Tuesday, January 07, 2025

Os cem contos que amei ler V (os últimos 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.

81. O Homem da Areia (E. T. A. Hoffmann)

82. O gato preto (Edgar A. Poe)

83. Sem olhos (Machado de Assis)

84. Os olhos que comiam carne (Humberto de Campos)

85. As rosas (Júlia Lopes de Almeida)

86. Onde estivestes de noite (Clarice Lispetor)

87. Crianças à venda. Tratar aqui (Rosa Amanda Strausz)

88. O horrível  conto de horror (Guy de Maupassant)

89. O encontro (Lygia Fagundes Telles)

90. O defunto (Thomaz Lopes)

91. Fechado na catacumba (H. P. Lovecraft)

92. O barril de Amontillado (Edgar A. Poe)

93. Uma amizade sincera (Clarice Lispector)

94. A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain (Marina Colasanti)

95. Família (Magali Garcindo de Sá)

96. WM (Lygia Fagundes Telles)

97. Gaetaninho (Antônio de Alcântara Machado)

98. Intestino grosso (Rubem Fonseca)

99. Conversa de bois (Guimarães Rosa)

100. O alienista (Machado de Assis)


O Homem da Areia

E. T. A. Hoffmann

 

Natanael para Lothar

Vocês devem estar bem preocupados, pois não lhes escrevo há muito tempo. Minha mãe deve estar zangada. Clara deve estar pensando que vivo num turbilhão de prazeres e que esqueci inteiramente sua figura angelical e doce, impressa de forma profunda em meu coração e em minha mente.

Mas não é nada disso. Todos os dias, a cada hora, penso em vocês e a encantadora figura de Clara aparece e torna aparecer em meus devaneios. Seus olhos límpidos sorriem para mim com tanta graça quanto antigamente, assim que eu entrava em casa. Mas como poderia lhe escrever com esta violenta perturbação de espírito que me destrói a mente?

Uma coisa horrível aconteceu comigo! Pressentimentos inquietante, terríveis, ameaçadores, passam-me pela cabeça…

Se – pelo menos – você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios olhos. Mas, tenho certeza, vai pensar que sou um louco visionário. Para ser breve: a pavorosa visão que tive, e cuja fatal influência tento em vão descartar, consiste simplesmente em ter visto – no dia 30 de outubro, ao meio-dia – um vendedor de barômetros, que entrou em meu quarto e me ofereceu seus instrumentos. Além de não ter comprado nada, ameacei jogá-lo pelas escadas abaixo, no que partiu bem depressa.

Você pode imaginar: unicamente circunstâncias muito particulares – e que me marcaram bem lá por dentro – poderiam ter feito com que esse pequeno acontecimento tenha se tornado importante. O que é verdade. Estou juntando todas as forças para lhe contar, com calma e paciência, alguns fatos da minha infância que lhe esclarecerão tudo.

Agora, ao começar a narrativa, posso ouvir você rindo e Clara dizendo:

Isto é criancice!

Pode rir, eu lhe peço. Pode debochar de mim, eu lhe peço. Mas Deus do céu!... Meus cabelos ficam de pé e tenho a impressão de que se suplico a você para debochar de mim é porque estou em crise de desespero, de loucura, igual à de Franz Moor ao suplicar a Daniel. Mas vamos aos fatos.

Fora da hora das refeições, quase não víamos papai, sempre muito ocupado com seu trabalho. Depois do jantar, servido às sete horas, à moda antiga, íamos com mamãe ao gabinete de papai e nos sentávamos em volta da mesa redonda.

Papai fumava, enquanto bebia grandes copos de cerveja. Às vezes, contava histórias maravilhosas, ficando tão distraído que o cachimbo se extinguia. Cabia a mim a tarefa de acendê-lo com um pedaço de papel, o que me divertia bastante. Outras vezes, nos dava livros ilustrados, permanecendo imóvel e silencioso em sua poltrona, soprando nuvens espessas de fumo, que nos envolviam como nevoeiro. Nestas noites, mamãe ficava muito triste e às nove horas em ponto nos dizia:

– Vamos para a cama, crianças. O Homem da Areia está chegando, posso ouvir seus passos.

Realmente, eu também escutava aquele passo lento, arrastado, subir os degraus. Era o Homem da Areia. Certa vez, o barulho me amedrontou demais e perguntei à mamãe, que nos acompanhava:

– Mamãe, quem é esse Homem da Areia que sempre nos separa do papai? Como é que ele é?

Meu querido, não existe nenhum Homem da Areia – respondeu mamãe. – Quando eu digo o Homem da Areia está chegando, quero dizer apenas que vocês estão com sono sem conseguir mais ficar com os olhos abertos, como se tivessem jogado areia em seus olhos.

A resposta não me deixou satisfeito. Pouco a pouco, minha imaginação de criança me fez acreditar que mamãe nos dizia aquilo para não ficarmos amedrontados, pois eu continuava a ouvir o Homem da Areia subindo os degraus. Cheio de curiosidade, querendo saber mais a respeito dele e do que queria conosco, crianças, perguntei por fim à velha governanta de minha irmãzinha quem era mesmo o Homem da Areia.

– Pois é, meu pequeno Natanael, então você não sabe? É um homem mau, que vem procurar as crianças que não querem ir para a cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam ensanguentados, e os apanha, os enfia numa bolsa, e os carrega para a lua para alimentar seus netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não são boazinhas.

Desde então, a imagem do Homem da Areia ficou gravada em meu espírito com cores atrozes. À noite, era só ouvir o ruído de passos e eu tremia angustiado, com pavor. Mamãe só conseguia arrancar de mim um grito, misturado ao meu choro:

– O Homem da Areia! O Homem da Areia!

Corria, me refugiando no quarto, e a terrível aparição do Homem da Areia me torturava a noite inteira. Mais tarde, quando já tinha idade para saber que a história do Homem da Areia, de seus netinhos e do ninho na lua, não era verdadeira, continuei apavorado, com horror e repugnância, cada vez que eu escutava seus passos subindo os degraus até o gabinete de papai e o bater violento da porta se fechando.

Às vezes, demorava demais para aparecer. Ou, então, suas vindas se tornavam frequentes. Isso durou muitos anos e não conseguia me habituar ao pesadelo. Nada apaga de minha cabeça a figura aterrorizante do Homem da Areia. Seu relacionamento com papai me preocupava cada vez mais e um medo obtuso me impedia de falar a seu respeito.

Com os anos, porém, germinou e cresceu dentro de mim o desejo de elucidar esse mistério, e ver o misterioso Homem da Areia.

O Homem da Areia me tinha posto na pista do maravilhoso, do fantástico, que se abrigam naturalmente no espírito das crianças. Nada me dava mais prazer do que escutar, ou ler, histórias aterrorizantes de feiticeiras, anões e doentes. Mas em primeiro lugar, vinha o Homem da Areia, que eu retratava por meio de desenhos horríveis, estranhos, nas mesas, nos armários, nos muros, com giz ou carvão.  

Quando fiz dez anos, mamãe me tirou do quarto das crianças e me cedeu um quarto pequeno, que dava para o corredor, perto do gabinete do papai.  

Tão logo soavam as nove horas, escutávamos o desconhecido chegar e tínhamos de nos recolher rapidamente. Lá de meu quarto o ouvia entrar no gabinete de papai, e, em seguida, tinha a impressão de que um vapor diáfano, com cheiro estranho, se espalhava pela casa. Minha curiosidade crescia, bem como a coragem e determinação de conhecer a qualquer preço o Homem da Areia. Jamais, deslizando de meu quarto até o corredor, após mamãe passar, conseguia pegá-lo de surpresa, pois já tinha entrado assim que eu chegava ao local de onde poderia vê-lo. Afinal, impulsionado por irresistível desejo, resolvi me esconder oportunamente no próprio gabinete de papai e aguardar o Homem da Areia.  

Certa noite, por causa da tristeza de mamãe e do mutismo de papai, percebi que o Homem da Areia deveria chegar. Finjo estar muito cansado, saio da sala antes das nove horas e me escondo no cantinho perto da porta do gabinete de papai. A porta da rua gemeu nos gonzos, passos lentos, arrastados, sonoros, atravessam o vestíbulo em direção da escada. Mamãe passa apressadamente por mim, conduzindo as crianças. Com cuidado, abro a porta do gabinete de papai. Ele estava sentado normalmente, em silêncio, com as costas voltadas para a porta e não me viu. Fui, na ponta dos pés, me esconder atrás da cortina que dissimula um guarda-roupa, colocado bem perto da porta, onde papai pendura as vestimentas.

Os passos ressoam cada vez mais próximo e escuto tosse, pigarro, estranho murmúrio. Meu coração bate com força, por causa da ansiedade e da espera. Bem perto da porta, um passo retumbante. A maçaneta gira com violência, as dobradiças rangem e a porta é aberta ruidosamente. Embora sentindo medo, ponho a cabeça de fora, com prudência. O Homem da Areia está no meio do gabinete defronte a papai, o clarão das velas ilumina seu rosto. O Homem da Areia, o terrível Homem da Areia, é o velho advogado Coppelius, que às vezes almoça conosco!

Porém a mais horrível aparição não me causaria tanto espanto quanto me causou este Coppelius. Imagine um homem grande, de espáduas largas, enorme cabeça deformada, com rosto lívido, sobrancelhas peludas e grisalhas, embaixo das quais rebrilham dois olhos verdes, arredondados como os dos gatos, o nariz gordo, grande, que tomba sobre o lábio superior. A boca torta, que se contorce mais ainda ao compor um sorriso, quando se formam duas manchas escarlates nas bochechas. Um som estranho, rangente, que sai por entre os dentes cerrados.

Coppelius vestia sempre um sobretudo cinzento, de corte antigo, paletó e culote também cinzentos, meias pretas e sapatos com fivelas de strass. Pequena peruca mal cobre seu pescoço, dois rolos postiços se elevam acima de suas enormes orelhas vermelhas, grande laço bem apertado balança perpendicularmente à sua nuca, deixando ver a fivela de prata fechar a gravata pregueada. Todo um conjunto horrível e repelente.

Mas, o que nos chocava mais, crianças, eram suas mãos nodosas, peludas, nos inibindo de comer o que tocassem. Ele tinha percebido isso e se divertia tocando com as mãos, sob qualquer pretexto, o pedaço de bolo ou a fruta madura que nossa boa mãe tivesse posto em nossos pratos. Fazia o mesmo em dias de festa, quando papai nos dava um cálice de vinho açucarado. Passava rapidamente a mão pela borda do cálice ou o conduzia até seus lábios azulados, rindo diabolicamente ao ver que ousávamos demonstrar nossa irritação por meio de contidos soluços.

Nos chamava sempre de “pequenas bestas” e nos proibia de abrir a boca em sua presença. Nós amaldiçoávamos este homem odiento, repulsivo, que estragava nosso prazer quando bem queria.

Mamãe parecia odiar tanto quanto nós o repelente Coppelius, pois, tão logo ele aparecia, sua doce alegria e maneiras suaves se transformavam em melancolia. Papai o tratava como ente superior, de quem se deve suportar as manias e a quem não se pode irritar. Bastava dizer uma palavra e seus pratos preferidos eram feitos e vinhos raros abertos em sua homenagem.

Ao ver Coppelius, me dei conta da verdade, terrível, ameaçadora: o Homem da Areia só podia ser ele! Contudo, o Homem da Areia não era mais – para mim – aquele espantalho da história da governanta, que roubava olhos de crianças para alimentar sua ninhada de corujas na lua. Não! Era um monstro fantástico, odiento, e que, por onde passava, levava a tristeza, a tormenta, a perdição neste mundo e no outro.

Eu permanecia estático, como se estivesse enfeitiçado, correndo risco de ser punido se descoberto, cabeça para fora da cortina. Papai recebeu Coppelius solenemente.

– Mãos à obra! – Coppelius berrou com voz rascante, enquanto tirava o sobretudo.

Papai, silencioso, taciturno, sacou o roupão, e os dois vestiram longas túnicas negras.  Não reparei de onde as tiraram, papai abriu um armário embutido de duas portas e descobri não ser o armário e, sim, um nicho negro com fornilho. Coppelius aproximou-se dele, uma flama azul crepitou na lareira. Todos os tipos de estranhos utensílios estavam esparsos por lá. Meu Deus! Quando meu velho pai se inclinou sobre o fogo, me pareceu transformado. Uma dor atroz e convulsiva contraíra suas feições honestas e doces, metamorfoseando-as numa máscara feia, repelente, do demônio. Estava parecido com Coppelius! Esse brandia tenazes incandescentes para retirar da fumaceira espessa massas brilhantes e claras, as quais em seguida martelava com força. Tive a impressão de perceber à sua volta rostos humanos, mas sem os olhos, com espantosas cavidades negras e profundas em seu lugar.

– Olhos! Dê-me olhos! – gritava Coppelius com voz surda, ameaçadora.

Violento pavor me fez gritar muito alto. Saí de meu esconderijo e tombei sobre o soalho. Coppelius me segurou:

– Pequena besta! Pequena besta! – rosnava por entre os dentes.

Subitamente, me levantou e jogou-me na lareira, as chamas queimando meus cabelos.

– Nós temos olhos agora. Olhos. Belo par de olhos de criança – ciciava Coppelius.

Agarrou nas mãos um punhado de brasas ardentes para jogá-las em meus olhos. Então, papai ergueu as mãos unidas e suplicou:

– Mestre! Mestre! Deixe os olhos de meu Natanael!

Coppelius riu barulhentamente e gritou:

– Está bem! Que ele conserve seus olhos! Que ele soluce durante todo o seu penar por este mundo! Mas vamos observar de perto o mecanismo das mãos e dos pés!

Então me segurou com força, fazendo minhas articulações estalarem, e girou minhas mãos e meus pés e os tornou a girar, para lá e para cá:

– Não é bem isso! Antes estava melhor! Este velho conhece seu ofício!

Ao murmurar assim, Coppelius silvava também por entre os dentes, mas à minha volta tudo se tornou confuso, sombrio. Súbita convulsão sacudiu meus ossos e nervos e desmaiei.

Um hálito doce e quente bafeja-me a face, me despertando do sono da morte. Mamãe se inclinava sobre mim.

– O Homem da Areia ainda está aí? – balbuciei.

– Não, meu querido. Já foi há muito tempo. Não vai mais machucar você – dizia mamãe, enquanto beijava, acariciava seu filho renascido.

Por que vou continuar fatigando você, Lothar, contando todos esses detalhes, quando tenho tantas outras coisas importantes para narrar? Em suma, fui descoberto e cruelmente maltratado por Coppelius. A ansiedade e o medo me causaram forte febre que me atirou na cama durante semanas.

– O Homem da Areia ainda está aí? – foram minhas primeiras palavras racionais, o sinal da minha recuperação.

Ainda me falta narrar o pior momento de minha infância, e você ficará convencido de que não é necessário culpar meus olhos se tudo me parece descolorido, mas sim a fatalidade sombria que estendeu – realmente – em torno de minha vida um véu de nuvens opacas, que eu talvez só consiga dissolver através de minha morte.

Coppelius nunca mais apareceu. Disseram que tinha saído da cidade.

Um ano se passou. Certa noite, estávamos sentados em torno da mesa redonda, segundo nosso velho, invariável costume. Papai, muito feliz, nos contava histórias engraçadas a respeito das viagens que tinha feito em sua mocidade. Ao bater das nove horas, escutamos a porta da rua girar nos gonzos e passos lentos e pesados atravessarem o vestíbulo e subirem a escada.

– É Coppelius! – disse mamãe empalidecendo.

– Sim. É Copellius – confirmou papai com a voz embargada. Mamãe tinha lágrimas nos olhos:

– Mas, pai – ela se lamuriou. – É necessário que venha aqui?

– Pela última vez – ele respondeu. Pela última vez, eu juro. Mas vai com os garotos! Boa noite!

Fiquei petrificado, não conseguia respirar direito. Mamãe me puxou pelo braço, ao me ver estático:

– Vem, Natanael!

Deixei que me conduzisse até o quarto.

– Fica tranquilo. Fica tranquilo e dorme. Dorme! – disse-me quando saía.

Porém, atormentado pela angústia, presa de profunda inquietação, indescritível, não consegui fechar os olhos. Via adiante de mim o odiento, horroroso Coppelius a mirar-me com olhos faiscantes e rir com a expressão sinistra. Em vão, tentei pensar em outra coisa.

Perto da meia-noite, estrondo violento, qual arma de fogo, ribombou pela casa. Roçar de passos defronte à porta de meu quarto. Em seguida, a porta da rua foi fechada estrepitosamente.

– É Coppelius! – gritei, já fora de mim, pulando da cama. Ouviu-se um gemido. Depois, lamentações agudas, desesperadas. Corri para o gabinete de papai. A porta estava aberta, uma fumaceira sufocante me envolveu, a empregada gritou:

– Ai! Meu patrão! Meu patrão!

Papai estirado no chão. Morto. Defronte ao fornilho fumegante. Seu rosto, horrivelmente desfigurado, estava queimando, negro. Minhas irmãs choravam, gritavam de dor à sua volta. Mamãe desmaiara.

– Coppelius! Satanás amaldiçoado! Você matou meu pai! – solucei até perder os sentidos.

Dois dias depois, quando colocaram papai no caixão, suas feições haviam readquirido a calma, a bondade de sempre. O que me consolou, pois imaginei que sua aliança com o diabólico Coppelius o tivesse condenado à danação eterna.

A explosão tinha acordado os vizinhos. A notícia do acontecimento se espalhou, chegando aos ouvidos das autoridades, que tentaram intimar Coppelius a depor. Mas ele desapareceu sem deixar vestígios.

Agora, se lhe digo que o vendedor de barômetros era o infame Coppelius, ele não poderá vir como presságio de acontecimentos funestos. Usava outras roupas, mas as feições de Coppelius estão impressas indelevelmente em minha memória. Daí, sei que não estou enganado. Aliás, ele nem trocou de nome. Pelo que me contaram, diz ser aqui um mecânico piemontês, Giuseppe Coppola.

Estou determinado a enfrentá-lo e a vingar a morte de meu pai, aconteça o que acontecer.

Não fale desse terrível encontro com mamãe. Meus cumprimentos à doce, querida Clara. Escreverei para Clara quando estiver mais calmo. Adeus, então etc. etc.

 

Clara para Natanael

 

É verdade que você não me escreve há muito tempo, mas estou convencida de que continua comigo no coração e na mente. Pois pensava em mim, com certeza, ao sobrescritar com meu nome uma carta para Lothar. Abri a carta com alegria, e só compreendi o equívoco ao ler estas palavras: “Ah, meu querido Lothar!”.

Não deveria ter continuado a ler a carta e, sim, tê-la entregue a meu irmão. Porém, muitas vezes você tinha brincado comigo, durante minha infância, por ser tão calma e tão boa dona de casa que, se a casa ameaçasse desabar, eu teria ainda tempo de ajeitar as cortinas antes de fugir. Entretanto, nem preciso dizer: o começo da carta me deixou profundamente transtornada. Nem podia respirar direito, tudo se embaralhava à minha volta. Ah, meu querido Natanael, o que seria aquela coisa terrível que tinha acontecido com você? Nossa separação, há possibilidade de nunca mais nos revermos? O pensamento me trespassou como aguda apunhalada. Continuei a ler até o fim. Sua descrição do repelente Coppelius é pavorosa. Só então soube da morte violenta, terrível, de seu velho e bondoso pai.

Meu irmão, a quem entreguei o que lhe pertencia, tentou me tranquilizar, mas não conseguiu. O fatídico mercador de barômetros Giuseppe Coppola me perseguia incessantemente e – quase tenho vergonha de dizer – chegou até a perturbar meu sono, normalmente profundo, fazendo-me ter sonhos horríveis. Todavia, já no dia seguinte, tudo me pareceu melhor. Não fique, pois, rancoroso, meu bem amado, se Lothar disser a você que – a despeito de seu estranho pressentimento em relação a Coppelius – eu esteja alegre e despreocupada, como sempre.

Vou falar com toda a franqueza: creio que todas essas coisas horríveis e apavorantes, relatadas por você, existem apenas em sua imaginação e que a parcela de fatos reais e concretos é muito pequena. O velho Coppelius era, sem dúvida, muito pouco atraente e como não gostava de crianças, as crianças também começaram a não gostar dele.

Era natural que sua mente de criança associasse o terrível Homem da Areia, da história da governanta, ao velho  Coppelius, o qual, mesmo se você não acreditasse no Homem da Areia, permanece em sua memória como fantástico monstro, inimigo jurado das crianças. Seu comportamento misterioso, durante a noite, em companhia de seu pai, queria dizer, apenas, que eles praticavam alquimia, secretamente. O que não podia deixar de afligir sua mãe, pois deviam gastar muito dinheiro com isso. Sem contar o fato de que – como acontece aos pesquisadores de laboratório –, desejoso de ter profundos conhecimentos, seu pai se afastava da família. Seu pai – por causa de alguma imprudência – causou a própria morte e Coppelius não é o culpado disso.

Sabe, ontem perguntei ao nosso vizinho, o boticário, que tem muita experiência, se esse tipo de manipulação química poderia causar explosões mortais e súbitas. “Sem dúvida”, me respondeu, descrevendo com sua maneira verborrágica e detalhada como isso poderia acontecer, empregando grande número de palavras bizarras, que não pude reter em minha memória.

Agora você vai ficar zangado com sua Clara. Você vai dizer: o espírito gélido de Clara é insensível à radiação do mistério, que tantas vezes envolve o homem com seus braços invisíveis. Você vai dizer que ela vê apenas a superfície multicolorida desse mundo, ficando satisfeita como criança ao ver a fruta de casca dourada, que armazena em seu interior veneno mortífero.

Ah, meu querido Natanael, você não acredita, então, que até as almas serenas, francas, despreocupadas, possam abrigar o pressentimento de uma potência hostil e sombria que, oculta lá dentro de nós, tenta nos destruir?

Mas desculpe esta jovem simples, se ouço tentar fazer você inferir o que penso desses tormentos interiores. Sem dúvida, não conseguirei encontrar palavras adequadas e você vai debochar de mim, não por causa de minhas ideias, mas da maneira desastrosa com que as exprimo.

Se existe potência que seja pérfida, sinistra e hostil em seus objetivos, e que tenha conseguido colocar dentro de nós sua garra para nos apreender e nos arrastar por caminho perigoso, nefasto – o qual espontaneamente não percorreríamos –, se tal potência realmente existe, teria de se desenvolver dentro de nós mesmos, enquanto nós evoluímos. Teria de ocupar o nosso eu. Só assim nós acreditaríamos nela, cedendo-lhe o que necessita para cumprir sua missão secreta. Se tivermos bastante firmeza e o espírito alimentado pelas coisas luminosas da vida para conhecermos o que é, em verdade, esta influência estranha e hostil e para seguirmos firmemente pelo caminho onde nos levam nossos gostos e nossa vocação, então esta potência sinistra se cansa com o esforço que faz para se apropriar de nossas características e se apresentar a nós como nosso próprio reflexo num espelho.

É também certo, acrescenta Lothar, que esta sombria força material, desde que nos abandonemos voluntariamente a ela, atrai e fixa em nós certas imagens estranhas que o mundo exterior joga em nosso caminho. De tal maneira, que somos nós mesmos que atiçamos o espírito que parece falar através destas formas, exatamente como nós temos a loucura de as imaginar. É o fantasma de nosso próprio eu que, através de seu íntimo relacionamento conosco e de sua profunda influência sobre nossa alma, nos precipita no inferno ou nos transporta aos céus.

Você bem vê, meu querido Natanael, nós conversamos em profundidade, eu e  Lothar, sobre as forças e as potências obscuras, e ainda que o problema permaneça misterioso para mim, penosamente lhe expus o essencial. Não consegui compreender bem as últimas palavras de Lothar, praticamente adivinhei o que desejava dizer. Parece-me, todavia, que tem razão.

Suplico a você: tire de sua cabeça o feio advogado Coppelius e o mercador de barômetros Giuseppe Coppolla. Convença-se de que tais pessoas não têm poder sobre você. É acreditando nos hostis poderes deles que você pode, em verdade, torná-los nefastos. Se sua carta não demonstrasse em todas as linhas a profunda confusão de sua alma, se o seu estado não me afligisse até o fundo do coração, eu poderia, afinal, brincar a respeito do Homem da Areia advogado e do mercador de barômetro Coppelius. Readquira, eu lhe peço, a serenidade! Resolvi ser o seu gênio tutelar e se o terrificante Coppola viesse atormentar você em sonhos, eu o expulsaria com grandes explosões de riso. Não temo, nem um pouquinho, nem ele nem suas terríveis mãos. Advogado, não me convenceria a me privar de gulodice; Homem da Areia, não me arrancaria os olhos.

Sempre sua, meu bem-amado Natanael, etc. etc.

 

Natanael para Lothar

 

Foi muito desagradável para mim Clara ter aberto e lido a carta que escrevi para você recentemente, embora fosse equívoco provocado por distração minha.

Ela me escreveu uma carta recheada de filosofia abstrusa, em que, abreviadamente, me demonstra que Coppelius e Coppola só existem em minha mente, fantasmas de meu próprio eu, e se transformarão em pó deste que eu os reconheça como pó. Aliás, é difícil acreditar que esse espírito – que cintila às vezes como um sonho doce e gracioso, lá no fundo daqueles olhos de criança, claros e sorridentes – seja capaz de distinções tão teóricas e pedantes. Invoca a sua autoridade. Vocês falaram de mim. Portanto, você dá a ela cursos de lógica para ensinar-lhe que tudo deve ser dissecado e passado pela peneira. Não tenha esse cuidado. Aliás, é evidente que o mercador de barômetros Giuseppe Coppola não é, absolutamente, o velho advogado Coppelius. Estou no curso de física de um professor que acaba de chegar aqui. Tem o mesmo nome do célebre naturalista Spalanzani e é de origem italiana, já conhece Coppola há muitos anos. Aliás, o sotaque dele trai sua origem piemontesa. Coppelius era alemão, mesmo não sendo alemão de verdade, segundo me parece. Não me sinto totalmente tranquilo. Você e Clara têm razão ao me considerarem sonhador e hipocondríaco, pois não consigo me livrar da impressão que me produz o maldito rosto de Coppelius. Estou feliz, pois saiu da cidade, segundo me disse Spalanzani.

Esse professor tem o corpo curioso. É um homenzinho rechonchudo, com pômulos salientes, nariz delgado, lábios cheios, olhos pequenos e penetrantes. Mas você poderá conhecê-lo melhor através do retrato de Cagliostro feito por Chodowiecki num almanaque de Berlim. Spalanzani se parece com o retrato.

Recentemente, subindo pela escada, me dei conta de que uma cortina de renda  guipure, em geral corrida por cima de uma porta envidraçada, deixara fresta do lado. Não sei por que, dei uma olhada. Uma jovem de porte encantador, grande, esbelta, magnificamente vestida, estava sentada na sala, defronte a uma mesinha, onde descansa seus braços, as mãos juntas.

Ela estava de frente para a porta. Assim, pude ver todo o seu rosto angelical. Aparentemente, não reparou em mim, e seus olhos pareciam parados, como se não tivessem vida, ou como se estivesse dormindo com os olhos abertos. Não me senti à vontade e me esgueirei para o anfiteatro vizinho. Mais tarde, soube que era a filha de Spalanzani, Olímpia, há quem esconde com tanto cuidado que ninguém se aproxima dela. Afinal, talvez ele tenha alguma razão, ela pode ser idiota ou qualquer coisa assim. Por que escrevi tudo isso para você? Poderia ter contado tudo isso melhor, e com mais detalhes, pessoalmente. Pois estarei aí dentro de quinze dias. Preciso ver meu querido anjo, minha doce Clara. Quando então se dissipará – confesso – o mal-estar que senti ao ler a sua carta. Por isso, não lhe escreverei hoje.

Minha amizade etc. etc.

 

Seria impossível inventar algo mais estranho e mais surpreendente do que o sucedido com meu pobre amigo, o estudante Natanael, e que resolvi contar para você, amável leitor.

Alguma vez, seu coração, espírito, pensamento estiveram concentrados em uma só coisa, que o impedisse de ter qualquer outra preocupação? Você se sentia fermentar e ferver e o sangue, em ebulição, palpitava nas veias, realçando a cor da face. Seu olhar estranho parecia querer apreender no espaço vazio formas invisíveis a todos os outros olhos e suas palavras se extinguiam em suspiro inquietantes. E seus amigos perguntavam:

– O que aconteceu, meu caro? O que é que você tem?

E você se esforçava para descrever sua visão interior e seu colorido quente e suas sombras e luzes, tentando entrar no assunto. Mas tinha a impressão de que seria necessário mostrar, logo, com suas primeiras palavras, tudo o que você carregava de estranho, magnífico, horrível, alegre, aterrorizante, para aferir instantaneamente os ouvintes, como se fosse descarga elétrica. Todavia, todas as expressões, tudo o que se exprime em palavras parecia incolor, glacial e morto para você.

Tentava procurar, balbuciar, pedinchar palavras. Mas as tolas perguntas de seus amigos, como ventos gelados, abaixavam o seu fogo interior, até apagá-lo. Se anteriormente, como pintor audacioso, você tivesse esboçado com grandes traços atrevidos os contornos de sua visão interior, seria fácil, então, ir acrescentando cores cada vez mais quentes, e a multidão de formas diversas entusiasmaria seus amigos, que se veriam, como você mesmo, retratados no quadro que jorrou de seu coração.

Devo conversar, amável leitor, que ninguém me interrogou a respeito da história do jovem Natanael. Entretanto você sabe, sem dúvida: pertenço a essa linhagem singular de escritores que não conseguem carregar consigo tais ideias sem imaginar, prontamente, que todos os que estão perto deles, até mesmo o mundo inteiro, gostariam de lhes perguntar:

– O que aconteceu, hein? Conte-nos tudo, meu caro!

Assim, tive o desejo furioso de contar a você o destino fatal de Natanael. Sua história, singular e maravilhosa, absorvia meus pensamentos e, como me seria necessário preparar você – ó meu leitor! – para admitir o fantástico, o que não é tarefa fácil, me atormentava para que a saga de Natanael tivesse começo impressivo, original, empolgante.

“Era uma vez...” É o mais belo começo para qualquer narrativa, mas é muito prosaico.

“Na pequena cidade do interior, S. vivia...” é um pouco melhor, permitindo, pelo menos, certa gradação. Ou me colocando imediatamente medias in re: “Vá para o diabo que o carregue! – gritou o estudante Natanael, com olhar alucinado, cheio de furor e medo, quando o mercador de barômetros Giuseppe Coppola...” Tinha acabado de escrever essas palavras, quando percebi: o olhar furioso do estudante Natanael tinha qualquer coisa de cômico. Ora, minha história não tem nada de risível. Eu não conseguia compor o discurso que pudesse refletir – apenas um pouquinho – as cores ardentes de minha visão interior.

Então, resolvi não começar a história. Meu caro leitor, você terá a bondade de considerar as três cartas, que o amigo Lothar teve a gentileza de me mostrar, como esboço da imagem que tentarei colorir, cada vez mais. Talvez eu consiga, como bom retratista, captar algumas fisionomias tão bém que, mesmo sem conhecer o original, você as julgará parecidas, chegando a acreditar tê-las visto pessoalmente. Talvez – ó meu leitor – você chegue até a pensar que não exista nada mais extraordinário ou mais louco do que a vida real, e que apenas o poeta esteja capacitado a aprendê-la, como se fosse vago reflexo de espelho mal polido.

Para esclarecer imediatamente o que é necessário saber, acrescentarei aquelas cartas: logo após a morte do pai de Natanael, Clara e Lothar, filhos de um parente afastado, que também morrera deixando-os órfãos, foram acolhidos pela mãe de Natanael. Natanael e Clara sentiam uma forte atração mútua, a qual ninguém objetava. Assim, eles eram noivos, quando Natanael deixou sua casa para estudar em G. Sua última carta estava datada dessa cidade, onde assistia às aulas do célebre físico Spalanzani.

 

Neste momento, poderia continuar tranquilamente meu relato. Mas a imagem de Clara está vivamente presente em meus olhos e não consigo desviar dela o olhar, como fazia sempre que me mirava com gracioso sorriso. Clara não podia ser considerada bela, segundo parecer dos que fazem ofício de juízes da beleza. Mas os arquitetos elogiavam as felizes proporções de seus membros, os pintores julgavam muito sóbrios os contornos da nuca, espáduas e seios, embora ficassem encantados com a suntuosa cabeleireira de Madalena e se apaixonassem pelo colorido de Battoni. Um deles, sonhador famoso, comparava, bizarramente, seus olhos a um lago de Ruysdael em que se refletem o azul puro de céu sem nuvens, as flores dos bosques e toda a animação colorida, alegre da paisagem. Mas os poetas e músicos iam mais longe, dizendo:

– O quê? Um lago? O quê? Um espelho? Pode-se ver esta jovem sem que seu olhar esplendoroso derrame sobre nós cantos, acordos celestiais e maravilhosos que penetram nossa alma, onde tudo se eleva e desperta com um contato? Se o que cantamos não tem valor é porque nós próprios não temos valor, eis o que podemos ler com precisão no sorriso vivo, bailando nos lábios de Clara, ao cantarolarmos em sua presença alguma coisa que imaginamos seja canto, mesmo sendo apenas sons esparsos, que se entrechoquem confusamente.

E era verdade. Clara tinha a imaginação de uma criança alegre, singela, pura; alma profunda, terna, de mulher; a inteligência límpida e muito discernimento. Os espíritos obtusos não conseguiam lhe ser agradáveis, pois sem falar muito – o que não fazia parte de seu caráter quase taciturno – seu olhar claro e o pronto sorriso irônico lhes diziam:

– Caros amigos, como podem imaginar que eu sinta como sendo reais, dotadas de vida e de movimento, visões nebulosas e vagas?

 

E por causa disso, Clara tinha fama de ser fria, insensível e prosaica. Mas outros que sabem captar a vida com sua transparente profundidade, consideravam a jovem sensível, razoável e franca; e desses, nenhum mais do que Natanael, cujos pensamentos se movimentavam com vigor e serenidade, no mundo da arte e da ciência. Clara estava ligada com todo o coração a seu bem amado; as primeiras sombras que escureciam sua vida apareceram no momento em que a deixou. Com que deslumbramento ela se joga em seus braços, quando ele retorna à cidade natal, conforme prometera a Lothar em sua última carta! E foi tudo como Natanael esperava, pois, desde o momento em que viu Clara, não pensou mais no advogado Coppelius, nem na carta racional dela. Todas as preocupações desapareceram.

Mas Natanael tinha razão, quando escreveu para seu amigo Lothar dizendo que o repugnante mercador de barômetros havia se introduzido em sua vida como poder hostil. Pois todos notaram, já nos primeiros dias, que Natanael parecia diferente. Mergulhava em divagações inquietantes, apresentava excentricidade não habituais em seu comportamento. Todos os seres, e a vida inteira, não eram mais do que visões e presságios para ele. Repetia sem cessar: todo homem que se julga livre é apenas joguete de potências tirânicas ferozes, as quais é inútil resistir. E não há mais nada a fazer, senão nos submetermos humildemente ao que o destino resolveu nos impor. Chegava até a afirmar: é loucura acreditarmos que a criação – nas artes e nas ciências – seja ato livre da vontade, pois o entusiasmo necessário para criar não parte de nós, sendo desencadeado pela ação de algum princípio superior, externo a nós.

A exaltação mística repugnava ao racionalismo de Clara, mas parecia inútil tentar refutá-la. Era necessário que Natanael tentasse demonstrar: Coppelius era o princípio do mal e tinha se apropriado dele, Natanael, no momento daquela espera atrás da cortina, e que o odiento demônio ainda perturbaria irremediavelmente a felicidade amorosa deles, para Clara, então, se tornar muito séria e dizer:

– Sim, Natanael, você tem razão.  Coppelius é princípio maligno, princípio hostil. Pode fazer coisas horríveis, é potência diabólica que entrou em sua vida, mas apenas enquanto não o banir de seu espírito e de sua mente. Enquanto você acreditar nele, existirá e atuará. Todo o poder dele vem de sua crença nisso.

Natanael, irritado com Clara, que só admitia a existência deste demônio no interior dele mesmo, quis, então, ensinar-lhe a doutrina mística dos demônios e das potências terríveis. Clara, vexada, pois fim à conversa, falando de outro assunto completamente anódino, para despeito de Natanael. Ele, ao crer que esses mistérios eram impenetráveis às almas frias e teimosas, não se deu conta de que situava Clara entre pessoas inferiores, embora não renunciasse à tentação de insistir no assunto.

Já pela manhã, no que ela ajudava a fazer café, permanecia perto dela, lendo passagens escolhidas de livros místicos, até que ela suplicasse:

– Mas meu querido Natanael, imagine que eu finja que você é o espírito maligno que perturba o meu café! Pois se eu largasse todas as minhas ocupações para ficar olhando você como deseja, enquanto me faz uma conferência, o café se queimaria no fogo e não teríamos Nada para comer.

Natanael fechou bruscamente o livro e se trancou no quarto, envergonhado. Antigamente, possuía certo talento para escrever narrativas interessantes e vivas, e Clara tinha muito prazer em ouvi-las; mas agora, tudo o que produzia era em tom sombrio, ininteligível, disforme, e mesmo que Clara não dissesse explicitamente, se dava conta disso.

Nada era mais cansativo para Clara do que assuntos entediantes; olhares e palavras demonstravam, então, sua irresistível vontade de dormir. Ora, as invencionices de Natanael eram profundamente fatigantes e a irritação que ele sentia por causa do espírito frio e prosaico de Clara aumentava a cada dia. Por outro lado, Clara não conseguia vencer a aversão por aquele misticismo sombrio, triste e cansativo de Natanael. Por isso, foram se afastando lentamente, sem reparar nisso.

A imagem do repelente Coppelius foi empalidecendo na imaginação de Natanael – que percebeu isso – e muitas vezes precisava se esforçar para o colorir mais fortemente em seus poemas, em que o retratava como inacreditável espantalho. Por fim, pensou compor um poema que falasse do sombrio pressentimento que tinha: Coppelius seria fatal à sua felicidade.

Imaginava estar ligado a Clara por amor sincero, mas, às vezes, parecia que um punho negro intervinha em suas vidas para terminar com aquela alegria apenas esboçada. No próprio dia em que se casavam, surge o horrível Coppelius, que toca os olhos encantadores de Clara. Eles pulam fora no mesmo instante e quicam no peito de Natanael como fagulhas sangrentas, queimando tudo em que batem.

Coppelius segura Natanael e o joga numa roda de fogo, que girava como furacão, arrastando-o barulhentamente, o estrondo de uma tempestade que chicoteia ferozmente vagas escumosas, erguidas como gigantes negros de cabeça branca, em luta furiosa. Mas em meio a essa algazarra selvagem, escuta a voz de Clara gritando:

– Então você não me enxerga? Coppelius o enganou. Não foram meus olhos que queimaram seu peito. Foram as gotas ardentes de seu próprio sangue. Ainda tenho os olhos, veja! Natanael pensa: “É clara. Será minha por toda a eternidade!” Então, imagina que o pensamento penetra com força no círculo de fogo, travando sua rotação. A barulheira diminui de intensidade e se perde no abismo negro. Natanael olha para os olhos de Clara, mas é a morte que olha para ele calmamente, com os olhos de Clara.

Enquanto imaginava o poema, Natanael permanecia muito calmo e seguro de si. Polia e corrigia cada linha submisso à construção do verso, sempre desejando que todo o conjunto ficasse perfeitamente coeso, harmônico e bem composto. Mas ao terminar o poema e relê-lo em voz alta, sentiu-se tomado de pavor e inacreditável inquietação. Lamuriou-se:

–Que voz é essa, tão apavorante?

Logo em seguida, o trabalho lhe pareceu, em suma, poema plenamente realizado e acreditou que conseguiria inflamar a alma gélida de Clara, ainda que não percebesse por que seria necessário inflamar Clara e para que serviria apavorá-la com imagens terrificantes, que previam destino cruel e destrutivo em relação ao amor deles.

Natanael e Clara estavam sentados lado a lado no pequeno jardim da casa, Clara muito contente, pois há três dias – enquanto compunha o poema – Natanael não a perseguia com sonhos e presságios. Natanael também falava alegre e vivamente de coisas interessantes, até Clara lhe dizer:

–Por fim, reencontro você. Viu só como conseguimos esquecer o horrível Coppelius?

Neste momento, Natanael se lembrou de que trazia o poema e quis lê-lo. Tira-o do bolso e começa a leitura. Como sempre, Clara não se preocupou com coisas entediantes. Resignadamente, começou a tricotar. Mas como a nuvem sombria escurecia cada vez mais, para de tricotar e fica olhando Natanael fixamente: empolgado por seu poema, lágrimas lhe escorriam dos olhos e uma chama interior coloria as suas faces. Ao terminar, suspira, segura a mão de Clara e geme como se sofresse dor inconsolável:

– Ah Clara! Clara, Clara, Clara!

Clara ou cerrou contra o colo e lhe disse com voz doce, embora grave e lentamente:

– Natanael, Meu bem-amado Natanael! Joga fora esse poema absurdo, demente, insensato!

Natanael dá um salto, indignado, e grita, empurrando Clara:

–Autômato maldito, sem vida!

Afastou-se, correndo, enquanto Clara, profundamente ofendida, chorava com amargor: “Ai! Ele nunca me amou, pois não me compreende”.

Lothar entra no caramanchão e Clara teve de narrar o que tinha acontecido. Ele amava sua irmã de todo o coração e cada queixa dela queimava como brasa e o descontentamento que sentia há muito tempo por Natanael ia se transformando em cólera violenta.

Foi atrás de Natanael e o recriminou pela conduta absurda em relação à sua bem-amada irmã, utilizando palavras duras, que foram replicadas por Natanael, já pegando fogo também

“Fátuo, quimérico, insensato”, dizia um. “Pobre de espírito, homem vulgar”, dizia o outro. Resolveram duelar atrás do jardim, na manhã seguinte, com espadas afiadas, conforme costume local dos estudantes. Eles iam para cá e para lá, sombrios e mudos. Clara tinha escutado a violenta discussão e visto o mestre-d’armas trazer à noite as espadas. Ela percebeu o que iria acontecer.

No local do duelo, Natanael e Lothar sacam os sobretudos e permanecem calados, inquietos. Quando iam se jogar um contra o outro, Clara chegou correndo pela passagem do jardim. Ela soluçava ao gritar:

– Homens brutais, aterrorizantes! Matem-me agora, antes de se baterem em duelo! Como poderia continuar a viver neste mundo se meu noivo matasse meu irmão, ou meu irmão matasse meu noivo?

Lothar deixa cair a arma, abaixando os olhos sem dizer nada, enquanto todo o amor que Natanael sempre sentiu pela encantadora Clara, durante os mais belos dias de sua juventude, ressuscita, envolto por dilacerante melancolia. A arma mortífera cai de sua mão, e se joga aos pés de Clara:

– Clara, minha bem amada, meu único amor. Poderá me perdoar?  Lothar, meu querido irmão. Poderá me perdoar?

Lothar emocionou-se com a profunda dor de seu amigo. Sob uma torrente de lágrimas, os três, reconciliados, se abraçaram, jurando nunca mais se separarem, vivendo com fidelidade e afeição constantes.

Parecia a Natanael que tinha sacudido a pesada carga que o curvava até o chão e que, ao resistir à potência sombria e carcerária, tinha salvo seu ser do aniquilamento. Após mais três dias felizes junto a quem amava, retornou a G., onde teria de permanecer mais um ano, para, em seguida, regressar definitivamente à cidade natal.

Tinham escondido de sua mãe os fatos relacionados com Coppelius, pois sabiam que ela só pensava nele com horror. Realmente, como acontecia com Natanael, ela julgava Coppelius responsável pela morte do marido.

Quando Natanael quis entrar em seu apartamento, ficou estupefato! A casa pegara fogo e unicamente as paredes estavam de pé. Amigos corajosos e robustos tinham conseguido penetrar a tempo no quarto de Natanael, situado no andar de cima, salvando seus livros, manuscritos e instrumentos, embora o fogo tivesse eclodido no laboratório do boticário que vivia no andar inferior e se espalhado de baixo para cima. Carregaram tudo para a casa vizinha, lá alugando um quarto, onde Natanael se instalou imediatamente.

Não deu maior importância ao fato de que o professor Spalanzani morasse na casa defronte e que poderia olhar da sua janela o quarto em que Olímpia ficava, muitas vezes sozinha, reconhecendo nitidamente sua silhueta, embora as feições se tornassem confusas, indistintas.

Porém, notou que Olímpia permanecia sentada numa pequena mesa durante horas, na mesma posição, sem fazer nada, do mesmo jeito em que a vira anteriormente, através da porta de vidro, que ela mirava incessantemente.

Julgou não ter visto talhe mais bonito. Mas, sempre pensando em Clara, esta Olímpia rígida, estática, não o emocionava. Só tirava os olhos do livro de tempos em tempos afim de olhar desinteressadamente para aquela bela estátua. E só.

Ia começar a escrever para Clara, quando bateram suavemente à porta. Mandou que entrassem e surgiu o rosto repugnante de Coppola. Natanael estremeceu, mas lembrou-se do que Spalanzani disse de seu compatriota Coppola e do que tinha solenemente prometido à sua noiva em relação a Coppelius, o Homem da Areia, e se sentiu envergonhado de seu medo infantil de fantasmas. Fez esforço para se controlar e disse com voz suave e calma:

– Não quero comprar barômetros, meu amigo. Vá embora!

Coppola, porém, entrou de vez no quarto e disse com voz surda, a grande boca se torcendo num sorriso pavoroso, enquanto os olhinhos perfurantes rebrilhavam debaixo dos longos cílios acinzentados:

Ah! Barômetros non, barômetros non! Mas eu tere occhi também per vendere. Zoios lindos!

Espantado, Natanael já gritava:

Você é maluco! Como é que pode ter olhos? Olhos? Olhos?

Coppola se desembaraçou dos barômetros, enfiou os dedos nos enormes bolsos e sacou óculos e lornhões, colocando-os sobre a mesa:

He-he-he! Lunetas de nariz! Occhi beli! Enquanto falava, ia tirando mais lunetas e mais outras de seus bolsos, até que a mesa ficou toda cintilante, mar de reflexões multicoloridas.

Milhares de olhos pareciam dardejar olhares reluzentes para Natanael, que não conseguia afastar os seus da mesa. Coppola sacava mais outras lunetas, e olhares faiscantes se entrecruzavam, cada vez com mais fúria, projetando clarões sangrentos, dirigidos contra o peito de Natanael.

Apavorado, loucamente apavorado, Natanael grita:

Para, monstro!

Segurou o braço de Coppola, que levava a mão até o bolso para sacar mais lunetas, embora a mesa estivesse recoberta por elas. Coppola se desvencilhou calmamente dele, enquanto debochava, dizendo:

Ah! Non vuoi luneta! Ma eu ter lonhone!

Já tinha guardado todas as lunetas e já sacava binóculos de outro bolso, grandes e pequenos. Natanael ficou mais calmo, logo que as lunetas foram guardadas, e, pensando em Clara, convenceu-se de que esse pesadelo era fruto de seu cérebro. Coppola não era mais um mágico ou aparição apavorante, apenas honesto oculista, nada tendo a ver com Coppelius. Além disso, os binóculos que Coppola colocara sobre a mesa não tinham nada de especial, sobretudo não eram fantásticos como as lunetas e lornhões.

Então, para não ficar mal, resolveu comprar qualquer coisa de Coppola. Apanhou uma pequena luneta de bolso, delicadamente trabalhada, olhando pela janela, a fim de testá-la.

Nunca tinha visto lentes que aproximassem os objetos com tanta pureza, acuidade e perfeição.

Sem querer, olhou para o quarto de Spalanzani. Olímpia estava sentada, como sempre, defronte à mesinha, braços à frente, as mãos juntas. Só então Natanael repara nos traços admiráveis do rosto de Olímpia. Apenas os olhos lhe pareceram estranhamente fixos, mortos. Mas como olhasse insistentemente para ela através da luneta imaginou que dos olhos de Olímpia se desprendessem vaporosos clarões lunares. Parecia que a vida voltava para eles, pois flamejavam cada vez mais vivamente, enquanto Natanael permanecia à janela, como se estivesse enfeitiçado, contemplando sem se cansar a beleza celestial de Olímpia.

Um pigarro, um arrastar de pés o acordaram de seu encantamento. Coppola estava de pé, atrás dele:

Tre zecchini! Três ducados!

Natanael se esquecera do oculista pagou, em seguida, o que devia.

– Buona luneta, né? perguntou Coppola com sua voz rouca, aterrorizante e seu sorriso peculiar.

– Sim, sim Natanael respondeu irritado. Adeus, meu amigo!

Antes de sair do quarto, Coppola olhou Natanael de soslaio. Olhar estranho, debochado – e desceu rindo as escadas. Bem, pensou Natanael, está rindo de mim. Acho que paguei caro por esta luneta, muito caro. Enquanto pensava, teve a impressão de ouvir um estertor profundo reboar pelo quarto, sinistramente. Mas tinha sido ele mesmo que suspirara. Clara, pensou, tem razão de me considerar um idiota, mais do que um idiota, por ficar atormentado pela ideia de que paguei caro demais pela luneta.

Sentou-se em seguida, para terminar sua carta para Clara, mas uma olhada pela janela revelou que Olímpia permanecia sentada no mesmo lugar e, movido por força irresistível, deu um pulo, pegou a luneta e ficou contemplando a sedutora Olímpia, até que o companheiro e amigo Siegmund veio chamá-lo para irem à aula de Spalanzani.

Desta vez, a cortina tinha sido cuidadosamente corrida à porta do quarto fatal. Nos dois dias seguintes não viu mais Olímpia, ainda que não saísse da janela, mantendo a luneta de Coppola nos olhos. Ao terceiro dia, até a janela foi coberta por uma cortina. Desesperado, com pesar e saudade, partiu para o campo.

A imagem de Olímpia ia à sua frente, flutuando no ar, surgindo dos tufos de plantas, a olhá-lo com grandes olhos fulgurantes lá do fundo do claro riacho. A imagem de Clara tinha desaparecido totalmente de seu coração. Só pensando em Olímpia, se lamuriava, ao chorar muito alto:

Ó meu doce astro, minha estrela amorosa, você apareceu em meu horizonte para apagar-se em seguida, me deixando apenas uma noite escura e sem esperança?

Ao voltar para casa, reparou que a residência de Spalanzani estava muito movimentada: portas às escâncaras, todo tipo de objeto era levado para dentro. As janelas do primeiro andar também estavam abertas, e pessoas atarefadas iam e vinham, espanando e varrendo com grandes vassouras de crina; tapeceiros e marceneiros batiam, martelavam. Natanael parou, no meio da rua, estupefato. Siegmund se aproximou sorrindo:

Pois é. O que é que você me diz de nosso velho Spalanzani?

Natanael respondeu que não podia dizer coisa alguma, pois não tinha notícias do professor, mas que notara, para sua surpresa, a grande agitação e barafunda que reinavam naquela casa habitualmente tão silenciosa e sombria. Então, Siegmund contou:

Spalanzani deveria dar – no dia seguinte – grande festa com concerto e baile e meia universidade fora convidada. Todos diziam que Spalanzani deixaria sua filha Olímpia aparecer em público pela primeira vez, pois até então a tinha mantido escondida.

Natanael encontrou em casa um convite e à hora marcada foi para a casa do professor, quando já chegavam as primeiras carruagens e as luzes da casa eram acesas nos salões elegantemente decorados. Sociedade elegante e numerosa. Olímpia apareceu com roupa cara e de bom gosto. Não se podia deixar de admirar o rosto de feições tão puras e o talhe perfeito. A curiosa curva do dorso e a estreiteza da cintura de vespa deviam ser feitas por um espartilho muito apertado. O andar e sua atitude tinham qualquer coisa de compassado, de rígido que algumas pessoas julgavam desagradável, mas era explicada pela inibição que devia estar sentindo por causa da festa.

O concerto começou. Olímpia tocava piano com virtuosismo e cantou uma canção patriótica, a voz clara como cristal cortante. Natanael estava deslumbrado. De pé, na última fila, não conseguia ver claramente o rosto de Olímpia à luz estonteante das velas. Sem ninguém reparar, tirou do bolso a luneta de Coppola para mirar a bela Olímpia. Ah! Deu-se conta, então, de que ela o olhava langorosamente, e seus traços se esvaneciam com seu olhar amoroso, fazendo-o arder inteiramente. Parecia que as cascatas de notas exprimiam o júbilo celestial de alma iluminada pelo amor, e quando o trinado final vibrou, prolongado, estridente, pelo salão, não conseguiu se conter e – como se estivesse apertado por braços apaixonados – exclamou bem alto, com dor e deslumbramento:

Olímpia!

Todos se viraram para ele e muitos começam a rir. O organista da catedral fez uma careta mais sinistra do que a habitual, apenas murmurando: “Bem, bem.”

Terminou o concerto, o baile vai começar. “Dançar com ela! Com ela!” era o objetivo de todos os seus sentidos, de todos os seus esforços. Mas como fazer para criar coragem de convidá-la, a rainha do baile? Nem mesmo ele soube como aconteceu: quando a dança começou, estava perto de Olímpia, que ainda não tinha sido tirada por ninguém, e, após balbuciar algumas palavras, segurou a mão dela.

A mão de Olímpia estava tão fria quanto o gelo. Ele sentiu correr em suas veias o frio terrível da morte. Olhou para ela: amor e desejo brilhavam naqueles olhos. Então, imaginou que as artérias daquela mão gelada começavam a pulsar, a torrente de sangue ficando mais aquecida. Ardendo de desejo, Natanael enlaçou a bela Olímpia e saíram dançando entre os pares no salão.

Ele tinha a ilusão de ser um bom dançarino, mas o ritmo inflexível dela, que muitas vezes o fazia perder o passo, demonstrou logo como seu ouvido falhava. Ainda assim, não quis dançar com nenhuma outra mulher e, se pudesse, teria batido em qualquer um que se aproximasse de Olímpia. Mas isso ocorreu duas vezes. Olímpia sempre esteve disponível, para sua surpresa, e pôde convidá-la para dançar todas as músicas.

Se Natanael fosse capaz de ver qualquer outra coisa além de Olímpia, não teria evitado discussões e brigas lamentáveis, pois murmúrios de deboche e risos mal disfarçados eclodiam em todos os grupos de jovens, sem que se soubesse o motivo, embora não tirassem os olhos irônicos de Olímpia.

Aquecido por muitos tragos e pela dança, Natanael tinha abandonado sua natural timidez. Juntinho de Olímpia, segurando- lhe a mão, falava de seu amor em termos inflamados que ninguém poderia compreender, nem ele mesmo, nem Olímpia. Bem, talvez ela, pois olhava-o fixamente e emitia pequenos suspiros:

Ah-ah-ah!

E Natanael respondia:

– Mulher sublime, celestial! Exemplo do amor que nos prometem na outra vida! Alma profunda em que se reflete todo meu ser!

Enquanto Olímpia apenas suspirava:

Ah-ah-ah!

O professor Spalanzani passou uma vez ou duas perto do feliz casal e os olhou sorrindo, com expressão curiosamente satisfeita. Ainda que Natanael estivesse em outro mundo, pôde notar, de repente, que tudo se escurecia aqui, neste mundo, na casa do professor Spalanzani. Olhando ao redor, percebeu, para sua grande estupefação, que as duas últimas velas da sala vazia ameaçavam apagar. A música e a dança já tinham terminado há muito tempo.

Nos separarmos! Nos separarmos! – exclama, sentindo vivo desespero, e beija a mão de Olímpia e se inclina para a sua boca. Lábios gelados encontraram seus lábios ardentes e sentiu-se presa de pavor, como se sentira ao tocar-lhe a fria mão. A lenda da morta noiva avivou-se em sua memória, de repente. Mas Olímpia o cerrava contra o peito e os lábios dela pareceram reviver e ficar quentes.

O professor Spalanzani atravessou a sala vazia, lentamente. Seus passos retumbavam e sua silhueta, rodeada por sombras movediças, tinha aparência terrível e fantasmagórica.

Diga que me ama, Olímpia! Você me ama? Diga apenas uma palavra. Você me ama? murmurava Natanael, embora Olímpia apenas suspirasse: “Ah-ah-ah!”, enquanto se levantava.

Meu doce astro, minha linda estrela de amor, você se ergueu em meu céu e você brilhará, iluminando minha alma para sempre – continuava Natanael.

Ah-ah-ah! – respondia Olímpia, enquanto se afastava. Natanael a seguiu e ficaram frente a frente com o professor.

Você teve uma conversa muito animada com minha filha disse o professor sorrindo. Se você tem prazer em conversar com essa bobinha, sua visita será sempre bem-vinda.

Natanael foi embora, carregando em seu coração todo um céu radioso de claridade.

A festa de Spalanzani foi assunto das conversas por vários dias. Ainda que o professor tivesse feito todos os esforços para receber as pessoas esplendidamente, maliciosos criticavam as coisas bizarras e incongruentes que ocorreram na festa, sobretudo a rígida, muda Olímpia, à qual atribuíam, a despeito de sua beleza, a mais total estupidez. Era a razão que citavam para explicar sua ausência permanente, determinada por Spalanzani.

Natanael ouviu os comentários encolerizado, mas sem dizer nada, pois não valeria a pena mostrar àqueles engraçadinhos que era a própria estupidez deles que os impedia de ver a alma magnífica e profunda de Olímpia.

Por favor, meu caro – perguntou-lhe um dia Siegmund: – Podia me dizer como você, um rapaz inteligente, conseguiu se apaixonar por aquele rosto de cera, aquela boneca de madeira?

Natanael ia explodir de raiva, mas se conteve rapidamente e respondeu:

Diga-me, Siegmund, como os encantos celestiais de Olímpia escaparam aos seus olhos, em geral tão prontos a distinguir a beleza, e ao seu espírito alerta? Mas agradeço a Deus! Assim não há rival em você, senão um de nós teria de verter todo o seu sangue.

Siegmund percebeu o estado do amigo e concordou diplomaticamente com o que ele dizia, afirmando que em amor não se deve discutir sobre o objeto da paixão, e acrescentou:

Mas é curioso que, em relação a Olímpia, tantos companheiros pensem como eu. Nós achamos que ela é não se zangue, meu irmão muito rígida e sem alma. Ela é bem-feita, tem o rosto bonito, é verdade. Poderia até ser bela se o olhar não fosse despido de calor e de toda acuidade, se posso me exprimir assim. O andar é estranhamente cadenciado e cada um dos movimentos parece feito por mecanismo de relojoaria. Os gestos, o canto, têm ritmo odiosamente regular e sem alma como os de uma caixa de música. E a maneira de dançar é igual. Achamos que esta Olímpia tem qualquer coisa de sinistro e nós queremos ficar longe dela, pois temos a impressão de que apenas finge ser criatura viva e que há algum lamentável equívoco nessa história toda.

Natanael não se entregou ao sentimento de amargura que parecia querer tomar conta dele ao ouvir tais palavras. Ele se controlou, contentando-se em dizer gravemente:

– Para vocês, homens prosaicos e frios, pode ser que Olímpia pareça inquietante. Só às sensibilidades poéticas se revela tal organização! Apenas eu percebi seu olhar amoroso, que me iluminou a alma e os pensamentos. É com o amor de Olímpia que encontro por fim a mim se entregar a conversas vãs e vulgares, como o fazem outros espíritos superficiais. Fala pouco, é verdade, mas suas raras palavras são como hieróglifos de um mundo interior, onde reinam o amor e o conhecimento sublime da vida espiritual, contemplando a eternidade. Mas vocês não têm intuição dessas coisas e o que ela diz para vocês são palavras jogadas fora.

– Deus o guarde, meu irmão! – disse Siegmund com doçura, quase com melancolia. – Mas acho que você está no caminho errado. Conte comigo, sobretudo se... Mas não, não quero dizer mais nada.

Natanael percebeu, então, que o frio, prosaico Siegmund tinha muito carinho por ele, e apertou cordialmente a mão que o amigo lhe estendia.

Natanael esquecera, completamente, a existência de Clara, tão amada antigamente. Sua mãe, Lothar, todos tinham se esvanecido em sua mente. Só vivia para Olímpia, a quem ia ver todos os dias e para quem falava com palavras exaltadas de suas almas, coisas que Olímpia escutava com muita discrição.

Natanael sacou das profundezas de sua secretária tudo o que tinha escrito. Poemas, fantasias, visões, romances, novelas, aos quais eram acrescentados, diariamente, todos os tipos de sonetos, estâncias, canções, envoltos pelo azul do céu, e que ele lia para Olímpia durante horas, sem se cansar. Jamais tivera tão magnífico ouvinte. Ela não bordava, nem tricotava, nem olhava pela janela, nem dava de comer a seu pássaro, nem brincava com seu cãozinho favorito ou seu gatinho mimado, nem enrolava pedaços de papel entre os dedos. Nunca tinha de disfarçar um bocejo com tosse forçada e ficava quieta por muitas horas, o olhar fixo, preso aos olhos do namorado, sem o movimentar nem um pouquinho, e esse olhar pouco a pouco ia se tornando luminoso. Só quando Natanael se levantava, ao beijar sua mão, ela dizia:

– Ah-ah-ah! e logo depois: Boa-noite, querido!

Alma profunda, alma maravilhosa, gemia Natanael ao retornar ao seu quarto, só você, apenas você me compreende completamente. E tremia de felicidade ao pensar na concórdia miraculosa que existia entre sua alma e a de Olímpia e que aumentava a cada dia. Pois lhe parecia que ela se manifestava em relação às suas obras e ao seu talento poético exatamente como ele teria feito, como se a voz de Olímpia saísse de sua própria alma. O que, sem dúvida, era verdade, pois Olímpia jamais pronunciou outras palavras além das já mencionadas.

Mas se Natanael – em seus momentos de lucidez e de bom-senso, como ao despertar pela manhã, por exemplo se lembra da passividade de Olímpia e de seu mutismo, se consola dizendo: “Que significam as palavras, as palavras! A expressão de seus olhos celestiais diz mais do que toda a linguagem daqui de baixo. Como poderia uma filha do céu se acomodar aos estreitos limites traçados pelas miseráveis necessidades humanas?”

O professor Spalanzani parecia muito feliz com o relacionamento de sua filha e Natanael, dando-lhe sinais inequívocos de sua aceitação. Quando Natanael teve coragem por fim de fazer vaga de referência ao casamento com Olímpia, o professor sorriu largamente, declarando que daria à filha toda a liberdade de escolha.

Encorajado por essas palavras, o coração ardendo de desejo, Natanael resolveu jantar no dia seguinte em casa de Olímpia a fim de suplicar-lhe que dissesse, sem rodeios, de maneira explícita, o que lhe tinha confessado há muito tempo o doce olhar amoroso dela; ou seja, que ela queria ficar com ele para sempre.

Procurou o anel que sua mãe lhe tinha dado quando partira, para oferecê-lo a Olímpia, em sinal de sua eterna devoção e do presente que lhe fazia de sua própria vida, que acabava de renascer e floresceria ao lado dela. Nesse momento, as cartas de Clara e Lothar caíram no chão. Não as apanhou, porém. Encontrou o anel, colocou-o no bolso e foi para a casa de Olímpia.

No patamar da escadaria, escutou a algazarra que parecia vir do gabinete de Spalanzani: arrastar de pés, ruído de vidro partido, trancos e golpes contra a porta, misturados a palavrões e maldições.

“Deixe-a! Deixe-a! – infame – patife – é a isso que sacrifiquei a minha vida e meus trabalhos? – ha-ha-ha-ha! – não foi o que nós apostamos eu, fui eu quem fez os olhos eu, os rolamentos imbecil, com seus rolamentos maldito cão relojoeiro idiota – vai embora – Satanás – para – torneiro de cabeças de cachimbo – besta infernal – para – vai embora – deixe-a!” As vozes de Spalanzani e do terrível Coppola se entrecruzavam naquele furioso turbilhão. Natanael precipitou-se pelo gabinete, sentindo uma angústia lhe apertar o peito.

O professor segurava pelos ombros um corpo de mulher, enquanto o italiano Coppola o segurava pelos pés. Puxavam, disputavam, para lá, para cá, lutando com furor pela sua posse. Natanael recuou, tomado de horror, ao reconhecer o corpo de Olímpia. Ardendo em furiosa cólera, quis reaver sua bem-amada daqueles enlouquecidos, mas naquele momento Coppola, juntando suas forças de gigante, torce o corpo e o arranca do professor, enquanto lhe um soco tão violento, que ele tropeça e cai de costas por cima da mesa, ao meio de garrafinhas, retortas, frascos e provetas. Todos os utensílios voaram em mil pedaços, com grande retinir. Coppola, então, joga o corpo em seus ombros e desce correndo as escadas, rindo seu riso horrível e estridente, enquanto o manequim pendia sem graça, batendo ressoando nos degraus, com som de madeira.

Natanael permanece imóvel. Tinha visto tudo direitinho. O rosto de cera de Olímpia, de mortal palidez, não tinha mais olhos, apenas cavidades negras. Era uma boneca sem vida. Spalanzani rolava pelo chão. Fragmentos de vidro tinham ferido sua testa, seu peito, seus braços. O sangue jorrava. Mas se recompôs:

– Corre atrás dele, corre! Não fica aí parado. Coppelius roubou meu mais belo autômato. Depois de ter trabalhado vinte anos, e sacrificar minhas forças e minha vida! Os mecanismos, a linguagem, o andar, é tudo meu! Os olhos, os olhos é que roubei dele. Maldito, condenado! Corre atrás dele, me traz Olímpia de volta. Olha aí os olhos dela!

Natanael viu, então, dois olhos ensanguentados no soalho. Os olhos olhavam para ele. Spalanzani os segura com sua mão intacta e os joga contra Natanael. Bateram com força em seu peito. Então a loucura enfiou nele suas garras ardentes, lacerando-lhe alma e pensamentos. “Haha-ha! Roda de fogo, roda de fogo, gira, gira, alegremente, alegremente. Opa! Boneca de madeira, opa, linda boneca de madeira!” E se atira contra o professor, agarrando-o pela garganta. E o teria estrangulado, mas a barulheira tinha atraído pessoas, que acorrem em massa e puxam Natanael, salvando o professor, imediatamente socorrido. Siegmund, apesar de toda a sua força, não conseguia dominar o demente, que berrava sem parar: “Boneca de madeira, gira, gira!”, agitando seus punhos fechados. Por fim, unindo forças, um grupo o segura, o joga por terra e o amarra. Suas palavras degeneram em rugido bestial, inquietante. Foi carregado para o hospício, se debatendo numa raiva assustadora.

Antes de contar, amigo leitor, o que ocorreu depois com Natanael, posso garantir – se você tem algum interesse no habilidoso mecânico, o fabricante de autômatos Spalanzani – que as feridas dele curaram perfeitamente. Teve, porém, de deixar a universidade, pois a história de Natanael fez grande escândalo, e se considerava insolência ter introduzido fraudulentamente nos chás elegantes Olímpia os tinha frequentado com sucesso uma boneca de madeira em lugar de pessoa viva. Os juristas declararam até ser fraude insidiosa, passível de punição ainda mais severa por ter sido imposta ao público, em geral, com tanta astúcia, que ninguém – à exceção de alguns estudantes particularmente inteligentes – tinha se dado conta disso.

Embora atualmente todos bancássemos os espertos, pretendendo nos recordar da enorme quantidade de fatos que denunciavam a fraude. Mas esses próprios fatos não queriam dizer muita coisa. A quem, por exemplo, pareceria suspeito que Olímpia, segundo palavras de um dos elegantes tomadores de chá, espirrasse mais vezes do que bocejava? Quando ela espirrava, dizia esse elegante, era a mola do mecanismo escondido que dava corda a ela mesma, rangendo, etc.

O professor de poesia e eloquência cheirou rapé, bateu a tampa da tabaqueira, pigarreou e disse, em tom solene: “Honrada assembleia, senhoras e senhores, não adivinharam onde se esconde a lebre? Tudo isso não passa de alegoria, uma metáfora prolongada, compreenderam? Sapient sa!”

Mas acontece que muitos daqueles honrados senhores não ficaram satisfeitos com essa coisa toda. Essa história de autômato ficou gravada neles, produzindo, em seguida, terrível desconfiança em relação às figuras humanas em geral. Para ficarem bem seguros de que não amavam uma boneca de madeira, alguns namorados exigiam que sua bem-amada não cantasse no compasso e nem dançasse ritmadamente; que ao ouvir uma leitura, bordasse ou tricotasse ou brincasse com seu gatinho etc. Mas, sobretudo, não se contentasse apenas em ouvir, que falasse algumas vezes e suas palavras fizessem supor fosse capaz de pensar e sentir.

Algumas ligações amorosas se tornaram mais sólidas e mais agradáveis e outras foram desfeitas rapidamente. “Assim, não se pode confiar em ninguém”, dizia tanto um quanto o outro. Bocejavam demais nos chás, jamais espirrando, para não despertar suspeitas.

Como já dissemos, Spalanzani teve de fugir, para evitar inquérito policial por haver introduzido fraudulentamente um autômato na sociedade dos humanos. Coppola também havia desaparecido.

Natanael acordou um dia como se tivesse saído de pesadelo aterrador. Abriu os olhos, sentindo indizível volúpia correr por seus membros num calor suave e celestial. Deitado em sua cama, Clara se inclinava sobre ele, e sua mãe e Lothar estavam ao lado.

Por fim, por fim, meu bem-amado Natanael, você ficou curado dessa grave doença. Agora, você é meu novamente! – Clara dizia com voz enternecida, apertando Natanael em seus braços, enquanto ele, acabrunhado de melancolia e langor, deixava escorrer lágrimas ardentes, suspirando fundo: “Minha Clara, minha!”

Siegmund, que tinha fielmente acompanhado o amigo, chegou. Natanael estendeu a mão para ele:

Você é amigo de verdade. Não me abandonou.

Todos os sinais de demência desapareceram. Logo, os cuidados devotados de sua mãe, de sua noiva e dos amigos lhe devolviam as forças.

Entrementes, a felicidade retorna àquela casa, pois um tio velhinho, com quem ninguém se importava, tinha morrido, deixando para a mãe de Natanael pequena fortuna, além de um imóvel situado perto da cidade. Era lá que desejavam se instalar: a mãe, Lothar, Natanael e Clara, com quem ele deveria se unir em breve.

Natanael estava mais calmo. Tinha readquirido a inocência da infância e descoberto o coração admirável, divinamente puro de Clara. Ninguém fazia alusões ao passado. Só quando Siegmund foi se despedir, Natanael lhe disse:

Por Deus, irmão! Eu ia por um caminho ruim, mas um anjo me reconduziu, em tempo, à estrada do céu! É Clara, esse anjo. Siegmund não o deixou prosseguir, com medo de que as recordações dolorosas ressuscitassem, com força devoradora.

Finalmente, chegou a hora em que esses quatro felizes mortais iriam se instalar em sua nova propriedade. Ao meio-dia, atravessaram as ruas da cidade, pois tinham cumprido várias obrigações. O alto campanário projetava sua sombra gigantesca sobre a praça do mercado.

– Ah! disse Clara. Vamos subir mais uma vez em cima para vermos as montanhas ao longe. Assim foi dito, assim foi feito.

Os dois, Natanael e Clara, começaram a subir, enquanto a mãe voltava para casa com uma empregada. Lothar disse não querer subir todos aqueles degraus e ficaria esperando embaixo. Os dois amorosos já estavam na alta galeria da torre, de braços dados, olhando as florestas longínquas e atrás delas as montanhas azuladas, iguais a uma cidade de gigantes.

– Repare naquela moita cinzenta, engraçadinha, que parece avançar para nós disse Clara.

Natanael instintivamente põe a mão no bolso, saca a luneta de Coppola e a dirige para aquele ponto. Clara aparece enquadrada nas lentes. Súbito, uma convulsão contrai suas artérias e veias. Mortalmente pálido, via Clara, mas logo, torrentes de fogo ardem, cintilantes, em seus olhos desvairados. Urra!... Rugido horrível, de animal acuado. Depois, deu um salto no ar e grita com voz forte, enquanto ria ameaçadoramente:

– Boneca de madeira, gira, gira! Boneca de madeira, gira!

Em seguida, agarrou Clara com violência – quer jogá-la no espaço –, mas Clara segura a balaustrada, com mortal desespero, em seu pavor. Lothar ouviu as explosões de raiva do demente e os gritos de infortúnio de Clara. Terrível pressentimento o faz subir a escadaria de quatro em quatro degraus. A porta do segundo andar estava fechada! Louco de raiva e ansiedade, joga-se contra a porta, que acaba cedendo.

Os gritos de Clara soam mais fracos, agora.

– Socorro! Salvem-me! Ouvia os gritos de cima.

“Ela está morta, assassinada por este louco!”, geme Lothar.

A porta da galeria também estava fechada, mas o desespero deu a Lothar a força que não tinha. Arrebenta a porta, que gira sobre seus gonzos. Deus do céu! Clara, segura nos braços esticados de Natanael, está suspensa no espaço, por cima da balaustrada, ainda agarrando as barras de ferro com as mãos. Rápido como o relâmpago, Lothar segura a irmã, puxa-a para trás e dá um soco no rosto do demente, que tomba de costas, largando sua presa.

Lothar desce as escadas correndo, a irmã em seus braços. Está salva! Natanael começa a correr de um lado para outro da galeria, aos pulos, gritando:

– Roda de fogo, gira, gira! Roda de fogo, gira! As pessoas se juntaram ao ouvir os gritos selvagens. Entre elas se destacava a figura gigantesca do advogado Coppelius, que acabara de chegar à cidade, indo diretamente para o mercado. Queriam subir para prender o louco, mas Coppelius começa a gargalhar e diz:

– Ora! Vamos esperar que desça sozinho! E levantou o rosto, como todas as outras pessoas.

De repente, Natanael estaca, como se estivesse congelado, se dobra sobre a balaustrada, vê Coppelius, e dá gritos agudos: “Ah! Occhi belli! Occhi belli!”, salta por cima dela.

Natanael jaz no pavimento, a cabeça arrebentada. E Coppelius desaparece na multidão.

Muitos anos depois, disseram ter visto Clara, numa região longínqua, sentada ao lado de um homem de boa aparência. Estavam de mãos dadas, na soleira da linda casa de campo. Dois alegres garotos faziam travessuras à frente deles. A conclusão: Clara acabou encontrando a tranquila felicidade doméstica que convinha a seu caráter benigno e a seu gosto pela vida. Felicidade que Natanael, com sua alma dilacerada, jamais lhe poderia ter dado.

[1817]

(In: O Homem da Areia. Trad. Ary Quintella. Org. e apresentação Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012).


***


O gato preto

Edgar Allan Poe

 

Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma. Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo, simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de eventos nada mais do que domésticos. Através de suas consequências, esses acontecimentos me terrificaram, torturaram e destruíram. Entretanto, não tentarei explicá-los nem justificá-los. Para mim significaram apenas Horror, para muitos parecerão menos terríveis do que góticos ou grotescos. Mais tarde, talvez, algum intelecto surgirá para reduzir minhas fantasmagorias a lugares-comuns – alguma inteligência mais calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto, nada mais que uma sucessão ordinária de causas e efeitos muito naturais. 

Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer. Todos aqueles que estabeleceram uma relação de afeto com um cão inteligente e fiel dificilmente precisarão que eu me dê ao trabalho de explicar a natureza da intensidade da gratificação que deriva de tal relacionamento. Existe alguma coisa no amor altruísta e pronto ao sacrifício de um animal que vai diretamente ao coração daquele que teve ocasiões frequentes de testar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade dos homens. 

Casei-me cedo e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição que não era muito diferente da minha. Observando como gostava de animais domésticos, ela não perdeu oportunidade para me trazer representantes das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixinhos dourados, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato. 

Este último era um animal notavelmente grande e belo, completamente preto e dotado de uma sagacidade realmente admirável. Ao falar de sua inteligência, minha esposa, cujo coração não era afetado pela mínima superstição, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos eram bruxas disfarçadas. Não que ela jamais mencionasse esse assunto seriamente – e se falo nele é simplesmente porque me recordei agora do fato. 

Pluto – esse era o nome do gato – era minha mascote favorita e era com ele que passava mais tempo. Era só eu que o alimentava e o animal me acompanhava em qualquer parte da casa em que eu fosse. De fato, era difícil impedi-lo de sair à rua comigo e acompanhar-me. 

Nossa amizade perdurou desta forma por diversos anos, durante os quais meu temperamento geral e meu caráter – devido à interferência da Intemperança criada pelo Demônio – tinham (meu rosto se cobre de rubor ao confessá-lo) sofrido uma mudança radical para pior. A cada dia que se passava eu ficava mais mal-humorado, mais irritável, menos interessado nos sentimentos alheios. Permitia-me usar linguagem grosseira com minha própria esposa. Após um certo período de tempo, cheguei a torná-la alvo de violência pessoal. Naturalmente, minhas mascotes sentiram a diferença em minha disposição. Não apenas as negligenciava, como chegava a tratá-las mal. Mas com relação a Pluto, entretanto, eu ainda conservava suficiente consideração para conter-me antes de maltratá-lo, ao passo que não tinha escrúpulos em judiar dos coelhos, do macaco e até mesmo do cão quando, por acidente ou até mesmo por afeição, eles se atravessavam em meu caminho. Porém minha doença cresceu cada vez mais – pois que doença é pior que o vício do alcoolismo? – e, finalmente, até Pluto, que estava agora ficando velho e, em consequência, um tanto impertinente, até Pluto começou a experimentar os efeitos de meu mau humor. 

Uma noite, ao chegar em casa bastante embriagado, depois de um de meus passeios sem destino através da cidade, imaginei que o gato estava evitando minha presença. Agarrei-o à força; e então, assustado por minha violência, ele infligiu uma pequena ferida em minha mão com os dentinhos. A fúria de um demônio possuiu-me instantaneamente. Nem sequer conseguia reconhecer a mim mesmo. Minha alma original parecia ter fugido imediatamente de meu corpo; e uma malevolência mais do que satânica, alimentada pelo gim, assumiu o controle de cada fibra de meu corpo. Tirei um canivete do bolso de meu colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta pela garganta e deliberadamente arranquei da órbita um de seus olhos. Encho-me de rubor e meu corpo todo estremece enquanto registro esta abominável atrocidade. 

Quando a manhã me trouxe de volta à razão – depois que o sono tinha apagado a maior parte do fogo de minha orgia alcoólica –, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que havia cometido. Mas este sentimento foi no máximo débil e elusivo e a alma permaneceu intocada. Novamente mergulhei em meus excessos e logo afoguei na bebida toda lembrança de minha má ação.

Enquanto isso, o gato lentamente se recuperou. A órbita vazia do olho perdido apresentava, naturalmente, uma aparência assustadora, mas ele não parecia estar sofrendo mais nenhuma dor. Andava pela casa, como de costume, mas, como se poderia esperar, fugia de mim em extremo terror cada vez que chegava perto dele. Ainda me restava uma certa parte de meu ânimo anterior e a princípio lamentei que agora me detestasse tanto uma criatura que já me havia amado. Mas este sentimento logo deu lugar à irritação. E então fui acometido, como se fosse para minha queda final e irrevogável, pelo espírito da Perversidade. A própria filosofia não estudou este espírito. E todavia, assim como tenho certeza de possuir uma alma vivente, é minha convicção que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades primárias e indivisíveis, um dos sentimentos que dão origem e orientam o caráter do Homem. Quem já não se flagrou uma centena de vezes a cometer uma ação vil ou meramente tola por nenhuma razão exceto sentir que não devia? Não temos todos nós uma inclinação perpétua e contrária a nosso melhor julgamento para violar as Leis, simplesmente porque compreendemos que são obrigatórias? Pois foi este espírito de Perversidade, digo eu, que veio a causar minha queda final. Foi este anseio insondável da alma, que anela por prejudicar a si mesma, por oferecer violência à sua própria natureza, por praticar o mal pelo amor ao mal e nada mais, que me impulsionou a prosseguir e finalmente consumar a injúria que tinha infligido sobre a pequena besta inofensiva. Uma manhã, a sangue-frio, passei-lhe um laço ao redor da garganta e o pendurei no galho de uma árvore – enforquei-o com lágrimas nos olhos, sentindo ao mesmo tempo o remorso mais amargo em meu coração –, assassinei o pobre gato porque sabia que ele me tinha amado e porque eu entendia muito bem que ele não me tinha dado razão alguma de queixa – matei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado – um pecado mortal que iria manchar minha alma imortal ao ponto de colocá-la – se isso fosse possível – fora do alcance até mesmo da infinita misericórdia do Deus Mais Misericordioso e Mais Terrível. 

Na noite seguinte ao dia em que pratiquei esta ação cruel, fui despertado do sono por gritos de “Fogo!”. As cortinas de meu leito estavam em chamas. A casa inteira estava ardendo. Foi com grande dificuldade que minha esposa, uma criada e eu mesmo escapamos da conflagração. A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram consumidos e a partir desse momento entreguei-me ao desespero. 

Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou detalhando um encadeamento de fatos – e não desejo deixar imperfeito um só dos elos da corrente. No dia que se seguiu ao incêndio, visitei as ruínas. Todas as paredes tinham desabado, à exceção de uma única. Esta exceção foi a de um aposento interno, uma parede não muito grossa, que se erguia mais ou menos na metade da casa, justamente aquela contra a qual descansava a cabeceira de minha cama. O próprio reboco tinha ali, em grande parte, resistido à ação do fogo – segundo julguei, porque era feito de argamassa nova, talvez ainda um pouco úmida. Em torno desta parede estava reunida uma grande multidão; e muitas pessoas pareciam estar examinando um trecho especial dela, com minuciosa atenção. As palavras “estranho”, “singular” e outras semelhantes excitaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se estivesse gravado em bas relief  sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente maravilhosa. Havia uma corda esboçada ao redor do pescoço do animal. 

Da primeira vez que contemplei esta aparição – porque dificilmente poderia chamá-la de algo menos assombroso –, meu espanto e meu terror foram extremos. Mas, finalmente, o raciocínio e a reflexão vieram em meu amparo. O gato, segundo recordava, tinha sido enforcado em um jardim adjacente à casa. Logo que fora dado o alarme de incêndio, este jardim ficou imediatamente cheio de basbaques, um dos quais provavelmente tinha cortado a corda que prendia à arvore o gato e jogado o animal dentro de meu quarto através de uma janela aberta. Talvez até mesmo a intenção fosse boa, quem sabe queriam acordar-me do sono e lançassem o animal janela adentro para esse fim. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima de minha crueldade na própria substância do reboco recém-aplicado; o cal contido nele, misturado à amônia proveniente da carcaça, com o calor das chamas, tinha então realizado o retrato que contemplava agora. 

Embora eu satisfizesse minha razão assim rapidamente, se bem que não tivesse podido acalmar totalmente minha consciência e tentasse desse modo descartar o fato assombroso que acabei de descrever, isso não impediu que produzisse forte impressão sobre minha imaginação. Durante meses não conseguia livrar minha visão interna do fantasma do gato; e, durante esse período, retornou a meu espírito uma espécie de sentimento que se assemelhava a remorso, mas não era exatamente isso. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e a procurar, nos ambientes ordinários que agora habitualmente frequentava, outra mascote da mesma espécie, cuja aparência fosse semelhante e pudesse ocupar o vazio deixado pela primeira. 

Uma noite eu estava sentado, entorpecido de tanto beber, em um botequim da pior espécie, quando minha atenção foi subitamente atraída para um objeto preto que repousava sobre a tampa de uma das imensas bordalesas de gim ou de rum que constituíam o principal mobiliário da peça. Há vários minutos eu já contemplava fixamente a tampa desse barril, e o que agora me causava surpresa era o fato de que não houvesse percebido antes o objeto que se encontrava sobre ele. Aproximei-me a passos vacilantes, estendi a mão e toquei-o. Era um gato preto – um animal muito grande –, tão grande quanto Pluto e extremamente parecido com ele em todos os detalhes, salvo um: Pluto não tinha um pelo branco sequer em qualquer porção de seu corpo; mas este gato tinha uma mancha branca bastante grande, embora de formato indefinido, cobrindo-lhe quase inteiramente o peito. 

Assim que o toquei, o animal ergueu-se imediatamente, ronronou bem alto, esfregou-se contra minha mão e pareceu encantado com minha atenção. Tinha encontrado a própria criatura que vinha procurando. Imediatamente fui falar com o taverneiro e ofereci-me para comprar o bichano, mas ele disse que o animal não lhe pertencia – que nunca o tinha visto antes e que não fazia a menor ideia de onde tinha vindo ou a quem pudesse pertencer. 

Continuei com minhas carícias, e, quando me dispus a ir para casa, o animal demonstrou estar disposto a me acompanhar. Permiti-lhe que o fizesse; de fato, durante o caminho, ocasionalmente parava, curvava-me e fazia-lhe carícias. Quando chegamos à casa em que agora eu morava, ele familiarizou-se de imediato, adquirindo em seguida as boas graças de minha esposa. 

Quanto a mim, para meu desapontamento, logo descobri que não gostava do animal. Isto era justamente o reverso do que havia antecipado; porém – não sei como nem por que – o evidente prazer que o gato achava em minha companhia me aborrecia e enojava. Lenta e progressivamente, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se transformaram em rancor e ódio. Evitava a criatura, sempre que podia; uma certa sensação de vergonha e a lembrança de meu antigo feito de crueldade evitaram que eu o machucasse fisicamente. Durante algumas semanas, eu não bati nele nem o maltratei violentamente; mas gradualmente – muito gradualmente – comecei a encará-lo com uma repugnância indescritível e a fugir silenciosamente de sua presença odienta, como se estivesse tentando escapar do sopro sufocante de um pântano ou do hálito pestilento de uma praga. 

Sem a menor dúvida, o que originou meu rancor pelo animal foi a descoberta, logo na manhã seguinte à noite em que o trouxe para casa, de que ele, exatamente como Pluto, também tivera um dos olhos arrancado. Esta circunstância, entretanto, só levou minha esposa a gostar ainda mais dele, a qual, conforme relatei anteriormente, possuía em alto grau aquela humanidade de sentimentos que em épocas passadas fora também um de meus traços característicos e a fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. 

À medida que aumentava minha aversão pelo gato, seu amor por mim parecia crescer na mesma proporção. Seguia meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer o leitor compreender. Onde quer que me assentasse, vinha enroscar-se embaixo de minha cadeira ou saltar sobre meus joelhos, cobrindo-me de carinhos nojentos. Se eu me erguesse para caminhar, ele se intrometia entre meus pés e quase me fazia cair; ou, então, cravava suas unhas longas e afiadas em minhas roupas e procurava, desta forma, trepar até chegar a meu peito. Nessas ocasiões, embora eu ansiasse por rebentá-lo à pancada, ainda me sentia incapaz de fazê-lo, em parte pela recordação de meu crime anterior, mas especialmente – confessarei de imediato – porque tinha absoluto pavor daquele animal. 

Este pavor não era exatamente um temor da possibilidade de algum dano físico, todavia não sou capaz de defini-lo de outra forma. Estou quase envergonhado de admitir – sim, mesmo nesta cela de condenado tenho quase vergonha de admitir – que o terror e horror que o animal me inspirava tinham sido muito aumentados por uma das mais ilusórias quimeras que teria sido possível conceber. Minha esposa me tinha chamado a atenção, mais de uma vez, para o caráter da mancha de pelo branco que já mencionei e que constituía a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu tinha morto. O leitor há de lembrar que esta marca, embora grande, era originalmente muito indefinida; porém, muito lentamente, de uma forma quase imperceptível, uma forma que por muito tempo minha Razão lutou para considerar como meramente fantasiosa, acabou por assumir um contorno rigorosamente distinto. Era agora a representação de um objeto tal que a simples ideia de mencioná-lo me faz tremer. Era por isso, acima de tudo, que eu detestava e temia tanto aquele monstro e teria me livrado dele, se ao menos eu ousasse. Essa imagem, escrevo agora, era a imagem de uma coisa horrível, uma coisa apavorante... a imagem de uma FORCA! Ah, melancólico e terrível instrumento de Horror e de Crime – de Agonia e de Morte! 

E agora eis que me encontrava realmente desgraçado, um miserável além da desgraça e da miséria da natureza humana. E era um animal sem alma, cujo companheiro eu tinha destruído com desprezo, era um animal sem alma que originava em mim – eu, que era um homem, criado à imagem do Deus Altíssimo – tanta angústia intolerável! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite eu era mais abençoado pelo Repouso! Durante o dia a criatura não me deixava por um único momento; e, de noite, eu me acordava de hora em hora, despertado de sonhos cheios de um pavor indescritível, para encontrar a respiração quente daquela coisa soprando diretamente sobre meu rosto e seu enorme peso – um pesadelo encarnado do qual eu não poderia jamais me acordar, oprimindo e esmagando eternamente o meu coração! 

Sob a pressão de tormentos assim, os débeis traços que restavam de minha boa natureza sucumbiram totalmente. Os maus pensamentos se tornaram meus amigos íntimos, meus únicos amigos, logo os pensamentos mais ímpios e mais maléficos. O mau humor de minha disposição habitual transformou-se em um rancor indefinido voltado para todas as coisas e para toda a humanidade; e os acessos de fúria súbitos, frequentes e incontroláveis aos quais eu agora me abandonava cegamente e sem o menor remorso eram descarregados – ai de mim! – precisamente sobre minha esposa, a sofredora mais paciente e mais constante, que nunca emitia sequer uma palavra de queixa ou de revolta contra mim. 

Um dia ela me acompanhou, com a intenção de executar alguma tarefa doméstica, ao porão do velho edifício em que nossa pobreza atual nos obrigava a morar. O gato me seguiu pelos degraus íngremes e, quando me fez tropeçar e quase me levou a cair escada abaixo, deixou-me exasperado a ponto de enlouquecer. Erguendo um machado, esquecido em minha cólera do medo infantil que até então havia impedido que levantasse um dedo contra ele, dirigi um golpe ao animal que, sem a menor dúvida, teria sido fatal se tivesse acertado onde eu queria. Porém a machadada foi impedida pela mão de minha esposa a segurar-me o braço. Esta interferência me lançou em uma raiva mais do que demoníaca: arranquei o braço de seu aperto e, com um único golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem soltar um único gemido. 

Tendo cometido este assassinato pavoroso, imediatamente, sem remorsos e da maneira mais deliberada possível, voltei-me para a tarefa de esconder o corpo. Sabia que não podia removê-lo da casa, tanto de dia como de noite, sem correr o risco de ser observado pelos vizinhos. Uma série de projetos passou por minha cabeça. Durante algum tempo, pensei em cortar o corpo em minúsculos fragmentos que depois destruiria no fogo. Depois pensei em cavar-lhe uma cova no chão do porão. Também me passou pela cabeça jogar o cadáver no poço que ficava no pátio; ou colocá-lo dentro de uma caixa, como se fosse uma mercadoria, aplicando todos os cuidados que em geral se dedica à preparação de tais volumes e contratando um carregador para retirá-lo da casa. Finalmente, imaginei o que me pareceu ser um expediente melhor que qualquer um desses. Resolvi emparedá-lo em um dos cantos do porão – conforme dizem que os monges da Idade Média costumavam fazer com suas vítimas. 

O porão estava perfeitamente adaptado para esse propósito. Suas paredes tinham sido muito mal-construídas e há pouco tempo tinham sido novamente rebocadas com uma argamassa grosseira, que a umidade do ambiente não deixara endurecer. Além disso, em uma das paredes havia uma projeção, causada por uma falsa chaminé ou lareira que tinha sido preenchida com tijolos na intenção de assemelhá-la ao restante das paredes do porão. Não tinha dúvidas de que poderia facilmente retirar os tijolos neste ponto, enfiar o cadáver e depois restaurar a parede inteira ao estado anterior, de tal modo que olhar algum poderia detectar qualquer coisa suspeita. 

Não me enganava neste ponto. Com um pé de cabra retirei facilmente os tijolos e, depois de depositar o corpo cuidadosamente contra a parede interna, ergui-o de modo a deixá-lo em pé, apoiado contra a parede. Com pouca dificuldade recoloquei os tijolos e deixei a estrutura precisamente da maneira em que se achava antes. Tendo trazido cal, areia e uma porção de pelos de animais retirados de couros, como era costume na época, preparei, com todas as precauções possíveis, uma argamassa que não podia ser diferente da que recobria o restante da parede e com esta reboquei muito cuidadosamente os tijolos que havia recolocado. Ao terminar, sentia-me satisfeito com a perfeição do trabalho. A parede não apresentava o menor sinal de que tinha sido modificada. Recolhi a caliça do chão com o cuidado mais minucioso. Olhei ao meu redor triunfantemente e congratulei-me: “Pelo menos desta vez não trabalhei em vão”. 

Minha próxima tarefa era a de procurar a besta que tinha sido a causa de tamanha desgraça, porque tinha, finalmente, a firme resolução de matá-la. Se nesse momento tivesse podido encontrá-la, seu destino estaria selado, mas aparentemente o animal ardiloso tinha pressentido alguma coisa ou se amedrontado com a violência de minha raiva anterior, evitando apresentar-se diante de mim enquanto durasse minha má disposição. É impossível descrever ou imaginar a sensação de alívio profunda e abençoada que a ausência da detestada criatura causou em meu peito. Melhor ainda, o gato não apareceu nessa noite – e assim, ao menos por uma noite, desde que o desgraçado se introduzira em minha casa, dormi profunda e tranquilamente; sim, dormi o sono dos justos, mesmo que tivesse agora o peso de um assassinato em minha alma! 

Passaram-se o segundo e o terceiro dias e meu atormentador não regressou. Novamente eu respirava como um homem livre. O monstro tinha fugido aterrorizado e deixado para sempre minha companhia! Nunca mais iria vê-lo! Minha felicidade era suprema! O remorso ocasionado por minha ação tão negra e perversa praticamente não me perturbava. Algumas perguntas haviam sido feitas, mas fora fácil responder. Até mesmo havia sido feita uma busca pela polícia, mas naturalmente não haviam descoberto nada. Pensei que minha felicidade futura estava assegurada. 

Mas no quarto dia depois do assassinato, uma patrulha da polícia retornou, muito inesperadamente, entrou em minha casa e recomeçou a fazer uma investigação rigorosa do prédio. Achava-me seguro, todavia, devido à impenetrabilidade do lugar em que escondera o cadáver, e assim não me senti nem um pouco constrangido pela busca. Os policiais ordenaram-me que os acompanhasse enquanto procuravam. Não deixaram nem canto nem escaninho sem explorar. Finalmente, pela terceira ou quarta vez, desceram ao porão. Não senti estremecer nem um só de meus músculos. Meu coração batia calmamente como o de alguém perfeitamente inocente. Caminhei de ponta a ponta do porão. Cruzei os braços e fiquei andando de um lado para outro. A polícia finalmente satisfez-se e estava a ponto de partir, desta vez em definitivo. A alegria em meu coração era grande demais para ser contida. Ansiava para dizer ao menos uma palavra de triunfo e queria garantir-me duplamente de que eles me julgavam inocente. 

– Cavalheiros – disse finalmente, enquanto o grupo subia as escadas –, estou encantado por ter desfeito todas as suas suspeitas. Desejo a todos uma boa saúde e um pouco mais de cortesia. A propósito, cavalheiros esta casa, esta casa é muito bem-construída. (Tomado de um violento desejo de aparentar a maior naturalidade, falava sem prestar muita atenção no que dizia.) Posso até dizer que é uma casa excelentemente bem-construída. Estas paredes – já estão de partida, cavalheiros? –, estas paredes são muito sólidas. 

E foi neste ponto que, tomado por um estúpido frenesi de bravata, bati pesadamente com uma bengala que tinha na mão justamente sobre aquela porção da parede atrás da qual jazia o cadáver da esposa que tinha apertado tantas vezes contra o peito. 

Possa Deus escudar-me e proteger-me das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a reverberação dos golpes que havia dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma voz de dentro do túmulo! – respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de uma criança, mas rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo, totalmente anormal e desumano – um uivo –, um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, tal como só poderia ter subido das profundezas do inferno, um berro emitido conjuntamente pelas gargantas de centenas de condenados à danação eterna, torturados em sua agonia, e pelos demônios que exultam em sua condenação. 

É tolice tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede oposta. Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um misto de espanto e profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços robustos esforçava-se por esboroar a parede. Ela caiu inteira. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os olhos dos espectadores, na mesma posição em que eu o deixara. Mas sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e uma chispa de fogo no único olho, sentava-se a besta horrenda cujos ardis me tinham levado ao assassinato e cuja voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro do túmulo! 


[1843]
 

(Fonte: Internet)

*** 


Sem olhos

Machado de Assis

 

O chá foi servido na saleta das palestras íntimas às quatro visitas do casal Vasconcelos. Eram estas o sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o desembargador Cruz. A conversa, antes do chá, versava sobre a íntima soirée do desembargador; quando o criado entrou, passaram a tratar da morte de um conhecido, depois das almas do outro mundo, de um conto de bruxas, finalmente de lobisomem e das abusões dos índios.

– Pela minha parte – disse o Sr. Bento Soares –, nunca pude compreender como o espírito humano pode inventar tanta tolice e crer no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito às suas próprias ilusões; para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem feito...

– Que tem isso? – observou o desembargador apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse o chá –; a vida do homem é uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras.

– Queres mais chá, Maria? – perguntou a dona da casa à esposa de Bento Soares que acabava de beber a última gota do seu.

– Não.

O bacharel Antunes apressou-se a receber a xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça, que lhe rendeu o mais doce dos sorrisos.

– Eu acompanho o desembargador –, disse Bento Soares.

Enquanto o bacharel Antunes ampliava ao marido de Maria o obséquio que acabava de prestar a esta, com a mesma solicitude, mas sem receber do mesmo nem outro sorriso, e passava ao criado a xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas ideias acerca das abusões humanas. Bento Soares estava profundamente convencido que o mundo todo tinha por limites os do distrito em que ele morava, e que a espécie humana aparecera na Terra no primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento. Esta convicção diminuía ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e reduzia a história do planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e vários acontecimentos locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia tempos pré-soáricos. Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da carocha, mal podia compreender que houvesse homem no mundo capaz de ter crido neles uma vez ao menos.

A conversa porém bifurcou-se; enquanto o desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa algumas notícias relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas senhoras conversavam com o bacharel sobre um ponto de toilette... Maria do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo, porquanto as feições eram consoantes à estatura; tinha uns olhos miúdos e redondos, uma boquinha que o bacharel comparava a um botão de rosa, e um nariz que o poeta bíblico só por hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão, que, essa, sim, era um lírio dos vales – lilium convalium –, parecia arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu filho; e eu peço perdão desta mistura de cousas sagradas com profanas, a que sou obrigado pela natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num altar; mas, se movia os olhos, era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito peculiar de usar deles que enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia nessa noite um vestido cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as duas senhoras. Antunes, sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à esposa de Bento Soares, opinava que era geral acontecer o mesmo às demais cores; donde se pode razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais bela de Maria não era o vestido, mas ela mesma.

Uma contestação, em voz mais alta, chamou a atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento Soares dizia que o desembargador mofava da razão afiançando acreditar em almas do outro mundo; e o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas não era cousa que absolutamente se pudesse negar.

– Mas, desembargador, isto é querer supor que somos uns beócios. Pois fantasmas...

– Não me dirá nada de novo –, interrompeu Cruz –; sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não obstante, existem.

– Como as bexigas; também se diz muita cousa contra elas.

– Fantasmas! – exclamou Maria do Céu –. Pois há quem tenha visto fantasmas?

– É o desembargador quem o diz – observou Vasconcelos.

– Deveras?

– Nada menos.

– Na imaginação – disse o bacharel.

– Na realidade.

Os ouvintes sorriram; Maria fez um gesto de desdém.

– Se a entrada na Relação dá em resultado visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas às minhas ambições – observou o bacharel olhando para a esposa de Bento Soares, como a pedir-lhe aprovação do dito.

– Os fantasmas são fruto do medo – disse esta, sentenciosamente –. Quem não tem medo não vê fantasmas.

– Você não tem medo? – perguntou a dona da casa.

– Tanto como deste leque.

– Sempre há de ter algum – opinou Vasconcelos.

– Não tenho medo de nada nem de ninguém.

– Pode ser – interveio o desembargador –; mas se visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria apavorada.

– Alguma bruxa?

– O Diabo?

– Um defunto à meia-noite?

– Um duende?

Cruz empalidecera.

– Falemos de outra cousa – disse ele.

Mas o auditório tinha a curiosidade aguçada, e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam crescer o apetite. Os homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles. Cruz imolou-se ao sufrágio universal.

– O que eu vi foi há muitos anos – disse ele –; ainda assim conservo a memória fresca do que me aconteceu. Não sei se poderei ir até o fim; e desde já estou certo de que vou passar uma triste noite...

Uma risadinha de Maria do Céu interrompeu o desembargador.

– Prepare o auditório! – disse ela –. Vamos ver que a montanha dá à luz um ratinho.

Alguns sorriram; mas o desembargador estava sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de rapé, enquanto Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande silêncio; só se ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu. O desembargador olhou para os interlocutores, como a ver se era possível evitar a narração; mas a curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível resistir.

– Vá lá! – disse ele –; Contarei isto em duas palavras. Quando eu estudava em São Paulo raras vezes gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar algumas semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu primeiro e último namoro; paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a morte extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma casa da rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que parecia ter mais de cinquenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os dois moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de cima não tinha criado.

A primeira vez que o vi foi logo no dia seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor dei com ele na escada, que ia do primeiro para o segundo andar; de pé, com livro aberto nas mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a olhar de baixo para ele, durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a suspeitar se seria algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.

Dois dias depois, estando eu à noite em casa, perto das onze horas, a ler na minha sala, senti alguém bater-me à porta; fui abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na mão, talvez o mesmo que lia dois dias antes na escada, não sei.

– Venho incomodá-lo, não? – disse ele.

Fiz um gesto duvidoso, e fiquei a olhar para ele como quem espera uma explicação.

– O morador da loja – continuou ele – disse-me hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar uma cousa. Sabe hebraico?

– Não.

– É pena! - disse ele consternado.

Ficou alguns instantes silencioso a olhar para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:

– Ando a ver se meto dente numa passagem de Jonas.

Dizendo isto, sentou-se abrindo o livro sobre os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o nome daquela região; mas o que ele tinha naquele lugar das pernas eram dois verdadeiros pregos, tão magro estava. A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico. Esteve algum tempo ainda silencioso, até que continuou:

– Há aqui um versículo de Jonas, é o 11 do cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda?”. Como entende o senhor este versículo?

A ideia de que o vizinho era doido apoderou-se logo de meu espírito. Que outra cousa seria, vindo consultar a semelhante hora a um vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas? Também eu não tinha medo nesse tempo – tal qual como a Sra. D. Maria do Céu –, deixei-me estar quieto na cadeira, a olhar sem responder, contendo uma grande vontade de rir.

– Que lhe parece? – repetiu o vizinho.

– Que quer o senhor que me pareça?

– “Homens que não sabem discernir a mão direita da esquerda”; frase que, geralmente, tem um sentido óbvio, e vem a ser nada menos que isto: o profeta refere-se às crenças ninivitas. Jeová quer perdoar à cidade por amor dos meninos que ela encerra. Mas eu dou do texto uma interpretação que vai assombrar o mundo.

– Sim?

– Jonas não alude às crianças, mas aos canhotos que são os homens que não podem discernir a direita da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a importância da minha interpretação. Duas cousas se concluem dela: primeira, que os ninivitas eram geralmente canhotos; segunda, que o ser canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão nasceu uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao Diabo é estar fora do espírito bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.

A profunda convicção com que ele disse tudo isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim, confesso que me impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era concordar, declarando que a sua opinião era por força verdadeira.

– Não lhe parece? – disse ele –. Contudo, não sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém que me dissesse se o texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a expressão bíblica é essa ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei um livro. Afiança-me que não sabe hebraico?

– Não sei sequer o alfabeto.

– Nesse caso há de perdoar.

Dizendo isto, ergueu-se, fez-me uma cortesia e deu um passo para a porta. Ali parou e voltou-se.

– Esquecia-me dizer-lhe o meu nome; devia de ser a primeira cousa. Chamo-me Damasceno Rodrigues; moro há três anos aqui em cima, onde estou às suas ordens. Viva.

Não esperou que lhe dissesse o meu nome; curvou-se e saiu. Imaginam facilmente como fiquei; a vontade de rir foi o primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio e curiosidade. No dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca de Damasceno Rodrigues. Tirou-as e o que liquidei delas foi que o meu vizinho morava ali havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica; que vivia pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da vizinhança ou ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro ninguém o tinha por doido, mas que algumas velhas o supunham ligado com o Diabo. Esta crença, comparada com a ideia que o homem tinha a respeito do Canhoto, dava bem para uma anedota romântica que eu podia escrever logo depois que voltasse a São Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo alguns dias depois.

O segundo andar era antes um sótão puxado à rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais. Subi. Achei-o na sala, estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era tão velho e alquebrado como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um aparador, uma mesa, alguns farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de fios, tais eram as alfaias da casa de Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram duas, adornavam-se com umas cortinas de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a cômoda e a mesa havia alguns objetos disparatados; por exemplo, um busto de Hipócrates ao pé de um bule de louça, três ou quatro bolos, meio pote de rapé, lenços e jornais. No chão também havia jornais e livros espalhados. Era ali o asilo do vizinho misterioso.

Achei-o, como lhes disse, estirado na rede, a olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu falei-lhe e ele ergueu um pouco a cabeça.

– Quem é? – disse ele.

– Eu.

– O senhor?

– Seu vizinho de baixo.

– Ah! – disse ele erguendo-se –. Pode entrar.

– Não se incomode; vinha apenas pagar-lhe a visita.

Damasceno tinha-se levantado; e das cadeiras ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas, porque das outras duas, uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três pés somente.

– Não é incômodo – disse ele sorrindo –; dá-me até muito prazer.

O riso de Damasceno era pior que a seriedade; sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um gesto diabólico; à tudo resiste porém a ambição do escritor juvenil. Eu queria uma novela, e estava disposto a conversar com o Diabo em pessoa. Para dizer alguma cousa, falei-lhe na passagem de Jonas.

– Descobriu alguma cousa? – perguntei-lhe.

– Nada -–tornou ele –; mas cuida que pensei mais em semelhante assunto?

– Suponho.

– Qual! No dia seguinte deixei-o de lado.

– Entretanto, creio que era importante decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao Diabo...

Damasceno interrompeu-me com uma risadinha sardônica e gelada, que me tapou a boca. Não tive ânimo de continuar e faltava-me assunto para entretê-lo. Ele, entretanto, meteu as mãos nas algibeiras das calças e começou a andar de um para outro lado, ora cabisbaixo e silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma cousa que eu não podia perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice precoce, uma expressão de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar impunemente. Ao mesmo tempo era tão extraordinária a figura e tão singulares os costumes dele, que a gente tinha prazer em o conversar e atrair, quando menos por sair um pouco da vulgaridade dos outros homens.

Damasceno passeou cerca de oito minutos, sem me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de mim.

– Mancebo – disse ele –, quais são as suas ideias a respeito da lua?

– Poucas... algumas notícias apenas.

– Sei – disse ele desdenhosamente –; o que anda nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O que eu lhe pergunto...

– Adivinho.

– Diga.

– Quer saber se também suponho que o nosso satélite seja habitado?

– Qual! São devaneios, são conjecturas... A lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma ilusão dos sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto que a ciência ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em certos dias do mês, o olho humano padece uma contração nervosa que produz o fenômeno lunar. Nessas ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo, branco e luminoso! O círculo está nos próprios olhos do homem.

– Pode ser.

– Nem é outra cousa.

– Donde se conclui que todos somos lunáticos –, aventurei eu galhofeiramente.

– Talvez – redarguiu ele rindo muito.

Depois de rir, caiu na rede; as pernas, que andavam à larga nas calças aliás estreitas, cruzavam-se à maneira oriental, e ele ficou sentado defronte de mim.

– Lunáticos! – repetiu ele.

– Dada a sua teoria – expliquei eu.

– Teoria de lunático?

– Perdão.

Já me não ouvia; com os dedos no ar fazia figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e triângulos, rindo à toa, com o riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não havia dúvida; era uma alma sem consciência. Arrependi-me de alguma cousa que disse menos pousada, e procurei ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o irritar. Não me foi difícil; três vezes me despedi, sem que ele me respondesse; saí sem objeção.

Chegando ao meu aposento, senti alguma cousa semelhante ao prazer de um homem que foge a um perigo ou a um incidente desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem juízo não era segura. Eu cuidava ter diante de mim um espírito original; saía-me um louco: o interesse diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar ali as minhas relações com Damasceno.

Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intactas todas as molas do cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de cabeça e palpitações do coração.

– Temo que isto vá a acabar – disse ele à segunda vez.

– Não diga isso!

– Verá; estou à beira da eternidade; vou dar o salto mortal.

Não alimentei a conversa, e saí. Nessa noite contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me procurara com muitas instâncias dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era provavelmente alguma nova fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não queria animar os desvarios de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava em casa nem o procurei. Alta noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de cima. Subi devagarinho, colei o ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada mais ouvi.

Soube no dia seguinte que Damasceno adoecera. Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca fechava as portas, não foi preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado na cama, com os olhos cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por fora da coberta. Abriu os olhos, e sorriu ao ver-me.

– Que tem? – perguntei.

– Uma opressão no peito.

– Tomou alguma coisa?

– Que me fizesse mal?

– Não; algum remédio.

– Não tomei nada.

– Bem; é preciso ver o que isso é; vou mandar vir um médico.

Damasceno tinha os olhos cravados na parede; não me respondeu. Ia sair para dar ordens ao meu criado quando vi o enfermo sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava ao lado dos pés, clamar aflito:

– Não! Ainda não! Vai-te! Depois! Daqui a um ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda! Deixa-me!

Corri a Damasceno, falei-lhe, apalpei-lhe a testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se. Uma vez deitado, ficou arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os olhos para os pés da cama.

– O que é que sente? – perguntei.

Não disse nada; talvez me não ouvisse. Saí para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do enfermo. Estava dormindo. O médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou enfim alguma cousa, que imediatamente mandei preparar na mais próxima botica. Mandei a uma casa da vizinhança arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me a não sair de casa nesse dia.

Não contava com o amor; duas linhas escritas em uma folha de papel bordado – como se usava no meu tempo – vieram mudar a resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer muitas recomendações ao criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite achava-me em casa; fui ter logo com o doente. Achei-o sossegado.

– Entre, entre, meu amigo – disse ele –; deixe-me chamar-lhe assim porque não tenho ninguém mais a quem dê esse doce nome.

– Está melhor?

– Estou; mas são melhoras passageiras.

– Não diga isso.

– São. Isso há de acabar cedo; sabe o que é a morte?

– Imagino.

– Não sabe. A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.

– Pois matemos o verme–- disse eu, apresentando-lhe uma colher do remédio.

Damasceno olhou para o remédio e para mim e sorriu, com uma expressão de tranquilo ceticismo.

– Pobre moço! – disse ele depois de alguns instantes de silêncio.

– Vamos!

– Logo mais, amanhã, ou depois que eu morrer. Talvez ainda possa fazer algum beneficio ao meu cadáver. A alma não bebe água.

Insisti, mas foi baldado. Damasceno resistiu intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe pareceram excessivas começou a irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio, proveniente da exacerbação, cedi; fui ter com o criado que me referiu haver Damasceno tomado apenas uma colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o tranquilo.

A luz do quarto era pouca, e esta circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do pobre velho alienado não menos que às recordações que já me prendiam a ele, tornara a situação por extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o pulso; batia apressado; a testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos esses exames sem dizer nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à minha pessoa e à situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência do enfermo em continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de desânimo, e ao sair disse-me que era homem perdido.

A perspectiva não era para mim agradável. Não podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de assistir à sua morte naquela noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois colegas de São Paulo, residentes na Corte, pedindo-lhes que viessem passar a noite comigo. O criado saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.

No fim de alguns minutos, vi que Damasceno se agitava. Perguntei-lhe o que tinha.

– Nada – respondeu ele–-; mudo de posição. Que horas são?

– Nove e um quarto.

– O senhor pretende passar a noite comigo?

– Naturalmente.

O rosto do enfermo iluminou-se.

– Boa alma! – exclamou ele.

Depois procurou a minha mão e teve-a presa entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma expressão de agradecimento, que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e dura.

– Que lhe fiz eu para merecer tanta dedicação? – perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.

– Não falemos disso.

Damasceno calou-se.

– Que idade tem?

– Vinte e dois anos.

– Feliz! Feliz!

Calou-se outra vez e pareceu concentrar-se de novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para mim dizendo:

– Quero pagar-lhe os seus benefícios.

– Pagará depois.

– Não; há de ser já.

Ergueu o corpo, apoiando o cotovelo na cama, pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos de uma luz repentina e única.

– Mancebo – disse ele, com a voz cava –; não olhe nunca para a mulher do seu próximo!

– Sossegue – disse eu.

– Sobretudo não obrigue a que ela olhe para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda.

A gravidade com que ele proferiu estas palavras excluía toda a ideia de loucura. A própria fisionomia parecia revelar o regresso da consciência. Olhei para ele algum tempo sem responder, nem ousar pedir-lhe explicação. Damasceno fitou o ar com expressão melancólica, abanou a cabeça três vezes e suspirou. Depois a cabeça caiu sobre o ombro, e ele ficou algum tempo quieto. Ouvindo o sino das dez horas, abriu os olhos e voltou-se para mim.

– Por que se não vai deitar?

– Não tenho sono.

– Perder uma noite por causa de um desconhecido!

– Não se preocupe comigo; descanse, que é melhor.

Damasceno meteu a mão debaixo do travesseiro, como procurando alguma cousa. Era uma chave. Deu-ma.

– Abra-me a gavetinha da cômoda, a do lado da rua.

– E depois?

– Tire de lá uma caixinha.

Obedeci. A caixinha era de couro e teria um palmo de comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama e olhou mudo para ela. Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e ele tirou de dentro um pequeno maço de papéis.

– Se eu morrer – disse ele –, queime isto.

– Feche tudo, é melhor.

– Não é preciso. O que aí está é um segredo, mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há pouco que não consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu próximo? Pois bem; saberá o resto.

A curiosidade pendurou-se-me dos olhos e, apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele reparasse nisto, porque vi-o sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.

– São papéis de família – continuou Damasceno –; cousas que só a mim interessam. Há aqui porém uma cousa que o senhor pode ver desde já.

Dizendo isto, destacou do maço de papéis uma miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da luz e vi uma formosa cabeça de mulher, e os mais expressivos olhos que jamais contemplei na minha vida. Ao restituir a miniatura reparei que ele a desviou apressadamente dos olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre os papéis.

– Viu-a?

– Vi.

– Não me diga nada do que lhe parece. Imagino qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha há quinze anos, diante do original. Ela tinha vinte anos; eu, vinte e cinco...

Damasceno interrompeu-se; arrependia-se talvez; e eu não ousava, em tal situação, mostrar-me indiscreto e curioso. Ele entretanto atava o maço de papéis e a miniatura com um cadarço velho, e entregou-me tudo.

– Guarde. Jura que queimará isso?

– Juro.

Guardei no bolso o maço enquanto ele, reclinando o corpo, ficou tranquilo. Durante cinco minutos nada disse; começou a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de louco. Esta circunstância chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o retrato cousas sem valor, a que ele em seu desvario atribuía tamanha importância? Damasceno falou de novo.

– Guardou?

– Guardei.

– Deixe ver.

– Está aqui – disse-lhe eu, mostrando o embrulho.

– Está bem.

E depois de uma pausa:

– Eu era moço, ela, moça; ambos inocentes e puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.

– Um olhar!

– Era no interior da Bahia; Lucinda casara-se na capital com o dr. Adr... Não importa o nome; era médico como eu, mas rico e dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por Jeremoabo naquele tempo. Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele. A mulher era linda como o senhor a viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento. Havia nela tanta modéstia e recato – talvez medo –, que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Mas não era assim; o marido era cauteloso e suspeitoso; ameaçava-a e fazia-a padecer. Eu percebi isso, e a compaixão apoderou-se de mim. A compaixão é um sentimento pérfido; abstenha-se dele ou combata-o. Quem sabe se a que sente agora por mim não lhe dará mau resultado?

Estremeci ouvindo esta última palavra. Ele parou um instante e continuou:

– Lucinda não me olhava nunca. Era medo, era talvez uma intimação do marido. Se me falava alguma vez era secamente e por monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor pelo mais natural dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem repercussão. Um dia, em que a vi mais triste que de costume, atrevi-me a perguntar-lhe se padecia. Não sei que tom havia em minha voz, e certo é que Lucinda estremeceu, e levantou os olhos para mim. Cruzaram-se com os meus, mas disseram nesse único minuto – que digo? Nesse único instante – toda a devastação de nossas almas; corando, ela abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a confirmação de seu crime; eu deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No meio dessa sonolência moral em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à realidade da vida. Ao mesmo tempo achou-se defronte de nós a figura do marido. Nunca vi mais terrível expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma Medusa. Lucinda caiu prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a explicar nem a pedir explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à primeira manifestação silenciosa da cólera uma cousa mais apagada e mais terrível, uma resolução fria e quieta. Com um gesto despediu-me; quis falar, ele impôs-me silêncio com os olhos. Quase a sair, voltei e, apesar da oposição, expus-lhe toda a singularidade de seu procedimento. Ouviu-me calado. Vendo que nada alcançava e não querendo que sobre a infeliz pairasse a menor suspeita, nem que ela padecesse sem outro motivo mais grave, expus-lhe francamente os meus sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição que Lucinda me inspirara, protestando com todas as forças pela inteira dignidade da infeliz. Riu-se, e não me disse nada. Despedi-me e saí...

Estas recordações pareciam abater o enfermo. A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca; ele fez uma longa pausa, cobrindo os olhos com as mãos ocas e transparentes. Alguns minutos depois continuou:

– Passaram-se algumas semanas. Um dia, levado por necessidades de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em Lucinda e um pouco receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia morrido; e a pessoa que me deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não revelou mais nada, apesar de minhas instâncias. Que teria havido? A ideia de que o marido a houvesse assassinado apoderou-se de meu espírito; mas eu não ousava formular a pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera suicídio, de outros, que desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas doente e às portas da morte. Esta diversidade de notícias era claro indício de que alguma cousa grave se passava ou estava passando. Fui ter à propriedade do marido, resoluto a saber tudo e a salvar a vida da inocente, se fosse possível...

Damasceno interrompeu-se de novo. Estava cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por algum tempo a narração ou guardasse o fim para o dia seguinte, apesar da curiosidade que me picava interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita lucidez com que ele me referia aquelas cousas, a comoção da palavra, que nada tinha do vago e desalinhado da palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que me consultara acerca de Jonas e me expusera uma teoria nova acerca da lua? Enquanto, em meu espírito, resolvia esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito, como buscando melhor cômodo. A vela estava a extinguir-se, acendi outra e fui até à janela ansioso pelo criado e os dois amigos a quem escrevera. A rua estava deserta; apenas ao longe se ouvia o passo de um ou outro transeunte. Voltei ao quarto. Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado sobre os travesseiros.

– Não tenha medo – disse ele –, venha ouvir o resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o médico. Logo que soube que eu o procurara, veio receber-me contente. Disse-lhe francamente o que ouvira dizer a respeito da mulher, as opiniões e versões diferentes, a necessidade que havia de instruir o povo da verdade e retirar de sobre ele alguma suspeita terrível. Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me que eu fizera bem em ir vê-lo; que Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de cogitar na punição que daria ao olhar da moça, resolvera castigar-lhe simplesmente os olhos... Não entendi nada; tinha as pernas trêmulas e o coração batia-me apressado. Não o acompanharia decerto, se ele, apertando-me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até uma sala interior... Ali chegando... vi... oh! É horrível! Vi, sobre uma cama, o corpo imóvel de Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê”, disse ele, “só lhe castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca, oh, nunca mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; Ele os vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu coração: “Os olhos delinquiram, os olhos pagaram!”.

A cabeça do enfermo rolou sobre os travesseiros, enquanto eu, aterrado do que ouvia e da expressão de sincero horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de mim como procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.

De repente, dando um estremeção, ergueu a cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da cama:

– Vai-te! – exclamou ele aflito –. Vai-te! Ainda não!... Olhe!... Olhe! Lá está ela! Lá está!... O dedo magro e trêmulo apontava alguma cousa no ar, enquanto os olhos, mortalmente fixos, resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana. Insensivelmente olhei para o lugar que ele indicava... Olhei; e podem crer que ainda hoje não esqueci do que ali se passou. De pé, junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensanguentadas.

Naquela meia luz da alcova, e no alto de uma casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e uma estranha aparição, confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a razão. Batia-me o queixo, as pernas tremiam-me tanto, eu ficara gelado e atônito. Não sei o que se passou mais; não posso dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos se me apagaram também, e perdi de todo os sentidos.

Quando dei acordo de mim, estava no meu quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara chamar. Ambos procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara no quarto de Damasceno; precaução ociosa, porque nada me lembrava então e o abalo fora tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel, entre a agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.

Acordei com sol alto. Pude então recordar a cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e gelar a alma. Quis ir ver o doente porque, apesar dos sucessos anteriores, interessava-me o pobre velho condenado a uma triste visão perpétua.

– É tarde! – disseram-me.

– Por quê?

– O doente morreu.

Senti que uma gota me brotava dos olhos, foi a única lágrima que ele obteve dos homens.

Meus colegas referiram-me que a morte sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado. Damasceno morreu a falar das mais desencontradas cousas: de guerras, de meteoros e de São Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar o sol, que dizia estar diante dele. Morreu enfim, ou antes, restituiu-se à eternidade, segundo a expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto que visitara por algum tempo a terra.

Não pude assistir ao enterro; estava abatido e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério. Com um deles fui dormir aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las debaixo do mesmo teto em que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o que pertencia a Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de algumas apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.

Só muitos dias depois atrevi-me a ver de novo o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não foi sem terror, e arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me reproduziu logo ante os olhos. Era miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo; eu compreendia não só a loucura de Damasceno, mas também a ferocidade do esposo.

O desembargador fez pausa, no meio do geral silêncio de constrangimento que sua narração produzira. Vasconcelos foi o primeiro que falou:

– Não podemos duvidar que o senhor visse a figura dessa mulher – disse ele –; mas como explicar o fenômeno?

– A dificuldade é maior do que pensa – acudiu o desembargador –. O episódio teve um epílogo.

– Ah!

– Quando referi a aparição a algumas pessoas, ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam o caso a um pesadelo. Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais tarde, já senhor de mim, determinei contar a catástrofe de Damasceno em um jornal que escrevíamos na Academia. Tratando de colher alguma cousa mais acerca do infeliz, vim a saber, com grande surpresa, que ele nunca estivera na Bahia, nem saíra do Sul. Já então não era só o interesse literário que me inspirava; era a liquidação de um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno. Casara aos vinte e dois anos em Santa Catarina, donde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto, encontrar-se com o original do retrato, aos vinte e cinco, solteiro, em Jeremoabo; finalmente, a miniatura que me confiara era simplesmente o retrato de uma sobrinha sua, morta solteira. Não havia dúvida; o episódio que ele me referira era uma ilusão como a da lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de alienado.

– Mas, sendo assim...

– Sendo assim, como vi eu a mulher sem olhos? Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é certo, tão claramente como os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os observadores da natureza humana lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um abismo ao pé de si? Como é que Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?

– O seu caso é talvez mais simples que esses todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com que o senhor visse o que ele supunha ver.

– Pois é pena! – exclamou o desembargador –, a história de Lucinda era melhor que fosse verdadeira. Que outro rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com um ferro em brasa os mais belos olhos do mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos? Crê agora em fantasmas, D. Maria do Céu?

Maria do Céu tinha seus olhos baixos. Quando o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu, ergueu-se, e a junto e de corrida se encaminhou para o bacharel Antunes. O bacharel fez o mesmo; mas foi dali a uma janela talvez tomar ar , talvez refletir a tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraismo das Escrituras.

[Jornal das famílias, dez. 1876 a fev. 1877]

(In: Obra completa. São Paulo: Nova Aguilar, 2015, vol. 2).


***


Os olhos que comiam carne

Humberto de Campos


Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a janela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou.

Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.

– Entra, Roberto.

O criado empurrou a porta, e entrou.

– Esta lâmpada está queimada, Roberto? – indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.

– Não, senhor. Está até acesa.

– Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? – exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.

– Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.

– A janela está aberta, Roberto? – gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.

– Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.

Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.

A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.

A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.

Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.

Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.

Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.

Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:

– Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .

O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.

O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contato, por meio de delicadíssimos fios de hêmera, liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contato direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações europeias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.

Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.

Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.

Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.

Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.

Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.

– Abra os olhos! – diz o doutor.

O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!

De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.

– Afastem-se! Afastem-se – intima, num urro que faz estremecer a sala toda.

E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...

[1932]

(In: O monstro e outros contos. São Paulo: Mérito, 1962.)

 

***


As rosas

Júlia Lopes de Almeida

 

O meu jardineiro era um homem de feio aspecto, todo coberto de pelos eriçados, vermelhaço de pele e de olhar desconfiado e sombrio.

Toda a gente me dizia:

– Olha que aquele sujeito compromete a tua casa! Põe-no fora!

Mas, como ele era calado, metido consigo, e porque, principalmente, tratava muito bem das minhas flores, eu levantava os ombros:

– Não era tanto assim! O pobre homem! Aqueles modos de animal bravio, não os tinha decerto por culpa sua!

E assim íamos vivendo.

Uma tarde, em setembro, desci ao jardim. Que crepúsculo aquele! No céu, esgarçado de nuvens, a lua, em foice, brilhava já, e com tamanha doçura, que dava vontade na gente de não fazer outra coisa senão olhar para ela! Havia também no ar, transparente e calmo, tal delicadeza de colorido, que a minha alma ficaria nela estática, se os olhos, percorrendo tudo, não vissem logo a infinidade de rosas, que as minhas roseiras prometiam.

– Quantos botões, Mãe do Céu!

– ⁠Tudo isto abre esta noite – resmungou com voz soturna o jardineiro... – Amanhã haverá centenas de rosas no jardim!

A minha fantasia desencadeou-se. Centenas de rosas frescas, todas abertas, deveriam dar uma graça nova àquele recanto, pouco acostumado a semelhante fartura de flores.

Eu mesma queria colhê-las ainda frescas de orvalho: mandaria um ramalhete à minha mãe, cobriria de rosas a sepultura de minha filha, encheria de rosas a minha casa...

E, usando de uma forma imperativa e severa, pouco comum em mim, disse ao medonho e hirsuto jardineiro que não tocasse nenhuma flor! Seria eu quem as colhesse todas!

Ele curvou-se, em obediência.

 

Nessa noite, fui cedo para a cama, preparando-me para madrugar no dia seguinte. E tal era o meu propósito, que peguei logo no sono doce e tranquilo.

Eram seis horas e já eu estava no jardim. Como quem desperta de um sonho, apatetada, olhei à roda e só vi folhas... Folhas e mais folhas verdes! Nem uma flor!

Gritei pelo jardineiro, e ele veio, como por encanto, num momento, mas com tal jeito e tão demudadas feições, que tive medo.

Os olhos, de vermelhos, eram só sangue; a barba áspera, longa e ruiva estava revolvida como por um vento de loucura, e nos grossos braços tisnados tinha sinais fundos de unhadas...

– As minhas rosas?! – perguntei-lhe, disfarçando o pavor que a sua figura estranha me infundia.

– ⁠ Estão aqui! – Disse ele, com voz grossa, como um baixo de órgão de catedral; e caminhou para o quarto.

Fui atrás dele, espantadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se não molhasse na relva – cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo.

 

O quarto do jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé de dois limoeiros da Pérsia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta, havia uma latada de maracujá, e, à esquina, encostados à parede, estavam os utensílios de jardinagem.

– Que quererá ele? – perguntava a mim mesma. De repente, estaquei:

– Não entro – respondi, a um gesto que me fazia.

– Então, olhe daí! – replicou o homem bruscamente, escancarando a porta.

Encostei-me ao umbral para não cair. No meio do quarto, sob uma avalanche de rosas perfumadíssimas, entrevi o corpo de uma mulher.

– Era minha filha – disse o jardineiro, entre soluços que mais se assemelhavam a uivos que a dor humana; – um dia abandonou-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio bater ao portão, muito chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora?! Quis fazê-la jurar que desprezaria agora esse bandido, para viver só no meu carinho... Só no meu carinho!... Eu havia de tratá-la com todo o mimo, como se for uma criancinha... Fiz-lhe mil promessas, de joelhos, com lágrimas... Sabe o que me respondeu, a tudo?! Que amava ainda o outro! 

Cego de raiva, matei-a; ah! matei-a e não me arrependo... Antes morta por um pai honrado do que batida por um cão qualquer... Depois de morta... achei-a linda, linda! Mas, coitadinha! vinha miserável, quase nua... tive pena, e para fazê-la aparecer bem a Nossa Senhora, vesti-a de rosas!...

[1903]

 

(In: Ânsia eterna. Rio de Janeiro: Garnier, 1940, p. 261-264).

 

***


Onde estivestes de noite

Clarice Lispector

 

          As histórias não têm desfecho.
Alberto Dines

O desconhecido vicia.
Fauzi Arap

Sentado na poltrona, com a boca cheia de dentes, esperando a morte.
Raul Seixas

O que vou anunciar é tão novo que receio ter todos os homens por inimigos, a tal ponto se enraízam no mundo os preconceitos e as doutrinas, uma vez aceitas.
William Harvey

A noite era uma possibilidade excepcional. Em plena noite fechada de um verão escaldante um galo soltou seu grito fora de hora e de uma só vez para alertar o início da subida pela montanha. A multidão embaixo aguardava em silêncio.

Ele-ela já estava presente no alto da montanha, e ela estava personalizada no ele e o ele estava personalizado no ela. A mistura andrógina criava um ser tão terrivelmente belo, tão horrorosamente estupefaciente que os participantes não poderiam olhá-lo de uma só vez: assim como uma pessoa vai pouco a pouco se habituando ao escuro e aos poucos enxergando. Aos poucos enxergavam o Ela-ele e quando o Ele-ela lhes aparecia com uma claridade que emanava dela-dele, eles paralisados pelo que é Belo diriam: “Ah, Ah”. Era uma exclamação que era permitida no silêncio da noite. Olhavam a assustadora beleza e seu perigo. Mas eles haviam vindo exatamente para sofrer o perigo.

Os pântanos se exalavam. Uma estrela de enorme densidade guiava-os. Eles eram o avesso do Bem. Subiam a montanha misturando homens, mulheres, duendes, gnomos e anões – como deuses extintos. O sino de ouro dobrava pelos suicidas. Fora da estrela graúda, nenhuma estrela. E não havia mar. O que havia do alto da montanha era escuridão. Soprava um vento noroeste. Ele-ela era um farol? A adoração dos malditos ia se processar.

Os homens coleavam no chão como grossos e moles vermes: subiam. Arriscavam tudo, já que fatalmente um dia iam morrer, talvez dentro de dois meses, talvez sete anos – fora isto que Ele-ela pensava dentro deles.

Olha o gato. Olha o que o gato viu. Olha o que o gato pensou. Olha o que era. Enfim, enfim, não havia símbolo, a “coisa” era! a coisa orgíaca. Os que subiam estavam à beira da verdade. Nabucodonosor. Eles pareciam 20 nabucodonosores. E na noite se desquitavam. Eles estão nos esperando. Era uma ausência – a viagem fora do tempo.

Um cão dava gargalhadas no escuro. “Tenho medo”, disse a criança. “Medo de quê?”, perguntava a mãe. “De meu cão.” “Mas você não tem cão.” “Tenho sim.” Mas depois a criancinha também gargalhou chorando, misturando lágrimas de riso e de espanto.

Afinal chegaram, os malditos. E olharam aquela sempiterna Viúva, a grande Solitária que fascinava todos, e os homens e mulheres não podiam resistir e queriam aproximar-se dela para amá-la morrendo mas ela com um gesto mantinha todos a distância. Eles queriam amá-la de um amor estranho que vibra em morte. Não se incomodavam de amá-la morrendo. O manto de Ela-ele era de sofrida cor roxa. Mas as mercenárias do sexo em festim procuravam imitá-la em vão.

Que horas seria? ninguém podia viver no tempo, o tempo era indireto e por sua própria natureza sempre inalcançável. Eles já estavam com as articulações inchadas, os estragos roncavam nos estômagos cheios de terra, os lábios túmidos e no entanto rachados – eles subiam a encosta. As trevas eram de um som baixo e escuro como a nota mais escura de um violoncelo. Chegaram. O Mal-Aventurado, o Ele-ela, diante da adoração de reis e vassalos, refulgia como uma iluminada águia gigantesca. O silêncio pululava de respirações ofegantes. A visão era de bocas entreabertas pela sensualidade que quase os paralisava de tão grossa. Eles se sentiam salvos do Grande Tédio.

O morro era de sucata. Quando a Ela-ele parava um instante, homens e mulheres, entregues a eles próprios por um instante, diziam-se assustados: eu não sei pensar. Mas o Ele-ela pensava dentro deles.

Um arauto mudo de clarineta aguda anunciava a notícia. Que notícia? a da bestialidade? Talvez no entanto fosse o seguinte: a partir do arauto cada um deles começou a “se sentir”, a sentir a si próprio. E não havia repressão: livres!

Aí eles começaram a balbuciar mas para dentro porque a Ela-ele era cáustica quanto a não disturbarem uns aos outros na sua lenta metamorfose. “Sou Jesus! sou judeu!”, gritava em silêncio o judeu pobre. Os anais da astronomia nunca registraram nada como este espetacular cometa, recentemente descoberto – sua cauda vaporosa se arrastará por milhões de quilômetros no espaço. Sem falar no tempo.

Um anão corcunda dava pulinhos como um sapo, de uma encruzilhada a outra – o lugar era de encruzilhadas. De repente as estrelas apareceram e eram brilhantes e diamantes no céu escuro. E o corcunda-anão dava pulos, os mais altos que conseguia para alcançar os brilhantes que sua cobiça despertava. Cristais! Cristais! gritou ele em pensamentos que eram saltitantes como os pulos.

A latência pulsava leve, ritmada, ininterrupta. Todos eram tudo em latência. “Não há crime que não tenhamos cometido em pensamento”: Goethe. Uma nova e não autêntica história brasileira era escrita no estrangeiro. Além disso, os pesquisadores nacionais se queixavam da falta de recursos para o trabalho.

A montanha era de origem vulcânica. E de repente o mar: a revolta rebentação do Atlântico lhes enchia os ouvidos. E o cheiro salgado do mar fecundava-os e triplicava-os em monstrinhos. O corpo humano pode voar? A levitação. Santa Tereza d'Ávila: “Parecia que uma grande força me erguia no ar. Isso me provocava um grande medo.” O anão levitava por segundos mas gostava e não tinha medo.

– Como é que você se chama, disse mudo o rapaz, para eu chamar você a vida inteira. Eu gritarei seu nome.

– Eu não tenho nome lá embaixo. Aqui tenho o nome de Xantipa.

– Ah, quero gritar Xantipa! Xantipa! Olhe, eu estou gritando para dentro. E qual é o seu nome durante o dia?

–Acho que é... é... parece que é Maria Luísa.

E estremeceu como um cavalo se eriça. Caiu exangue no chão. Ninguém assassinava ninguém porque já eram assassinados. Ninguém queria morrer e não morria mesmo.

Enquanto isso – delicada, delicada – o Ele-ela usava um timbre. A cor do timbre. Porque eu quero viver em abundância e trairia o meu melhor amigo em troca de mais vida do que se pode ter. Essa procura, essa ambição. Eu desprezava os preceitos dos sábios que aconselham a moderação e a pobreza de alma – a simplificação de alma, segundo minha própria experiência, era a santa inocência. Mas eu lutava contra a tentação.

Sim. Sim: cair até a abjeção. Eis a ambição deles. O som era o arauto do silêncio. Porque nenhum poderia se deixar possuir por Aquele-aquela-sem-nome.

Eles queriam fruir o proibido. Queriam elogiar a vida e não queriam a dor que é necessária para se viver, para se sentir e para amar. Eles queriam sentir a imortalidade terrífica. Pois o proibido é sempre o melhor. Eles ao mesmo tempo não se incomodavam de talvez cair no enorme buraco da morte. E a vida só lhes era preciosa quando gritavam e gemiam. Sentir a força do ódio era o que eles melhor queriam. Eu me chamo povo, pensavam.

– Que é que eu faço para ser herói? Porque nos templos só entram heróis.

E no silêncio de repente o seu grito uivado que não se sabia se de amor ou dor mortal, o herói cheirando mirra, incenso e benjoim.

Ele-ela cobria a sua nudez com um manto lindo mas como uma mortalha, mortalha púrpura, agora vermelho-catedral. Em noites sem lua Ela-ele virava coruja. Comerás teu irmão, disse ela no pensamento dos outros, e na hora selvagem haverá um eclipse do sol.

Para não se traírem eles ignoravam que hoje era ontem e haveria amanhã. Soprava no ar uma transparência como igual homem nenhum havia respirado antes.

Mas eles espargiam pimenta em pó nos próprios órgãos genitais e se contorciam de ardor. E de repente o ódio. Eles não matavam uns aos outros mas sentiam tão implacável ódio que era como um dardo lançado num corpo. E se rejubilavam danados pelo que sentiam. O ódio era um vômito que os livrava de vômito maior, o vômito da alma.

Ele-ela com as sete notas musicais conseguia o uivo. Assim como com as mesmas sete notas podia criar música sacra. Ouviram eles dentro deles o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si, o “si” macio e agudíssimo. Eles eram independentes e soberanos, apesar de guiados pelo Ele-ela. Rugindo a morte nos porões escuros. Fogo, grito, cor, vício, cruz. Estou vigilante no mundo: de noite vivo e de dia durmo, esquivo. Eu, com faro de cão, orgiático.

Quanto a eles, cumpriam rituais que os fiéis executam sem entender-lhes os mistérios. O cerimonial. Com um gesto leve Ela-ele tocou numa criança fulminando-a e todos disseram: amém. A mãe deu um uivo de lobo: ela toda morta, ela, também.

Mas era para ter supersensações que para ali se subia. E era sensação tão secreta e tão profunda que o júbilo faiscava no ar. Eles queriam a força superior que reina no mundo através dos séculos. Tinham medo? Tinham. Nada substituía a riqueza do silencioso pavor. Ter medo era a amaldiçoada glória da escuridão, silente como uma Lua.

Aos poucos se habituavam ao escuro e a Lua, antes escondida, toda redonda e pálida, tinha lhes abrandado a subida. Eram trevas quando um por um subira “a montanha”, como chamavam o planalto um pouco mais elevado. Tinham se apoiado no chão para não cair, pisando em árvores secas e ásperas, pisando em cactos espinhosos. Era um medo irresistivelmente atraente, eles prefeririam morrer que abandoná-lo. O Ele-ela era-lhes como a Amante. Mas se algum ousasse por ambição tocá-la era congelado na posição em que estivesse.

Ele-ela contou-lhes dentro de seus cérebros – e todos ouviram-na dentro de si – o que acontecia a uma pessoa quando esta não atendia ao chamado da noite: acontecia que na cegueira da luz do dia a pessoa vivia na carne aberta e nos olhos ofuscados pelo pecado da luz – a pessoa vivia sem anestesia o terror de se estar vivo. Não há nada a temer, quando não se tem medo. Era a véspera do apocalipse. Quem era o rei da Terra? Se você abusa do poder que você conquistou, os mestres o castigarão. Cheios do terror de uma feroz alegria eles se abaixavam e às gargalhadas comiam ervas daninhas do chão e as gargalhadas reboavam de escuridões a escuridões com seus ecos. Um cheiro sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de natureza doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e pérolas e crianças – a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de luz. Esta carne que se move apenas porque tem espírito.

Das bocas escorria saliva grossa, amarga e untuosa, e eles se urinavam sem sentir. As mulheres que haviam parido recentemente apertavam com violência os próprios seios e dos bicos um grosso leite preto esguichava. Uma mulher cuspiu com força na cara de um homem e o cuspe áspero escorreu-lhe da face até a boca – avidamente ele lambeu os lábios.

Estavam todos soltos. A alegria era frenética. Eles eram o harém do Ele-ela. Tinham caído finalmente no impossível. O misticismo era a mais alta forma de superstição.

O milionário gritava: quero o poder! poder! quero que até os objetos obedeçam as minhas ordens! E direi: move-te, objeto! e ele por si só se moverá.

A mulher velha e desgrenhada disse para o milionário: quer ver como você não é milionário? Pois vou te dizer: você não é o dono do próximo segundo de vida, você pode morrer sem saber. A morte te humilhará. O milionário: Eu quero a verdade, a verdade pura!

A jornalista fazendo uma reportagem magnífica da vida crua. Vou ganhar fama internacional como a autora de “O exorcista” que não li para não me influenciar. Estou vendo direto a vida crua, eu a estou vivendo.

Eu sou solitário, se disse o masturbador.

Estou em espera, espera, nada jamais me acontece, já desisti de esperar. Eles bebiam o amargo licor das ervas ásperas.

– Eu sou um profeta! eu vejo o além! se gritava um rapaz.

Padre Joaquim Jesus Jacinto – tudo com jota porque a mãe dele gostava da letra jota.

Era dia trinta e um de dezembro de 1973. O horário astronômico seria aferido pelos relógios atômicos, cujo atraso é de apenas um segundo a cada três mil e trezentos anos.

A outra deu para espirrar, um espirro atrás do outro, sem parar. Mas ela gostava. A outra se chamava J.B.

– Minha vida é um verdadeiro romance! gritava a escritora falida.

O êxtase era reservado para o Ele-ela. Que de repente sofreu a exaltação do corpo, longamente. Ela-ele disse: parem! Porque ela se endemoniava por sentir o gozo do Mal. Eles todos através dela gozavam: era a celebração da Grande Lei. Os eunucos faziam uma coisa que era proibido olhar. Os outros, através de Ela-ele, recebiam frementes as ondas do orgasmo – mas só ondas porque não tinham força de, sem se destruírem, receber tudo.

As mulheres pintavam a boca de roxo como se fosse fruta esmagada pelos afiados dentes.

O Ela-ele contou-lhes o que acontecia quando não se iniciava na profetização da noite. Estado de choque. Por exemplo: a moça era ruiva e como se não bastasse era vermelha por dentro e além disso daltônica. Tanto que no seu pequeno apartamento havia uma cruz verde sobre fundo vermelho: ela confundia as duas cores.

Como é que começara o seu terror? Ouvindo um disco ou o silêncio reinante ou passos no andar de cima – e ei-la aterrorizada. Com medo do espelho que a refletia. Defronte tinha um armário e a impressão era que as roupas se mexiam dentro dele. Aos poucos ia restringindo o apartamento. Tinha medo até de sair da cama. A impressão de que iam agarrar o seu pé embaixo da cama. Era magríssima. O seu nome era Psiu, nome vermelho. Tinha medo de acender a luz no escuro e encontrar a fria lagartixa que morava com ela. Sentia com aflição os dedinhos gelados e brancos da lagartixa. Procurava avidamente no jornal as páginas policiais, notícias do que estava acontecendo. Sempre aconteciam coisas apavorantes para pessoas, como ela, que viviam só e eram assaltadas de noite. Tinha na parede um quadro que era o de um homem que a fixava bem nos olhos, vigiando-a. Essa figura ela imaginava que a seguia por todos os cantos da casa. Tinha medo pânico de ratos.

Preferiria morrer a entrar em contato com eles. No entanto ouvia os guinchos deles. Chegava a sentir-lhes as mordidas nos pés. Acordava sempre sobressaltada, suando frio. Ela era um bicho acuado. Normalmente dialogava consigo mesma. Dava prós e contras e sempre quem perdia era ela. Sua vida era uma constante subtração de si mesma. Tudo isso porque não atendeu ao chamado da sirene.

O Ele-ela só deixava mostrar o rosto de andrógina. E dele se irradiava tal cego esplendor de doido que os outros fruíam a própria loucura. Ela era o vaticínio e a dissolução e já nascera tatuada. O ar todo cheirava agora a fatal jasmim e era tão forte que alguns vomitavam as próprias entranhas. A Lua estava plena no céu. Quinze mil adolescentes esperavam que espécie de homem e mulher eles iriam ser.

Então Ela-ele disse:

Comerei o teu irmão e haverá um eclipse total e o fim do mundo.

De vez em quando ouvia-se um longo relincho e não se via cavalo nenhum. Sabia-se apenas que com sete notas musicais fazem-se todas as músicas que existem e que existiam e que existirão. Da Ela-ele emanava-se forte cheiro de jasmim esmagado porque era noite de Lua cheia. O catimbó ou a feitiçaria. Max Ernst quando criança foi confundido com o Menino Jesus numa procissão. Depois provocava escândalos artísticos. Tinha uma paixão ilimitada pelos homens e uma imensa e poética liberdade. Mas por que estou falando nisso? Não sei. “Não sei” é uma resposta ótima.

O que fazia Thomas Edison, tão inventor e livre, no meio deles que eram comandados por Ele-ela? Gregotins, pensou o estudante perfeito, era a palavra mais difícil da língua.

Escutai! os anjos anunciadores cantam!

O judeu pobre gritava mudo e ninguém o ouviu, o mundo inteiro não o ouvia. Ele disse assim: tenho sede, suor e lágrimas! e para saciar a minha sede bebo meu suor e minhas próprias lágrimas salgadas. Eu não como porco! sigo a Torah! mas dai-me alívio, Jeová, que se parece demais comigo!

Jubileu de Almeida ouvia o rádio de pilha, sempre. “O mingau mais gostoso é feito com Cremogema”. E depois anunciava, de Strauss, uma valsa que por incrível que parecesse chamava-se “O pensador livre”. É verdade, existe mesmo, eu ouvi. Jubileu era dono do “Ao Bandolim de Ouro”, loja de instrumentos musicais quase falida, e era tarado por valsas de Strauss. Era viúvo, ele, quer dizer, Jubileu. Seu rival era “O Clarim”, concorrente na rua Gomes Freire ou Frei Caneca. Jubileu era também afinador de pianos.

Todos ali estavam prestes a se apaixonar. Sexo. Puro sexo. Eles se freavam. A Romênia era um país perigoso: ciganos.

Faltava petróleo no mundo. E, sem petróleo, faltava comida. Carne, sobretudo. E sem carne eles se tornavam terrivelmente carnívoros.

“Aqui, Senhor, encomendo a minha alma”, dissera Cristóvão Colombo ao morrer, vestido com o hábito franciscano. Ele não comia carne. Se santificava, Cristóvão Colombo, o descobridor das ondas, e que descobriu S. Francisco de Assis. Hélas! ele morrera. Onde estás agora? onde? pelo amor de Deus, responde!

De repente e bem de leve – fiat lux.

Houve uma debandada assustadiça como de pardais. Tudo tão rápido que mais parecia terem se esvanecido.

Na mesma hora estavam ora deitados na cama a dormir, ora já despertos. O que existira era silêncio. Eles não sabiam de nada. Os anjos da guarda – que tinham tirado um descanso já que todos estavam na cama sossegados – despertavam frescos, bocejando ainda, mas já protegendo os seus pupilos.

Madrugada: o ovo vinha rodopiando bem lento do horizonte para o espaço. Era de manhã: uma moça loura, casada com rapaz rico, dá à luz um bebê preto. Filho do demônio da noite? Não se sabe. Apuros, vergonha.

Jubileu de Almeida acordou como pão dormido: chocho. Desde pequeno fora murcho assim. Ligou o rádio e ouviu: “Sapataria Morena onde é proibido vender caro”. Iria lá, estava precisando de sapatos. Jubileu era albino, negro aço com cílios amarelos quase brancos. Ele estalou um ovo na frigideira. E pensou: se eu pudesse algum dia ouvir “O pensador livre”, de Strauss, eu seria recompensado na minha solidão. Só ouvira essa valsa uma única vez, não se lembrava quando.

O poderoso queria no seu breakfast comer caviar dinamarquês às colheradas, estalando com os dentes agudos as bolinhas. Ele era do Rotary Club e da Maçonaria e do Diners Club. Tinha o requinte de não comer caviar russo: era um modo de derrotar a poderosa Rússia.

O judeu pobre acorda e bebe água da bica sofregamente. Era a única água que tinha nos fundos da pensão baratíssima onde morava: uma vez veio uma barata nadando no feijão ralo. As prostitutas que lá moravam nem reclamavam.

O estudante perfeito, que não desconfiava que era um chato, pensou: qual era a palavra mais difícil que existia? Qual era? Uma que significava adornos, enfeites, atavios? Ah, sim, gregotins. Decorou a palavra para escrevê-la na próxima prova.

Quando começou a raiar o dia todos estavam na cama sem parar de bocejar. Quando acordavam, um era sapateiro, um estava preso por estupro, uma era dona de casa, dando ordens à cozinheira, que nunca chegava atrasada, outro era banqueiro, outro era secretário etc. Acordavam, pois, um pouco cansados, satisfeitos pela noite tão profunda de sono. O sábado tinha passado e hoje era domingo. E muitos foram à missa celebrada por padre Jacinto que era o padre da moda: mas nenhum se confessou, já que não tinham nada a confessar.

A escritora falida abriu o seu diário encadernado de couro vermelho e começou a anotar assim: “7 de julho de 1974. Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu! Nesta bela manhã de um sol de domingo, depois de ter dormido muito mal, eu, apesar de tudo, aprecio as belezas maravilhosas da Natureza-mãe. Não vou à praia porque sou gorda demais e esta é uma infelicidade para quem aprecia tanto as ondas verdezitas do Mar! Eu me revolto! Mas não consigo fazer regime: morro de fome. Gosto de viver perigosamente. Tua língua viperina será cortada pela tesoura da complacência”.

De manhã: agnus dei. Bezerro de ouro? Urubu.

O judeu pobre: livrai-me do orgulho de ser judeu!

A jornalista de manhã bem cedo telefona para sua amiga:

– Claudia, me desculpe telefonar num domingo a esta hora! Mas acordei com uma inspiração fabulosa: vou escrever um livro sobre Magia Negra! Não, não li o tal do Exorcista, porque me disseram que é má literatura e não quero que pensem que estou indo na onda dele. Você já pensou bem? o ser humano sempre tentou se comunicar com o sobrenatural desde o antigo Egito com o segredo das Pirâmides, passando pela Grécia com seus deuses, passando por Shakespeare no Hamlet. Pois eu também vou entrar nessa. E, por Deus, vou ganhar essa parada!

Havia em muitas casas do Rio o cheiro de café. Era domingo. E o rapaz ainda na cama, cheio de torpor, ainda mal-acordado, se disse: mais um domingo de tédio. Com o que havia sonhado mesmo? Sei lá, respondeu-se, se sonhei, sonhei com mulher.

Enfim, o ar clareia. E o dia de sempre começa. O dia bruto. A luz era maléfica: instaurava-se o mal-assombrado dia diário. Uma religião se fazia necessária: uma religião que não tivesse medo do amanhã. Eu quero ser invejado. Eu quero o estupro, o roubo, o infanticídio, e o desafio meu é forte. Queria ouro e fama, desprezava até o sexo: amava depressa e não sabia o que era o amor. Quero o ouro mau. Profanação. Vou ao meu extremo. Depois da festa – que festa? noturna? – depois da festa, desolação.

Havia o observador que escreveu assim no caderno de notas: “O progresso e todos os fenômenos que o cercam parecem participar intimamente dessa lei de aceleração geral, cósmica e centrífuga que arrasta a civilização ao `progresso máximo', a fim de que em seguida venha a queda. Uma queda ininterrupta ou uma queda rapidamente contida? Aí está o problema: não podemos saber se esta sociedade se destruirá completamente ou se conhecerá apenas uma interrupção brusca e depois a retomada de sua marcha”. E depois: “O Sol diminuiria seus efeitos sobre a Terra e provocaria o início de um novo período glacial que poderia durar no mínimo dez mil anos”. Dez mil anos era muito e assustava. Eis o que acontece quando alguém escolhe, por medo da noite escura, viver a superficial luz do dia. É que o sobrenatural, divino ou demoníaco, é uma tentação desde o Egito, passando pela Idade Média até os romances baratos de mistério.

O açougueiro, que nesse dia só trabalhava das oito às onze horas, abriu o açougue: e parou embriagado de prazer ao cheiro de carnes e carnes cruas, cruas e sangrentas. Era o único que de dia continuava a noite.

Padre Jacinto estava na moda porque ninguém como ele erguia tão limpidamente a taça e bebia com sagrada unção e pureza, salvando todos, o sangue de Jesus, que era o Bem. Com delicadeza as mãos pálidas num gesto de oferenda.

O padeiro como sempre acordou às quatro horas e começou a fazer a massa de pão. De noite amassar ao Diabo?

Um anjo pintado por Fra Angélico, século XV, voejava pelos ares: era a clarineta anunciadora da manhã. Os postes de luz elétrica não tinham ainda sido apagados e lustravam-se empalidecidos. Postes. A velocidade come os postes quando se está correndo de carro.

O masturbador de manhã: meu único amigo fiel é meu cão. Ele não confiava em ninguém, sobretudo em mulher.

A que bocejara a noite toda e dissera: “t'isconjuro, mãe de santo!” começou a se coçar e a bocejar. Diabo, disse ela.

O poderoso – que cuidava de orquídeas, catleias, lélias e oncídios – apertou impaciente a campainha para chamar o mordomo que lhe trouxesse o já atrasado breakfast. O mordomo adivinhava-lhe os pensamentos e sabia quando lhe trazer os galgos dinamarqueses para serem rapidamente acariciados.

Aquela que de noite gritava “estou em espera, em espera, em espera”, de manhã, toda desgrenhada disse para o leite na leiteira que estava no fogo:

– Eu te pego, seu porcaria! Quero ver se tu te mancas e ferves na minha cara, minha vida é esperar. É sabido que se eu desviar um instante o olhar do leite, esse desgraçado vai aproveitar para ferver e entornar. Como a morte que vem quando não se espera.

Ela esperou, esperou e o leite não fervia. Então, desligou o gás.

No céu o mais leve arco-íris: era o anúncio. A manhã como uma ovelha branca. Pomba branca era a profecia. Manjedoura. Segredo. A manhã preestabelecida. Ave-Maria, gratia plena, dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus et benedictum frutus ventri tui Jesus. Sancta Maria Mater Dei ora pro nobis pecatoribus.

Nunca et ora nostrae morte Amem.

Padre Jacinto ergueu com as duas mãos a taça de cristal que contém o sangue escarlate de Cristo. Eta vinho bom. E uma flor nasceu. Uma flor leve, rósea, com perfume de Deus. Ele-ela há muito sumira no ar. A manhã estava límpida como coisa recém-lavada.

 

AMÉM


Os fiéis distraídos fizeram o sinal da Cruz.


AMÉM
DEUS
FIM

 

Epílogo:

Tudo o que escrevi é verdade e existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite?

Ninguém sabe. Não tentes responder – pelo amor de Deus. Não quero saber da resposta. Adeus. A-Deus.

 

[1974]

(In: Onde estivestes de noite (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 43)

 

***



Crianças à venda. Tratar aqui

Rosa Amanda Strausz

 

Todos disseram que Marialva era louca e desalmada quando ela pôs os filhos à venda. Até o padre tentou demovê-la de ideia tão cruel. Mas nada adiantou. A mulher era obstinada. “Quero que eles tenham um futuro melhor que o meu”, ela repetia.

Olhando bem para o lugar, quem poderia condená-la? Um casebre miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada por perto. Tinha parido nove filhos. Só restavam cinco quando decidiu vendê-los. Não queria mais ver criança morrendo de fome doença em seus braços sem que pudesse fazer nada para impedir.

O primeiro a partir foi Tião, levado por uma família americana. Um mês depois da viagem, chegou carta com foto do menino, limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais. Marialva enxugou as lágrimas e teve certeza de que fazia a coisa certa.

Em seguida, foram Francineide, para o Rio de Janeiro, e Ronivon, para Curitiba.

Com o dinheiro da venda dos três, Marialva comprou uma cabra, três galinhas, um cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova.

O seguinte seria Fabiojunio, que já estava encomendado por uma família que vivia em Cruz Alta, uma cidade próxima. O casal chegaria dali há dois dias e Marialva se esforçava para dar banho no menino e torná-lo mais apresentável.

– Vê se não chora quando eles chegarem, senão eu te mato, viu? E nada de se sujar porque o sabão já está acabando. Tem que ficar limpo até depois de amanhã. Melhor nem se mexer muito, fique quieto dentro de casa.

Fabiojunio olhava os preparativos meio assustado. Mas as fotos dos irmãos cercados de conforto, carinho e comida já o tinham convencido. Tanto Tião quanto Francineide e Ronivon pareciam muito felizes. Assim, quando chegou o casal, despediu-se da mãe e de Simara – a irmã mais velha –, engoliu o choro e entrou no carro de seus novos pais.

– Mãe, a senhora não achou esses dois aí meio esquisitos, não? – perguntou a menina assim que o carro sumiu na estrada.

– ⁠Bobagem, menina. Rico é tudo esquisito mesmo.

Mas, no fundo, achou que a filha tinha razão. Não sabia dizer direito o que era – se a expressão meio vazia do casal, o jeito que eles tinham de olhar, meio fixo, sempre para frente, a maneira de se moverem, lenta demais.

Bobagem, repetiu mentalmente. Eram os mais ricos, os que tinham pago mais caro. Olhou para as notas em cima da mesa. Dava para comprar um monte de sabão e botar Simara para lavar roupa para fora.

O problema era justamente a filha, que não parava de tagarelar. Menina inconveniente. Tinha 10 anos, só por isso não dava mais para vendê-la. Ninguém queria criança grande assim. Pois que ficasse quieta e ajudasse a fazer o dinheiro render – porque aquele era o último.

Isso era o que Marialva pensava. Menos de um mês depois da partida de Fabiojunio chegou uma carta. Trazia uma foto do menino e mais dinheiro ainda. A mulher ficou radiante.

– Eles devem estar mesmo muito encantados com Fabinho para mandarem essa dinheirama toda – disse ela arregalando os olhos.

Simara, sempre desconfiada, examinava a fotografia.

– Mãe, olha só...

Mas a mulher arrancou a foto de sua mão.

– Olha só digo eu, Simara! Sempre foi lindinho, o seu irmão. Mas com essas roupas... Benza Deus! Parece um príncipe.

Na foto, o menino estava de pé, em meio a um imenso jardim sem flores, mas com o gramado muito bem cuidado, ao fundo do qual se via um casarão com a fachada ornamentada. Vestia sapatos pretos de verniz, meias brancas, terninho azul-marinho combinando com a bermuda, camisa branca de colarinho e gravata de cetim cinza-claro. O cabelo estava penteado para trás, cheio de goma.

Simara não se convencia. Todos os outros irmãos enviavam fotos em que apareciam cercados de brinquedos, em parques, comendo doces, rindo, abraçados com a nova família. Fabiojunio não. Estava sozinho, de pé, com os braços estendidos ao longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia triste.

Simara insistiu no assunto, mas Marialva proibiu a filha de prosseguir.

– Gente chique é assim. Não fica pulando e gritando. Ele está é ficando educado –encerrou a conversa.

***

 No mês seguinte, a mesma coisa. Mais um envelope entregue pelo correio. Dentro, nenhum bilhete. Só mais dinheiro e outra foto.

Agora, Fabiojunio aparecia de pé em um quarto amplo e ricamente mobiliado. Estava diante de uma cama alta, de dossel talhado em madeira escura, e ao lado de uma escrivaninha cuidadosamente arrumada. Não havia brinquedos à vista. A roupa não era a mesma da foto anterior, mas muito parecida. E a expressão do menino também, embora parecesse ainda mais pálido e tristonho.

– Ele não está feliz – constatou Simara em voz alta, sabendo que a mãe não a ouviria. Estava ocupada demais fazendo planos para o dinheiro que chegara. Já dava até para pensar em comprar um fogão de verdade, com bujão de gás e tudo. E teria comida para fazer todos os dias.

Na verdade, teve muito mais do que isso. Todo mês chegava novo envelope com a foto e mais dinheiro. Cega pela boa sorte repentina, mal olhava para o filho impresso no papel. Ia direto para o maço de notas, contava-as avidamente, sorria e fazia mais planos.

Apenas Simara estava cada vez mais intrigada. A cada foto que chegava, parecia-lhe mais evidente que havia algo muito estranho ocorrendo ao irmão. Sempre o mesmo tipo de roupa, os ambientes luxuosos – mas antiquados e soturnos –, e a expressão ausente, o olhar mortiço, a postura imóvel.

A última foto era ainda mais impressionante. Solitário, sentado à cabeceira de uma mesa imensa, de madeira escura e polida, Fabiojunio não olhava para a baixela de prata à sua frente, nem para a louça filetada de ouro, nem para os talheres de cabo de madrepérola. Seu olhar tampouco se dirigia para o fotógrafo. Parecia fixar-se num ponto impossível, distante, muito além da realidade.

Intrigada com aquilo, Simara foi até a casa do padre e pediu-lhe emprestada sua lente de aumento. Já tinha visto o objeto algumas vezes depois das aulas de catecismo. Parecia mágico, com seu poder de ampliar pequenos detalhes. Quando era menor, adorava pegar a lente e observar a ponta de seu polegar, descobrindo as finas linhas que desenhavam redemoinho em seus dedos.

Mas, agora, não havia tempo para brincar. Botou a foto sob o vidro da lente e examinou-a detidamente. Nem precisou procurar muito. Bastou-lhe focalizar os olhos do irmão para encontrar a explicação de sua expressão vazia: estavam furados. No lugar das córneas, havia apenas dois buracos negros, redondos e perfeitos.

Com um grito apavorado, Simara chamou o padre. O homem fez o sinal da cruz e prontificou-se a acompanhar a menina até a residência do casal que tinha levado Fabiojunio embora. Foi só o tempo de pegar uma pesada cruz de prata, um vidro de água benta e o dinheiro da passagem de ônibus. Com um envelope nas mãos, a menina o seguiu até a rodoviária

Cruz Alta ficava há apenas sessenta quilômetros de distância. Duas horas de viagem na condução velha e malcuidada. Simara sacolejava pela estrada, impaciente. O padre, no entanto, ignorava a ansiedade da menina e traçava cuidadosamente seu roteiro. Iriam primeiro à igreja local buscar informações sobre a família. Se possível, levariam o pároco junto com eles até a casa. As fotos diziam claramente que se tratava de um caso de bruxaria e não queria enfrentar uma novidade daquelas sozinho.

Chamava-se padre André, era jovem e destemido. Mas também inexperiente e humilde o suficiente para admitir que não tinha a menor ideia do que fazer quando encontrasse o estranho casal.

Não custaram a encontrar a igreja nem a conseguir falar com o padre Leal, um velhinho simpático, que cuidava da paróquia havia mais de trinta anos.

– Estamos com sorte – confidenciou o padre André a Simara. – Há tanto tempo aqui, ele deve conhecer a família.

O padre Leal, no entanto, ficou perplexo ao ver o endereço que Simara lhe mostrava.

– Deve haver algum engano, meus filhos. Esse endereço não existe.

Com um pressentimento ruim, Simara insistiu:

– É muito importante, padre. Por favor, nos ajude a encontrar essa família.

– Mas estou lhe dizendo, filha. Conheço o lugar, não existe casa nenhuma nesse endereço. Essa rua não passa de uma velha estrada abandonada. Nem carroça passa mais por lá.

Até então, o padre André só observava a conversa. Mas decidiu intervir:

– Padre Leal, temos motivos muito sérios para procurar essa casa – disse, enquanto abria o envelope e espalhava as fotos sobre a mesa.

– ⁠ Veja isso.

O velho pároco examinou as fotos com as mãos trêmulas enquanto ouvia o relato da história feito por Simara. Por fim, deteve-se na que mostrava Fabiojunio no jardim. Após observá-la por alguns instantes, mergulhou a cabeça entre as mãos, murmurando:

– Não consigo acreditar...

Simara não se conteve e perguntou:

– O senhor conhece essa casa?

O religioso deu um profundo suspiro. Estava pálido e limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça. Mal conseguia falar.  

Mas a menina era determinada. E não queria perder mais tempo.

– Então, nos leve até lá. Acho que meu irmão está correndo perigo.

O religioso limitou-se a balbuciar:

– Seu irmão está morto.

Padre André não se deu por vencido.

– Precisamos da sua ajuda. Talvez ainda possamos salvá-lo. Tenho certeza de que se trata de um caso de bruxaria.

O velho o interrompeu:

– Vou levá-los até o local.

Assim que entraram no velho Dodge Dart do pároco, este olhou para o padre André e disse:

– Preparem-se para ver uma coisa terrível.

Com o rosto amargurado, o religioso deu a partida no carro e recusou-se a responder a qualquer pergunta durante o trajeto. Cerca de vinte minutos depois, saiu da estrada principal e tomou um caminho abandonado e coberto de mato pelo qual o veículo avançava com dificuldade crescente. Quanto mais andavam, mais ermo tornava-se o local. Estava claro que havia muito tempo que ninguém passa passava por ali.

Finalmente, pararam num ponto a partir do qual seria impossível prosseguir com o carro. O mato era tão alto que batia no peito dos dois homens e cobria a cabeça de Simara. Saltaram, e o religioso suspirou:

– A partir daqui, teremos que seguir a pé.

Nem Simara nem padre André ousaram abrir a boca. Apesar do sol quente da tarde, a luminosidade do lugar tinha um toque pouco natural. E um silêncio sepulcral envolvia o caminho, como se ali não houvesse vida: nem insetos, nem animais, nem mesmo o vento.

Depois de uns dez minutos de caminhada, uma clareira abriu-se abruptamente. À frente do grupo surgiu um imenso terreno abandonado. Nem nesse mato crescia ali, como se a terra tivesse sido amaldiçoada.

Ao olhar para a cena, Simara deu um grito. Ao longe, o casarão ornamentado. No entanto, à sua frente, erguia-se uma ruína, abandonada havia muitos anos em meio ao terreno desolado

Não havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a casa como teria sido muitas décadas atrás.

– Vamos até lá – disse Simara energicamente. Ainda não conseguia acreditar no que via.

Partiu na frente, seguida pelos dois religiosos, ambos empunhando suas cruzes.

Não tinha medo. Não sentia nada além de uma urgência imensa e de uma esperança meio improvável de ainda encontrar o irmão. Abriu o pesado portão com um safanão e foi entrando. Deparou-se com o saguão de entrada, o mesmo que já tinha visto nas fotos. No entanto, agora, as paredes estavam descascadas, as vidraças das janelas, quebradas, a bela escadaria de madeira que conduzia ao segundo andar, destruída. E não existia mais nenhum dos móveis luxuosos que serviam de cenário para as poses de Fabiojunio.

Viu, logo à esquerda, o que deveria ter sido a sala de jantar. A mesa, a mesma onde o irmão aparecera na última foto, ainda estava lá. Comida por cupins, não passava de um monte de madeira podre, coberta por uma espessa camada de poeira e fungos.

Cada vez mais transtornada, percorreu todas os cômodos do térreo até sair no pátio dos fundos, de onde podia se ver um antigo cemitério familiar e nove tumbas.

Correu para lá.

Não teve dificuldade em reconhecer o estranho casal que levara seu irmão nas fotografias amareladas que decoravam as duas primeiras sepulturas. Ali, estava a data da morte deles, ocorridas cerca de 50 anos antes. Próximos das tumbas principais – as mais ricas e enfeitadas – havia sete pequenos jazigos. O último era evidentemente recente e foi para ali que Simara correu. Sobre o túmulo, um nome: Fabiojunio, a última foto que tinha sido enviada à família e a data: apenas uma semana atrás.

Não tinha mais nada para ser visto ali. Tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que tinha descoberto. Deu meia volta e saiu enxugando as lágrimas enquanto andava cada vez mais rápido, seguida pelos dois religiosos que ainda empunhavam suas cruzes, sem saber muito bem o que fazer com elas.

 

A viagem de volta foi lenta e silenciosa. O ônibus quebrou duas vezes e Simara só chegou em casa no dia seguinte. Achava que encontraria a mãe preocupada, mas a velha senhora estava radiante quando abriu a porta para a filha.

– Por que você não disse que ia visitar seu irmão? – perguntou a mulher com um sorriso.

Antes que a menina pudesse responder, a mãe mostrou-lhe um novo envelope.

– Olha só, acabou de chegar! Veio com uma carta. E com ótimas notícias.

Simara avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto dela, vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o cemitério, embora a foto não mostrasse cemitério algum. Só um bonito jardim, com um gramado muito bem cuidado e árvores frondosas ao fundo.

Antes que pudesse se recuperar do susto, a mãe perguntou:

– Leu a carta? Eles ficaram encantados com você!

E completou, sorridente:  

– E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me pagaram bem!

Diante do olhar apavorado da menina, Marialva franziu o cenho e engrossou a voz:

– Já para o banho. Está na hora de você também aprender a ser chique.

(In: Sete ossos e uma maldição. Contos. Rocco - Jovens Leitores. Disponível na Internet)

***

O horrível – conto de horror

Guy de Maupassant

A noite tépida descia lentamente.

As senhoras tinham ficado no salão da quinta. Os homens, sentados ou a cavalo nas cadeiras do jardim, fumavam diante da mesa abandonada, carregada de taças e cálices.

Seus charutos brilhavam como olhos na sombra espessa, de minuto em minuto.

Acabavam de narrar um terrível acidente acontecido na véspera: dois homens e três mulheres afogados à vista dos convidados em frente ao rio.

O General G... pronunciou-se:

— Sim, estas coisas são emocionantes, mas não são horríveis.

“O horrível – esta velha palavra – quer dizer muitíssimo mais que terrível. Um medonho acidente como este emociona. Para que se experimente o horror, é preciso mais que a emoção da alma e mais que o espetáculo de uma morte terrível. É preciso um calafrio de mistério ou uma sensação de pavor anormal, sobrenatural. Um homem que morre, mesmo nas condições mais dramáticas, não causa horror. Um campo de batalha não é horrível. Os crimes, os mais vis, raramente são horríveis.

Eis dois exemplos pessoais que me fizeram compreender o que se pode entender pelo horror.

O primeiro foi durante a guerra de 1870.

Nós nos retiramos para Pont-Audemer, depois de termos atravessado Rouen. O exército – vinte mil homens aproximadamente, vinte mil homens derrotados, debandados, desmoralizados, esgotados – ia reagrupar-se no Havre.

A terra estava coberta de neve.

A noite caía. Dede a véspera que não se comia. Fugia-se, porque os prussianos não estavam longe.

Toda a planície normanda, lívida, manchada pela sombra das árvores em volta das herdades, se estendia sob um céu negro, rude e sinistro.

Não se ouvia mais nada, na luz eterna do crepúsculo, além de um ruído confuso, brando e descompassado de tropas em marcha, de um bater de pés infinito, misturado de um vago tinido de equipamentos e de sabres. Os homens, curvados, arqueados, sujos, muitas vezes mesmo esfarrapados, arrastavam-se, apressavam-se sobre a neve com longo passo extenuado.

A pele das mãos colava ao aço das culatras, porque gelava terrivelmente nessa noite. Muitas vezes, eu via soldado tirar os sapatos para andar com os pés nus, de tanto que sofria com o calçado, e deixava em cada passada um traço de sangue.

Depois, no fim de algum tempo, sentava-se num campo para descansar alguns minutos, e não se levantava mais. Cada homem que sentava era um homem morto.

Tínhamos deixado atrás de nós muitos desses pobres soldados estropiados, que contavam tornar a partir imediatamente, desde que tivessem descansado um pouco as suas pernas inteiriçadas. Mas, mal cessavam de se mover, de fazer circular em sua carne cansada o sangue quase inerte, um entorpecimento invencível apoderava-se deles, pregava-os à terra, fechava-lhes os olhos, paralisava em segundos esta mecânica humana estafada. E eles se abatiam um pouco, com as testas apoiadas nos joelhos, sem, contudo, cair de todo, porque seus rins e seus membros tornavam-se imóveis, duros como um pau, impossíveis de dobrar ou de endireitar.

E nós outros, mais robustos, íamos sempre, gelados até a medula, avançando por uma força de movimento dado nessa noite, nessa neve, nessa planície fria e mortal, esmagados pelo pesar, pela derrota, pelo desespero, sobretudo oprimidos pela abominável sensação do abandono, do fim, da morte, do nada.

Percebi dois gendarmes que seguravam pelo braço um homenzinho singular, velho, sem barba, de aspecto verdadeiramente surpreendente.

Procuravam um oficial, porque acreditavam ter prendido um espião.

A palavra espião correu logo entre os estropiados e estes fizeram um círculo em volta do prisioneiro. Uma voz gritou:

— É preciso fuzilá-lo!

E todos esses soldados, que caíam de cansaço, que se conservavam de pé apoiados nas suas espingardas, tiveram subitamente esse arrepio de cólera furiosa e bestial, que impele as multidões ao massacre.

Eu quis falar. Era então o comandante do batalhão. Mas não se conheciam mais chefes. Teriam fuzilado a mim mesmo.

Um dos policiais disse:

— Há três dias que ele nos segue, pedindo a todo mundo informações sobre a artilharia.

Eu procurei interrogar este ser:

— Que andas fazendo? O que queres? Para que acompanhas o exército?

Ele balbuciou algumas palavras numa linguagem ininteligível.

Era deveras um estranho personagem, de espáduas estreitas, de olhar sonso, e tão perturbado diante de mim que não me restava mais dúvida alguma de que era mesmo um espião. Ele me considerava de cima a baixo, com um ar humilde, estúpido e manhoso.

Os homens à nossa volta gritavam:

— Ao paredão! Ao paredão!

Eu disse aos gendarmes:

— Respondeis pelo prisioneiro?

Não tinha acabado de falar quando um empurrão terrível me deitou por terra, e eu vi, por um segundo, o homem tomado pelos soldados furiosos, derrubado, ferido, arrastado à beira da estrada e lançado contra uma árvore, já quase morto, sobre a neve.

E logo fuzilaram-no.

Os soldados atiravam nele. Tornavam a carregar as armas e atiravam de novo, com um furor brutal.

Batiam-se para ter a sua vez. Desfilavam diante do cadáver e disparavam repetidas vezes, como se desfilassem diante de um féretro para lançar água benta.

Mas, de repente, um grito soou:

— Os prussianos! Os prussianos!

E eu ouvi, por todo o horizonte, o rumor imenso do imenso exército perdido que corria.

O pânico, nascido desses tiros sobre esse vagabundo, havia enlouquecido os próprios executores que, sem compreender que o pavor vinha deles mesmos, fugiram e desapareceram na sombra.

Eu fiquei só, diante do corpo com os dois gendarmes que, retidos pelo dever, haviam permanecido perto de mim.

Eles levantaram aquela carne moída, mole e sangrenta.

— É preciso revistá-lo – disse-lhes.

E dei uma caixa de fósforo de cera que tinha em meu bolso. Um dos soldados iluminava o outro. Eu estava em pé entre os dois.

O gendarme que revistava o corpo declarou:

— Vestido com uma blusa azul, camisa branca, calças e um par de sapatos.

O primeiro fósforo apagou-se. Acendeu-se outro. O homem continuou remexendo os bolsos:

— Uma faca de chifre, um lenço xadrez, uma caixa de rapé, um punhado de barbante, um pedaço de pão.

O segundo fósforo apagou-se. Acendeu-se o terceiro. O gendarme, depois de ter por muito tempo apalpado o cadáver, exclamou:

— É tudo.

Eu disse:

— Vamos despi-lo. Acharemos talvez alguma coisa contra a pele.

E, para que os dois soldados pudessem agir ao mesmo tempo, eu mesmo me pus a iluminá-los. Eu os via, ao clarão rápido do fósforo, tirar a roupa, peça por peça, pôr a nu este fardo de carne ainda quente e morta.

De súbito, um deles exclamou:

— Ah, meu comandante, é uma mulher!

Eu não vos poderia dizer que estranha e pungente sensação de agonia me oprimiu o coração. Não podia acreditar naquilo, e ajoelhei-me sobre a neve, diante dessa massa informe para ver: era mesmo uma mulher!

Os dois gendarmes, interditos e desmoralizados, esperavam que eu emitisse uma opinião.

Mas eu não sabia o que pensar, o que supor.

Então, o brigadeiro pronunciou-se lentamente:

— Talvez ela viesse procurar seu filho, que era soldado de artilharia, e de quem não tinha notícias.

E o outro respondeu:

— Talvez fosse isto mesmo...

Eu, que já tinha visto coisas bem terríveis, comecei a chorar. E senti, em face dessa morta, nessa noite gelada, no meio dessa planície negra, diante desse mistério, diante dessa desconhecida, assassinada, o que quer dizer a palavra horror.

Eu tive esta mesma sensação no ano passado interrogando um fuzileiro argelino, que era um dos sobreviventes da missão Flatters.

Vós conheceis os detalhes desse drama atroz. Mas há um que, decerto, ignoreis.

O coronel ia ao Sudão pelo deserto e cruzava o imenso território dos tuaregues, que são, nesse oceano de areia, que vai do Atlântico ao Egito, e do Sudão à Argélia, uma espécie de piratas comparáveis aos que antigamente assolavam os mares.

Os guias que conduziam a coluna pertenciam à tribo dos Chambaa, de Ouargla.

Um dia, montaram o acampamento em pleno deserto, e os árabes declararam que, como a fonte ainda estava um tanto distante, iriam recolher a água com todos os camelos.

Apenas um homem preveniu o coronel de que era uma armadilha. Flatters não acreditou, e acompanhou a caravana com os engenheiros, os médicos e quase todos os seus oficiais.

Eles foram assassinados junto à fonte e todos os camelos capturados.

O capitão do posto árabe de Ouargla, que ficara no acampamento, assumiu o comando dos sobreviventes, spahis e fuzileiros, e iniciaram a retirada, abandonando as bagagens e os víveres, por falta de camelos para transportá-los.

Então, eles partiram naquela solidão sem sombras e sem fim, sob um sol devorador, que os abrasava de manhã à noite.

Uma tribo veio render-se, trazendo tâmaras. Estavam envenenadas. Quase todos os franceses morreram e, entre eles, o último oficial.

Só ficaram alguns spahis, com seu comandante Pebóguim, e mais alguns fuzileiros nativos da tribo Chambaa. Tinham ainda dois camelos, que desapareceram uma noite com os árabes.

Em seguida, os sobreviventes compreenderam que teriam de devorar-se uns aos outros e, logo que descobriram a fuga de dois homens com os dois animais, os que ficaram se separam e começaram a andar, cada um de per si, na areia macia, sob a cruel chama do sol. Conservavam entre si uma distância maior que a de um tiro de fuzil.

Andaram, assim, o dia todo, levantando, em cada lugar, na extensão abrasada e plana, essas colunas de poeira que denunciam, ao longe, quem caminha pelo deserto.

Mas, numa manhã, um dos viajantes se desviou bruscamente, aproximando-se de seu companheiro. E todos pararam para olhar.

O homem na direção de quem marchava o soldado faminto não fugiu. Caiu ao chão e apontou a arma para o que se aproximava. Quando viu que o outro estava a uma boa distância, atirou. Mas não o atingiu. Este continuou avançando e, depois, assumindo a sua vez, matou o seu camarada.

Então, de todo o horizonte, acorreram os demais, para garantir a sua parte. E o que havia matado, esquartejando o morto, distribuiu as postas.

E se separaram novamente aqueles aliados irreconhecíveis, até que o próximo assassinato os unisse novamente.

Durante dois dias eles viveram daquela carne humana compartilhada. Em seguida, voltou a fome, e o primeiro a matar matou outra vez. E, novamente, como um açougueiro, trinchou o cadáver e o ofereceu aos companheiros, mantendo apenas a sua parte.

E assim continuou a retirada de antropófagos.

O último francês, Pobéguim, morreu assassinado nas margens de um poço, na véspera do dia em que chegou o socorro. Vós compreendeis agora o que é o que eu entendo por horrível?”

Eis o que nos contou, naquela noite, o general G...

 

[escrito por volta de 1880]

 

(In: 125 contos de Guy de Maupassant. Org. Noemi Moritz Kon Trad. Amilcar Bettega. São Paulo: Companhia das Letras, 2009) 

***


O encontro

Lygia Fagundes Telles

 

  Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos, tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.

“Onde, meu Deus?! – perguntava a mim mesma – Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?”

Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo – disso estava bem certa – era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”

Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.

Um vapor denso subia, como um hálito, daquela garganta de cujo fundo insondável vinha um remotíssimo som de água corrente. Aquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”

Sacudi a cabeça, não, a lembrança – tão antiga quanto viva – escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?

Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” – a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.

Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.

“A expectativa está só em mim” – pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” – fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.

“A cilada” – pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfazê-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.

“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.

Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” – disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.

Um pássaro cruzou meu caminho num voo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem – esperança. “Agora é tarde!” – murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.

Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”

Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.

Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no regaço.

– Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...

Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.

Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.

– Você mora aqui perto?

–- Em Valburgo – respondeu sem levantar a cabeça.

Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranquilamente desesperada, se é que cabia tranquilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.

– Valburgo, Valburgo... – fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.

– Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo?

– Conheço – respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais. 

Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”

– Eu esperava uma pessoa – disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.

– Gustavo?

Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.

– Gustavo – repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.

Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”

Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfumadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.

Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atroz os rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.

Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. – Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.

– Você devia voltar para casa.

– Que casa? – perguntou ela abrindo as mãos.

Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.

– Por que não vai procurá-lo? – lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.

Escurecia. Uma névoa roxa – e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão – parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

– Vou-me embora – disse apanhando o chapéu.

Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daque­la apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..

– Há ainda uma coisa!

Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.

– Há ainda uma coisa – repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.

– Eu fui você – balbuciei. – Num outro tempo eu fui você! – quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.

– Não! – gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.

Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.

Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.

[1958]

(In: Os melhores contos. São Paulo: Global Editora, 1984.)

***   


O defunto

Thomaz Lopes

 

Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e pareceu-lhe então que estava morto.

Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que o encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! que dolorosa e lenta agonia.

De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, e as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.

E sentiu sobre si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!

Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do “cadáver” que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entre a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?

E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.

Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão!  Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos. – Oh! essa sepultura é com certeza uma sepultura de igreja.

E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir, aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede, e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junto ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo – e sente uma a uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!

Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degrau em degrau como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria...

Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.

Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem torturas, o Espírito-Zombeteiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se – assim como uma cidade que despe aos primeiros raios de sol a túnica de névoas em manhãs de frio.

Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.

Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos – nem vivalma! Apenas sombras. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: – Marcha! Marcha! – As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As árvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silêncio, na noite e na treva  o defunto caminhava.

De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece a orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma ideia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua Noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. – Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo  e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como até hoje olhos humanos não sonharam. No alto, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade. Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. – Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se “ele” ali estava oculto contemplando a felicidade do outro “ele”! Jesus sorriu. Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! se ele pudesse, também seguir-lhes o voo!... Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra – e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... – Mas ele era cadáver e, na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem quer que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... E ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mais um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo  – coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que eram os braços regelados da Morte...

Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.

 

* * *

 

Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.

Pensou, então, no seu sonho – e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era a de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu, tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.

Longas horas passaram; desaparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser os da Ave-Maria. O som do triste bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade A liberdade! A delícia infinita! Ah! como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lágrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...

 

* * *

 

Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol – único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.

Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! quarenta e oito longas, intermináveis horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estômago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro – longo como um deserto; a noite inteira – vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber.

Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!

O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecilidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentar! A fome que ela fizera crescer! – E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as – e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estômago crispado pela fome.

Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa máscara vermelha. Enlouquecera.

Outra vez, pela última vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita – e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura... 

[1907, Histórias da vida e da morte]

(In: O conto fantástico. Antologia. Org. Jerônymo Monteiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959)

***



Fechado na catacumba

H. P. Lovecraft

Não sei de crença mais absurda do que essa associação convencional dos fatos simples às coisas serenas e banais de que parece imbuída a psicologia das multidões. Em consequência de um bucólico lugarejo yankee, um inepto e obtuso agente funerário de aldeia e um descuido desastroso no interior de um jazigo tumular, nenhum leitor de mediano entendimento podia esperar outro desfecho que não alegre, embora grotesco ato de comédia. Mas Deus sabe como a tremenda história de George Birch, cuja morte agora me permite contá-la, apresenta aspectos frente aos quais as nossas mais sombrias tragédias são perfeitamente simples, leves, pueris.

Birch, que abandonou a profissão, trocando-a por outra, em 1881, jamais tocava nesse assunto, fugindo do caso o mais que podia. Também o velho médico, Dr. Davis, que morreu há alguns anos, não emitira a menor palavra a respeito. Geralmente se atribuía tal atitude à aflição e ao abalo resultante de um fatídico descuido pelo qual Birch se fechara, durante nove horas, na catacumba do cemitério de Peck Valley e de onde só conseguiu escapar, empregando meios rudes e contundentes. Embora tudo isso fosse incontestável, havia outras coisas mais negras que o pobre homem me confiou, sussurrando, no seu delírio de ébrio já às portas da morte. Ele confiou em mim porque eu era o seu médico e também, provavelmente, por sentir a necessidade de desabafar-se com alguém depois do falecimento do Dr. Davis. Birch jamais se casara, nem contava parente algum neste mundo.

Até 1881, fora empreiteiro dos enterros, em Peck Valley e sempre se mostrara o tipo do individuo rude e primitivo de modos e idéias. As práticas que ouvi se lhe atribuírem, hoje ninguém as acreditaria possíveis, pelo menos, em uma cidade, e mesmo Peck Valley teria estremecido de espanto se soubesse ao certo dos inescrupulosos processos do seu coveiro exclusivo, tais como, por exemplo, a subtração dos custosos tecidos amortalhantes, favorecida pela tampa fechada do caixão e a falta de respeito sacrílega na colocação e arranjo dos restos mortais no ataúdes que fornecia, nem sempre fabricados no comprimento adequado. Mas, acima de tudo, o coveiro era moroso, relaxado e mau profissional. Apesar disso, não penso que fosse, no fundo, mau sujeito. Julgo-o simplesmente duro de inteligência e ação, bronco, desmazelado e beberrão, como a presente história o demonstrará à sociedade, e além disso, sem o mínimo grau de imaginação comum à maioria dos seres humanos, dentro do limite fixado pelo bom senso.

Dificilmente sei por onde começar o caso de Birch, uma vez que não possuo prática qualquer de narrador. Mas como tenho forçosamente de fazê-lo, principiarei por aquele frio dezembro de 1880, quando os campos gelaram de tal forma que impediram de cavar-se sepulturas até o advento da primavera e consequentemente reamolecimento do solo. Felizmente, a aldeia possuía pequenas proporções, o que tornava muito baixo o seu coeficiente de mortalidade. Assim, foi possível dar-se todas as cargas fúnebres do enterrador local um abrigo provisório na única catacumba do cemitério. Com a inclemência do tempo, Birch ficou dobradamente lerdo e parecia superar-se, a si mesmo, de relaxamento nos diversos misteres da sua profissão. Jamais construíra ele ataúdes tão grosseiros e mal ajustados, nem mais flagrantemente descurara antes os cuidados indispensáveis com a enferrujada fechadura da cripta, cuja porta ele costumava abrir com um safanão e fechava com desleixados pontapés.

Afinal veio o degelo e as sepulturas puderam ser cavadas laboriosamente para os silenciosos frutos humanos, safra da impiedosa segadora eterna e que pacientemente esperavam o repouso final da última morada. Birch, embora maldizendo o afã, começou a remoção dos cadáveres, numa desagradável manhã de abril, interrompendo-a, porém, antes do meio-dia, devido à pesada chuva que cegava o cavalo da carreta, e depois de só ter baixado um único defunto ao seio da terra. Este era Darius Peck, nonagenário, cuja cova ficava perto da catacumba. O coveiro resolveu começar, no dia seguinte, com Matthew Fenner, velhinho miúdo que tinha o seu túmulo também não muito distante. Acabou, porém, adiando o serviço para três dias depois, só voltando a trabalhar na Sexta- feira Santa, dia quinze. Não sendo supersticioso, nenhuma importância deu à data, se bem que, depois da história, sempre se recusou a fazer qualquer serviço de importância neste fatídico dia. Certamente, os acontecimentos daquela noite mudaram por completo, o feitio de George Birch.

Então, na tarde de Sexta-Feira Santa, quinze de abril, o nosso homem se dirigiu à catacumba, com o cavalo a puxar a carroça, a fim de apanhar o caixão de Matthew Fenner. A verdade é que Birch já gostava da bebida, conforme ele próprio o confessou mais tarde, muito embora, naquele tempo, ainda contraíra o vício desbragado pelo qual procurou esquecer, na embriaguez, certos fatos penosos. O agente funerário sentia-se, então, bastante entontecido e abstrato que esquecia o necessário incitamento ao seu cavalo que, vendo-se assim dignificantemente conduzido, relinchava, batia com as patas no solo e remexia continuamente a cabeça, molestado pela chuva. Entretanto, o dia mostrava-se claro e a aventura soprava, o que pôs o coveiro contente, com a idéia de abrigar-se, ao abrir a porta de ferro e penetrar na cripta cavada no flanco da colina. Um outro não teria gostado daquele recinto úmido e malcheiroso, com oito esquifes dispostos cuidadosamente ao centro, mas Birch tinha a alma calejada pelo ofício e se preocupava em não errar a sepultura de cada um. Jamais esquecera os protestos levantados, quando os parentes de Hanna Bixby, desejando transportar-lhe os restos para o cemitério da cidade para onde se haviam mudado, encontraram, sob a lápide de Hanna, a urna do Juiz Capwell.

O interior da catacumba mergulhava-se em densa penumbra. Birch, no entanto, possuía excelente vista e não confundiu o caixão de Fenner com o de Asaph Sawyer, embora fosse este muito semelhante àquele. Com efeito, o ataúde de Sawyer destinava-se primitivamente a Matthew Fenner, mas, à última hora, Birch pusera-o de lado, achando-o demasiado frágil e tosco pois, num impulso de sentimentalismo agradecido, lembrou-se de quando o velhinho Fenner o ajudara em uma falência, cinco anos antes. Assim, deu ao seu bom protetor tudo o que de melhor a sua arte poderia produzir. Mas, sendo demasiado sovina para desperdiçar o material defeituoso, aproveitou o refugo, quando Asaph Sawyer morreu de febre maligna. Este não gozava de bom conceito, como cidadão, e muitas histórias corriam da sua quase desumana sede de vingança e da sua memória tenaz que o impedia de esquecer ressentimentos reais ou imaginários contra os desafetos. Assim, o empreiteiro fúnebre nenhum constrangimento sentiu em reservar-lhe o ataúde mal feito que, naquele momento, afastava para lado com um repelão, procurando o de Fenner.

Foi justamente então, quando punha as mãos no caixão do bom velhinho, que o vento bateu a porta, mergulhando tudo em negra escuridão. O estreito postigo só deixava uma fraquíssima claridade e nenhuma virtualmente se coava pela chaminé de ventilação do teto. O coveiro ficara, pois, reduzido a um tatear inconsciente, caminhando hesitante, entre os esquifes, na direção da porta. Neste débil lusco-fusco, fez tanger a enferrujada aldrava, sacudiu inutilmente as almofadas de ferro, espantando-se com a súbita resistência da maciça porta. Compreendeu logo a realidade da situação e pôs-se a gritar desesperadamente como se o cavalo, lá fora, pudesse fazer mais do que responder-lhe com relinchos agudos e desolantes. A lingueta da fechadura, longamente desleixada, quebrara-se finalmente, fechando, na catacumba, a culpada vítima da própria negligência, como em ratoeira.

A coisa devia ter acontecido cerca das três horas e meia da tarde. Birch, dotado de temperamento fleumático e prático, não gritou por muito tempo, pondo-se logo a procurar, às apalpadelas, algumas ferramentas que lembrava haver visto amontoadas em um canto. Não há, contudo, certeza se ele avaliou de pronto todo o horror e a impressionante fatalidade da sua crítica situação, mas o simples fato de se ver encerrado em local fora do caminho de qualquer ser humano seria bastante para fazer perder a cabeça ao mais valente indivíduo. A tarefa do dia fora assim desgraçadamente interrompida e a não ser que a sorte trouxesse até ali algum excursionista errante, Birch teria de ficar enclausurado durante toda a noite e ninguém podia saber por quanto tempo mais. Logo que encontrou o monte de ferramentas, o enterrador escolheu um martelo e um escopo e voltou à porta, passando por sobre os caixões. O ar começara a ficar excessivamente empestado, mas ele não atentou em semelhante detalhe, tão ocupado estava em atacar o pesado e corroído metal da fechadura. Teria certamente então dado tudo por uma lanterna acesa ou um simples toco de vela, mas, na falta de qualquer iluminação bastante, martelava, às cegas, da melhor maneira que podia.

Percebendo, porém, que o fecho resistiria inexoravelmente, pelo menos a tão frágeis instrumentos, naquelas tenebrosas condições, Birch olhou em torno, na esperança de achar outros possíveis meios de safamento. A catacumba se cavava na encosta de uma elevação, de modo que o ventilador atravessava vários pés de terra, eliminando assim qualquer visibilidade de evasão por aquele lado. A clarabóia losangular, tendida bem alto, sobre a porta, na fachada de tijolos, parecia- lhe mais suscetível de ser alargada, embora à custa de rudes esforços. Os olhos do homem nela se fixaram longamente, enquanto espremia o cérebro, em busca do meio de subir e alcançá-la. Não havia ali espécie alguma de escada e os nichos destinados a receber as urnas, situados nas paredes laterais e do fundo, não lhe dariam acesso, muito distantes, à parte superior da porta. Só restava, portanto, o uso dos próprios esquifes, à guisa de degraus. Fixando o pensamento nesse sentido, estudo o melhor meio de colocá-los. Calculou que a altura de três caixões superpostos lhe seria bastante para chegar à clarabóia, mas quatro lhe tornaria o trabalho ainda mais fácil. As urnas fúnebres era bem niveladas e podiam ser empilhadas solidamente. Sem mais demora, pôs-se a imaginar como deveria dispor os oito féretros para construir uma plataforma escalável, cujo piso superior se constituísse de quatro deles, verticalmente arrumados. Enquanto pensava, só lamentava não tê-los feito com absoluta solidez. Agora, se a sua imaginação chegou a desejar que os caixões estivessem vazios, é francamente duvidoso.

Finalmente, decidiu encostar uma base de três ataúdes à porta e colocar sobre esta duas camadas de dois féretros cada uma e, em cima de tudo, um único caixão, servindo de estrado. Tal disposição podia ser erguida com o mínimo de tropeços e lhe forneceria a altura desejada. Ainda melhor, assim só se utilizaria de dois caixões, na base, para suportar a superestrutura, deixando o terceiro, como um degrau disponível, para o caso de ser-lhe necessário maior altura. E o prisioneiro labutou, na penumbra espessa, erguendo os defuntos com nenhuma cerimônia, naquela muda de torre de babel. Vários féretros começaram a estalar no decurso da operação e Birch resolveu reservar o de Matthew Fenner, pela sólida construção, para encimar a pilha, de modo que, ao trabalhar na clarabóia, os seus pés encontrassem a superfície mais firme possível como apoio.

Por fim, a torre foi terminada e, com os braços doloridos, Birch fez uma pausa, durante a qual se sentou no primeiro degrau da estranha escada. A seguir, subiu cautelosamente, com as ferramentas, até a clarabóia, cujos bordos era m de tijolos e que, lhe parecia, não lhe seria difícil dilatar do suficiente para escapulir daquela fúnebre prisão. Ao ressoar das primeiras marteladas, o cavalo, fora, relinchou em tom que tanto podia ser de encorajamento como de mofa. Em ambas as hipóteses, a manifestação da alimária se tornava adequada, pois a imprevista tenacidade da camada de tijolos, de frágil aspecto à vista, simbolizava um verdadeiro comentário sardônico à falacidade das esperanças terrenas e exigia um trabalho merecedor dos mais acalorados incitamentos.

Caiu a noite, que encontrou o coveiro ainda mourejanto. Agora, trabalhava exclusivamente pelo tato, pois grandes nuvens repentinamente aglomeradas eclipsaram a lua. Embora o progresso geral fosse medíocre, ele se sentia animado com a extensão das erosões produzidas no alto e no fundo da clarabóia. Estava firmemente convicto, enfim, de que conseguiria libertar-se por volta da meia-noite. Abstraído de reflexões opressivas sobre o tempo, o lugar e a companhia empilhada sob os seus pés, Brich ia filosoficamente lascando os pétreos tijolos. Praguejava, quando um estilhaço o atingia no rosto e ria-se quando outros se projetavam sobre o cada vez mais enlevado cavalo que pastejava, amarrado ao cipreste. De vez em quando, julgava a abertura tão adiantada que tentava por ela passar o corpo e, ao assim proceder, tanto se remexia que os esquifes embaixo, dançavam e estalavam. Esperava, entretanto, não ter de elevar mais a plataforma por meio de um quinto ataúde, pois o buraco se encontrava no nível exato de ser transposto logo que as dimensões permitissem a passagem.

Devia ser, pelo menos, meia-noite, quando Birch decidiu empreender a travessia da clarabóia. Cansado e suarento, a despeito das inúmeras pausas, desceu ao chão e sentou-se um momento sobre o esquife inferior, a fim de reunir as forças para o esforço final e o salto para o exterior. O cavalo, faminto, relinchava repetida e fracamente, enquanto o seu dono fazia votos para que ele parasse com aqueles lúgubres apelos. Birch sentia-se paradoxalmente pouco entusiasmado. No momento de realizar a ambiciosa libertação, assautou-o um como quase medo de iniciá-la, pois a coisa se revestia de intemerata rudeza dos heróicos tempos medievais. Ao galgar de novo os caixões, já rachados, ele percebeu, apreensivo, o próprio corpo mais pesado ainda, especialmente quando, depois de atingir a plataforma, ouviu um estalo forte de madeira que acabava de ceder. Fora-lhe inútil escolher o caixão mais sólido para encimar o macabro andaime. Tão pronto voltara a descansar sobre ele o peso do corpo, a tampa rompeu-se, fazendo-o baixar duas jardas sobre uma coisa mole, de que jamais imaginara, um dia, haver de sentir, sob os pés, a muralhante e gosmenta friagem. Estonteado pelo barulho ou pelo fétido que se desprendera, vigoroso, até o lado de fora, o cavalo emitiu um berro estridente, demasiado selvagem para chamar-se um relincho, e mergulhou na noite de piche, louco de pânico, seguido do estrépito infernal da carroça, arrastada aos trambolhões cegos.

Naquela angustiosa situação, Birch se encontrava agora impotente para atravessar a clarabóia já alargada, mas resolveu reunir as energias para uma tentativa desesperada. Tendo conseguido agarrar-se à beira da abertura pela ponta dos dedos, dispunha-se a alcançar-se, pela força dos braços, quando notou uma estranha pressão como se alguém o puxasse para baixo, pelos calcanhares. Então, pela primeira vez, naquela noite, ele sentiu medo. Sim. Porque, embora se debatesse, esperneando furiosamente o mais possível, não conseguiu sacudir fora a misteriosa garra que lhe prendia os pés, em uma tração contínua. Dores horríveis, como de chagas cruéis, percorriam-lhe a barriga da perna e, em seus espírito, dançava, num vértice de horror supersticioso, a inequívoca realidade, a prova material; o lascar das tábuas, os pregos arrancados e todos os demais ruídos característicos da madeira que se parte. Não era, portanto, uma ilusão dos sentidos, um fenômeno alucinatório gerado pelas circunstâncias. Pô-se a lutar, dando de pernas, em contorções ainda mais frenéticas, até passar a um estado de semidesmaio, em que os seus desvairados movimentos continuaram, ao acaso, automáticos. De repente, sem saber como, viu-se livre, já com o corpo metido na clarabóia.

Somente o instinto o guiou, no trágico caminho sinuoso através da abertura e ao rastejar que seguiu o baque surdo da sua queda, no exterior, sobre o chão úmido. Birch não podia caminhar e a lua nascente deve ter testemunhado a horrível cena daquele homem delirante, arrastando os tornozelos em sangue, na direção do pequeno pavilhão do cemitério, os dedos espasmódicos enterrando-se na relva enegrecida, em pressa febril, o corpo, porém, respondendo com a clássica lentidão desesperante de que procura fugir dos fantasmas, nos pesadelos. Evidentemente, ali não havia perseguidor algum, pois que Birch estava só e acordado, quando Armington, o guarda da necrópole, atendeu a seu fraco batido à porta.

O guarda levou-o para uma cama de reserva e mando o filho, Edwin, chamar o Dr. Davis. O pobre empreiteiro de enterros se achava em perfeito estado de conhecimento, mas nada dizia sobre o acontecimento, murmurando apenas raras palavras como: “Ai! Meus tornozelos! Largue-me!... Fechado na catacumba...”. Pouco depois, chegou o médico com a sua maleta de remédios, fez perguntas insistentes ao ferido e removeu-lhe as roupas de cima, os sapatos e as meias. As feridas (ambos os artelhos se apresentavam horrivelmente dilacerados sobre o tendão de Aquiles) intrigaram grandemente o velho doutor e, a seguir, quase o aterrorizaram. O interrogatório, com efeito, ultrapassou o terreno médico e as mãos do esculápio tremiam visivelmente ao contribuírem os retalhados membros de espessas ataduras, como se ele quisesse, sobretudo, ocultar aquelas chagas, o mais depressa possível.

Realmente, as perguntas angustiosas e solenes do Dr. Davis tornavam-se mais do que estranháveis, pois deixavam bem patente a intenção de arrancar do infeliz coveiro até o mais insignificante detalhe da sua pavorosa aventura, o que era inadmissível em médico. Davis mostrava- se singularmente ansioso pos saber se Birch tinha a certeza absoluta de quem era o caixão que servia de plataforma, de como ele o identificara em plena escuridão e finalmente, por que maneira o distinguira da duplicata de qualidade inferior, mais tarde ocupada pelo corpo do mal-afamado Asaph Sawyer. Em suma, por que artes o sólido ataúde de Fenner cedera assim tão facilmente? O profissional, antigo médico da aldeia, assistira, naturalmente, aos funerais de ambos, como também os havia atendido nas suas derradeiras enfermidades. Até mesmo no enterro de Sawyer, muito se admirara de como se arranjara o vingativo fazendeiro defunto para acomodar os longos ossos em tão diminuto caixão, feito sob as medidas do pequeno Fenner.

Após duas longas horas, o Dr. Davis partiu, insistindo com o paciente para convencer-se de que as suas feridas só poderiam ter sido causadas por pregos de pontas soltas estilhaços agudos de madeira. Nada mais explicaria o acontecido, com lógica e verossimilhança, acrescentou. Sobretudo, recomendou-lhe ainda falar o menos possível sobre o caso e, em nenhuma hipótese, permitisse que ouro médico lhe tratasse aqueles ferimentos. Birch seguiu esses conselhos o resto da sua vida, até que um dia, me contou a sua história. Depois de examinar-lhe as cicatrizes já velhas e esbranquiçadas, achei que ele fizera muito bem em manter-se discreto. Do acidente, o pobre homem saira aleijado, pois fora cortado o tendão principal, mas, para mim, a sua maior invelidez operou-se- lhe na própria alma. De temperamento outrora tão fleumático, o seu raciocínio guardou, depois do fato, transtornos imperecíveis e comovia observar-se-lhe as reações e certas alusões causais, como “sexta-feira, catacumba, caixão” e outras palavras menos diretamente significativas. O seu cavalo assustado, regressara a casa, nas a razão do pobre homem nunca mais retornou ao lugar devido. Ele trocou a profissão, mas, para sempre, algo lhe ficou, penando-o. Talvez fosse apenas o medo, ou o medo envolto em espécie estranha de implacável remorso pelas más ações do seu passado. Ademais, a bebida só veio agravar o que ele tencionava aliviar com a embriaguez.

O Dr. Davis, ao deixá-lo, naquela noite, pegara uma lanterna e se dirigira à catacumba. A luz iluminava vagamente os destroços dos tijolos espalhados, a fachada esburacada e o velho cipreste, de cujo tronco ainda pendia o segmento do cabresto arrebentado pelo equino, em pânico. O trinco da pesada porta de ferro abriu-se à primeira pressão da maçaneta exterior. Endurecido pela antiga prática das autópsias, o médico entrou e correu o olhar em torno, contendo a náusea física e moral que o mau cheiro e tudo mais ali provocavam. De repente, deixou escapar um grito e, logo depois, teve um extremeção que lhe pareceu mais terrível do que um berro de dor. E correu desabaladamente para o pavilhão do cemitério, onde, contra todas as regras da compostura, agarrou o doente pelas roupas, levantando-o, com força, atirou-lhe uma série de cochichos frenéticos que entraram pelos ouvidos do ferido, fervilhantes como vitríolo.

— O caixão era de Asaph, Birch – sibilou-lhe o doutor, justamente como eu pensava. – Reconheci-lhe o cadáver pela dentadura a que faltavam incisivos superiores. Pelo amor de Deus, jamais mostre os seus ferimentos a quem for! O corpo estava completamente putrefeito, mas, ainda assim, nunca vi expressão tão nítida de vingança satisfeita como a das suas feições já enegrecidas. Nunca, juro-o, em toda a minha vida! Bem sabe o demônio tenaz que era ele para vingar-se. Ainda deve estar lembrado de como arruinou o velho Raymond, trinta anos depois da demanda de terras entre ambos e como matou, a pisadas, o cãozinho inofensivo que o perseguira, latindo, fez um ano em agosto... Era o diabo em figura de gente e penso que a sua teoria de olho por olho e dente por dente tinha tanta ferocidade que resistiu à própria morte. O seu ódio... meu Deus!... eu não o quisera, jamais, sobre mim!

Então, por que você o foi provocar, Birch? Por ter sido um sujeito miserável, não te censuro ter-lhe dado um caixão refugado. Mas sempre exageras as coisas! Há limites que se devem respeitar, a todo preço, e conhecias muito bem o tamanho do velhinho Fenner!

Nunca mais se me apagará da memória, enquanto vivo for, o quadro que então presenciei. O caixão de Asaph estava por terra, atirado longe. A sua cabeça esfacelada e tudo mais, dentro, resolvido. Já muita coisa neste mundo, mas uma, doravante, ficará insuperável! Olho por olho! Francamente, Birch teve o que merecia. O crânio esmigalhado de Asaph embrulhou-me o estômago, mas a outra extremidade do corpo fez-me pior. Aqueles tornozelos cortados rentes para que o defunto coubesse no caixão feito para Matt Fenner!

 

[1925]

 

(In: sitelovecraft.com, a partir de texto publicado originalmente em 1979 na revista Spektro nº 9. Título original: “In the vault”. Trad. desconhecida) 

 

***


O barril de Amontillado

Edgar Allan Poe

 

Suportara eu, enquanto possível, as mil ofensas de Fortunato, mas quando se aventurou ele a insultar-me, jurei me vingar. Vós que tão bem conheceis a natureza de minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi alguma ameaça. Afinal, eu deveria vingar-me. Isto era um ponto definitivamente assentado, mas essa resolução definitiva excluía a ideia de risco. Eu devia não só punir, mas punir com impunidade. Não se desagrava uma injúria, quando o castigo recai sobre o desagravante. O mesmo acontece quando o vingador deixa de fazer sentir sua qualidade de vingador a quem o injuriou.

Fica logo entendido que nem por palavras, nem por fatos, dera eu causa a Fortunato de duvidar de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a fazer-lhe cara alegre, e ele não percebia que meu sorriso agora se originava da ideia de sua imolação.

O Fortunato tinha o seu lado fraco, embora, a outros respeitos, fosse um homem acatado e até temido. Orgulhava-se de ser conhecedor de vinhos. Poucos italianos têm o verdadeiro espírito do "conhecedor". Na maior parte, seu entusiasmo adapta-se às circunstâncias do momento e da oportunidade, para ludibriar milionários ingleses e austríacos. Em matéria de pintura e ourivesaria era Fortunato semelhante a seus patrícios, um impostor, mas em assunto de vinhos velhos era sincero. A este respeito, éramos da mesma força. Considerava-me muito entendido em vinhos italianos, e, sempre que podia, comprava-os em larga escala.

Foi ao escurecer duma tarde, durante o supremo delírio carnavalesco, que encontrei meu amigo. Abordou-me com excessivo ardor, pois já estava bastante bebido. Estava fantasiado, com um traje apertado e listado, trazendo na cabeça uma carapuça cônica, cheia de guizos. Tão contente fiquei ao vê-lo, que não cessava de apertar-lhe a mão. E disse-lhe:

— Meu caro Fortunato, foi uma felicidade encontrá-lo. Como está você bem-disposto hoje! Mas recebi uma pipa dum vinho, dado como Amontillado, e tenho minhas dúvidas.

— Como? — disse ele. — Amontillado? Uma pipa? Impossível. E no meio do carnaval!

— Tenho minhas dúvidas — repliquei —, mas fui bastante tolo em pagar o preço total do amontillado, sem antes consultar você. Não consegui encontrá-lo e tinha receio de perder uma pechincha.

— Amontillado!

— Tenho minhas dúvidas.

— Amontillado!

— É preciso desfazê-las.

— Amontillado!

— Se você não estivesse ocupado... Estou indo à casa de Luchesi. Se há alguém que entenda disso, é ele. Terá de dizer-me...

— Luchesi não sabe diferençar um Amontillado dum Xerez.

— No entanto, há uns bobos que dizem por aí que, em matéria de vinhos, vocês se equiparam.

— Pois então vamos.

— Para onde?

— Para sua adega.

— Não, meu amigo. Não quero abusar de sua boa vontade. Vejo que você está ocupado. Luchesi...

— Não estou ocupado coisa nenhuma... Vamos.

— Não, meu amigo. Não é por isso, mas é que vejo que você está fortemente resfriado. A adega está duma umidade intolerável. Suas paredes estão incrustadas de salitre.

— Não tem importância, vamos. Um resfriado à-toa. Amontillado! Acho que você foi enganado. Quanto a Luchesi, é incapaz de distinguir um Xerez dum Amontillado.

Assim falando, Fortunato agarrou-me o braço. Pondo no rosto uma máscara de seda e enrolando-me num capote, deixei-me levar por ele, às pressas, na direção do meu palácio.

Todos os criados haviam saído para se divertirem no carnaval. Dissera-lhes que só voltaria de madrugada e dera-lhes explícitas ordens para não se afastarem de casa. Foi, porém, o bastante, bem o sabia, para que se sumissem, logo que virei as costas.

Peguei dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o através de várias salas até a passagem abobadada, que levava à adega. Desci à frente dele uma longa e tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado. Chegamos por fim ao sopé e ficamos juntos, no chão úmido das catacumbas dos Montresors.

Meu amigo cambaleava e os guizos de sua carapuça tilintavam, a cada passo que dava.

— Onde está a pipa? — perguntou ele.

— Mais para o fundo — respondi —, mas repare nas teias cristalinas que brilham nas paredes desta caverna.

Ele voltou-se para mim e fitou-me bem nos olhos, com aqueles seus dois glóbulos vítreos que destilavam a reuma da bebedice.

— Salitre? — perguntou ele, por fim.

— É, sim — respondi. — Há quanto tempo está você com essa tosse?

— Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! Eh! — pôs-se ele a tossir e durante muitos minutos não conseguiu meu pobre amigo dizer uma palavra.

— Não é nada — disse ele, afinal.

— Venha — disse eu, decidido. — Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado. Você é feliz, como eu era outrora. Você é um homem que faz falta. Quanto a mim, não. Voltemos. Você pode piorar e não quero ser responsável por isso. Além do que, posso recorrer a Luchesi...

— Basta! — disse ele. — Esta tosse não vale nada. Não me há de matar. Não é de tosse que hei de morrer.

— Isto é verdade... isto é verdade — respondi — e de fato, não era minha intenção alarmá-lo sem motivo. Mas acho que você deveria tomar toda a precaução. Um gole deste Médoc nos defenderá de umidade.

Então fiz saltar o gargalo duma garrafa, que retirei duma longa fileira empilhada no chão.

— Beba — disse eu, apresentando-lhe o vinho.

Levou a garrafa aos lábios com um olhar malicioso. Calou-se um instante e me cumprimentou com familiaridade, fazendo tilintarem os guizos.

— Bebo pelos defuntos que repousam em torno de nós — disse ele.

— E eu para que você viva muito.

Pegou-me de novo pelo braço e prosseguimos.

— Estas adegas são enormes — disse ele.

— Os Montresors eram uma família rica e numerosa — respondi.

— Não me lembro quais são suas armas.

— Um enorme pé humano dourado, em campo blau; o pé esmaga uma serpente rastejante, cujos colmilhos se lhe cravam no calcanhar.

— E qual é a divisa?

 Nemo me impune lacessit.

— Bonito! — disse ele.

O vinho faiscava-lhe nos olhos e os guizos tilintavam. Minha própria imaginação se aquecia com o Médoc. Havíamos passado diante de paredes de ossos empilhados, entre barris e pipotes, até os recessos extremos das catacumbas. Parei de novo e desta vez atrevi-me a pegar Fortunato por um braço, acima do cotovelo.

— O salitre! Veja, está aumentado. Parece musgo agarrado às paredes. Estamos embaixo do leito do rio. As gotas de umidade filtram-se entre os ossos. Venha, vamos antes que seja demasiado tarde. Sua tosse...

— Não é nada — disse ele. — Continuemos. Mas antes dê-me outro gole de Médoc.

Quebrei o gargalo duma garrafa de De Grave e entreguei-lhe. Esvaziou-a dum trago. Seus olhos cintilavam, ardentes. Riu e jogou a garrafa para cima, com um gesto que eu não compreendi.

Olhei surpreso para ele. Repetiu o grotesco movimento.

— Não compreende? — perguntou.

— Não.

— Então não pertence à irmandade?

— Que irmandade?

— Você não é maçom?

— Sim, sim, sim, sim — respondi.

— Você? Maçom? Não é possível.

— Sou maçom, sim.

— Mostre o sinal — disse ele.

— É este — respondi, retirando de sob as dobras de meu capote uma colher de pedreiro.

— Você está brincando — exclamou ele, dando uns passos para trás. — Mas vamos ver o Amontillado.

— Pois vamos — disse eu, recolocando a colher debaixo do capote e oferecendo-lhe, de novo, meu braço, sobre o qual se apoiou ele pesadamente. Continuamos o caminho em busca do Amontillado. Passamos por uma série de baixas arcadas, demos voltas, seguimos para a frente, descemos de novo e chegamos a uma profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia a chama de nossos archotes a brasas avermelhadas.

No recanto mais remoto da cripta, outra se descobria menos espaçosa. Nas suas paredes alinhavam-se restos humanos, empilhados até o alto da abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior estavam assim ornamentados. Do quarto haviam sido afastados os ossos, que jaziam misturados no chão, formando em certo ponto um montículo de avultado tamanho. Na parede assim desguarnecida dos ossos, percebemos um outro nicho, com cerca de quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não parecia ter sido escavado para um uso especial, mas formado simplesmente pelo intervalo entre dois dos colossais pilares de teto das catacumbas e tinha como fundo uma das paredes de sólido granito, que os circunscreviam. Foi em vão que Fortunato, erguendo a tocha mortiça, tentou espreitar a profundeza do recesso. A fraca luz não nos permitia ver-lhe o fim.

— Vamos — disse eu —, aqui está o Amontillado. Quanto a Luchesi...

— É um ignorantaço! — interrompeu meu amigo, enquanto caminhava, vacilante, para diante e eu o acompanhava rente aos seus calcanhares. Sem demora alcançou ele a extremidade do nicho e, não podendo mais prosseguir, por causa da rocha, ficou estupidamente apatetado. Um momento mais e ei-lo acorrentado por mim ao granito. Na sua superfície havia dois anéis de ferro, distando um do outro cerca de dois pés, horizontalmente. De um deles pendia curta cadeia e do outro um cadeado. Passar-lhe a corrente em torno da cintura e prendê-lo, bem seguro, foi obra de minutos. Estava por demais atônito para resistir. Tirando a chave, saí do nicho.

— Passe sua mão — disse eu — por sobre a parede; não poderá deixar de sentir o salitre. É de fato bastante úmido. Mais uma vez permita-me implorar-lhe que volte. Não? Então devo positivamente deixá-lo. Mas é preciso primeiro prestar-lhe todas as pequeninas atenções que puder.

— O Amontillado! — vociferou meu amigo, ainda não recobrado do espanto.

— É verdade — repliquei —, o Amontillado.

Ao dizer estas palavras pus-me a procurar as pilhas de ossos, a que me referi antes. Jogando-os para um lado, logo descobri grande quantidade de tijolos e argamassa. Com estes materiais e com o auxílio de minha colher de pedreiro, comecei com vigor a emparedar a entrada do nicho.

Mal havia eu começado a acamar a primeira fila de tijolos, descobri que a embriaguez de Fortunato se tinha dissipado em grande parte. O primeiro indício disto que tive foi um surdo lamento, lá do fundo do nicho. Não era o choro de um homem embriagado. Seguiu-se então um longo e obstinado silêncio. Deitei a segunda camada, a terceira e a quarta e depois ouvi as furiosas vibrações da corrente. O barulho durou vários minutos, durante os quais, para gozá-lo com maior satisfação, interrompi meu trabalho e me sentei em cima dos ossos. Quando afinal o tilintar cessou, tornei a pegar na colher e acabei sem interrupção a quinta, a sexta e a sétima camadas. A parede estava agora quase ao nível de meu peito. Parei de novo e, levantando o archote por cima dela, lancei uns poucos e fracos raios sobre o rosto dentro do nicho. Uma explosão de berros fortes e agudos, provindos da garganta do vulto acorrentado, me fez recuar com violência. Durante um breve momento hesitei. Tremia. Desembainhando minha espada, comecei a apalpar com ela em torno do nicho, mas uns instantes de reflexão me tranquilizaram. Coloquei a mão sobre a alvenaria sólida das catacumbas e senti-me satisfeito. Reaproximei-me da parede. Respondi aos urros do homem. Servi-lhe de eco... ajudei-o a gritar... ultrapassei-o em volume e em força. Fui fazendo assim e por fim cessou o clamor.

Era agora meia-noite e meu serviço chegara ao termo. Completara a oitava, a nona e a décima camadas. Tinha acabado uma porção desta última e a décima primeira. Faltava apenas uma pedra a ser colocada e argamassada. Carreguei-a com dificuldade por causa do peso. Coloquei-a, em parte, na posição devida. Mas então irrompeu de dentro do nicho uma enorme gargalhada, que me fez eriçar os cabelos. Seguiu-se-lhe uma voz lamentosa, que tive dificuldade em reconhecer como a do nobre Fortunato. A voz dizia:

— Ah! Ah! Ah!... Eh! Eh! Eh!... Uma troca bem boa de fato... uma excelente pilhéria. Haveremos de rir a bandeiras despregadas lá no palácio... Eh! Eh! Eh!... a respeito desse vinho... Eh! Eh! Eh!

— O Amontillado! — exclamei eu.

— Eh! Eh! Eh!... Eh! Eh! Eh!... Sim, o Amontillado. Mas já não será tarde? Já não estarão esperando por nós, no palácio, minha mulher e os outros? Vamos embora.

— Sim — disse eu —, vamos embora.

 Pelo amor de Deus, Montresor!

— Sim — disse eu —, pelo amor de Deus!

Aguardei debalde uma resposta a essas palavras. Impacientei-me. Chamei em voz alta:

— Fortunato!

Nenhuma resposta. Chamei de novo:

— Fortunato!

Nenhuma resposta ainda. Lancei uma tocha, através da abertura remanescente, e deixei-a cair lá dentro. Como resposta ouvi apenas o tinir dos guizos. Senti um aperto no coração... devido talvez à umidade das catacumbas. Apressei-me em terminar meu trabalho. Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a. Contra a nova parede, reergui a velha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal algum os remexeu. In pace requiescat!

 

[1846 - revista Godey's Lady's Book]

(In: Histórias extraordinárias. Contos. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970)


***

 

Uma amizade sincera

Clarice Lispector

 

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. A procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.

Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.

Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.

Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.

Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.

Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.

Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.

Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.

Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros. 

(In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 95-98).

***


 

A nova dimensão do escritor Jeffrey Curtain

Marina Colasanti


Quando o coágulo de sangue explodiu na cabeça de Jeffrey Curtain, algo nele foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento viu-se subitamente decepado do corpo.

Sem espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão.

– O Dr. Jewett acha que não há esperança – repetia a enfermeira em voz baixa, aos eventuais visitantes. O Sr. Curtain poderá viver indefinidamente, mas não tornará a ver. Nem se mexerá, nem pensará. Apenas respirará.

De fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à situação do restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com a mesma fiel regularidade com que durante tantos anos lhe haviam fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada manhã, e a cada manhã se barbeasse dando partida para mais um dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de refeições para a mesa de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos que produzia para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões encarregados de fornecer aquele ar indispensável para.

Jeffrey teria ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de Jeffrey continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito estado de funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se como se deles não necessitasse. Assim como não necessitava de visão ou da audição.

Cortadas as ligações que o haviam ancorado ao resto do corpo, o cérebro de Jeffrey Curtain não dava mais ordens. E os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa craniana cujos orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo, o cérebro pensava.

Talvez fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até então se assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na óssea escuridão da sua caverna. Jeffrey Curtain havia-se livrado para sempre da escravidão da coerência. Sua mente, solta, tudo se permitia, tudo realizava.


Aos poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes escamas quebradiças abriam-se feito conchas na velha superfície, entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse.

Crescia a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro movimento se processava. Vinda dos pés – ou seria da nuca? – a paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro, buscando alcançar-lhe o coração.

Na cidadezinha, todos se referiam a ele como se já estivesse morto.

E todas as manhãs, sua mulher o barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito.

Mas Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias, evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silencio ou se para preencher com suas palavras o silêncio que dele parecia emanar.


Sem que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos, por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos ossos, um silêncio cheio de sons e palavras tecia sua sinfonia no cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele havia precisado se expressar de forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado para outros. Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou fraturas. A fabulação, que havia sido sua forma de viver, tornava-se sua vida. E ali deitado, imóvel, Jeffrey criava e costurava uma após a outra, as imagens da longa narrativa.

Um neurologista – fama convocada para validar o que vários outros já haviam afirmado – tentou convencer Roxanne de que era inútil dispensar o tamanho cuidado ao enfermo. “Se Jeffrey tivesse consciência do seu estado”, disse em voz autoritariamente piedosa, “desejaria morrer. Desejaria libertar-se da prisão do próprio corpo.”

Mas Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do próprio corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos poucos sobre a cama, não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta. Antes, havia sido necessário ocupar-se dele, vigiar seus alarmas, suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para atender sua fome inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo, e às suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora, quando, impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram elas que o serviam.

De alguma forma, poder-se-ia dizer que Jeffrey não tinha consciência do seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo. E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava empenhado, o fato de não falar ou mover-se parecia tão menor que se via excluído.

Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria Roxanne da intensa movimentação que o habitava. Sem gesto que o cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um só. E nesse estado, de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo e de país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e voava, voava.

Longas vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey deixava-se ficar, girando apenas ao redor de um pensamento, envolvendo-o nos fios prateados das suas ideias, aprumando-lhe as formas e o sentido, até vê-lo crescer, tão intenso como se a vida não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os sinos badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu som cortasse o ar pesado do cheiro de remédios.


Os anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a vender uma parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma faixa de jardim à direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável.

E no entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara e ainda parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o marido.

Amava, em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela teimava em sobrepor a esta pálida coisa cada dia menor e mais leve, coisa quase humana que ainda transportava da cama para a cadeira e da cadeira para a cama, como se carregasse um fardo ou um feto.

– Que mais posso eu fazer? – perguntava-se puxando de leve as cortinas, não fosse o sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento perceptível, parecia voltar-se sempre em direção à luz.

Uma luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de Jeffrey, naquela tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu que seu corpo o chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios aos seus lhe chegavam como ruído de cachoeira, ou vento, ou cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as maçãs do seu rosto abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsá-lo da caverna.

O fio do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz.

Roxanne, que cochilava na cadeira ao da cama, acordou sobressaltada. Estendeu a mão para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo de olhá-lo, soube que estava sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo, segurou-a com a outra, e deixou-se ficar. O sol se pôs. O perfume dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o coaxar das rãs pairou sobre o peitoril da janela.

então Roxanne levantou-se.

(In: O leopardo é um animal delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)

 

***


Família

Magali Garcindo de Sá

Nunca havia ninguém no corredor sombrio. Ali as moças não paravam. Chegavam ainda cegas do sol, tateando as paredes. Havia muita luz naquela ilha, do lado das janelas dos quartos o sol crescia e explodia no momento em que as moças acordavam ou cantava sua melopeia quando parecia escorregar na lápide pelo horizonte. O corredor se iluminava com a luz artificial, mas ninguém acreditava. As moças continuavam sempre só a passar. Havia de vez em quando uma criada mais solitária ainda do que outras criadas, inclinada, limpando a poeira com pano molhado; a pressa de corpos encurralados, a cópia das mulheres da família, o rosto distante da Mãe, pequenos recados em sussurros, risos cortados pelo bater de alguma porta. O corredor desabitado – uma pausa, um olhar atento para as portas fechadas por onde passavam cabeças cansadas e sonolentas na intimidade de muitas mulheres, cabelos trançados e água fria.

A distração de Isabel era pensada e profunda, coisa de cérebro de peixe nos abismos, tempo no leito cercado de mar verde de folhas exuberantes. Isabel se levantava sempre a horas diferentes, não escutava muito, falava às vezes mostrando a todos que também vivia e mastigava uma alma separada. Podia causar sofrimento, como quando no momento mais ingênuo seu olhar deslizava para dentro de um outro olhar que não o podia aparar – também os outros viviam uma hora amarga, ou simplesmente um sorriso oculto, inconfessável, como em todas as famílias, o sofrimento da ironia aguda.

Mariana era cautelosa pois não tinha passado. Apenas do pai ela conservava uma vaga lembrança. Não reconhecia as irmãs nem a mãe. Por isso estava sempre olhando muito para elas para que seus traços se tornassem familiares. Mas tinha o olhar doce quando era chamada à atenção. Era difícil acertar com as tarefas domésticas. Andava sempre grudada em alguém, imitando e lamentando a falta de prática. Não adiantava repetir o aprendido, pois o futuro arrancava dela logo todos os trunfos, tudo voltava a ser o antes, morto, ausência. Ela sofria porque sabia o que era ser vagamente conhecedora de uma biografia, quando seguia o caminho das fotos do álbum, mas não sabia explicar que perderam quase tudo. Esforçava-se para ser igual, mas ainda não tinha ideia do que a vida lhe exigiria quando desaparecessem a casa e o corredor com a família. Todos os outros a ajudavam involuntariamente tecendo comentários sobre a sua pessoa, embora não adivinhassem o que estavam fazendo. Apenas tinham a mesma intuição que o álbum de retratos. O rosto de Mariana não era triste de saudade, era aflito para agarrar fatos e sentimentos, mas o presente e o futuro já apodreciam em suas raízes.

Lorena, suave passarinho revoluteando sobre a mãe e as irmãs, com suas túnicas brancas vaporosas, era também solene, às vezes, desfilando no pomar e arrastando o vestido sempre longo. Ela levava as mensagens da família, as ordens assim pareciam simples desejos de anjos que perdoavam tudo. Era responsável pelo funcionamento da casa, o que todos viam como um fato da natureza humana.

Clarice era sábia. Tinha uma chave, que escolhera entre todas as outras do molho que a mãe trazia preso à cintura e que tilintavam fazendo brilhar os olhos dos cães. A chave do quarto de despejo. Ela sabia que ali podia encontrar coisas perdidas, mas sobretudo coisas rejeitadas, e que aprenderia mais do que todos sobre a família, mas também sobre o exterior, o mundo lá fora eram as sobras, o mundo era também a escuridão dos esbarrões no corredor, que não significavam nada, ela precisava achar um sentido, e sabia que a bagunça nesse quarto era como a pergunta de uma esfinge amorosa, cuja resposta levaria a outras perguntas; o prêmio era o desconhecido.

Um pássaro empalhado gargalhando com o bico entreaberto, uma coroa de princesa que fora de Lorena, a rede de um gladiador de histórias de circos romanos, livros velhos, imóveis e teimosos, como toda escrita. Até o ar ali ensinava a procurar. A intensidade, o tamanho do desprezo a comoviam. Como poderia carregar tanto abandono, tantas crianças que choravam remelentas agarradas à saia da Mãe e das criadas, um choro que não dava trégua, que já se cansara de si mesmo. Como poderia encarar o Pai vingador de tudo aquilo, como era o seu olhar, ela ousaria tanto? Todos esses toucados velhos e lindos ela experimentava, todos aqueles broches eram como insígnias que ela usaria para conquistar o mundo, sempre um resto de Mãe e das irmãs que a impelia para frente, a pergunta era um consolo, a sua bagagem neste vagão do trem para o futuro e para fora deste quarto sem janelas cuja porta ela esquecia trancada. Quantos crimes haviam sido cometidos por essas coisas para merecerem ser lembradas como coisas passadas? Ela era a sua única chance, um vento de morte a arejar os velhos comprometidos com a passagem do tempo. Ainda era livre. Para o futuro se sentia só. E partiria quando estivesse realmente só. A humanidade era “quando”?

Letícia imaginava a ruína da casa, com porcos que vinham comer o que sobrar dos cadáveres. Era um dia sombrio sempre durante todo o ano, talvez durante toda a vida. Dos segredos da casa esse era o mais bem guardado. Ela mentia para o sol. A primeira visão fora durante um eclipse, confundido com imensa nuvem vagarosa, protótipo de todos os segredos, um véu negro recortado do tamanho da Terra. Era Lorena, morta, de bruços, o braço direito estendidos sob a face direita, um risco de barro na têmpora direita, esse mistério da beleza macerada nas fronteiras entre o incompreensível e a inveja que não logra destruir tudo. Lorena era a rainha, sua vítima, seu alimento. Letícia não saberia defender-se caso fosse interrogada. Mas nunca teria que prestar contas no cemitério de sua fome, os porcos eram culpados, esses que perambulavam distraídos e nunca seriam julgados pois eram os últimos. No entanto Letícia era bela, mas ainda não aprendera a diferença entre as pessoas, entre a beleza e a beleza. Ela não era mais frágil que Mariana, mas seguramente desejaria o futuro da irmã se soubesse que ela era apenas aparência, uma casca apesar de dolorida, porque o seu passado era uma grande esteira negra de espaço sideral, este sim vazio de sentido, que a perseguia.

A Mãe era uma senhora muito magra, metabolizava sua vida irrealizável, tudo o que as cinco filhas lhe haviam trazido em alegria e aflições, mas as aflições se transformavam numa outra espécie de alegria, ao final tudo era bem-aventurança, a primeira alegria virava aflição e a aflição glória de ter vivido tudo, e os olhos se enchiam de mundo, de universo, tanto que tinha receio de olhar para trás e para frente e de sentir a gota d’água do presente, a vida transbordava de intensidade, como a taça de champagne do seu último brinde.

Ela engolia tudo, mesmo o que nunca poderia digerir, mas bastava uma tarde passada em seu quarto, as persianas baixas, sentada na pequena bergère, sem lanche, vendo finalmente o escuro que tocava primeiro o chão, a noite que penetrava fria pelas gretas. Alguma coisa durante essas horas latejava dentro da cabeça, não era dor, ou era dor indolor, um ritmo sem melodia. Essa tarde virava o destino da família. A Mãe vinha jantar em silêncio, em plena metamorfose, todos viam a fome e as fezes escuras sobre a mesa e sabiam: o dia seguinte seria feliz.

O Pai sabia que a vida não tinha começo. Mas quando descia a montanha, a alma ofegante, na volta de seu passeio matinal, vinha sempre com uma pergunta sobre o começo da família. Não se lembrava de ter carregado o peso de seis mulheres quando era criança, ao contrário, era carregado para sua cama, quase adormecido, o rosto encostado num colo vaporoso, fora embalado até a idade madura pela mesma cadeira de balanço, não se lembrava quando o corpo da mãe desaparecera, mas parece que a vida se resumia a uma vaga decisão de caminhar corajosamente, caminhar sempre para a frente, abandonar definitivo e desesperado a mão do próprio pai, continuar na trilha sentindo sede e fome, com a sensação de felicidade vencendo tudo, não sabia desde quando, não tinha decidido caminhar tanto, seu corpo se desprendia sozinho, ia na frente do cansaço.

Quando entrava de volta em casa surpreendia-se ao passar pelo corredor escuro. Ele tampouco se detinha ali, mesmo ele que era um ser estranho na casa desde que Mariana quisera tornar-se sua companheira das coisas vagas. O rosto dela era devastado pela ausência de quase tudo e ele não podia segurá-la com ambas as mãos como queria, não conseguia definir a vida de ambos, achava as coisas mal paradas, sofria quando pensava na idade da filha, não suportava quando ela lhe pedia ajuda com um olhar desumano de angústia. Ele tinha todas as lembranças mas desconhecia as origens. Mariana, ao contrário, não duvidava de seu passado esquecido.

O Pai era delicado com Letícia, a grande assassina. Ele pressentia a chegada dos porcos, que tinham o rosto dela, todos, e adivinhava a insensatez de seus sonhos. Sabia que devia salvar a família, mas a solidão a que ela se reduzia era bem a solidão em que ele se perdia nos momentos em que a violência se aproximava dele. Sabia de seus esforços para se afastar dessa intensidade, e a delicadeza era a medida certa contra o canibalismo; o segredo de Letícia não era hipocrisia, como não havia mentira em seu combate de morte contra a vocação de animal predador. Por pouco ele não destruía todas essas mulheres, mas preferia adorá-las, elas eram carne e osso, eram sangue, pele, corpos que resistiriam se as almas os abandonassem e isso era admirável. A distância de homem. O Pai acordava todas as manhãs inocente. Mas a primeira coisa que lhe acontecia era respirar o hálito da esposa. E ele não se rendia à rotina.

Eram tantas mulheres! E esse corredor com todas as entradas e saídas, ponto cego de um labirinto onde sua alma vagava desde que souberam que a esposa não era mais uma, que eles jamais estariam juntos só os dois, eles que nunca haviam estado juntos. A vida se tornara ainda mais o que é: sem resposta, um caminho que já existia antes de tudo – uma jornada para os cegos famintos. E as meninas foram nascendo, os quartos se povoando de olhos castanhos e camisolas brancas, cordões de ouro com santinhos de devoção, na cozinha um cheiro perene de pão e bolos. O Pai exercitava sua virtude sem saber. Era um tempo melhor, pois agora ele sabia o que fazer apesar de que lhe faltasse destreza.

No fundo todos guardavam o segredo do corredor, maior que o segredo de Letícia, porque era conhecido e todos se calavam e todos o evitavam. Talvez Mariana tivesse razão em não se preocupar com o desaparecimento de tudo. 

(In: Revista Ficções (contos), Ano IX, Número 16, Março de 2007, p. 74 a 79.)


***


WM

Lygia Fagundes Telles

 

A chuva mansa e o céu de aço. Na mesa do Doutor Werebe, o relógio branco marca três horas, três horas em ponto. Cheguei há pouco e a enfermeira pediu que esperasse. Então, como vão as coisas? ele vai perguntar enquanto acende o cigarro. Como vai minha irmã? pergunto eu. O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo, para ajudá-la preciso eu também descer aos infernos. E no terceiro dia ressuscitar dos mortos, rezo muito, mas não aos santos limpos, rezo aos outros, aqueles rasgados por espinhos, por demônios. Rezo principalmente a São Francisco de Assis com seus olhos cosidos e mãos furadas, ele pode ajudar minha irmã, ele e Doutor Werebe que me acompanha nessa descida e me levanta e anima quando tropeço, fiquei demais envolvido. Como vão as coisas?  me pergunta enquanto acende o cigarro. Acendo o meu. E sem nenhuma pressa, começamos a falar nela.

Vou até a porta envidraçada que dá para o pátio. No vidro embaçado, com o dedo escrevo um W e um M, duas letras recortadas na folhagem brilhante de chuva, o resto é névoa. Minhas iniciais e as iniciais dela, Wanda e Wladimir, uma família de nomes começando com W, mamãe se chamava Webe. Wanda, minha irmã. Por esse W ela foi subindo ágil com seu passo elástico, atingiu a ponta aguda da letra e ficou equilibrada lá no alto, bailarina de malha cor-de-rosa se apurando no seu exercício mais raro, as sapatilhas de cetim num prolongamento do ângulo. Desequilibrou-se e rolou pela encosta da letra até ficar comprimida no fundo, nesse segundo vértice que toca o chão. No escuro, presa entre as duas paredes, ela continua até agora. Seu silêncio é suave porque ela é suave. Mas o olhar não vai além da parede em frente. Wanda, minha irmã, não quer mais vestir sua linda malha e tentar subir de novo?

Doutor Werebe não responde. É preciso esperar, ele disse. Espero. Teve uma crise na infância, mamãe me falou nos meses em que foi obrigada a passar na sua cabeceira quando ela era ainda uma menininha. Recuperou-se. Aprendeu bailado. Línguas. Cinco anos mais velha do que eu e tão mais desenvolvida, nesse tempo vivíamos numa casa luxuosa, mamãe era uma artista importante e bonita, com muitos homens em volta. Tantos empregados, mas era Wanda quem cuidava de mim, quem me contava histórias. Quando resolveu me ensinar a ler comprou um quadro negro e uma caixa de giz de todas as cores, nos intervalos eu desenhava. Aprendi o EME com facilidade mas resisti ao DÁBLIO, me lembro como ela ria quando minha língua enrolava no blio. Mas o DÁBLIO não passa de um EME de cabeça para baixo, explicou enquanto escrevia um grande W seguido de um M – Não é simples? Dei uma cambalhota e fiquei plantado nas duas mãos, Assim, Wanda? É uma letra assim? Ela me segurou pelos pés, apertou-os contra o peito. E retomando o giz, foi enchendo o quadro negro de dáblios e emes, chegou até a moldura, escreveu na moldura, invadiu a parede e contornou a janela, subiu na estante, o giz se esfarelando nas lombadas dos livros, no chão, W M W M W M W M W M W M – Não é fácil? Não é fácil? ia perguntando sem poder parar. Fiquei na maior excitação, dando gritos até mamãe vir lá de dentro e me sacudir enfurecida, Quer fazer o favor de parar com isso? Foi a Wanda, eu denunciei mas ela continuou me sacudindo, Vai parar? Mamãe era uma atriz famosa mas agitada como um vento de tempestade. Ou estava estudando algum papel em meio de crises de angústia (era uma perfeccionista) ou estava dando entrevistas ou experimentando roupas ou telefonando, levava o telefone para o quarto, deitava e ficava horas falando com uma amiga ou algum amante. Pílulas para dormir, pílulas para acordar, a cara sempre enlambuzada de creme. Não tomava conhecimento nem de Wanda nem de mim. Atrás de um móvel ou pela fresta da janela eu a via entrar e sair se queixando, se queixava muito das pessoas. Do tempo curto que a obrigava a correr e nessa corrida ia perdendo coisas, Onde está meu lenço, meu perfume, minha chave, minha echarpe?! Leva esse menino daqui! gritou certa vez que me aproximei mais. Wanda me consolou com sorvete de chocolate e com a história do Martinho Pescador que pescou um peixe encantado e o peixe lhe suplicou que o soltasse, em troca lhe daria o que pedisse. Quero uma casa, pediu o pescador que vivia numa tapera. Voltou e encontrou a mulher de vestido novo, radiante no palacete mais bonito do bairro. Só uma tarde durou esse contentamento porque de noite a mulher já começou a se queixar, ao invés de uma casa tão banal, bem que o tolo do marido podia ter pedido um palácio, Vai lá e pede um palácio! Ele foi, pediu um palácio e quando voltou, ela já estava resmungando, de que adiantava tanto mármore e ouro se não tinha o poder? Volta ao peixe, ordenou, quero ser rei! Depois começou a se queixar de novo, era tão limitado o poder do rei que não chegava ao reino dos céus, Agora quero ser papa! Mas um dia se sentou no trono da igreja, chamou o Martinho Pescador e mandou-o de volta à praia, Diga ao peixe que quero ser Deus! Deus? Perguntou o peixe. E aí tudo revirou. Chegou em casa e encontrou a mulher esfarrapada e chorando na porta da casa. Embora menino, de modo obscuro eu associava mamãe com a mulher de Martinho, que não sossegava. Estreava a peça e vinham as críticas. Os telegramas. As homenagens. Então ficava macia, o sorriso flutuante igual ao da deusa da gravura, uma roliça mulher coroada de anjos numa gôndola puxada por dois cisnes brancos. Vem brincar com a mamãe, chamava por entre as plumas do seu négligé. Eu ia mas nunca ficava muito à vontade, atento ao primeiro sinal de impaciência: tinha sempre um crítico que se omitia e um outro que foi meio ambíguo – mas por que o público do último sábado não aplaudiu de pé? A desconfiança crescia numa conspiração: apontava inimigos, descobria tramas. Irritava-se quando o telefone tocava sem parar ou quando as pessoas a abordavam na rua pedindo autógrafos, retratos. Mas quando chegou o tempo em que o telefone ficou calado e as pessoas não se viravam para vê-la, caiu no mais completo desespero. Os vasos vazios de flores. As pessoas distraídas. O tremor de excitação durava até a hora do carteiro, Hoje não veio carta? Nem hoje nem ontem, só convites para exposições ou avisos de banco que eram rasgados com tanto ódio que comecei a rezar para que eles não chegassem mais. Sobrava o jornal que costumava deixar para depois, nunca entendi por que reservava para o fim o jornal. Ia diretamente à página de arte, percorria os textos, Não fui mencionada? E quem sabe alguma referência na página seguinte. Ou na outra, ô! que insipidez, que vazio. Dobrava o jornal com uma crispação que eu ouvia de longe. Passava os cremes, tomava as pílulas e ia dormir. Para recomeçar tudo quando acordava e zonza ainda queria saber, Ninguém telefonou? Fingia alívio: ótimo. Mas o maxilar endurecia. Evitava Wanda porque Wanda ficou moça, não suportava sua juventude. E me evitava porque eu era parecido com meu pai, aquele que um dia saiu para comprar fósforos e nunca mais apareceu. Na afobação do sucesso, achou bom mesmo que ele tivesse sumido. Mas assim que começou a envelhecer o ódio que fora curto voltou revigorado. Na estreia de uma peça que queria demais fazer (perdeu o papel para uma mais jovem) ficou em tal estado que tirei dinheiro da sua bolsa, corri à floricultura e lhe mandei um imenso ramo de rosas com um cartão: Para a maior atriz do mundo, de um fervoroso admirador.

Durante uma semana ela se alimentou dessas rosas. Ficou apaziguada. Sonhadora. Quando começou a se crispar de novo, mandei-lhe um disco. E uma caixa de bombons e em seguida outro disco com o dinheiro que eu ia tirando escondido. Fiz uma pausa quando ela se impacientou, Mas por que esse imbecil de admirador não aparece nunca? Vai ver, é um negro! E rasgou o cartão. Wanda cuidava dela, cuidava de mim. E ainda achava tempo para marcar a roupa com nossas letras, tão pessoais as toalhas de banho com um dáblio e um eme bem grande em vermelho, me enrolava neles para me enxugar. Quando me deitava podia senti-los quase invisíveis bordados no canto da fronha. Ou no guardanapo. As letras tinham floreios na ponta da caneta de prata, mas eram despojadas por entre os arabescos de ferro do portão: W M. Wanda teve um momento de cólera quando mamãe descobriu que era eu quem estava lhe tirando dinheiro, as flores foram ficando mais caras. Mas no dia seguinte mesmo – era meu aniversário –, deixou no meu quarto um bolo com um W M escrito no creme de chocolate. Sentamos os três em redor do bolo. Flutuante como nos dias antigos, mamãe vestiu um longo decotado e me ofereceu uma pequena tartaruga que batizamos com vinho, Eu te batizo, Wamusa! Muito fina na sua malha de um rosa-envelhecido, Wanda dançou para mim, só para mim, desde que mamãe polidamente continuava a ignorá-la. Depois prendeu no meu pulso uma corrente com as iniciais gravadas na plaquinha de prata: W M. Beijei as letras, beijei mamãe e guardei a tartaruguinha no bolso. Minha família. Uma estranha família diferente das outras, mas nessas diferenças não estaria o nosso vínculo? Dormi mal, com um curioso sentimento de que devia ficar em vigília. Madrugada ainda, pulei da cama: em todos os meus livros e cadernos, nas capas e nas folhas internas, os dáblios e os emes se multiplicavam em todos os tamanhos e cores. Tentei apagá-los: o crayon e a aquarela, o carvão e o nanquim eram irremovíveis. Encontrei minha irmã na cozinha comendo uma fatia do bolo da véspera, o ar ajuizado de uma mocinha disciplinada, esperando a hora da aula de alemão. Negou mas acabou confessando, em prantos, que não pudera resistir a uma espécie de comando que a possuía e a obrigava a marcar tudo que ia encontrando, até a exaustão. Enxuguei suas lágrimas, Não se preocupe, Wanda, não se preocupe. Direi no colégio que perdi os livros, como é esqueça em alemão?

Os dias ocos, muitas vezes já falei sobre esses dias que vieram em seguida, quando a tempestade mudou de rumo. Ficou a brisa por entre os cabelos de minha mãe que parecia menos infeliz enquanto escrevia suas memórias. Atarefada com aulas, Wanda mostrava a carinha de quem se propõe um trabalho sério. O problema dos livros resolvido, assumi a responsabilidade com a ajuda de um psicólogo do colégio. Esse relaxar por dentro e por fora, essa calma curiosidade por uma nuvem, por uma folha que tomba e que se examina com amor e inocência – era isso ser feliz? Achei graça quando no tronco do abacateiro dei com as duas letras entalhadas a canivete, mas recuei estarrecido quando entrei no seu quarto: nas paredes, nos móveis, em superfícies e reentrâncias, no chão e nos espelhos o W M furiosamente desenhados. Ou abertos a canivete. Passei a mão na poltroninha de couro rasgada de alto a baixo, o algodão escapando do dáblio, mais eviscerado do que o eme. No canto do quarto, a tartaruguinha marcada até o cerne lívido da carapaça.

Fui cambaleando até o quarto da mamãe. Ela escrevia suas memórias mas devia estar num pedaço triste, tinha o olhar apagado. A Wanda, onde ela foi? perguntei. Mamãe apertou minha mão e começou a chorar: Mas meu querido, a Wanda morreu faz tanto tempo! Você fica falando nela, fica falando e faz tanto tempo que ela morreu! Acariciei seus cabelos que já estavam completamente grisalhos, quando deixara de pintá-los? Sim, mamãe, é claro, não falo mais, eu disse. Ela cruzou os braços na mesa e pousou neles a cabeça. Dormiu. Dormia em meio de uma frase, de um gesto, envelhecera tão rapidamente. Saí e andei sem parar. Mamãe e suas pílulas. Wanda e suas letras. O começo daquelas letras foram naquele quadro-negro? Mas o que significava isso, vontade de afirmação? De posse? Lembrei-me da sua longa enfermidade na infância, mamãe não entrou em minúcias mas se referiu ao medo que ela tinha das pessoas, do escuro. Estaria se transferindo para as iniciais? Se buscando nelas? Tanta pergunta me confundiu. Me abrasei na dúvida: e se com essa minha cumplicidade eu estivesse apenas agravando o seu estado? Acabei a noite descendo num inferninho, com uma gentil putinha sentada em meus joelhos. Tinha olhos de amêndoa doce e dentes perfeitos, devia andar pelos dezoito anos. Os ombros estreitos, a franja negra e lisa. Você é chinesa? perguntei. Só a mamãe, disse examinando a plaquinha da minha pulseira. Riu quando deu com as letras, Mas meu nome também começa assim, quer ver? E, molhando o dedo no copo, escreveu na mesa: Wing. Levei-a para um hotel. Por dois dias esqueci Wanda, mamãe, esqueci aquele eme andando de cabeça para baixo, plantado nas mãos – esqueci tudo em meio ao gozo, eu estava precisado desse gozo feito de pausas amenas, Wing só falava amenidades com sua voz mais leve do que a asa de uma borboleta. Na noite do terceiro dia, comprei para ela um pacote de cerejas – era tempo de cerejas –, deixei-a instalada no pequeno hotel com o seu toca-discos e fui para casa. Encontrei Wanda de malha cor-de-rosa, estava ensaiando. Falei sobre o meu pobre amor chinês que achei na zona e ela me abraçou e rodopiou comigo, então eu tinha um amor? Quis conhecer ela imediatamente. Depois, eu prometi, depois eu a trago aqui. Foi buscar uma garrafa de vinho para comemorar: se eu estava amando, ela também amava, porque a única coisa que podia nos salvar (me encarou com gravidade) era o amor. Mamãe tinha ido ao teatro com uma amiga. Ouvimos música, bebemos, acabei dormindo ali mesmo no sofá. No sonho tão real vi Wanda aproximar-se de mim com uma expressão má. Veio devagar, bailarina pisando branda. Inclinou-se. Mas o que trazia escondido? Voltei a cara para a parede na hora em que a ponta da lâmina riscou um W e um M na palma da minha mão. Os talhes seguros, nem rasos nem fundos, na medida exata. A dor fria escorrendo devagar. Quando acordei, o sol já entrava pela janela e queimava minha boca. Não tive forças de olhar a mão que latejava. Amarrei nela um lenço e fui procurar um psiquiatra para Wanda.  Indicaram-me seis, um deles era o Doutor Werebe. Wanda resistiu, tinha horror de análises, de sanatórios. Em casa, comigo e com a mamãe ao lado, ainda se aguentava, mas no dia em que embarcasse nesse mar jamais voltaria, disse esfregando as mãos num pânico de criança. Tranquilizei-a, mas quem falou em internamento? Ficaria com a gente, convivendo com a nossa loucura razoável. E pedi-lhe a lâmina, o canivete: tinha que me prometer que não marcaria mais nada. Ela beijou a palma da minha mão ainda inchada e me entregou sua pulseira de iniciais, um presente para minha Wing.

No fim desse mês mamãe morreu. A amiga atriz foi visitá-la e a encontrou caída no banheiro, segurando o vidro de pílulas. Foi acidente? perguntei, e o médico do pronto-socorro olhou-a mais demoradamente, estava serena na morte: Quem pode dizer? Comprei um ramo de rosas igual ao que ela costumava receber do admirador anônimo e Wanda então me abraçou em prantos: Quer dizer que era você? Ficamos no velório de mãos dadas, falando em voz baixa sobre mamãe. Sobre nós mesmos. A noite estava gelada, mas era quente o hálito de Wanda me contando como lhe fazia bem a análise. Contei-lhe o quanto me fazia bem o amor. Quando fui buscar a tampa do caixão, vacilei num desfalecimento, outra vez?! Fechei os olhos: sob as pontas dos dedos, apalpei as duas letras apressadamente cavadas na madeira polida. Com as unhas, tentei aplacar as farpas enquanto olhava para minha irmã ali encostada na porta, silhueta espiralada de uma bailarina em descanso. Mas por que, Wanda? perguntei-lhe na volta do cemitério. Você tinha prometido, Wanda! Por que? Ela não se perturbou: marcara o caixão como marcara nossos pertences, mamãe gostava, como eu, das pequenas marcas da posse. Até na morte. Onde o mal?

 

Ouço vozes na saleta, Doutor Werebe está conversando com a enfermeira. Então, como vão as coisas? vai me perguntar com sua simpatia profissional, nos primeiros momentos fica profissional. Como vai minha irmã? pergunto eu. Volto sempre há alguns acontecimentos que me parecem as portas do labirinto: a tarde em que encontrei Wing com os olhos inchados de tanto chorar, Por que chorou Wing? Ela fechou as janelas, desceu as persianas e me abraçou com força, demoradamente, Entra em mim, pediu. Wing sabia que eu não gostava de nada escuro entre nós dois, fazia parte do gozo ver seus olhos se estreitando até escorrerem diluídos para dentro dos meus, Wing, a luz! Não obedeceu, ela que era obediente: Deixa ficar assim, pediu. Quando acendi o abajur, tentou esconder depressa os seios, seus lindos, seus pequeninos seios horrivelmente tatuados com W e um M azul-marinho em cada bico. Cobri-a com o meu corpo, Wing, minha amada, por que você deixou que ela fizesse um horror desses, eu não te avisei? Não respondeu. Seu olhar atônito ficou cravado em mim, mas do que eu estava falando? Que Wanda? Pois então não me lembrava? Fomos os dois ao homem das tatuagens que prometeu ser discreto, apenas duas letrinhas  ah, por favor, não queria mais esse assunto. Eu te amo, ficou repetindo, eu te amo. Nem todas as letras do mundo iam interferir nesse amor. Quando eu cheguei, Wanda estava na sua poltroninha, folheando um velho álbum de retratos. Será este o pai? Será que ainda está vivo? perguntou. Quando viu que não respondi, fechou o álbum e ficou olhando para dentro de si mesma. Tomei-lhe as mãos singularmente infantis: Wanda, querida, não podemos continuar desse jeito, tenho sido seu cúmplice, fico encobrindo tudo, está errado, está errado! Agora, até Wing dizendo, para te proteger, que não foi com você ao homem das tatuagens. Quero que saiba que amanhã falo com Doutor Werebe, se ele achar que você está precisada de um tratamento mais intenso, se aconselhar o sanatório, promete que não vai resistir? Que não vai desobedecer? Ela ficou me olhando através do espelho e seu rosto secreto era um reflexo do meu. Depois ajoelhou-se aos meus pés e com a ponta do dedo escreveu um dáblio e um eme na poeira dos meus sapatos.

Apago no vidro da janela as duas letras feitas no bafo. Aqui ela não vai ser maltratada, disse o Doutor Werebe. Nem você. Fale só se tiver vontade, está me compreendendo? A chuva fortalecida faz tremer o arvoredo no meio do pátio. Começo também a tremer, por que o Doutor Werebe está demorando? Ele é bom, me dá a mão enquanto descemos juntos até a ressurreição da carne, ele me ajuda quando tropeço com a minha carga nos braços, Doutor Werebe, está pesado demais para mim! digo e ele me segura. Na realidade, Wanda não pesa mais do que uns trinta quilos, mas fica de ferro quando começamos a descida. E precisamos eu e ela ir até o fundo do fundo, lá onde fica o hotel, corro sabendo o que vou encontrar e ainda assim continuo correndo, subo a escada, abro a porta e a primeira coisa que vejo é o toca-discos ligado, a agulha girando na zona silenciosa girando girando no silêncio e a cadeira tombada não sei quanto tempo tombada e a agulha na zona encontrei Wing na zona ela sentou no meu colo e a franja e os olhos de amêndoa doce meu pobre amor chinês de ombros estreitos entra em mim pedia e o gozo cálido eu te amo eu te amo eu te amo entra em mim disse e a certeza de que ela estava fria na zona de silêncio como a agulha. Onde está você Wing? gritei quando vi o jornal aberto no chão e a data a data com a gota de sangue respingada era a véspera pisei no respingo estatelado duro e adiante a mão pendendo para fora da cama com sua linda pulseira de prata fui subindo pelo frio sanguinolento do braço passando agachado debaixo da pulseira como o fio que escorreu sem sujá-la não esqueça esse detalhe sem sujá-la fui subindo pelo fio ressecado como fazia Wanda com sua malha subindo na letra até ficar hasteada em cima Wing Wing não abra a porta! Wanda vai pedir vai implorar mas não abra e agora esse rasgão na roupa e esse peito rasgado Wanda morreu faz tanto tempo mamãe disse e não sabia que ela era inaparente porque eu ia atrás apagando os rastros por onde ela passava mas se eu limpar essa crosta no peito de Wing vai aparecer o W M de lábios azuis de tão frios deixando entrever bem no vértice seu pequenino seu amado coração.

(In: Seminário dos ratos. Contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 87 a 97)

 

***

Gaetaninho

Antônio de Alcântara Machado

 

– Chi, Gaetaninho, como é bom!

Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu ouviu o palavrão.

– Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro.

Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.

Subito!

Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar à direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta a dentro.

Eta salame de mestre!

 

Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.

O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.

Mas se era o único meio? Paciência.

 

Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.

Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde), e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.

Mas  Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.

Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o Ahi, Mari! Todas as manhãs o acordou.

Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.

 

Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.

Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

 

O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.

– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

– ⁠ Meu pai deu uma vez na cara dele.

– ⁠Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!

O Vicente protestou indignado:

– Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!

Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.

O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.

– Passa pro Beppino!

Beppino deu dois passos e meteu pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.

– Vá dar tiro no inferno!

– ⁠ Cala a boca, palestrino!

– ⁠ Traga a bola!

Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.

No bonde vinha o pai de Gaetaninho.

 

A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.

– Sabe o Gaetaninho?

– ⁠Que é que tem?

– ⁠Amassou o bonde!

A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.

Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino. 

[1927, in Brás, Bexiga e Barra Funda, contos]


(In: Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1961, p. 18-21) 

***


Intestino grosso

Rubem Fonseca

 

Telefonei para o Autor, marcando uma entrevista. Ele disse que sim, desde que fosse pago – “por palavra”. Eu respondi que não estava em condições de decidir, teria primeiro de falar com o Editor da revista.

“Posso lhe dar até sete palavras de graça, você quer?”, disse o Autor.

“Sim, quero.”

“Adote uma árvore e mate uma criança”, disse o Autor, desligando.

Para mim as sete palavras não valiam um tostão. Mas o Editor pensava de maneira diferente. Foi combinado um valor por palavra, diretamente entre eles.

Marquei um encontro com o Autor em sua casa. Ele me recebeu na biblioteca.

“Quando foi que você começou a escrever?”, perguntei, ligando o gravador.

“Acho que foi aos doze anos. Escrevi uma pequena tragédia. Sempre achei que uma boa história tem que terminar com alguém morto. Estou matando gente até hoje.”

“Você não acha que isto denota uma preocupação mórbida com a morte?”

“Pode ser também uma preocupação saudável com a vida, o que no fundo é a mesma coisa.”

“Quantos livros você tem aqui nesta sala?”

“Cerca de cinco mil.”

“Você já leu todos?”

“Quase.”

“Você lê diariamente? Quantos? Qual a velocidade?”

“Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido.”

“Quando foi que você foi publicado pela primeira vez? Demorou muito?”

“Demorou. Eles queriam que eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu não queria, e não sabia.”

“Quem eram eles?”

“Os caras que editavam os livros, os suplementos literários, os jornais de letras. Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida. Eu morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da janela do meu quarto via anúncios coloridos em gás néon e ouvia barulho de motores de automóveis.”

“Por que você se tornou um escritor?”

“Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.”

“Já ouvi acusarem você de escritor pornográfico. Você é?”

“Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes.”

“Os seus livros são bem vendidos. Há tanta gente assim interessada nesses marginais da sociedade? Uma amiga minha, outro dia, dizia não se interessar por histórias de pessoas que não têm sapatos.”

“Sapatos eles têm, às vezes. O que falta, sempre, é dentes. A cárie surge, começa a doer, e o pilantra, afinal, vai ao dentista, um daqueles que tem na fachada um anúncio de acrílico com uma enorme dentadura. O dentista diz quanto custa obturar o dente. Mas arrancar é bem mais barato. Então arranca doutor, diz o sujeito. Assim vai-se um dente, e depois outro, até que o cara acaba ficando somente com um ou dois, ali na frente, apenas para lhe dar um aspecto pitoresco e fazer as plateias rirem, se por acaso ele tiver a sorte de aparecer no cinema torcendo para o Flamengo num jogo com o Vasco.”

O Autor levanta-se, vai até a janela, e olha para fora. Depois apanha um livro na estante.

“Mas não escrevo apenas sobre marginais tentando alcançar a lumpen bourgeoisie; também escrevo sobre gente fina e nobre. Você leu este livro, Cartas da duquesa de San Severino? O duque de San Severino é um homem muito rico, que não gosta da esposa, a jovem e linda duquesa de San Severino. A mãe do duque, a velha duquesa de San Severino, não gosta da nora, pois esta, ao casar-se com o seu filho, era uma simples baronesa. A jovem duquesa sofre terríveis momentos no castelo, principalmente durante os solenes jantares, quando são discutidas árvores genealógicas – a família do duque vai até Pepino, o Breve, enquanto a da ex-baronesa começa no século XVII apenas. Não podendo suportar essas humilhações e ofensas, a jovem duquesa decide ser psicanalisada por um professor maduro e sábio, por quem ela, afinal, se apaixona. Mas o analista se recusa a ter relações físicas com a jovem duquesa, alegando tratar-se de uma transferência e não de um gesto espontâneo de amor. Desesperada, a jovem duquesa passa a se interessar pela criação de orquídeas raras, o que a redime de todos os sofrimentos. É claro que isto é apenas um resumo de uma história colorida e edificante, plena de interessantes caracterizações, num estilo que permite ao leitor penetrar no núcleo central do significado da palavra sem muito esforço, mas, nem por isso, de maneira menos gratificante. É um romance que tem flores, beleza, nobreza e dinheiro. Reconheça que isto é algo que todos almejamos obter.”

“E há também a presença da ciência, na pessoa do psicanalista: um símbolo?”

“Deliberadamente cândido. Escrevi o livro à maneira de Marcel Proust, evidentemente. No início do livro, a jovem duquesa recorda os seus tempos de menina, ainda baronesinha, nos jardins do palácio, degustando madeleines ao entardecer, aprendendo a dançar o minueto e a tocar cravo. Depois segue-se a morte horrível do pai, o velho barão, no naufrágio do Lusitânia; a loucura da mãe, a velha baronesa, internada numa clínica da Suíça, localizada entre pinheiros e picos cobertos de neve. Finalmente o casamento frustrado, o romance com o professor Klein, e a criação de orquídeas. O livro termina com as orquídeas, uma espécie de hino bucólico e panteísta.”

“E a jovem duquesa tem todos os dentes, presumo.”

“Bem, alguns são postiços. Mas isso não é dito muito claramente. Para que desapontar os leitores? Apenas, numa passagem, eu me refiro à dificuldade que ela tem de comer um pêssego, uma citação poética – do I dare etc. – para bons entendedores. Além do mais, os dentes são brancos, perfeitos. Já foi dito que o que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita.”

Levantei-me e estendi a mão, pedindo o livro que o Autor segurava. Na capa tinha um anão negro, em vez de uma jovem duquesa. O título do livro era O anão que era negro, padre, corcunda e míope.

“Este livro foi interpretado de várias maneiras, inclusive como pornográfico. Vamos falar de pornografia?”

“Joãozinho e Maria foram levados a passear no bosque pelo pai que, de conchavo com a mãe dos meninos, pretendia abandoná-los para serem devorados pelos lobos. Ao serem conduzidos pela floresta, Joãozinho e Maria, que desconfiavam das intenções do pai, iam jogando, dissimuladamente, pedacinhos de pão pelo caminho. As bolinhas de pão serviriam para orientá-los de volta, mas um passarinho comeu tudo e, depois de abandonados, os meninos, perdidos no bosque, acabaram caindo nas garras de uma feiticeira velha. Graças, porém, à astúcia de Joãozinho, ambos afinal conseguiram jogar a velha num tacho de azeite fervendo, matando-a após longa agonia cheia de lancinantes gemidos e súplicas. Depois os meninos voltaram para casa dos pais, com as riquezas que roubaram da casa da velha, e passaram a viver juntos novamente.”

“Mas isso é uma história de fadas.”

“É uma história indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. Essas crianças, ladras, assassinas, com seus pais criminosos, não deviam poder entrar dentro da casa da gente, nem mesmo escondidas dentro de um livro. Essa é uma verdadeira história de sacanagem, no significado popular de sujeira que a palavra tem. E, por isso, pornográfica. Mas quando os defensores da decência acusam alguma coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente referidos como palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.”

“E as palavras são influenciadas por isso?”

“É claro. A metáfora surgiu por isso, para os nossos avós não terem de dizer – foder. Eles dormiam com, faziam o amor (às vezes em francês), praticavam relações, congresso sexual, conjunção carnal, coito, cópula, faziam tudo, só não fodiam. Eu tive um professor de direito tão eufêmico que, quando queria descrever um caso de sedução – que, como você sabe, se caracteriza legalmente pela cópula – falava latim: introductio penis intra vas. Os filólogos e linguistas também são pessoas presas ao tabu. Gostaria que algum filólogo, um dia, escrevesse um livro intitulado: Foder. Essas restrições ao chamado nome feio são atribuídas por alguns antropólogos ao tabu ancestral contra o incesto. Os filósofos dizem que o que perturba e alarma o homem não são as coisas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito delas, pois o homem vive num universo simbólico, e linguagem, mito, arte, religião são partes desse universo, são as variadas linhas que tecem a rede entrançada da experiência humana. Em 1884, um neurologista francês, Gilles de la Tourette, descreveu um comportamento anormal em que o paciente grita a todo instante palavras consideradas obscenas. O praguejar é acompanhado de um tique muscular. Esse conjunto de sintomas recebeu o nome de síndrome de la Tourette. Até hoje suas causas não foram adequadamente esclarecidas, tanto que não existe uma cura definitiva. Pensando que talvez a doença seja uma reação contra a rigidez intolerável da ordenação tabuística, um médico americano desenvolveu uma técnica terapêutica que consiste em fazer o paciente repetir as obscenidades o mais alto e o mais rápido possível, até à exaustão. Imagine esta cena, passada no consultório de um psicólogo, idêntica a um trecho da prosa delirante de Burroughs. O paciente tem amarrados no corpo eletrodos ligados a uma máquina cujo funcionamento é sincronizado com um metrônomo. Esse metrônomo controla a velocidade em que os palavrões devem ser gritados – até duzentos por minuto. Você conseguiria gritar duzentos palavrões por minuto?”

“Acho que não”, respondi, enquanto colocava outra fita no cassete.

“No caso de você não gritar as obscenidades com a velocidade necessária, choques elétricos obrigam-no a manter o ritmo. O tratamento parece ter como objetivo criar no paciente um mínimo de inibição, ou seja, por não suportar, por falta de alívios temporários, a inibição que sofre, o indivíduo explode, sendo levado a um tipo de comportamento antissocial que exige a reimplantação de novo invólucro inibitório. O erro me parece ser a pressuposição de que as inibições sejam necessárias ao equilíbrio individual. Parece-me mais verdadeiro o oposto – as inibições sem possibilidade de desopressão podem causar sérios males à saúde dos indivíduos. Uma sábia organização social deveria impedir que fossem reprimidos esses comunicativos caminhos de alívio vicário e de redução de tensão. As alternativas para a pornografia são a doença mental, a violência, a bomba. Deveria ser criado o Dia Nacional do Palavrão. Outro perigo na repressão da chamada pornografia é que tal atitude tende a justificar e perpetuar a censura. A alegação de que algumas palavras são tão deletérias a ponto de não poderem ser escritas é usada em todas as tentativas de impedir a liberdade de expressão.”

“Você não acha que a pornografia falada está desaparecendo? Nos campos de futebol coros de meninas entoam esportivamente canções como esta, que ouvi domingo: Um, dois, três, quatro, cinco, mil. Eu quero que o Flu vá pra puta que pariu.”

“Ambas as palavras, puta e pariu, derivam do palavrão-chave, que é foder. É evidente que, no caso, as palavras estão tendo um efeito catártico, de alívio de tensões e pressões. Esse fenômeno é mais observável sempre que ocorre a regimentalização dos indivíduos, em tempo de guerra ou mesmo na paz, nos quartéis, nos asilos, nas prisões, nas escolas, nas fábricas, nos núcleos urbano-industriais de alta concentração demográfica. Nesses casos o uso de palavras proibidas é uma forma de contestação antirrepressiva. Mas basicamente a pornografia que ainda existe hoje é resultado de um latente preconceito antibiológico da nossa cultura. Lembro-me de ter lido as queixas de uma escritora que receava que, de tanto ser abusada, distorcida, transformada em lugar-comum, a linguagem pornográfica acabaria deixando de ser o lado avesso da nobre linguagem da religião e do amor, e nada restaria para exprimir o fausto da obscenidade, que, para muitas pessoas, aliás, é metade do prazer do ato sexual.”

“Seu livro, O anão etc., pode ser considerado pornográfico?”

“A maioria dos livros considerados pornográficos se caracteriza por uma série sucessiva de cenas eróticas cujo objetivo é estimular psicologicamente o leitor – um afrodisíaco retórico. São evitados todos os elementos que possam distrair o leitor do envolvimento unidimensional a que ele é submetido. São livros de grande simplicidade estrutural; com enredo circunscrito às transações eróticas dos personagens. As tramas tendem a ser basicamente idênticas em todos eles, há apenas diferenças de grau na escatologia e na perversão. Desde que não seja excessivamente exposta a esse tipo de literatura, a maioria dos leitores é estimulada por ela. Não há nada mais chato do que a saturação erótica barata. A própria complexidade do livro mencionado por você, O anão etc., exclui o livro dessa categoria. Você sabe que não existe anão algum no livro. Mesmo assim alguns críticos afirmam que ele simboliza Deus, outros que ele representa o ideal da beleza eterna, outros ainda que é um brado de revolta contra a iniquidade do terceiro mundo.”

“Mas outros também já disseram que o livro não passa de um pirão de vulgaridades gratuitas, erotismo cru e ações grosseiras, desnecessárias e fúteis, temperado por uma mente suja.”

“Pirão ou ensopado? Já disseram coisa parecida do Joyce.”

“Você se acha parecido com o Joyce.”

“Odeio o Joyce. Odeio todos os meus antecessores e contemporâneos.”

“Daqui a pouco a gente fala disso. Não gostaria de sair da pornografia, por enquanto, está bem? A leitura de livros pornográficos pode levar o indivíduo a um comportamento mórbido ou antissocial?”

“Ao contrário. Para muitas pessoas seria aconselhável a leitura de livros pornográficos, pelos mesmos motivos catárticos que levavam Aristóteles a propor aos atenienses que fossem ao

teatro.”

“Então, para essa gente, o ideal seria um teatro pornográfico?”

“Exatamente. Isso que se chama pornografia nunca faz mal, e às vezes faz bem.”

“Mas muitas pessoas, inclusive alguns educadores, psicólogos, sociólogos, não pensam assim.”

“Há pessoas que aceitam a pornografia em toda parte, até, ou principalmente, na sua vida particular, menos na arte, acreditando, como Horácio, que a arte deve ser dulce et utile. Ao atribuir à arte uma função moralizante, ou, no mínimo, entretenedora, essa gente acaba justificando o poder coativo da censura, exercido sob alegações de segurança ou bem-estar público.”

“Por falar em segurança. Existe uma pornografia terrorista?”

“Existe, e, ao contrário das outras pornografias, ela tem um código anafrodisíaco, em que o sexo não tem nem glamour, nem lógica, nem sanidade – apenas força. Mas a pornografia terrorista é tão estranha que já foi chamada de pornografia science fiction. Exemplos destacados desse gênero são os livros do Marquês de Sade e de William Burroughs, que causam surpresa, pasmo e horror nas almas simples, livros onde não existem árvores, flores, pássaros, montanhas, rios, animais – somente a natureza humana.”

“O que é natureza humana?”

“No meu livro Intestino grosso eu digo que, para entender a natureza humana, é preciso que todos os artistas desexcomunguem o corpo, investiguem, da maneira que só nós sabemos fazer, ao contrário dos cientistas, as ainda secretas e obscuras relações entre o corpo e a mente, esmiúcem o funcionamento do animal em todas as suas interações.”

“A pornografia, como, por exemplo, as viagens espaciais e o sarampo, têm futuro?”

“A pornografia está ligada aos órgãos de excreção e de reprodução, à vida, às funções que caracterizam a resistência à morte – alimentação e amor, e seus exercícios e resultados: excremento, cópula, esperma, gravidez, parto, crescimento. Esta é a nossa velha amiga, a pornografia da vida.”

“Existe uma pornografia da morte, como queria Gorer? Desculpe citar nominalmente alguém, sei que você não gosta, mas foi você que criou o precedente, citando Aristóteles, Joyce e Horácio.”

“Sim, ela está se criando. À medida que a cópula se torna mais mencionável e o seu coro de menininhas entoa nos estádios de futebol cantigas com palavrões da velha pornografia, vai sendo escondida uma coisa cada vez menos mencionável, que é a morte como um processo natural, resultante da decadência física, que é a morte pornográfica, a morte na cama, pela doença – e que se torna cada vez mais secreta, abjeta, objecionável, obscena. A outra morte – dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas pela Televisão hoje, como as histórias de Joãozinho e Maria antigamente. Está surgindo, pois, uma nova pornografia, a que poderíamos denominar de pornografia de Gorer.”

“Você disse, pelo telefone, o lema, adote uma árvore e mate uma criança. Isso significa que você odeia a humanidade?”

“Meu slogan podia ser, também, adote um animal selvagem e mate um homem. Isso não porque odeie, mas ao contrário, por amar os meus semelhantes. Apenas tenho medo de que os seres humanos se transformem primeiro em devoradores de insetos e depois em insetos devoradores. Em suma, tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo, criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo, para os filhos comerem. Aliás é chegado o momento de fazermos, nós os artistas e escritores, um grande movimento cultural e religioso universal, no sentido de se criar o hábito de nos alimentarmos também com a carne dos nossos mortos, Jesus, Alá, Maomé, Moisés, envolvidos na campanha. Está havendo um terrível desperdício de proteínas. Swift e outros já disseram coisa parecida, mas estavam fazendo sátira. O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica, o Canibalismo Místico.”

“Você comeria o seu pai?”

“Em churrasco ou ensopadinho, não. Mas em forma de biscoito, como foi mostrado naquele filme, eu não teria a menor repugnância em devorar o meu pai. É possível ainda que alguém queira devorar a mãe assada, inteirinha, como uma galinha, para depois lamber os dedos e os beiços, dizendo, mamãe sempre foi muito boa. É uma questão de gosto.”

“Você escreve os seus livros para um leitor imaginário?”

“Entre meus leitores existem também os que são tão idiotas quanto os legumes humanos que passam todas as horas de lazer olhando televisão. Eu gostaria de poder dizer que a literatura é inútil, mas não é, num mundo em que pululam cada vez mais técnicos. Para cada Central Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da bomba explodir.”

“Existe uma literatura latino-americana?”

“Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, com semelhanças de estrutura, estilo, caracterização, ou lá o que seja. Existem pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo. Eu nada tenho a ver com Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado. Passamos anos e anos preocupados com o que alguns cientistas cretinos ingleses e alemães (Humboldt?) disseram sobre a impossibilidade de se criar uma civilização abaixo do Equador e decidimos arregaçar as mangas, acabar com os papos de botequim e, partindo de nossas lanchonetes de acrílico, fazer uma civilização como eles queriam, e construímos São Paulo, Santo André, São Bernardo e São Caetano, as nossas Manchesteres tropicais com suas sementes mortíferas. Até ontem o símbolo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo eram três chaminés soltando grossos rolos negros de fumaça no ar. Estamos matando todos os bichos, nem tatu aguenta, várias raças já foram extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos, aqueles em que o sujeito vai, pede capivara à Thermidor, prova um pedacinho, só para contar depois para os amigos, e joga o resto fora. Não dá mais para Diadorim.”

“Mas existe ou não existe uma literatura latinoamericana?”

“Só se for na cabeça do Knopf.”

“O que você quer dizer com isso de escrever o seu livro? É este o conselho que você dá aos mais jovens?”

“Não estou dando conselhos. Mesmo porque o sujeito pode tentar escrever a Comédie humaine aplicando à sua ficção as leis da natureza ou a Metamorfose, rompendo essas mesmas leis, mas cedo ou tarde ele acabará escrevendo o seu livro, dele. Cedo ou tarde acabará sujando as mãos também, se persistir.”

“Última pergunta: você gosta de escrever?”

“Não. Nenhum escritor gosta realmente de escrever. Eu gosto de amar e de beber vinho: na minha idade eu não deveria perder tempo com outras coisas, mas não consigo parar de escrever. É uma doença.”

“Acho que já temos bastante”, eu disse desligando o gravador.

Depois de transcrita a entrevista fui ao Editor.

“Esta entrevista parece um Dialogue des Morts do classicismo francês, de cabeça para baixo”, eu disse.

“Vamos publicar assim mesmo”, disse o Editor.

Telefonei para o Autor.

“Você disse duas mil seiscentas e vinte e sete palavras e nós vamos lhe mandar o cheque respectivo.”

O Autor nem agradeceu. Mais uma vez desligou o telefone na minha cara.

“Esses escritores pensam que sabem tudo”, eu disse, irritado.

“É por isso que são perigosos”, disse o Editor.

[1975]

(In: Contos reunidos. Org. Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 460-470. Publicado originalmente em Feliz Ano Novo)

***


Conversa de bois

Guimarães Rosa

 

“- Lá vai! Lá vai! Lá vai!…

– Queremos ver… Queremos ver…

– Lá vai o boi Cala-a-Boca

fazendo a terra tremer!…”

(Coro do Boi-Bumbá)

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

– Falam, sim senhor, falam!… – afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, – filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; – Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.

– Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: … “Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!…” Mas, e os bois? Os bois também?…

– Ora, ora!… Esses é que são os mais!… Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.

– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco…

– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do Mata-Quatro, onde, com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se truncam as derradeiras roças da Fazenda dos Caetanos e o mato de terra ruim começa dos dois lados; ali, uma irara rolava e rodopiava, acabando de tomar banho de sol e poeira – o primeiro dos quatro ou cinco que ela saracoteia cada manhã.

Seriam bem dez horas, e, de repente, começou a chegar – nhein… nheinhein… renheinhein… – do caminho da esquerda, a cantiga de um carro-de-bois.

O cachorrinho-do-mato, que agora lambia, uma a uma, as patinhas, entreparou. Solevou o focinho bigodudo e comprido, com os caninos de cima desbordando, e, de beiços cerrados, roncou o seu crepitar constante, ralado contra o céu-da-boca.

Mas o outro som foi aumentando, e o carro já estava muito perto.

Com um rabeio final, o papa-mel empoou-se e espoou-se nas costas, e andou à roda, muito ligeiro, porque é bem assim que fazem as iraras, para aclarar as ideias, quando apressa tomar qualquer resolução. Girou, corrupiou, pensou, acabou de pensar, e aí correu para a margem direita, sempre arrastando no solo os quartos traseiros, que pesam demais. E, urge, urge, antes de pegar toca, parou, e trouxe até à nuca, bem atrás de uma orelha, uma das patas de trás, para se coçar.

O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a estrada, estridente.

O bichinho mediu, com viva olhada, um arco de círculo, escolhendo o melhor esconderijo: ao pé do pé de farinha-seca, num emaranhado de curuás, balieiras e sangues-de-cristo. Com dois saltos e meio, e mais meia-volta, aninhou o corpo cor de hulha, demasiado indiscreto para a paisagem. Deixava apontar a cabeça e o pescoço, meio ruivos, mas as flores do curuá, em hissopes alaranjados, estavam camaradissimamente murchas, as folhas baixas de balieira eram rubras, e o resto a poeira fazia bistre, ocre, havana, siena, sujo e sépia. Somente os olhos poderosos de um gavião-pombo poderiam localizar a irarinha, e, mesmo assim, caso o gavião tivesse mergulhado o vôo, em trajetória rasante.

Sim e mais, mascarava-se o perfume, sobrado de forte e coisa nenhuma agradável, inseparável do cãozinho silvestre: porque as frutas da trepadeira cheiravam maduramente a maçãs.

Por aí se vê que a irara era genial, às vezes; mas, no fundo, não passava de uma mulherzinha teimosa, sempre a suplicar: – Me deixem espiar um pouquinho, que depois eu vou-me embora…

Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva de trás da restinga, o menino guia, o Tiãozinho – um pedaço de gente, com a comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças arregaçadas, e a camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas esvoaçantes.

Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois palmos da sua cabeça, avançavam os belfos babosos dos bois da guia – Buscapé, bi-amarelo, desdescendo entre mãos a grossa barbela plissada, e Namorado, caracu sapiranga, castanho vinagre tocado a vermelho – que, a cada momento, armavam modo de querer chifrar e pisar.

Segue-seguindo, a ativa junta do pé-dá-guia: Capitão, salmilhado, mais em branco que em amarelo, dando a direita a Brabagato, mirim-malhado de branco e de preto: meio chitado, meio chumbado, assim cardim. Ambos maiores do que os da junta da guia.

Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coice: Dançador, todo branco, zebuno cambraia, fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama, Brilhante, de pelagem braúna, retinto, liso, concolor. Ainda maiores do que os seus dianteiros da contra-guia.

E, atrás – ladeando o cabeçalho – conformes, enormes, tão tamanhões o quanto bois podem ser, os sisudos sócios da junta do coice: Realejo, laranjo-botineiro, com polainas lã de brancas, e Canindé, bochechudo, de chifres semilunares, e, na cor, jaguanês.

Escangalhando o chão com as cintas ferradas das rodeiras, gemendo no eixo a sua cantilena, rolava, por último, a bárbara viatura, arrastada aos solavancos. E a irara virava a carinha para todas as bandas, tão séria e moça e graciosa, que se fosse mulher só se chamaria Risoleta.

Mas, aí, o carreiro, o Agenor Soronho, homenzão ruivo, de mãos sardentas, muito mal-encarado, passou rente ao papa-mel, que estremeceu, ao ver-se ao alcance do ferrão temperado da vara de carrear. Felizmente, o carro chiava e guinchava como nunca. Porque a cachorrinha-do-mato é sestrosa e não pode parar um instante de rosnear; e, além disso, estava como que hipnotizada, pela contemplação do bicho-homem e pelos estalidos chlape-chlape das alpercatas de couro cru.

Distanciava-se a complicada caravana. Então, a irara Risoleta fez o cálculo do tempo de que dispunha. Olhou para cima, espiou para o caminho da direita, a ver se também dali não surgia alguma coisa digna de observar-se, e, depois, numa coragem, correu empós a comitiva, vai que avançando espevitada, vem que desenxabida recuando, sumindo-se nas moitas, indo até lá adiante, namorar o guieiro, mas gostando maismente de se emparelhar com o churrião; não podia, nem jeito, admitir que os grandes buracos das rodas fossem os óculos de tirar barro, de dar passagem à lama nos atoladiços: eram, isso sim, ótimas janelas, por onde uma irara espreitar.

Maneira seja, pôde instruir-se de tudo, bem e bem. E, tempo mais tarde, quando Manuel Timborna a apanhou, – Manuel Timborna dormia à sombra do jatobá, e o bichinho veio bisbilhotar, de demasiado perto, acerca do bentinho azul que ele usa no pescoço, – ela só pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração.

Como aquele trecho da estrada fosse largo e nivelado, todos iam descuidosos, em sóbria satisfação: Agenor Soronho chupando o cigarro de palha; o carro com petulância, arengando; a poeira dançando no ar, entre as patas dos bois, entre as rodas do carro e em volta da altura e da feiúra do Soronho; e os oito bovinos, sempre abanando as caudas para espantar a mosquitada, cabeceantes, remoendo e tresmoendo o capim comido de-manhã.

Só Tiãozinho era quem ta triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando os bois.

E, por tudo assim sem história, caminharam um quilômetro ou mais.

Começou, porém, a esquentar fora de conta. Nem uma nuvem no céu, para adoçar o sol, que era, com pouco maio, quase um sol de setembro em começo: despalpebrado, em relevo, vermelho e fumegante.

Então, Brilhante – junta do contra-coice, lado direito – coçou calor, e aí teve certeza da sua própria existência. Fez descer à pança a última bola de massa verde, sempre vezes repassada, ampliou as ventas, e tugiu:

“Boi… Boi… Boi…”

Mas os outros não respondem: continuam a vassourar com as caudas e a projetar de um para o outro lado as mandíbulas, rilhando molares em muito bons atritos.

Dando-se que Brilhante fala dormindo, repisonga e se repete, em sonho de boi infeliz. Assim por assim, o pelame preto compacto põe-no por baixas vantagens, qual e tal, em quente de verão, comborço que envergasse fraque, entre povos no linho e brim branco. Que por isso, ele querer toda vez, no pasto, a sombra das árvores, à borda da mata, zona perigosa, onde mil muruanhas – tavãs e tavoas – tão moscas, voejam, campeando o mole e quente em que desovar. Também que lá, medo ao veneno, a gente tem de pastar com completa cautela: Tubarão, irmão de Brilhante e seu antigo par de junta, morreu, faz mês e meio, ervado de timbó. Coisando por tristes lembranças, decerto, bem faz que Brilhante já carregue luto de-sempre. Mas, perpetuamente às voltas com bernes, bichos, carrapichos, e morcegos, rodoleiros, bicheiras, só no avesso da vida, boas maneiras ele não pode ter.

Todavia, ninguém boi tem culpa de tanta má-sorte, e lá vai ele tirando, afrontado pela soalheira, com o frontispício abaixado, meio guilhotinado pela canga-de-cabeçada, gangorrando no cós da brocha de couro retorcido, que lhe corta em duas a barbela; pesando de-quina contra as mossas e os dentes dos canzís biselados; batendo os vazios; arfando ao ritmo do costelame, que se abre e fecha como um fole; e com o focinho, glabro, largo e engraxado, vazando baba e pingando gotas de suor. Rebufa e sopra:

“Nós somos bois… Bois-de-carro… Os outros, que vêm em manadas, para ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e pastando, e vão-se embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses todos não são como nós…”

– Eles não sabem que são bois… – apoia enfim Brabagato, acenando a Capitão com um esticão da orelha esquerda. – Há também o homem…

– É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta… – ajunta Dançador, que vem lerdo, mole-mole, negando o corpo. – O homem me chifrou agora mesmo com o pau…

– O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente.

– Mas eu já vi o homem-do-pau-comprido correr de uma vaca… De uma vaca. Eu vi.

– Quieto, Buscapé!… Sossega, meu boizinho bom… – clama o menino guia.

Não é à toa que Buscapé é um boi china, espantadiço e pois pernalongo, que avança distanciando muito as patas e costuma relar com os cascos brutos os calcanhares do guia. Mais ao jeito que ele é mogão e mal-armado, que, se tivesse bons estrepes, na parelha de testa um perigo seria.

Mas Agenor Soronho estranhou qualquer lance:

– Vigia aí, Tiãozinho! Vi um bicho raboso mexer no matinho… Alguma bisca de lobo, ou um jaguapé. Isso são criaturas p’ra vagarem de-noite, não sei o-quê que andam querendo a esta hora em beira de estrada, p’ra assustar os bois!

Brabagato curvou-se, chegando o focinho, com veneta de lamber o entre-chifres de Capitão:

– Um homem não é mais forte do que um boi… E nem todos os bois obedecem sempre ao homem…

– Eu já vi o boi-grande pegar um homem, uma vez… O homem tinha também um pau-comprido, e não correu… Mas ficou amassado no chão, todo chifrado e pisado… Eu vi!… Foi o boi-grande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabaça-na-cacunda…

– Ele é bonito, esse um… – profere Dançador, que por sinal dá retrato de zebuíno-nelorino: na cabeçorra quase de iaque – testa lomba, grãos de olhos, cara boba, mais focinho – e na meia giba da cruz; mas ajunta outro tanto de sangue sertanejo, e a mistura põe-lhe um pré-corpo entroncado, dilatado e corcovado, de bisão.

Acolá, longe adiante, onde as árvores dos dois lados se encontram e encartucham e o caminho se fecha aos olhos da gente, apontaram de repente uns cavaleiros. Vêm chegando. Para que eles possam passar, mesmo tendo de contornar o barranco, Tiãozinho detém os bois.

– Boas tardes, seu Agenor! Que é que vão carreando?

– Umas rapadurinhas pretas, mais um defunto… É o pai do meu guia, que morreu p’r’ amanhecer hoje…

– Virgem Santa, seu Agenor! Imagina, só, que coisa triste… – Os homens se descobrem. – E de que foi mesmo que o pobre morreu, seu Agenor, ele que era tão amigo do senhor…?

– A gente não sabe… Da doença antiga lá dele… O coitado andava penando.

– Pobrezinho do menino!… – exclama a moça do silhão. E, a tais palavras, Tiãozinho, que já estava meio quase consolado, recebe inteira, de volta, sua grande tristeza outra vez.

Brabagato aproveitou a parada para se deitar. Desce o corpo, dobrando as quatro pernas, tudo muito complicado, e os joelhos como que se quebram completamente – parece que os garrões vão ao sovaco, cai a quartela na canela e bate o braço no boleto. Amontoa-se no fundo sulco da beira da estrada; e Capitão não reclama: sustenta a canga, inclinando o cogote, e descai as orelhas, enviesando olhos mornos. Mas Brabagato camba para o outro lado, depois de extrair a cauda, que, por afã e por engano, lhe ficara imprensada embaixo, e enxota as moscas passeantes pelo lombo e pelas ancas de montanha branca-e-preta.

Os cavaleiros se despedem. Mas, agora, a moça do silhão joga uma espiadela e murmura, enojada, qualquer coisa a respeito da falta de escrúpulos de se acondicionarem cadáveres em cima de rapaduras.

– Vamos’embora, vamos’embora…

– Vam’, boi!…

Tiãozinho quase não tem fala, mas Soronho brande a vara o brada seu mau-humor. Brabagato se reajoelha e acaba de aprumar-se, em dois tempos e três ferroadas. Os outros rompem adiante, com pronta pressa. As tiradeiras se retesam, de argola a argola. E os bois todos batem cascos, acertando a normal locomoção.

– Oung! Moung! – bufa Canindé, monótono, arrepiando o fio branco do dorso, e repuxando, dos ilhais às primeiras costelas, a pelagem conjugada – de cada lado uma risca preta e uma risca vermelha, muito largas, salpicadas de branco, na descida do flanco e na corda do flanco, pois que é muito bonito um boi jaguanés. Bufa e fala, pé por pé para caminhar:

– Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos pensar como o homem!…

Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga:

– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem…

– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os homens… Por que é que tivemos de aprender a pensar?…

– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros…

– Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…

– Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom… É melhor do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram… E mesmo o catingueiro-branco está com as moitas só comidas a meia altura… É bonito poder pensar, mas só nas coisas bonitas…

“É isso mesmo… Só o que é bonito… O que é manso e bonito… Eu até queria contar uma coisa… Sabia de uma coisa… Sabia, mas não sei mais”… As orelhas de Brilhante murcharam, e a cabeça sobe e desce. “Não encontro mais aquilo que eu sabia… Coisa velha… Também, vem tanta coisa para a gente pensar!… Vêm, como os mosquitos maus, da beira do mato… Perto do homem, só tem confusão…”

– Boi ôa, boi!… Dianho!… – grita seu Soronho.

Mais não foi que Brabagato, o chamurro pintado, que de-manhã pastou algum talo de capim-roseta, e agora talvez esteja sentindo dor qualquer, no terceiro ou no quarto estômago seu, e quer ruminar de focinho alto; e acontecido que Capitão é um couro-grosso mal mestiçado de franqueiro, que anda pesa-pendendo e cheirando chão, foi quebrado de desjeito, quando o companheiro de trela sungou a cabeça de repente. – Moung?! – Hmoung-hum!… – E badala o cincerro, do pescoço, porque Capitão vem de guampa afoita, oblíquo, querendo mesmo ferir.

E então, calmo, rediz Dançador, voz tão rouca, de azebuado, com tristeza no tutano:

– Não podemos mais deixar de pensar como o homem… Estamos todos pensando como o homem pensa…

Péssima dupla, esta da contra-guia: Brabagato, mal-castrado, tem muito brio e é fogoso; e Capitão é um boi sonso, e pois mau como uma vaca na menopausa. Por isso, e porque um e outro têm chifres verdes – se a gente furar, para pôr as argolas, darão sangue – prende-lhes os cangotes a soga rija, em vez das chifradeiras dos outros cingeis. Divergem as cabeças, e a junta se bifurca, o quanto permite o ajoujo, que essa é a única maneira de se darem as costas. Logo Brabagato recua o corpo, trazendo a canga até à base das hastes. Mas o cornil resiste. E já o carreiro, que vinha quase que só determinando coice e contra-coice, chega de lá, balanceando a vara.

– Capitão!… Brabagato!… – O ferrão cata lombos, palhetas e espáduas, e os bois dois se aquietam, com os flancos em marmelada, a sangrar.

Mas o caminho vai. E alongam-se para diante, na paisagem luminosa, as sombras songas dos bois.

– Estamos todos pensando que nem o homem?… Você, o-que-gosta-de-pastar-a-beira-da-cerca-do-pasto-das-vacas?!…

– Sou o boi Brabagato.

– E o-que-deita-para-se-esconder-no-meio-do-meloso-alto?

– Sou o boi Namorado.

– E o boi-da-noite-que-saiu-do-mato? Boi Brilhante, boi Brilhante?!… Que foi que ele disse?…

“Estou caçando e não acho… Mas não vamos pensar como o homem… Esperem… Ainda não encontrei aquilo…”

– O-quê?…

“Só o que for manso e o que for bonito… Também, assim, não posso… Não sei o que é que o carro diz, gritando tanto… Só os cavalos é que podem entender o carro…”

O sol agora está dois degraus mais alto. A poeira deixou de ser vermelha: é parda, parecendo cinza fina. Estão num baixadão de campo, de semi-arbustos, flechinha e capim-lanceta, todo encalombado de surujes de cupins.

Vem a voz de outro carreiro, gritando. Fazem a volta, acolá, outras juntas: seis parelhas, puxando um carretão, que arrasta imenso toro acorrentado – um tronco de tamboril, tal de metros de diâmetro, lavrado no mato.

Tiãozinho sorri para o menino-guia. Soronho saúda os carreiros. E os bois de cá espiam os bois do carretão: com outros, mal conhecidos: Tinhorão, Marechal, Cantagalo e Murici. Também deitam olhares, mas vão afanados, que o peso é pesado: debruçando os perfis cuneiformes; colgados nas jugulares das brochas; bijungidos, dois a dois paralelos, – anca a anca, chifre a chifre, pá a pá.

Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, outra vez.

– Esperta, boi!…

Agora, o carreiro, sim, que é homem maligno. O dia, para ele, amanheceu feliz, muito feliz. Mas, mesmo assim por assim, só porque está suando, não deixa de implicar:

– Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!… Não vê que a gente carreando defunto-morto, com essa cantoria, até Deus castiga, siô?!… Não vê que é teu pai, demoninho?!… Fasta! Fasta, Canindé!… Ôa!… Ô-ôa!… Anda, fica novo, bocó-sem-sorte, cara de pari sem peixe!… Vai botar azeite no chumaço, que senão agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega fogo em tudo, com o diabo p’r’ajudar!…

Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo de que o homem desse nele com a vara-de-ferrão. Falta de justiça, ruindade só. Foi o carreiro mesmo quem apertou a chaveta da cantadeira, hoje cedo; e até estava enjerizado, na hora, falando que Tiãozinho era um preguiçoso, que não prestava nem para ajeitar o carro nem para encangar os bois.

Clamando, xingando, Agenor Soronho vem para a traseira, onde está pendurado o chifre de unto. Estende-o ao menino, e dá uma espiada lá para dentro. Atrás, o carro estava sem tampo: só com uns sedenhos, esticados a diferentes alturas, entre os muitos fueiros, para impedir que, a cada tranco, a carga se fosse derramando.

Em cima das rapaduras, o defunto.

Com os balanços, ele havia rolado para fora do esquife, e estava espichado, horrendo. O lenço de amparar o queixo, atado no alto da cabeça, não tinha valido de nada: da boca, dessorava um mingau pardo, que ia babujando e empestando tudo. E um ror de moscas, encantadas com o carregamento duplamente precioso, tinham vindo também.

Soronho volve depressa a cara e vai encostar-se à cheda do lado direito, onde a esteira de caniço, alta, o isola do fúnebre viajante.

Mas, acolá, nos encangamentos, prorrompe novo reboliço.

– Olha esses bois, aí, diabo!… Capitão! Brabagato!…

Treta e teima. Alguma mutuca voandeja passou e pinicou a orelha de Brabagato, que estava de olhos fechados e atribuiu a ofensa a Capitão. Virou, raivado. Entestam. Reentestam. E estralam as chifrancas.

Soronho fincou a aguilhada, e Tiãozinho correu, atarantado, sem saber se oleava o cocão ou se acalmava os dois da guia, que, ouvindo bulha lá atrás, pensavam que havia ordem para caminhar.

– Ôa!… – Dá de-prancha, com a vara, nos topetes dos bois, que desviam para fora os nós dos joelhos, e travam pausa, imóveis perfeitamente. Então o candieiro volta para azeitar o eixo, depois de deixar a vara apoiada no peito da canga – obstáculo esse que Buscapé e Namorado resguardam com respeito.

Mas Agenor Soronho olhou para o sol, enrugando a cara. Pisca, pisca, e mais se enfeza.

– Que martírio!… De vez que não acaba mais com isso, ou tu pensa que os outros vão ficar no arraial com o cemitério aberto; esperando a gente?!…

– Já vou, seu Soronho… Já vai…

– É, nheinhein?!… Ai, que sina, esta minha, trabalhando em sol e chuva, e inda tendo de aguentar este mamão-macho sem preceito!… Tu fala macio, mas p’ra trabalhar comigo tu não presta… Mais em antes eu queria um rapazinho carapuçudo e arapuado, que fosse mal-criado mas com sustância que nem eu, p’ra trabucar… Que me importa, se a gente chega de noite no arraial?! O pai não é meu, não… O pai é seu mesmo… Só que tu não tem aquela-coisa na cara… Mas, agora, tu vai ver… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!…

Chora-não-chora, Tiãozinho retoma seu posto. “O pai não é meu, não… O pai é seu mesmo…” Decerto. Ele bem que sabe, não precisa de dizer. É o seu pai quem está ali, morto, jogado para cima das rapaduras… Deixou de sofrer… Cego e entrevado, já de anos, no jirau… Tiãozinho nem se lembrava dele de outro jeito, nem enxergando nem andando… Às vezes ele chorava, de-noite, quando pensava que ninguém não estava escutando. Mas Tiãozinho, que dormia ali no chão, no mesmo cômodo da cafua, ouvia, e ficava querendo pegar no sono, depressa, para não escutar mais… Muitas vezes chegava a tapar os ouvidos, com as mãos. Malfeito! Devia de ter, nessas horas, puxado conversa com o pai, para consolar… Mas aquilo era penoso… Fazia medo, tristeza e vergonha, uma vergonha que ele não sabia bem por que, mas que dava vontade na gente de querer pensar em outras coisas… E que impunha, até, ter raiva da mãe…

– Ôa!… Ôa, boi teimoso… Buscapé, demônio!

Ah, da mãe não gostava!… Era nova e bonita, mas antes não fosse… Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito… Que não tivesse mexida com outro homem nenhum… Como é que ele ia poder gostar direito da mãe?… Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse conta, batesse… Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho… E era melhor, mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele capeta!… Ruço!… Entrão!… Malvado!… O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr… Vivia dentro da cafua… Só não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo; mas não gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo dengos… Que ódio!…

O caminho, descurvo, vai liso para a frente. E, lá léguas, meão roxo, é o Morro Selado, onde mora um sujeito maluco, que tem ouro enterrado no chão.

Pobre do pai!… Tiãozinho tinha de levar a cuia com feijão, para comer junto com ele, porque nem que a mãe não tinha paciência de pôr comida na boca do paralítico… E ela, com seu Soronho, tinham, para comer, outras coisas, melhores… Deviam de ter… Mas, com isso, Tiãozinho não se importava… O que doía era o choro engasgado do pai, que não falava quase nunca… Mas Deus havia de castigar aquilo tudo, Não estava direito, não estava não!…

– Cristo! Cris-pim-cris-pim-cris-pim-crispim!

Um par de joãos-de-barro arruou no caminho, pouco que aos pés de Tiãozinho. Galinhando aos pulos, abrem bico e papo, num esganiço de alarido, mesmo de propósito, com rompante. Arrepicam e voam embora, soprando penas. Marido e mulher.

– Ôa, Namorado!… – E Tiãozinho faz meia-volta e dá uma corrida de-costas, pelejando para conter os da guia, golpeando-lhes as testorras e picando-os com o ferrão. Foi Namorado, o boi vermelhengo, que tomou um repente e chegou a catucar o candieiro, com uma cornada de-través. Mas, agora, está pondo olhos mansos, em fito desconsolado, enquanto Buscapé se socorna.

Boi urubu é boi Brilhante, que afunda cachaço e cara, angular, para o chão da frente. Preto e movente, assombra, que nem estranho enorme bicho d’água, com óleo e lustro no pêlo, esgueirando-se a custo, quase rampante. E boi Brilhante pensa falado:

“Estou andando e procurando… As coisas pequenas vêm vindo, lá de trás, na cabeça minha, mas não encontro as coisas grandes, não topo com aquilo, não…”

Ora caminhando de frente, ora aos recuões, Tiãozinho tem de ficar espertado, porque os bois agora deram para se agitar. Se o guia pega a pensar demais, se descuidando, logo se alerta com o bafo quente nas orelhas e a baba lhe respingando na nuca.

– Ôa, Namorado!…

Também, quem tem a culpa d’eles ficarem assim desinquietos é o carreiro, que vem picando os bois, à toa, à toa, sem precisão. É mau mesmo. “Mas, agora, tu vai ver!… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!”… P’ra que falar isso?!… Seu Soronho sempre não xingou, não bateu, de cabresto, de vara-de-marmelo, de pau?!… E sem ter caso para mão brava, nem hora disso, pelo que ele lidava direito, o dia inteiro, capinando, tirando leite, buscando os bois no pasto, guiando, tudo… Mas Tiãozinho espera… Há-de chegar o dia!… Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho… Ah, isso vai!… Há-de tirar desforra boa, que Deus é grande!…

Um mandiocal. O cafezal: de cimo a chão, moita e folha. As bananeiras.

“Bhu! Muff”… De repente, boi Brilhante projetou a cabeça, que sai do enquadramento – canga, canzis e brocha – como o pescoço de um jabuti que se desencaixa para beber chuva. E fanha, e funga:

“Achei a coisa, aquilo!… Foi o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto…”

– Era o boi Rodapião…

“Era o boi Rodapião. E foi. Chegou, um dia, não se sabe…

– Veio de-manhã…

“Pequeno ele, pouco chifre, vermelho café de-vez… Era quase como nós, aquele boi Rodapião… Só que espiava p’ra tudo, tudo queria ver… E nunca parava quieto, andava p’ra lá e p’ra cá…”

– Eu também pastei junto, com esse boi Rodapião…

Estão passando agora em frente à Fazenda do seu Gervásio. Os cachorros vêm fazer algazarra cá embaixo na estrada, só para assustar os bois. Agenor Soronho manda no que é seu: – Canindé, Realejo!… Ôa, Brabagato! Ô’r’vai!… -; e grita mais pelo Diabo, que “diabo” é o seu refrão.

A casa está aberta, mas não se vê ninguém. Todos foram ao canavial, pois é o começo do tempo de corte, marcar a cana caiana que vão moer amanhã de-manhã.

– Vamos, Buscapé!… Va-amos!…

O casarão avarandado já ficou para trás, com a latomia dos cachorros e as frondes do laranjal. Tiãozinho começa a cansar. Que calor!… E a poeira seca a goela da gente. Estará sentindo dor-por-dentro no pescoço? São Brás! São Brás!… Não quer penar como o Didico da Extrema, que caiu morto, na frente de seus bois…

Tinha só dez anos o Didico, menor do que Tiãozinho. Mas trabalhava muito, também. Foi num dia assim quente, de tanta poeira assim… Ele teve de ir carrear sozinho, porque era o carro pequeno, só com duas juntas e carga pouca, de balaios de algodão. Na hora de sair, se queixou: – “Estou com uma coisa me sufocando… Não posso tomar fôlego direito, nem engolir… E tenho uma dor aqui…” (Lá nele, Didico)…

Ninguém se importou; falaram até de ser manha, porque o Didico era gordinho e corado, parecendo um anjo de estampa, de olhinhos gaiteiros e azuis.

Mas estava custando muito a voltar. Nunca mais aparecia com o carro. E foram encontrá-lo, lá longe, na covanca da Abóbora-d’Água, já frio. Os bois haviam parado, para não pisar em cima, e estavam muito quietos, pois às vezes eles gostam de ficar assim. Menos os da guia, que tinham mascado e comido quase toda a roupinha do pobre do Didico… – São Brás!…

Vão por um tracto de campo ondulado, com pastagem áspera de capim-guiné verde-azul. Só aqui ou ali uma árvore: ou pau-doce ou pau-terra ou pau-santo, quase sempre com um ninho de guaxe pendurado de um galho, como enorme coador de café.

E aí, que todos estugam as passadas, boi Brilhante desdorme, em velho vezo de conversação:

… “Comigo, na mesma canga, prenderam o boi Rodapião… Chegou e quis espiar tudo, farejar e conhecer… Era tão esperto e tão estúrdio, que ninguém não podia com ele… Acho que tinha vivido muito tempo perto dos homens, longe de nós, outros bois… E ele não era capaz de fechar os olhos p’ra caminhar… Olhava e olhava, sem sossego. Um dia só, e foi a conta de se ver que ninguém achava jeito nele. Só falava artes compridas, ideia de homem, coisas que boi nunca conversou. Disse, logo: – Vocês não sabem o que é importante… Se vocês puserem atenção no que eu faço e no que eu falo, vocês vão aprendendo o que é que é importante… – Mas, por essas palavras mesmas, nós já começamos a ver que ele tinha ficado quase como um homem, meio maluco, pois não…”

– Ôa!

Estacam todos, bois e carro, no meio do chapadão. Foi o guia Tiãozinho, que teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído de repente até aos pés. Depôs a vara no chão, depressa, porque estava até vermelho, só em camisão e perninhas magrelas, que vergonha. E agora está-lhe custando para amarrar a tira de pano na cintura e ficar composto outra vez.

Com o céu todo, vista longe e ar claro – da estrada suspensa no planalto – grandes horas do dia e horizonte: campo e terras, várzea, vale, árvores, lajeados, verde e cores, rotas sinuosas e manchas extensas de mato – o sem-fim da paisagem dentro do globo de um olho gigante, azul-espreitante, que esmiúça: posto no dorso da mão da serrania, um brinquedo feito, pequeno, pequeno: engenhoca minúscula de carro, recortado; e um palito de vara segura no corpo de um boneco homem-polegar, em pé, soldado-de-chumbo com lança, plantado, de um lado; e os boizinhos-de-carro de presépio, de caixa de festa. E o menino Tiãozinho, que cresce, na frente, por mágica. Pronto. As calças não vão cair mais!

Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial. Também, com tudo tão triste, carreando o pai para a cova, coitado do pai… Mas, deve de ter subido para o Céu, direito, na mesma da hora… Na véspera de morrer, de-noite, ele ainda pedira para Tiãozinho tirar reza junto… E Tiãozinho puxara o terço, cochilando… Estava com muito sono, porque tinha ido, a pé, ao Marçal Velho, levar um recado… Depois da salve-rainha, o pai pôs nele a benção, e ele deitou no enxergão, para dormir logo, esquentando os molambos… Também não adiantou nada estar dormindo no mesmo canto; só deu fé daquela tristeza toda foi quando viu a mãe, chorando, sacudindo-o para levantar. Aí, Tiãozinho tinha chorado também…

Mas, a mãe, por que é que ela havia de chorar?! por que? Ela não gostava do pai… Tiãozinho pouco pudera ver, pelos buracos da parede de pau-a-pique, quando eles estavam lavando o corpo… A cafua se enchera, não cabendo, de gente… E seu Agenor Soronho estava muito galante com todos. Estava mesmo alegre, torcendo as pontas do bigode vermelho, mas fazendo de estar triste, às vezes, de repente… E até quando Tiãozinho, zonzo de tanta confusão, se sentara na pedra que faz degrau na porta da cozinha, o carreiro tinha vindo consolar sua tristeza, dizendo que daí em diante ia tomar conta dele de verdade, ia ser que nem seu pai…

Os vizinhos bem que estavam às ordens, para carregar cristão defunto. Mas eram seis léguas apuradas, e, como seu Agenor estava mesmo para levar uma carga de rapadura do Major Fréxes, dispensou os préstimos para o cortejo, e atrelou quatro juntas, porque na volta ia trazer o carro cheio, com os rolos de arame farpado que estavam esperando por ele, na estação do arraial…

Não havia caixão: só o esquife tosco, entre padiola e escada, com as barras atadas com embira e cipó. Ajeitaram o morto em cima do ladrilhado das rapaduras. Tiãozinho, já pronto, esperava no seu lugar, com muita pressa de sair, porque aquilo tudo estava sendo ruim demais… A mãe ficara na porta, chorando sempre, exclamando bobagens, escorada nas outras mulheres todas, que ajudavam a chorar… E o resto do povo tinham feito o pelo-sinal e virado as costas, porque faz mal a gente ficar espiando um enterro até ele se sumir.

O caminho-fundo corta uma floresta de terra boa, onde cansa a gente olhar para cima: árvores velhas, de todas as alturas – braçudas braúnas, jequitibás esmoitados, a colher-de-vaqueiro em pirâmides verdes, o lanço gigante de um angico-verdadeiro, timbaúbas de copas noturnas, e o paredão dos açoita-cavalos, escuros. Cheiro bom de baunilha, sombra muito fresca, cantos de juritis, gorgear de bicudos, o trilo batido da pomba-mineira, e, mais longe, mais dentro, na casa do mato, o pio tristonho do nhambu-chororó.

Tiãozinho atrasa o passo, para aproveitar. Mas ainda está triste. Não quer pensar no pai depois – tem medo de pôr a ideia no corpo que vem em-riba da pilha das rapaduras. Só aguenta pensar nele de-em-antes, na cafua… Pega a imaginar outras coisas. Fala os bois, sem precisão: – Buscapé!… Brabagato!… – Depois, faz força para se lembrar dos nomes das vacas todas do seu Major Gervásio: Espadilha… Bolívia… Azeitona… Mexerica é a turína. Porcelana é a toda branca, desmochada. Guiamina é a preta, de cinturão branco no cilhador…

Mas, o chapéu na cabeça? Não pode… Tira o chapeuzinho de palha, que também não tapa o sol e nem nada. Vai levar na mão. Também… Não quer pensar mais no pai em-antes. Mas não tem ideia para poder deixar de pensar… O pai gemendo… Rezando com ele… E se rezasse também agora?… Devia…

E começa a rezar, meio alto, só como sabe, enquanto a estrada sai do mato para o calorão do cerrado, com enfezadas arvorezinhas: muricis de pernas tortas, manquebas; mangabeiras pedidoras-de-esmola; barbatimãos de casca rugosa e ramos de ferrugem; e, no raro, um araticum teimoso, que conseguiu enfolhar e engordar.

Da garupa de Brabagato a cauda cai como uma cobra grossa, oscilando, e o pincel zurze o ar, quase nos chifres de Brilhante, que fechou de todo os olhos e vergou o toutiço.

Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!… Estúrdio…

“Quando a gente não saía com o carro, e ficava o dia no pasto, ele falava mais em-mais. Uma vez, ele disse: – Nós temos de pastar o capim, e depois beber água… Invés de ficar pastando o capim num lugar só em volta, longe do córrego, p’ra depois ir beber e voltar, é melhor a gente começar de longe, e ir pastando e caminhando, devagar, sempre em frente… Quando a gente tiver sede, já chegou bem na beira d’água, no lugar de beber; e assim a gente não cansa e tem folga p’ra se poder comer mais! – E ele foi logo fazendo assim, do jeito como tinha falado; mas nós nem podíamos pensar em fazer que nem ele. Porque a gente come o capim cada vez, onde o capinzal leva as patas e a boca da gente…

“Outra vez, boi Rodapião disse: – Quando o boi Carinhoso ficou parado, na beirada do valo do pasto, e não quis comer de jeito nenhum, o homem veio e levou o boi Carinhoso no curral, e pôs p’ra ele muito sal, no cocho… Se nós ficarmos também sem comer, todos, parados na beirada do valo, o homem nos dará milho e sal, no curral, no cocho grande… – E ele fez assim mesmo, e aquilo deu certo; e boi Rodapião comeu sal muito e ficou alegre. Nós, não.”

O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio um silêncio. E todos, de olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça coisas mais fundas que o pensamento e o sonho, e, assim, sem pressa, chegam ao vau do ribeirão.

Está um mormaço pesado, mas o ribeirão corre debaixo de árvores, no bem-bom. Tiãozinho entra, até os joelhos, na água, fria que faz cócegas. Molha os pulsos. O chapeuzinho furado é peneira para vazar. Então, ele abaixa as mãozinhas juntas, e bebe.

A junta da guia, com simetria perfeita, baixa os três arcos da canga, para trazer as belfas ao rés da correnteza; e, abrindo as fuças em conchas moles, os bois sorvem, demoradamente.

De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o molhado das caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que santos de grandes, e cheirando forte a bondade, bois companheiros, que não fazem mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de pessoa amiga da gente!… E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé, e passa também mão de mimo no pescoço de Namorado – imóveis, os dois.

Todos já beberam; mesmo Realejo não tem mais sede: mantém o focinho abaixado, só porque, no limo que se esfiapa das pedras do fundo, supõe talvez uma raça de capim de luxo, que deve de ser macio…

Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo:

– Vam’bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?!… Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de dentro d’água, feito esteio de moinho?!… Vamos, Canindé!… Dançador! Vamos!…

Quando as rodas entram no córrego, Agenor Soronho não se molha, porque já está trepado, entre o pigarro e a chavelha, no cabeçalho, que avança como um talhamar. E fez bem, porque, depois da passagem, por metros, há um alagadiço perene: um tremembé atapetado de alvas florinhas de bem-casados e de longos botões fusiformes de lírios.

– Entra p’ra o lado de lá, que aí está embrejado fundo… Mais, dianho!… Mas não precisa de correr, que não é sangria desasada… Tu não vai tirar o pai da forca, vai?… Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez!… Deus que me perdoe de falar isso, pelo mal de meus pecados, mas também a gente cansa de ter paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar… Ôi, seu mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama!… – E Soronho ri, com estrépito e satisfação.

Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida nele outra vez…” Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a morte veio buscar?! Havia de ter sido tão bom!…

Os bois tafulham as munhecas, com cloques sonoros; quando desatolam, para outra passada, a água suja escorre, chorrilhando, para encher os moldes dos cascos, e, no mais mole, as bainhas – as fundas cisternas cavadas pelos mocotós.

Enlameado até à cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro… Deixa eu crescer!… Deixa eu ficar grande!… Hei de dar conta deste danisco… Se uma cobra picasse seu Soronho… Tem tanta cascavel nos pastos… Tanta urutu, perto de casa… Se uma onça comesse o carreiro, de noite… Um onção grande, da pintada… Que raiva!…

Mas os bois estão caminhando diferente. Começaram a prestar atenção, escutando a conversa de boi Brilhante.

… “Então, boi Rodapião ainda ficou mais engraçado de-todo. Falava: – A gente deve de pensar tudo certo, antes de fazer qualquer coisa. É preciso andar e olhar, p’ra conhecer o pasto bem. Eu conheço todos os lugares, sei onde o capim é mais verde, onde os talos ficam quase o dia inteiro molhados de orvalho, p’r’a gente poder pastar mais tempo sem ter sede. Sei onde é que não dá tanto mosquito, onde que a sombra, e o limpo do chão; e, pelo jeito do homem, sei muitas vezes o que é que ele vai fazer… Olho p’ra tudo, e sei, toda hora, o que é o melhor… Não tenho nunca dor-de-barriga, porque não pasto por engano capim navalha-de-mico, no meio do jaraguá… Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que vivem no escuro e nunca sabem porque é que estão fazendo coisa e coisa. Tantas vezes quantas são as nossas patas, mais nossos chifres todos juntos, mais as orelhas nossas, e mais: é preciso pensar cada pedaço de cada coisa, antes de cada começo de cada dia…

“E nós não respondíamos nada, porque não sabemos falar desse jeito, e mesmo porque, cada horinha, as coisas pensam p’r’a gente…

“Mas boi Rodapião ia ficando sempre mais favorecido com suas artes, e era em longe o mais bonito e o mais gordo de nós todos. Até que chegou um dia…”

– Firme, Realejo!… Canindé, boi bom!…

Vão descer uma rampa de grande declive, e os bufalões destamanhos da junta do coice aguentam o peso do carro, fazendo freio e firmando no chão os cascos, fendidos como enormes grãos de café.

– Vamos!…

A traquitana continua a se afundar morro abaixo, agora uma ladeira mais calma, com as juntas da frente apressadas, as ferragens tinindo e toda a apeiragem fazendo balbúrdia, nas chapas e nos ganchos.

Mal o caminho se deita, Canindé solta uma interjeição bovina pouco amável: sim de orelhas, sopro frouxo e três oitavos de mugido; e Realejo faz qualquer monossílabo, com ironia também soprosa, de ventas dilatadas, contraídas as falsas-ventas. Mas, lá na guia, obliquando a carantonha, comenta Buscapé:

As coisas corriam lisas, como um córrego… Passavam as touceiras do bengo, ligeiras… Passavam as moitas, subindo o morro… Corria o capim-angola, ainda em mais correnteza… Eu estou com fome. Não gosto de puxar o carro… Queria ficar pastando na malhada, sozinho… Sem os homens.

– Eu acho que nós, bois, – Dançador diz, com baba – assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, começo e fim. O homem, não: o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito… O homem tem partes mágicas… São as mãos… Eu sei…

Mas já Brilhante endureceu as orelhas, soslaiando Dançador:

… “Chegou um dia, nós reparamos que já estava trecho demais sem chover. Tempo e tempo. Coisa como nunca em antes tinha sido. Quase que nem capim seco não tinha mais, e a gente comia gravetos, casca de árvores, e desenterrava raiz funda, p’ra pastar. Foi ruim…

“Então, os homens vieram, e chamaram todos os bois p’ra fora do pasto rapado, e foram levando a gente p’ra longe. Muitos dias, muito longe. Depois, chegamos… E puseram os bois nós todos num pasto diferente, desigual de todos os pastos, e que era todo num morro frio, serra a-pique, sem capim conhecido de nenhum de nós… Aí a gente pegou a comer, quase sem levantar as cabeças… Mas, o boi Rodapião…”

Lés a lés, de mato para mato, cruzou uma borboleta grande, uma panã-panã de céu e brilho, que, a cada vez redonda de abrir asas, parecia tornar a se recortar e desdobrar de um papel azul.

… “ O bebedouro fica longe, – disse o boi Rodapião. – Cansa muito ir até lá, p’ra beber… Vou pensar um jeito qualquer, mais fácil… Pensando, eu acho…

“Aí, nós nem respondemos. Aquilo era mesmo do boi Rodapião. Porque eu não tinha precisado de pensar, p’ra achar onde era que estava o bebedouro, lá em baixo, mais longe.”

– Brilhante, vaca diabo!…

Lá vem seu Soronho, que nem um demônio, pernas e pernas, caminhando nas tiradeiras esticadas, pulando entremeio às juntas, e achando jeito para meter o aguilhão na cruz espessa de Realejo e na cernelha pontuda de Dançador.

Tiãozinho baixa a cabeça, e aperta a vara na mão, com mais força. O raio!… Bem que ele podia cair… Mas não cai. Agenor Soronho, na sua terra, é o melhor carreiro do mundo. Pisando nos paus e correntes, vai de cambão em cambão, como um imenso macaco; chega até cá na guia, para fazer colo, e então salta no chão, que nem um artista decirco-de-cavalinhos, mas zangando com Tiãozinho e caçoando dos bois.

– O que tu ‘tá tretando aí, não me fala!…

Agora é preciso cuidado e lentidão de passo, pois a estrada tora entre despenhadeiro e barranco. – Õa, boizinho, ôa! – avisou já Tiãozinho, olhando para cada um deles, assustado, quase que pedindo para passarem com modos, pelo-amor-de-deus: Buscapé, Namorado; Capitão, Brabagato. E Brilhante:

… “Mas boi Rodapião foi espiando tudo, sério, e falando: – Em todo lugar onde tem árvores juntas, mato comprido, tem água. Lá, lá em-riba, quase no topo do morro, estou vendo árvores, um comprido de mato. Naquele ponto tem água! – E ficou todo imponente, e falou grosso: – Vou pastar é lá, onde tem aguada perto do capim, na grota fresca!…

“Eu também olhei p’r’a ladeira, mas não precisei nem de pensar, p’ra saber que, dali de onde eu estava, tudo era lugar aonde boi não ir. Mas boi Rodapião falou como o homem: – Eu já sei que posso ir por lá, sem medo nenhum: a terra desses barrancos é dura, porque em ladeira assim parede, no tempo das águas, correu muita enxurrada, que levou a terra mole toda… Não tem perigo, o caminho é feio, mas é firme. Lá vou…

“Eu não disse nada, porque o sol estava esquentando demais. E boi Rodapião foi trepando degrau no barranco: deu uma andada e ficou grande; caminhou mais, ficou maior. Depois, foi subindo, e começou a ficar pequeno, já indo por lá, bem longe de mim…”

– E daí? E foi?

“Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto… Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas…”

– E foi?

“Ajudar eu não podia e nem ninguém… Chamei os outros, que não vinham e não estavam de se ver… Aí, olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando… E então espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando desses urubus, uns e muitos… E fui-m’embora, por não gostar de tantos bichos pretos, que ficaram rodeando aquele boi Rodapião.”

– E nunca se soube se tinha água no alto do morro, então?

“Contei minha história, agora vou cochilar… Sei não.”

Mas, agora, está ali defronte um carro quebrado, e as juntas de bois, folgando em ordem, mais no alto, na escarpa.

– Ôi Tiãozinho, vamos devagar e para aí mais adiante. É o carro da Estiva, com o João Bala carreando… Eli, espandongado… Diabo! Despencou morro-abaixo, vamos ver só o que foi… A modo e coisa que… ‘Tá’í! O que é que adianta esse gosto bobo de ter todos os bois laranjos, de uma cor só?… Ah, esta subidinha ladeira do Morro-do-Sabão não é brinquedo cujo p’ra qualquer um não!… Eu sempre falo: p’ra carrear fazendo zoeira, e dando ferroadas, e gritando, todo-o-mundo é fácil… Mas não tem muita gente capaz de saber falar o gado direito, nem determinar o coice na descida, nem espertar a guia e zelar a contra-guia na subida, nem fazer um colo bem feito, nem repartir o movimento com lição…

– Ôa, Dançador!… Ôa… Espera aí, Tiãozinho, que eu vou lá ver o Bala, que está com cara de cachorro que quebrou panela, todo amontado no sem-jeito…

Mal que prosa de carreiro é coisa de si por si engraçada, pois estão sempre arrumando a voz, por traquejo de fazer a fala, e só no sestro de esticar olho para os dois lados da frente, que nem vigiando seus bois; mas, desta vez, Agenor Soronho está olhando mesmo de-propósito, todo de-luxo com os estragos do carro do outro:

– Oh, seu João Bala!… Que pouca sorte da nenhuma foi isso por aí com o senhor?…

– O que foi, foi o que o senhor está vendo, seu Angenor!…

– Chí-i!… Partiu a cheda, o cabeçalho, no encontro… Ví-i!… O chazeiro do outro lado não teve nada, mas rachou o tabuleiro também … Vai ser um despesão, muito mais do que uns seiscentos e cinquenta mil-réis ou o dobro, só p’ra poder mandar consertar uma má metade dos estragos… E tinha muita coisa dentro?

– Só tinha, graças-a-deus, aqueles dois pipotes de cachaça, porque eu ia era buscar a família do patrão no arraial…

– Vigia só como é que espatifou tudo! São coisas que acontecem com qualquer um de nós; nenhum carreiro mestre, com certeza de mão, não está livre disto… Inda tem cachaça ali um pouquinho, p’ra se aproveitar… Mas, como é que o desmando se deu, seu João Bala?

– Com’é? Ora, seu Angenor, como é que havia de poder ter sido?!… O senhor, carreiro velho, calejado, não está vendo a sola e a sovela? Não foi vergonha nenhuma p’ra mim. A gente aí vinha subindo o morro… Tudo ia indo direito. Eu estava dentro do carro, mesmando… Mas, de repente, quando eu vi, foi a coisada toda desandando morro abaixo: primeiro, foi um estralo… E eu vi que tinha rebentado o rabo da tiradeira do contra-coice…

– Ô diabo!

– Ficou feio, seu Soronho! Ficou feio. Deus e demo, que o carro descambava p’ra trás, feito doido, tinindo e arrastando a junta cio coice, que foi a única que ficou presa, com os bois enforcados quase. Aquilo eles vinham que vinham mesmo, ajuntando o capim nos cascos e arrastando o capim p’ra trás!…

– Credo!

– Mas, aí, quando eu vi que estava ali estava morto sem santos-óleos, clamei o nome de Nossa Senhora, porque pular é que eu não podia pular mais… Então, me deu um repente, e eu fiquei brabo e gritei ordens: – Segura, Camurça! Segura, Melindre!… – Ai, meus boizinhos da minha junta do coice, boizinhos bons, de peso e sujeição!…

– Sei deles… Bois de lei…

– Ara, se ara!… Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque foram que me salvaram!… Só eu gritar, e eles estacando e estribando, e não arredaram mais. Foi mesmo no lugar da ladeira a pique, ali no meio do escorregador da descida… Sem desageração, mas era só o carro fazendo p’ o p’ra descer, e cortando, sem licença de aluir do lugar, porque Melindre mais Camurça sojigavam o chão com os cascos, mas não entregavam o corpo!… Eu mesmo nunca vi bois p’ra terem tanto poder desse jeito: aquilo eles garraram a sapatear, virando roda, e ficaram tremendo assim:

– E pois?

– Aí eu aproveitei, e torei fora… Se tivesse demorado um tiquinho mais p’ra saltar, estava moído: porque foi só mais outro estralo, e partiram os tamoeiros e o resto, e os bois ficaram soltos, e até garraram a subir o morro todo, numa corrida como se tivessem ficado malucos só nessa hora, e então foi que o carro tiniu direito, saindo p’ra banda de fora da estrada e dando de-rabo por essas pirambeiras… Foi tudo num relance tão ligeiro, que só depois é que eu vi que tinha visto…

… Mas, bonito, foi! Foi bonito!… O diabo espatifou lá em baixo, e as pipas de cachaça ele tangeu p’ra longe. ‘Magina, se não fossem os meus boizinhos abençoados!… Olha só como é que estão lá em-riba me esperando… Ei, Camurça mais Melindre, ensinadinhos, certos de fala, bons de ouvido… Em qualquer descida mais pior, era só eu mostrar a vara p’ra os dois, e eles, que são bois-mestres de coice, iam sentando, e a canga jogando a junta p’ra riba! Por mesmo que as outras relaxassem, estava tudo firme em casa…

… Agora, o material é que não prestou paga: nem um apeiro p’ra ter valia. Só essas tiradeiras de pau, sem um palmo de corrente p’ra reforçar… Tinha de dar no que deu! O que é que eu podia fazer, seu Angenor, de melhor?!

– Ah, pois, decerto, seu João Bala! Até, se alguém me perguntar, vou dizer isto mesmo, p’ra todo-o-mundo… Mas, por falar nisso, olhe aqui, que eu me vou indo, em-desde que não posso ajudar em nada, porque estou levando ali defunto-morto p’ra se enterrar no arraial…

– Virgem!… Quem é o tal, seu Angenor?… Ah, é o pobre do seu Jenuário?!… Pois vá com Deus, companheiro, que por ora eu não preciso’mesmo de adjutório, porque mandei o meu guia ir buscar gente no Monjolo, que graça-a-deus não é longe… Até, enquanto isso, eu vou ficar rezando um padre-nosso e umas três ave-marias, por alma do pobre do falecido… A gente deve de se consolar é com uns assim, no pior do que nós, o senhor não acha? Agora, vou ver algum resto daquela cachacinha, só p’ra não deixar desperdiçar. O senhor não quer? Bom, p’ra o fígado e p’ra estômago ruim, não é mesmo muito bom, não. Té outro dia, seu Angenor!…

Agenor Soronho volta para o seu carro, abanando o corpo de sorridente. Foi tapar a traseira.

– Bestagem!… Patranha de violeiro ruim, que põe a culpa na viola. Tião, esperta, que eu quero mostrar p’ra esse João Bala como é que a gente sobe o Morro-do-Sabão!… E vou em pé no cabeçalho, que é só p’ra ele ver como é que carreiro de verdade não conhece medo, não!… Vamos, Brabagato!… Namorado!… Realejo!… Vamos!…

Vai Tiãozinho, vão os bois, vai o carro, que empina para entrar na subida, rangendo a cantoria rezinguenta.

– Va-amos!… – As jugadas avançam, dançando as cangas nos cangotes, e Soronho grita e se mexe, curvando e levantando o busto, com os braços abertos e segurando com as duas mãos a vara, na horizontal: – Olha aí, Tiãozinho, tu que é também um guia brioso, conversa por mim com esses bois!… Vamos bonito, Dançador! Brabagato, boi meu!…

– Ôô-a!…

A subida brava acabou, com fadiga para todos e glória para Agenor Soronho.

– Uf! Pfú… – sopra Brilhante.

– Muh! Muung!… – tuge Brabagato.

– Oon! Oung!… – bufa Buscapé.

E desde que o carro acaba de virar para trás das rodas a dobra do espigão, até alcançar a chapada de terra vermelha, são trezentos e cinquenta metros de silêncio, antes de Dançador voltar a cara, espiando, e de Capitão perguntar:

– Que é que está fazendo o carro?

– O carro vem andando, sempre atrás de nós.

– Onde está o homem-do-pau-comprido?

– O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta está trepado no chifre do carro…

– E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois?

– O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar… Ele está babando água dos olhos…

Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, com o facão alto e escorregoso, no meio, separando as regueiras feitas pelas enxurradas e pelas rodeiras de outros carros e carretões. Os bois avançam de sobremão. Calados. Só tilinta o cincerro, quando Brabagato cabeceia. Aí, de coice a guia, por via cruzada, vem outra informação:

– O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro… O pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormindo… Por isso é que ele parou de picar a gente.

Pela mesma rota – Namorado a Capitão, Brabagato a Dançador, Brilhante a Realejo – viaja a conversa dos bois dianteiros:

– O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele também está dormindo. Dorme caminhando, como nós sabemos fazer. Daqui a pouco ele vai deixar cair o seu pau-comprido, que nem um pedaço quebrado de canga… Já babou muita água dos olhos… Muita…

Os guardas do cabeçalho devolvem a fala:

– O homem está escorregando do chifre-do-carro!… Vai muito pouco de cada vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do chifre-do-carro… Se ele cair, morre…

Outra vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia:

– O bezerro-de-homem quase cai nos buracos… Ele está mesmo dormindo… Daqui a pouco, ele cai… Se ele cair, morre…

Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão só uma pequena porção dele vigie, talvez. O resto flutua em lugares estranhos. Em outra parte… E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre e leve… Não sente mais raiva… O dia desesquentou, refrescou, mesmo.

– Mmuh… – Boi Canindé sacudiu o perigalho, e engrolou: – Que é o que está dizendo o boi Dançador?

– Que nós, os bois-de-carro, temos de obedecer ao homem, às vezes…

– O homem não sabe.

– O bezerro-de-homem não sabe… O nosso pensamento de bois é grande e quieto… Tem o céu e o canto do carro… O homem caminha por fora. No nosso mato-escuro não há dentro e nem fora…

– É como o dia e a noite… O dia é barulhento, apressado… A noite é enorme…

– O bezerro-de-homem sabe mais, às vezes… Ele vive muito perto de nós, e ainda é bezerro… Tem horas em que ele fica ainda mais perto de nós… Quando está meio dormindo, pensa quase como nós bois… Ele está lá adiante, e de repente vem até aqui… Se encosta em nós, no escuro… No mato-escuro-de-todos-os-bois… Tenho medo de que ele entenda a nossa conversa…

– É como o dia e a noite… A noite é enorme.

– Olha! Escuta!… Escuta, boi Brabagato; escuta, boi Dançador!

– Que foi? Que há, boi Buscapé?

– É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é que está dizendo o boi Capitão?!

– Mhú! Hmoung!… Boi… Bezerro-de-homem… Mas, eu sou o boi Capitão!… Moung!… Não há nenhum boi Capitão… Mas, todos os bois… Não há bezerro-de-homem!… Todos… Tudo… Tudo é enorme… Eu sou enorme!… Sou grande e forte… Mais do que seu Agenor Soronho!… Posso vingar meu pai… Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro… Seu Agenor Soronho é o diabo grande… Bate em todos os meninos do mundo… Mas eu sou enorme… Hmou! Hung!… Mas, não há Tiãozinho! Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas!… Não, não, sou o bezerro-de-homem!… Sou maior do que todos os bois e homens juntos.

– Mû-úh… Mû-ûh!… Sim, sou forte… Somos fortes… Não há bois… Tudo… Todos… A noite é enorme… Não há bois-de-carro… Não há mais nenhum boi Namorado…

– Boi Brabagato, boi Brabagato! … Escuta o que os outros bois estão falando. Estão doidos?!…

– Bhúh!… Não me chamem, não sou mais… Não existe boi Brabagato!… Tudo é forte. Grande e forte… Escuro, enorme e brilhante… Escuro-brilhante… Posso mais do que seu Agenor Soronho!…

– Que estão falando, todos? Estão loucos?!… Eu sou o boi Dançador… Boi Dançador… Mas, não há nenhum boi Dançador!… Não há o-que-tem-cabeça-grande-e-murundu-nas-costas… Sou mais forte do que todos… Não há bois, não há homem… Somos fortes… Sou muito forte… Posso bater para todos os lados… Bato no seu Agenor Soronho!… Bato no seu Soronho, de cabresto, de vara de marmelo, de pau… Até tirar sangue… E ainda fico mais forte… Sou Tião… Tiãozinho!… Matei seu Agenor Soronho… Torno a matar!… Está morto esse carreiro do diabo!… Morto matado… Picado… Não pode entrar mais na nossa cafua. Não deixo!… Sou Tiãozinho… Se ele quiser embocar, mato outra vez… Mil vezes!… Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não deixo… Ralho com a minha mãe… Ela só pode chorar é pela morte do meu pai… Tem de cuspir no seu Soronho morto… Tem de ajoelhar e rezar o terço comigo, por alma do meu pai… Quem manda agora na nossa cafua sou eu… Eu, Tiãozinho!… Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas… Ninguém pode mais nem falar no nome do seu Soronho… Não deixo!… Sou o mais forte de todos… Ninguém pode mandar em mim!… Tiãozão… Tiãozão!… Oung… Hmong… Mûh!…

Tranco… tranco… Bate o carro, em traquetreio e solavanco. Mas, no caminho escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados, Tiãozinho não cai nem escorrega, porque não está de-todo adormecido nem de-todo vigilante. Dormir é com o Seu Soronho, escanchado beato, logo atrás do pigarro.

De lá do coice, voz nasal, cavernosa, rosna Realejo. E todos falam.

– Se o carro desse um abalo maior…

– Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo…

– O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.

– Ele está na beirada…

– Está cai-não-cai, na beiradinha…

– Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem pensar, de supetão…

– E o homem cairia…

– Daqui a pouco… Daqui a pouco…

– Cairia… Cairia…

– Agora! Agora!

– Mûung! Mûng!

– … rolaria para o chão.

– Namorado, vamos!!!… – Tiãozinho deu um grito e um salto para o lado, e a vara assobiou no ar… E os oito bois das quatro juntas se jogaram para diante, de uma vez… E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado, com um guincho do cocão.

– Virgem, minha Nossa Senhora!… Ôa, ôa, boi!… Ôa, meu Deus do céu!…

Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda esquerda lhe colhera mesmo o pescoço, e a algazarra não deixou que se ouvisse xingo ou praga – assim não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de desencarnar. Tanto mais que, do cabeçalho ao chão, a distância é pequena; e uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão…

– Mô-oung!… Que é que estão falando os bois de trás?

– Que tudo o que se ajunta espalha…

– Que tudo o que se ajunta espalha.

– Mû-û? … Que é que estão dizendo os bois da guia?

– Nenhum não sabe.

Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido. Tiãozinho. – “Meu Deus! Como é que foi isto?!… Minha Nossa Senhora!…” – Sentado na beira dum buraco. Com os pés dentro do buraco. – “Eu tive a culpa… Mas eu estava meio cochilando… Sonhei… Sonhei e gritei… Nem sei o que foi que me assustou…” – Com os bois olhando. Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz. E sem atinar com o que fazer. – “Minha Virgem Santíssima que me perdoe!… Meus boizinhos bonitos que me perdoem!… Coitado do seu Agenor! Quem sabe se ele ainda pode estar vivo?!…” – Fazer promessa. Todos os santos. Rezar depressa. E gente chegando. Os dois cavaleiros. – Sossega, meu filho! Nem um gole d’água, p’ra dar a este menino. Sem água para a goela seca. Ajuda aqui, Nhô Alcides! Goela seca. Tremor. Já é de-tardinha. Desentala o corpo!… Quase degolado, o pobre do carreiro. Não quero ver. Chorando outra vez. – “Coitado do seu Agenor!… Era brabo, mas não era mesmo mau-de-todo, não… Tinha coração bom… Mas, não foi por meu querer… Juro, meu Nosso Senhor!…” – Com jeito, seu Quirino! Credo, Nhô Alcides, já tinha outro defunto aqui dentro!… Meu pai. Não tem culpa. Tristeza. Frio. O sol foi-s’embora. Mas é preciso ajudar. Estou bem, não tive nada. Negócio urgente de Nhô Alcides. Seu Quirino carreia. A cavalo mesmo. Os bois querem caminhar. – “Vamos, Buscapé! Namorado, va-amos!…

E logo agora, que a irara Risoleta se lembrou de que tem um sério encontro marcado, duas horas e duas léguas para trás, é que o caminho melhorou. Tiãozinho – nunca houve melhor menino candieiro – vai em corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca, aceleram. E talvez dois defuntos deem mais para a viagem, pois até o carro está contente – renhein… nhein… – e abre a goela do chumaço, numa toada triunfal.

[1946]

(In: Sagarana (Contos). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.)


***


O alienista

Machado de Assis

 

Sumário

CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

CAPÍTULO II – TORRENTES DE LOUCOS

CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ

CAPÍTULO IV - UMA TEORIA NOVA

CAPÍTULO V - O TERROR

CAPÍTULO VI - A REBELIÃO

CAPÍTULO VII - O INESPERADO

CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS

CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO

CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º.

CAPÍTULO XIII - PLUS ULTRA!

 

CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas – únicas dignas da preocupação de um sábio –, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência – explicável, mas inqualificável –, devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção – o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis” – expressão usada por ele mesmo,  mas  em  um  arroubo  de  intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

Olhe,          D.        Evarista,         disse-lhe          o          Padre   Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.

D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto – e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo –, porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.


CAPÍTULO II – TORRENTES DE LOUCOS

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.

— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.

— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.

— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.

— Muito maior, acrescentou o outro.

E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!

— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.

— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...

— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!

Os loucos por amor eram três ou quatro, mas dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.

Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício. —A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado – e acrescentava –, com o único fim de dizer também uma chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.

Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.


CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ

Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto – os olhos, que eram a sua feição mais insinuante –, negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:

— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu – um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:

— “Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; doulhe o Rio de Janeiro, e consola-se”. E porque era homem estudioso tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.

—Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.

— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.

— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

—Quem diria que meia dúzia de lunáticos...

D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

— Deus sabe o que faz!

Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.

— Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras. 


CAPÍTULO IV - UMA TEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã – eram passadas três semanas –, estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

—Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: —“Anda, bem feito, quem te mandou  consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!”—E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.

— Estou muito contente, disse ele.

— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula. O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

—Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; – ou por meio de matraca.

Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar às ruas do povoado, com uma matraca na mão.

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam – um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores a – aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde – desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.

— Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele. Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

— Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

A ciência contentou-se em estender a mão à teologia – com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.


CAPÍTULO V - O TERROR

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.

— Impossível!

— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.

— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem *usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — “Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga”. Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida. — “Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu”. Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.

—Agora espero que... – pensou ele sem concluir a frase.

Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis –ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que...

— Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.

— Não?

— Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.

A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n’alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga: —“Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.

Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.

A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.

— Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

— Há coisa, pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais – a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas – e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara. Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro – um simples albardeiro, Deus do céu!

— Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.

— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa...

— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

— Não?

— Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra. —E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite.

Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava a seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de Itaguaí; redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.

— A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas – duas ou três de consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva – ou quase toda – que algumas semanas antes partira de Itaguaí. O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito – balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte –, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes – porque o eminente confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo – D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não via desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas – feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, demais, sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...

— A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.

— Sim?

— É verdade. Lá está o Mateus...

— O albardeiro?

— O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...

— Tudo isso doido?

— Ou quase doido, obtemperou padre.

— Mas então?

O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.

— Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.

Três horas depois cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus”, disse ele, “depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista”.

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico – ou que o adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta ideia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a ideia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o “dragão aspérrimo do Nada” esmagado pelas “garras vingadoras do Todo”; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.

— Devemos acabar com isto!

— Não pode continuar!

— Abaixo a tirania!

— Déspota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se – e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história – note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava: — é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.

— Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio. E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que dizendo-se taciturnos ou alegando andar com pressa mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:

La bocca sollevò dal

fiero pasto Quel

“seccatore”...

mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.


CAPÍTULO VI - A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

—Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista...

— É falso! interrompeu o presidente.

— Falso?

— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde – “essa Bastilha da razão humana” – expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde – “Bastilha da razão humana” – achou-a tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

— Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado: — Bastilha da razão humana!

Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica – e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita – visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde – dada a diferença de Paris a Itaguaí – podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda – um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro – e não quis crer.

— Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.

— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.

— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado.

— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e...

— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.

— Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais.

D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

— Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas. O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero. — Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então.

— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

— Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

— Não entendo.

— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.

Disse isto o alienista e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação e quis bradar-lhes: — Canalhas! covardes! – mas conteve-se e rompeu deste modo:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.

— Vamos! bradou Porfírio, agitando o chapéu.

— Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.


CAPÍTULO VII - O INESPERADO

 

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões – qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram – passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não desanimou: — Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo. — Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.

Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de – “Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo”.  Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:

“Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! Não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua

Majestade e do povo Porfírio Caetano das

Neves”.

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

— Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:

— Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.


CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

 

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo – foi a denominação dada à casa da Câmara – com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. —Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: – a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão, é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra.

Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.

— Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

— Vai prendê-lo, pensou o boticário.

Uma ideia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava.

Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.


CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS

 

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde.

— Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto – por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...

— O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

— Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

— Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.

— Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.

— Dois lindos casos!

— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:

— ...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo...

— Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

— Dois lindos casos! murmurou o alienista.


CAPÍTULO X – RESTAURAÇÃO

 

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava “vendido ao ouro de Simão Bacamarte”, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! Era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de “um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade”, etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia.

Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da “demência dos touros”, um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí. A opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

— Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...

Um dia de manhã – dia em que a Câmara devia dar um grande baile – a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.

— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. — Que tem? perguntei-lhe. — Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito! — Pois leve o de safira. — Ah! mas onde fica o de granada? — Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo.

O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de “mania santuária”, não incurável e em todo caso digno de estudo.

— Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.

E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe – menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.

Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.


CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

 

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

— Todos?

— Todos.

— É impossível; alguns sim, mas todos...

— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara.

De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: a–1º: que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.


CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º.

 

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo “provado tudo”, como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio: – ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; – adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor e perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho.

— É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.

Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico – “cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra”.

— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.

Entretanto, a Câmara que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

— A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.

— Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

— O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez  esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

— Então parece-lhe...?

— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.

Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores cubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.


CAPÍTULO XIII - PLUS ULTRA!

 

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.

Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas – graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.

— Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos, estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.

— Realmente, é admirável! Dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

— Por que é que o Crispim não vem visitar-me: dizia ela todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:

— Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

— Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações cotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: – só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:

— Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim – ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: – não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

— Sim, há de ser isso, pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

— Nenhum defeito?

— Nenhum, disse em coro a assembleia.

— Nenhum vício?

— Nada.

— Tudo perfeito?

— Tudo.

— Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembleia insistiu; o alienista resistiu; fnalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador:

— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

— A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

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