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se,
que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara
corrupta, falou este de “um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário
aos sacrossantos interesses de Sua Majestade”, etc.
Nisto entrou na vila
uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu
desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e
tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como
afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das
feridas apanhadas na primeira rebelião.
Este ponto da crise
de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto
quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico
achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares,
consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O
alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse
vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu
ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de
Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre
recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o
fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a
rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu,
acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou;
disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o
caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.
Mas a prova mais
evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe
entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena
sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos
de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por
boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia.
Simão Bacamarte
começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual
declarou que o presidente estava padecendo da “demência dos touros”, um gênero
que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a
princípio hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma
coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira
do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não
fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os
fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida
alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado,
ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não
poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e
as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para
a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade
mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com
lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato
de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no
dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental
ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo.
Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer
um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu
prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura
deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem
temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da
captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos
pontos mais obscuros da história de Itaguaí. A opinião mais verossímil é que
eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na
igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma
simples conjetura; de positivo, nada há.
— Onde é que este
homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado
os Canjicas...
Um dia de manhã – dia
em que a Câmara devia dar um grande baile – a vila inteira ficou abalada com a notícia
de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém
acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura.
D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao
alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.
— Já há algum tempo
que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em
ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos,
rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro.
Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses
objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos
vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me
dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e
censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se,
propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da
matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total
demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao
baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira.
Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe
ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui
achá-la calada e pensativa. — Que tem? perguntei-lhe. — Queria levar o colar de
granada, mas acho o de safira tão bonito! — Pois leve o de safira. — Ah! mas
onde fica o de granada? — Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e
deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me,
vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao
espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo.
O Padre Lopes não se
satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe
que o caso de D. Evarista era de “mania santuária”, não incurável e em todo
caso digno de estudo.
— Conto pô-la boa
dentro de seis semanas, concluiu ele.
E a abnegação do
ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças,
tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria
mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito
de resistir-lhe – menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
CAPÍTULO
XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ
E agora prepare-se o
leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos
da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
— Todos?
— Todos.
— É impossível;
alguns sim, mas todos...
— Todos. Assim o
disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara.
De fato o alienista
oficiara à Câmara expondo: a–1º: que verificara das estatísticas da vila e da
Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele
estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os
fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão
todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto;
3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de
que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se
devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como
hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse
ininterrupto; 4º que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos
reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições
agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se
pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º
que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para
alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação,
roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa
Verde.
O assombro de Itaguaí
foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos.
Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto
acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito;
mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.
CAPÍTULO
XII - O FINAL DO § 4º.
Apagaram-se as
luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos
eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma
pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O
barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo “provado tudo”, como o
poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa
Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às
calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da
vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido,
atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato
é que nasceu o nosso adágio: – ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; –
adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.
Não só findaram as
queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele
praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara
plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido
entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação
e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as
crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte,
mas a dor e perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento
de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima
ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte
que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou
muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão
de amigo velho.
— É um grande homem,
disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.
Não é preciso falar
do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados
neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos
anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente
D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico – “cujo altíssimo
gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais
espíritos da terra”.
— Agradeço as suas
palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver
restituído à liberdade.
Entretanto, a Câmara
que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria
em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada
sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas
que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque
a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de
que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser
experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo
mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem
pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso,
fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi
aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão.
O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma
experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das
consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas
palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez
do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.
— A vereança,
concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito
humano.
Simão Bacamarte
aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores,
declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa
Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do
perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador
Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às
invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo
que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada
pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista e votou
unanimemente a entrega.
Compreende-se que,
pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa
Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente.
O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a
mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte
de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às
pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito,
adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de
dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria.
Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos
minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o
respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa
Verde.
— Um caso destes é
raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares
entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao
alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso
perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita
atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso
reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar
a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor trabalhará
durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as
noites, e os domingos e dias santos.
A proposta colocou o
pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia
voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o
tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria
os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este
último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco
meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava;
ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e
quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava
às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a
verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de
fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar
minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de
uma vez esteve prestes a recolher
pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em
quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso
deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para
fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento
falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome
da pessoa em questão.
— Então
parece-lhe...?
— Sem dúvida: vá,
confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.
O homem foi ter com o
advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse
a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e
provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do
réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O
distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.
Mas nada escapa a um
espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o
zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a
habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada,
e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos
melhores cubículos.
Os alienados foram
alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem
predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos,
outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes,
outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos
bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a
licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse
a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão
Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato
de vingança pessoal.
Desenganados da
legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro
Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na
corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o
alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira
vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio
e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara
entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou
esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse
o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em
suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.
— O que é que me está
dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação
do barbeiro com os principais da vila.
Dois dias depois o
barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão!
exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
CAPÍTULO
XIII - PLUS ULTRA!
Era a vez da
terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se
ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto
todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas
pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.
Com efeito, era
difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos
por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras,
Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos
um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento
oposto; e não ia logo às doses máximas – graduava-as, conforme o estado, a
idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma
casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao
alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis
de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que
resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a
ideia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção
e de Píndaro.
— Foi um santo
remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.
Outro doente, também
modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia
assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte
lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos,
estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de
nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o
tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de
Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como
prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico
para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim
não o faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que
vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.
— Realmente, é
admirável! Dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois
ex-dementes.
Tal era o sistema.
Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição
parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em
que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra
parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma
fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.
No fim de cinco meses
e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente
afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo
felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação
corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do
alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte
na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o
Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego,
incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou
a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade.
Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e
onde aliás lhe não faltaram carinhos.
— Por que é que o
Crispim não vem visitar-me: dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora
uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona
não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera
escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:
— Tratante!...
velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos
falsificados e podres... Ah! tratante!...
Simão Bacamarte
advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas
palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim
restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu
alta.
Agora, se imaginais
que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde,
mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua
divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o
contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não
ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria
nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.
— Vejamos, pensava
ele; vejamos se chego enfim à última verdade.
Dizia isto, passeando
ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos
de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de
seda, com borlas de ouro (presente de uma universidade) envolvia o corpo
majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e
nobre calva adquirida nas cogitações cotidianas da ciência. Os pés, não delgados
e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados
por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão.
Vede a diferença: – só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica;
o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza,
virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia,
o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo,
estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia
cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo
apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou
ele a si:
— Mas deveras
estariam eles doidos, e foram curados por mim – ou o que pareceu cura não foi
mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí
abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele
acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo,
eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma
faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta
conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo,
outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes
investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar
esta verdade: – não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto.
Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou
o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um
único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo
errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina
psicológica?
A aflição do egrégio
Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas
tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só
aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos
depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
— Sim, há de ser
isso, pensou ele.
Isso é isto. Simão
Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral;
pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a
tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim
que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a
concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um
conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
— Nenhum defeito?
— Nenhum, disse em
coro a assembleia.
— Nenhum vício?
— Nada.
— Tudo perfeito?
— Tudo.
— Não, impossível,
bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de
ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me
e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembleia
insistiu; o alienista resistiu; fnalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este
conceito digno de um observador:
— Sabe a razão por
que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque
tem ainda uma qualidade que realça as outras: a modéstia.
Era decisivo. Simão
Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do
que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos
lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos
nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
— A questão é
científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou
eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.
— Simão! Simão! meu
amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.
***


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