Os cem contos que amei ler II (Mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.
21. Missa do galo (Machado de Assis)
22. O homem que sabia javanês (Lima Barreto)
23. O colocador de pronomes (Monteiro Lobato)
24. O pirotécnico Zacarias (Murilo Rubião)
25. O dinossauro (Augusto Monterroso)
26. A metamorfose às avessas (Paulo Mendes Campos)
27. O amor é uma falácia (Max Schulman)
28. Bugio moqueado (Monteiro Lobato)
29. A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro (Rubem Fonseca)
30. Os funerais da Mamãe Grande (Gabriel Garcia Marquez)
31. A Mboitatá (João Simões Lopes Neto)
32. A parasita azul (Machado de Assis)
33. A cortina carmesim (Jules Barbey d'Aurevilly)
34. O destino dos filhos de Lir (Lenda celta-cristã irlandesa)
35. A cartomante (Machado de Assis)
36. As formigas (Lygia Fagundes Telles)
37. Onze de Maio (Rubem Fonseca)
38. A tapera (Coelho Neto)
39. Gringuinho (Samuel Rawet)
40. Antes da ponte Rio-Niterói (Clarice Lispector)
Missa do galo
Machado de Assis
Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora,
há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que
eu iria acordá-lo à meia-noite.
A
casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em
primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a
mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro,
meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada
da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A
família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes
velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a
casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao
Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a
sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se,
saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era
um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do
marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a
princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se,
acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa
Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente
suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado,
sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que
trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus
me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto
era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não
dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não
soubesse amar.
Naquela
noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já
devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver “a missa
do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala
da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem
acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu
levaria outra, a terceira ficava em casa.
—
Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de
Conceição.
—
Leio, D. Inácia.
Tinha
comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio
do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da
sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei
ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em
pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do
que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem
dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio
acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à
de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de
Conceição.
—
Ainda não foi? Perguntou ela.
—
Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
—
Que paciência!
Conceição
entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco,
mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não
disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na
cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se
a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
—
Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a
um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de
dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que
valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que
talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir
ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
—
Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
—
Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar
sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse
quando me viu.
—
Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
—
Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
—
Justamente: é muito bonito.
—
Gosta de romances?
—
Gosto.
— Já
leu a Moreninha?
— Do
Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu
gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que
você tem lido?
Comecei
a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no
espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar
de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los.
Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em
seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o
queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os
grandes olhos espertos.
—
Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E
logo alto:
— D.
Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
—
Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo.
Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já
tenho feito isso.
—
Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que
seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
—
Que velha o quê, D. Conceição?
Tal
foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos
demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou
para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta
do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma
impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem
lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela
noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a
posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de
permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver
esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa
do galo na Corte, e não queria perdê-la.
— É
a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
—
Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana
santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo
Antônio...
Pouco
a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o
rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram
naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do
que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse
comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram
tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A
presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que
pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à
boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou
tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que
luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas
escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar
interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
—
Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E
não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas
caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os
dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito
séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de
lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e
pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em
sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas.
Conceição disse baixinho:
—
Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão
cedo não pegava no sono.
— Eu
também sou assim.
— O
quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui
sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da
coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Há
ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na
cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.
—
Foi o que lhe aconteceu hoje.
—
Não, não, atalhou ela.
Não
entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas
do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque
acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e
afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A
conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem
pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava
outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em
quando, reprimia-me:
—
Mais baixo, mais baixo...
Havia
também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os
olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se
ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim
embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se
apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem
truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho
frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda,
ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis
levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar
sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um
arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara
lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé,
falou de duas gravuras que pendiam da parede.
—
Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho
era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um
representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres.
Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
—
São bonitos, disse eu.
—
Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas
imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De
barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
—
Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e
naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa
de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa
assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa
Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se
pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A ideia
do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis
dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que
ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha
alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e
moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio,
reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando
cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de
família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me
contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já
agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma
atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as
paredes.
—
Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei,
para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer
que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a
conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um
sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando
não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo.
Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos
a ficar por algum tempo, – não posso dizer quanto, – inteiramente calados. O
rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou
daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição
parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de
fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!”.
— Aí
está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir
acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já
serão horas? perguntei.
—
Naturalmente.
—
Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
—Vá,
vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
E
com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando
mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja.
Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e
o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao
almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a
curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna,
sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para
Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha
morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a
encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.
(In:
Obra completa,
vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 – Publicado originalmente em 1893 e
incluído na primeira edição de Páginas
recolhidas, Rio de Janeiro: Editora Garnier, 1899.)
***
O homem que sabia javanês
Lima Barreto
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu
amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às
respeitabilidades, para poder viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando
estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel,
para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de
feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado,
embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da
conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
— Tens levado uma vida bem engraçada,
Castelo!
— Só assim se pode viver... Isto de uma
ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas?
Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!
— Cansa-se; mas, não é disso que me
admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste
Brasil imbecil e burocrático.
— Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se
podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de
javanês!
— Quando? Aqui, depois que voltaste do
consulado?
— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado
cônsul por isso.
— Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
— Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa,
enchemos os copos, e continuei:
— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio
estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de
pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte: “Precisa-se
de um professor de língua javanesa. Cartas, etc.” Ora, disse cá comigo, está
ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro
palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a
imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros
desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca
Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu
ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de
consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei
sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago
de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo
maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres
derivados do velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie
dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em
consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei
pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam
hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos
jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e
habituar a mão a escrevê-los.
À noite, quando pude entrar em casa
sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda
continuei no quarto a engolir o meu “a-b-c” malaio, e, com tanto afinco levei o
propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.
Convenci-me que aquela era a língua
mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o
encarregado dos aluguéis dos cômodos:
— Senhor Castelo, quando salda a sua
conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais
encantadora esperança:
— Breve... Espere um pouco... Tenha
paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
Por aí o homem interrompeu-me:
— Que diabo vem a ser isso, Senhor
Castelo?
Gostei da diversão e ataquei o
patriotismo do homem:
— É uma língua que se fala lá pelas
bandas do Timor. Sabe onde é?
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se
da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
— Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi
dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe
isso, Senhor Castelo?
Animado com esta saída feliz que me
deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente
propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo
Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus
estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar
o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou
se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que
ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma
carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de
Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não
te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal
javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também
perguntar e responder “como está o senhor?” – e duas ou três regras de
gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.
Não imaginas as grandes dificuldades
com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil –
podes ficar certo – aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com
maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da
casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha
vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
Era uma casa enorme que parecia estar
deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau
tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia
haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado,
daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali,
como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança
vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as
begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores
mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano,
cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de
velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia uma galeria de
retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em
imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes
leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à
balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais
antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de
porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua
fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar,
diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a
sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa.
Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando
veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar.
Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um
crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento
alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.
— Eu sou, avancei, o professor de
javanês, que o senhor disse precisar.
— Sente-se, respondeu-me o velho. O
senhor é daqui, do Rio?
— Não, sou de Canavieiras.
— Como? fez ele. Fale um pouco alto, que
sou surdo.
— Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti
eu.
— Onde fez os seus estudos?
— Em São Salvador.
— E onde aprendeu o javanês? indagou
ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas
imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês.
Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas
proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele
que aprendi javanês.
— E ele acreditou? E o físico? perguntou
meu amigo, que até então me ouvira calado.
— Não sou, objetei, lá muito diferente
de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele
basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem
que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches,
até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo
inteiro.
— Bem, fez o meu amigo, continua.
— O velho, emendei eu, ouviu-me
atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de
fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
— Então está disposto a ensinar-me
javanês?
A resposta saiu-me sem querer:
— Pois não.
— O senhor há de ficar admirado, aduziu
o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer
coisa, mas...
— Não tenho que admirar. Têm-se visto
exemplos e exemplos muito fecundos...?
— O que eu quero, meu caro senhor....
— Castelo, adiantei eu.
— O que eu quero, meu caro Senhor
Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou
neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou.
Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha
grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em
agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô,
chamou meu pai e lhe disse: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês.
Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o
tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o
fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o
entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz”. Meu pai, continuou o velho
barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da
morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz
da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a
esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto
desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me 1embrei do
talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os
meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo,
é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho
se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria
ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e
explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha
casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de
saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um
in-quarto antigo, encadernado em
couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a
folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda
umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das
histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que,
não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta
consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de
quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos
as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o
tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira
lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a
distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto
levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da
matéria: aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí
nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não
se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar
assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor
de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão
moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!”
O marido de Dona Maria da Glória (assim
se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso;
mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu
javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses,
desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não,
um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha
que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e
cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de
javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo
do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...
— Ficava extático, como se estivesse a
ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de
presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de
vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em
Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a
crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos;
mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que
soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão
me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na
diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância,
o meu aspecto tagalo.
— “Qual! retrucava ele. Vá, menino; você
sabe javanês!” Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com
diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de secção: “Vejam
só, um homem que sabe javanês – que portento!”.
Os chefes de secção levaram-me aos
oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com
inveja ou admiração. E todos diziam: “Então sabe javanês? É difícil? Não há
quem o saiba aqui!”
O tal amanuense, que me olhou com
ódio, acudiu então: “É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?”. Disse-lhe
que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as
mãos às cadeiras, concertou o pince-nez
no nariz e perguntou: “Então, sabe javanês?” Respondi-lhe que sim; e, à sua
pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. “Bem,
disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se
presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga,
mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica
adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai
representar o Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o
Max Müller, e outros!”
Imagina tu que eu até aí nada sabia de
javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de
sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o
livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade
conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas
maleo-polinésicas; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido,
não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas
esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the
English-Oceanic Association, Archivo Glottologico
Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados
apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês.” Nas
livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal
jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais
citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de
entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de quatro
colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...
— Como, se tu nada sabias? interrompeu-me
o atento Castro.
— Muito simplesmente: primeiramente,
descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de
geografias, e depois citei a mais não poder.
— E nunca duvidaram? perguntou-me ainda
o meu amigo.
— Nunca. Isto é, uma vez quase fico
perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só
falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia.
Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia,
naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças
à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia
de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês – uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e
lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões
preparatórias. Inscreveram-me na secção do tupi-guarani e eu abalei para Paris.
Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro
de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o
presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela secção; não conhecia os
meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava
naturalmente indicada a secção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até
hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar,
conforme prometi.
Acabado o congresso, fiz publicar
extratos do artigo do Mensageiro de Bâle,
em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um
banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira,
inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda
a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro.
Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma
ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois,
convidava-me para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado
cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de
aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
— É fantástico, observou Castro,
agarrando o copo de cerveja.
— Olha: se não fosse estar contente,
sabes que ia ser?
— Que?
— Bacteriologista eminente. Vamos?
— Vamos.
(Publicado originalmente na Gazeta da Tarde, Rio, 28/04/1911)
***
O colocador de pronomes
Monteiro Lobato
Aldrovando
Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante sessenta
anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal,
vítima dum novo erro de gramática.
Mártir da
gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura
e bem merecida canonização,
Havia em Itaoca um
pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e
três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns
acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as
suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha
mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do
escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga,
madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era
homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da
câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago
medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos
enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente
namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à
moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas.
Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que
havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a
entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia
de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela…
Sapecado a medo num
velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou…
Escrevera nesse
bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e
reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo
bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o
bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou
chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas,
explicou.
Apesar disso o moço
veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os
pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório,
fechou a carranca e disse:
– A família
Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural,
não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor
deslize.
Parou. Abriu uma
gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
– É sua esta peça
de flagrante delito?
O escrevente, a
tremer, balbuciou medrosa confirmação.
– Muito bem!
Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia
de o declarar… Pois agora…
O escrevente, por
instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua,
sondando uma retirada estratégica.
– … é casar!
Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente
ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si,
comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
– Beijo-lhe as
mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo
com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o
velho cortou-lhe o fio das expansões.
– Nada de frases,
moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para
dentro, gritou:
– Do Carmo! Venha
abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou
seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
– Laurinha, quer o
coronel dizer…
O velho fechou de
novo a carranca.
– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…
– Oh, coronel…
– … ou a preta
Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente,
vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz.
Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no
ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.
– Os pronomes, como
sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de
quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga
possível.
O escrevente ergueu
os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada
a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta
nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto
o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
– Deus vos abençoe,
meus filhos!
No mês seguinte, e
onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o
conspícuo sabedor de língua que durante cinquenta anos a fio coçaria na
gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez anos
não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em
tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mais a caxumba e a catapora. Mais
tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções
de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas
entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando
apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o
latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo,
afinal…
Deixêmo-lo, porém,
evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado
ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de
trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado,
magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez
horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a
fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua
vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde
cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna.
Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de
Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão
Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade
em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores
na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre
braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os
alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava
os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época
viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas
florestas de Bernardes.
Aldrovando nada
sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho
conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves
Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando
esfogueteava-o com apóstrofes:
– Salta fora,
regionalismo de má sonância!
A língua lusa
era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí
para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu
barbaresco.
– A ingresia
d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está
para o corpo vivo.
E suspirava,
condoído dos nossos destinos:
– Povo sem língua!…
Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…
E não lhe
objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do
povo.
– Língua? Chama
você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses
galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
E, baixando as
cangalhas, lia:
– Teve lugar ontem…
É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o
divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!
– … no Trianon… Por
que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem
ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos
é que são, tarelos!
E suspirava deveras
compungido.
– Inútil
prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas
letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma –
Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica
intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me
confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de
má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do
vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma
sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe
ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…
– Mas a evolução…
– Basta. Conheço às
sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos –
pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de
França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira
escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao
molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distintas: a
estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em
apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da
corrupção.
Abriu campanha com
memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do
idioma.
– “Leis, senhores,
leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos
à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço
merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao
semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…
Os pronomes, aí!
Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada
vê-los por aí pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E
sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da
pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros
congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre
Aldrovando as mais cruéis chalaças.
– Quer que
instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria
autocondenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe foi à
pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a
nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar
de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes
de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”.
Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o
verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra
violentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi
entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos
engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em
pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre
em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos
leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua
colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz,
alegando falta de espaço e coisas.
– Espaço não há
para as sãs ideias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto
recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos
a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias
botinas de elástico.
Tentou em seguida
ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
– Têm-nos os
físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda
espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já
se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova
tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do
apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se
filologicamente.
Ele, todavia, não
esmoreceu.
– Experimentemos
processo outro, mais suasório.
E anunciou a
montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”.
Quem tivesse um
autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se
com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma,
nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a ideia, e
logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a
consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram
as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais
reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.
– Professor, v. s.
enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória
em latim…
Aldrovando
empertigou-se.
– Pois, amigo,
errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.
Pouco durou a
Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no
chafurdeiro da corrupção…
O rosário de
insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.
– Hei-de influir na
minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e
corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!
E foi-lhes “empós”,
Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua.
Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os
melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o
ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos”
– escoicinhava a santa gramática.
– Amigo, disse-lhe
pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és.
Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…
O ferreiro pôs de
lado o malho e entreabriu a boca.
– Mas da boa sombra
do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela
tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em
nome do asseio gramatical, que o expunjas.
– ? ? ?
– Que reformes a
tabuleta, digo.
– Reformar a tabuleta?
Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?
– Fisicamente, não.
A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro
não entendia nada de nada.
– Macacos me lambam
se estou entendendo o que v. s. diz…
– Digo que está a
forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a
forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.
O ferreiro abriu o
resto da boca.
– O sujeito sendo
“cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se
cavalos!”
– Ahn! Respondeu o
ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …
– … que “ferra-se
cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.
– V. S. me perdoe,
mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da
tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos
– Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e
ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e
entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu
os olhos para o céu e suspirou.
– Ferras cavalos e
bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez
mil réis pela admissão dum “m” ali…
– Se V. S. paga…
Bem empregado
dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de
acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas
as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela.
Por mal seu, porém,
não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios
na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres
e lá raspou o “m” do professor.
A cara que
Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou
furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o
ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.
– Chega de
caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu.
E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua
meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
– “Sancta
simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das
consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de
trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as
lágrimas, chorou…
O mundo estava
perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do
ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças
para a continuação da guerra.
– Não hei-de
acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita
ciência que hei acumulado.
E Aldrovando
empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos.
Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais
claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz
nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à
obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada
um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os
casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria!
O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…
Pronto o primeiro
tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das
chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o
apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de
gordos proventos pecuniários.
Calculava em
oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia
por cinquenta. E cinquenta contos para um velho celibatário como ele, sem
família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em
empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda,
a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara
pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as
mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…
Que vinha vindo mas
não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa
miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
– Não me vêm a mim?
Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em via
sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?”.
Aldrovando, com a
morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas
resistências.
– Fá-la-ei imprimir
à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e
irei até ao fim. Bofé!
Para lugar era
mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado
Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de
Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua
ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra
salvadora.
Disse e fez.
Passou esse período
de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro
compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia
igual.
Dedicou-o a Fr. Luz
de Souza:
À memória daquele
que me sabe as dores,
O Autor.
Mas não quis o
destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum
pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente
havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever
doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram,
porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que
os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a
seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias
da avultada edição.
Mas não
antecipemos.
Pronta a obra e
paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o
pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da
língua.
A grande ideia do
livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes
– engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de
carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914? da sintaxe,
limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A excelência dessa
regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de
modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções
hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se injetasse
ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre
do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no
escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável,
haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose
suficiente para libertar o mundo do infame sujeito.
Que glória!
Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a
primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas
empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um
deles pediu:
– Me dá um
mata-bicho, patrão!
Aldrovando
severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um
exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.
– Toma lá. O mau
bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a
leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não se
fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
– Isto no “sebo”
sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram,
Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de
lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu
o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos
deram com a horrenda cinca:
“daquele QUE
SABE-ME as dores”.
– Deus do céu! Será
possível?
Era possível. Era
fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo
relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo
– “que sabe-me”…
Aldrovando não
murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor –
dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel
uns momentos.
Depois empalideceu.
Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima
ânsia.
Ergueu os olhos
para Frei Luiz de Souza e murmurou:
– Luiz! Luiz! Lamma
Sabachtani?!
E morreu.
De que não sabemos
– nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com
Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da
Colocação dos Pronomes.
Paz à sua alma.
[1920]
(In: PIMENTEL, O. Antologia de contos. Rio: Livraria
Cultural, 1961).
***
O pirotécnico Zacarias
Murilo Rubião
“E se levantará pela tarde sobre ti uma luz como a do meio-dia; e
quando te julgares consumido, nascerás como a estrela-d’alva.” (Jó 11,17)
Raras são as vezes que, nas
conversas de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta
pergunta. Teria morrido o pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são
divergentes. Uns acham que estou vivo — o morto tinha apenas alguma semelhança
comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao
rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa
de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há os que
afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o cidadão
existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém muito parecido
com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se
Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado. A única pessoa que poderia dar
informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo
porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente.
Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular uma
palavra.
Em verdade morri, o que vem de
encontro à versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não
estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do
que anteriormente.
A princípio foi azul, depois
verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um
vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com
pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar
branco, veio um automóvel e me matou.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Presente!
Senti rodar-me a cabeça, o corpo
balançar, como se me faltasse o apoio do solo.
Em seguida fui arrastado por uma
força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas ramagens
retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos.
Alcancei mais adiante, com as
mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande velocidade por entre
elas, sem queimá-las, todavia.
— “Meus senhores: na luta vence o
mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao
tempo tirem os seus chapéus!”
(Ao meu lado dançavam fogos de
artifício, logo devorados pelo arco-íris.)
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Não está?
— Tire a mão da boca, Zacarias!
— Quantos são os continentes?
— E a Oceania?
Dos mares da China não mais virão
as quinquilharias.
A professora magra, esquelética,
os olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas
eram compridas, tão longas que obrigavam D. Josefina a ter os pés distanciados
uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de barbante, quase
encostada no teto.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Meninos, amai a verdade!
A noite estava escura. Melhor,
negra. Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu.
Caminhava pela estrada. Estrada
do Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio.
As moças que vinham no carro
deram gritos histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram
baixo, curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o
melhor destino a ser dado ao cadáver.
A princípio foi azul, depois
verde, amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um
vermelho compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com
pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor.
Sem cor jamais quis viver. Viver,
cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausentes de homens.
Havia silêncio, mais sombras que silêncio, porque os rapazes não mais discutiam
baixinho. Falavam com naturalidade, dosando a gíria. Também o ambiente
repousava na mesma calma e o cadáver — o meu ensanguentado cadáver — não
protestava contra o fim que os moços lhe desejavam dar.
A ideia inicial, logo rejeitada,
consistia em me transportar para a cidade, onde me deixariam no necrotério.
Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza, prevaleceu a
opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia ainda o inconveniente
das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto. (Neste ponto eles
estavam redondamente enganados, como explicarei mais tarde.)
Um dos moços, rapazola forte e
imberbe — o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e
aflito no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas na
estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram importância à
proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho — assim lhe chamavam
— e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver do que pelas
lindas pequenas que os acompanhavam.
O rapazola notou a bobagem que
acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a
assoviar, visivelmente encabulado. Não pude evitar a minha imediata simpatia
por ele, em virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada aos que
decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam indistintamente
defuntos e vivos. (Este argumento não me ocorreu no momento.) discutiram em
seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício,
um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue,
lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais
adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a
polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.
Mas aquele seria um dos poucos
desfechos que não me interessavam. Ficar jogado em um buraco, no meio de pedras
e ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável.
E ainda: o meu corpo poderia, ao
rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação, terra e pedregulhos.
Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo e o meu
nome não ocuparia as manchetes dos Jornais.
Não, eles não podiam roubar-me
nem que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da cidade. Precisava
agir rápido e decidido:
— Alto lá! Também quero ser
ouvido! Jorginho empalideceu, soltou um grito surdo, tombando desmaiado,
enquanto os seus amigos, algo admirados por verem um cadáver falar, se
dispunham a ouvir-me.
Sempre tive confiança na minha
faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela
força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia
qualquer disputa dependente de argumentação segura e irretorquível.
A morte não extinguira essa
faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate, no
qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem
encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa
da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação, sentiam
a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos
predicados geralmente atribuídos aos vivos.
Se a um deles não ocorresse uma
sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha
incluir-me no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu
atropelamento.
Entretanto, outro obstáculo nos
conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes.
Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O
mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula
conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para
melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de
Jorginho, que me prontifiquei a fazer rapidamente.
Depois de certa relutância em
abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres, estas já
restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera enfrentar
com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que se perdesse tempo
fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa.
Do que aconteceu em seguida não
guardo recordações muito nítidas. A bebida que antes da minha morte pouco me
afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente. Pelos meus
olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos absurdos, cones
e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios, lírios
transformados em mãos. E a ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me o pescoço
com o corpo transmudado em longo braço metálico.
Ao clarear o dia saí da
semiletargia em que me encontrava. Alguém me perguntava onde eu desejava ficar.
Recordo-me que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam ser
impossível, pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti diversas vezes a
palavra cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente movesse os
lábios, procurando ligar as palavras às sensações longínquas do meu delírio
policrômico.) Por muito tempo se prolongou em mim o desequilíbrio entre o mundo
exterior e os meus olhos, que não se acomodavam ao colorido das paisagens
estendidas na minha frente. Havia ainda o medo que sentia, desde aquela
madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu corpo. Não fosse o
ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar
a ambição de construir uma nova existência. Tinha ainda que lutar contra o
desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a buscar,
ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que cercava o
meu falecimento.
Fiz várias tentativas para
estabelecer contato com meus companheiros da noite fatal e o resultado foi
desencorajador. E eles eram a esperança que me restava para provar quão real
fora a minha morte.
No passar dos meses, tornou-se
menos intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de
convencer os amigos que Zacarias que anda pelas ruas da cidade é o mesmo
artista pirotécnico de outros tempos, com a diferença que aquele era vivo e
este, um defunto. Só um pensamento me oprime: que acontecimentos o destino
reservará a um morto se os vivos respiram uma vida agonizante? E a minha
angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a minha capacidade de amar,
discernir as coisas, é bem superior à dos seres que por mim passam assustados.
Amanhã o dia poderá nascer claro, o sol brilhando como nunca brilhou. Nessa
hora os homens compreenderão que, mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a
minha existência se transmudou em cores e o branco já se aproxima da terra para
exclusiva ternura dos meus olhos.
[1947]
(In: O pirotécnico
Zacarias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006).
A
metamorfose às avessas
Paulo
Mendes Campos
Ao acordar num oco de pau uma bela manhã, um inseto viu-se transformado em homem enorme. Ainda sem consciência do que acontecera, tentou voar a uma árvore florida: os membros desajeitados golpearam ridiculamente o ar e as mãos estalaram de encontro às coxas. Então viu que que estava nu e sentiu vergonha e medo. Com folhas e cipó fez seu primeiro trabalho, uma tanga mal alinhavada.
Reduzido a duas pernas, a posição vertical o fatigava: tentou caminhar sobre os quatro membros sem notar nenhum alívio, ferindo o joelho e as palmas das mãos nas pedras do caminho. Pesava-lhe a cabeça, entronizada em um pescoço longo e sem firmeza, apercebendo lá de dentro um tumulto, como um bando de insetos invisíveis, querendo gerar em dor moral o primeiro pensamento. E criado o primeiro pensamento – este: sou o rei dos animais – sentiu um cansaço imensamente humano. Mas, mesmo que ferido pelo que julgava um ponto de partida para o entendimento da realidade, viu que o tumulto interior aumentava: era um zumbido de ideias confusas e fragmentadas, a exigir do antigo inseto uma teoria geral do universo. Querer entender o mundo era isso: reagir à insegurança fatal que o ameaçava, como se um mosquito fosse compelido a elaborar a filosofia do sapo que o devora. E o novo homem, pela primeira vez, sentiu nostalgia da condição de inseto, quando seria devorado pelo sapo com a naturalidade inconsciente e doce das leis cósmicas. Uma consciência incompleta era a doença que roía o homem, como se víssemos não o cão inteiro, mas a metade do cão, não a ideia inteira, não a palavra inteira, mas as metades da ideia e da palavra.
O inseto que virou
homem foi caminhando com esforço, encontrando montanhas e vales, rios e
florestas, pedras e pântanos, luz e sombra, o vento exaltado e a mudez do ermo.
Tudo isso passava pelas antenas de seus novos sentidos humanos e prosseguia
pela rede elétrica de seus nervos, em choques alternados de excitação e
abatimento. Ao mal-estar que resultava dessa inelutável sequência deu o nome de
alma. E a alma, que ele não sabia o que era ou onde ficava, teve a necessidade
insuportável de abrigar-se na mão de Deus. Como Deus não fosse visível, ele deu
o nome de Deus às coisas. Mas ficou insatisfeito porque estava separado das
coisas, já que era levado a procurar entendê-las. Sem Deus, mas precisando de
Deus, ele continuou, desamparado e vazio, sentindo fome, tristeza e desejo
sexual ao cair da noite. Tentou comer um monte de esterco, como fazia nos seus
tempos de inseto, e a repugnância lhe provocou o vômito. Uma coisa dentro de si
mesmo o separava das outras coisas do mundo: era um pobre homem, um homem só,
sob o calor distante das estrelas. Adormeceu muito tarde, depois de pensar
muito na condição humana, apavorado pela morte.
***
O amor é uma falácia
Max Shulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto – era tudo isso. Tinha o cérebro poderoso de um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha – imaginem só – dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Petey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma vaca. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se a alguma idiotice só porque os outros a seguem, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim. EU ERA FRIO e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha o cérebro poderoso de um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento
no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
— Não se mexa. Não tome laxativo. Vou chamar o médico.
— Marmota – balbuciou ele.
— Marmota? – disse eu, interrompendo minha corrida.
— Quero um casaco de pele de marmota – gemeu ele.
Percebi que seu problema não era físico, mas mental.
— Por que você quer um casaco de pele de marmota?
— Eu devia ter adivinhado – gritou ele, dando tapas nas próprias
têmporas. – Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um
idiota, gastei todo meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso
comprar um casaco de pele de marmota.
— Quer dizer – perguntei incrédulo – que estão mesmo usando casacos de
pele de marmota outra vez?
— Todas as Pessoas Importantes da Universidade estão. Onde você tem
andado?
— Na biblioteca – respondi, citando um lugar não frequentado pelas
Pessoas Importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
— Preciso conseguir um casaco de pele de marmota – disse ele, exaltado. –
Preciso.
— Por que, Petey? Veja a coisa racionalmente. Casacos de pele de marmota
são anti-higiênicos. Soltam pêlos. Cheiram mal. São pesados, são feios, são...
— Você não compreende – interrompeu ele com impaciência. – É o que todos
estão usando. Você não quer andar na moda?
— Não – respondi, sinceramente.
— Pois eu, sim – declarou ele. – Daria tudo para ter um casaco de pele de
marmota. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo
vapor.
— Tudo? – perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
— Tudo – confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar um
casaco de pele de marmota. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante;
estava agora dentro de um malão, no sótão de nossa casa. E, também por acaso,
Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele
tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena, Polly Espy.
Eu há muito desejava Polly Espy. Apresso-me a esclarecer que meu desejo
não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu
não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly Espy para
fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum tempo, estaria me
iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na
vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas
observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e
inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha
certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura
básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer cheia de graças sociais. Tinha o porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. À mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa – um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho – sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu
confiava em que, sob minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos,
valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e
burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
— Petey – perguntei – você ama Polly Espy?
— Acho-a uma boa garota – respondeu – mas não sei se chamaria isso de
amor. Por quê?
— Você – continuei – tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero
dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
— Não. Nos vemos seguidamente, mas saímos os dois com outros
também. Por quê?
— Existe alguém – perguntei – algum outro homem de quem ela goste de
maneira especial?
— Que eu saiba, não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
— Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é
isto?
— Acho que sim. Aonde quer chegar?
— Nada, nada – respondi com inocência, tirando minha mala de dentro
do armário.
— Onde é que você vai? – quis saber Petey.
— Passar o fim-de-semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
— Escute – disse Petey, apegando-se com força ao meu braço – em casa,
será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para
comprar um casaco de pele de marmota?
— Posso até fazer mais que isso – respondi, piscando o olho
misteriosamente. Fechei a mala e saí.
— Olhe – disse a Petey, ao voltar na segunda-feira de manhã. Abri a mala
e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante do
seu Stutz Bearcat em 1925.
— Santo Pai! – exclamou Petey com reverência. Mergulhou as mãos no pelo do casaco, e depois o rosto. – Santo Pai! – repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
— Você gostaria de ficar com ele? – perguntei.
— Sim! – gritou ele, apertando a coisa sebosa contra o peito. Em
seguida, seus olhos tomaram um ar precavido. – O que você quer em troca?
— A sua pequena – disse eu, não desperdiçando palavras.
— Polly? – sussurou Petey, hororizado. – Você quer a Polly?
— Isto mesmo.
Ele jogou o casaco para longe.
— Nunca! – declarou, resoluto.
Dei de ombros.
— O. K. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando
Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para
o casaco com a expressão de uma criança desamparada à vitrina de uma
confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois
voltava a olhar para o casaco, com uma expressão ainda maior de desejo no
rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia
e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou
mais; ficou olhando para o casaco com pura lascívia.
— Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly – balbuciou. – Ou
mesmo a namorando, ou coisa parecida.
— Isso mesmo – murmurei.
— Afinal, Polly significa o quê para mim, ou eu para ela?
— Nada – respondi.
— Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só isto.
— Experimente o casaco – disse eu.
Obedeceu. O casaco lhe cobria as orelhas e caía até os sapatos. Ele
parecia um monte de marmotas mortas.
— Serve perfeitamente – disse contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão:
— Negócio feito?
Ele engoliu em seco.
— Feito – disse, e apertou minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. O primeiro programa
teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me
esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
— Puxa, que jantar bacana! – disse ela, quando saímos do
restaurante.
Fomos ao cinema.
— Puxa, que filme bacana! – disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
— Puxa, foi um programa bacana! – disse ela, ao me desejar boa
noite.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca e um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica.
Acontece que, como estudante de Direito, eu frequentava na ocasião aulas de
Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
— Polly – disse eu, quando a fui buscar para nosso segundo programa. –
Esta noite vamos até o parque conversar.
— Oh, que bacana! – respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém
tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da Universidade, nos sentamos
debaixo de um velho carvalho, e ela me olhou cheia de expectativa.
— Sobre o que vamos conversar? – perguntou.
— Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
— Bacana!
— A Lógica – comecei, limpando a garganta – é a ciência do pensamento.
Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias
mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
— Bacana! – exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
— Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto
Simpliciter.
— Vamos – animou-se ela, piscando os olhos com animação.
— Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa
generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos
devem se exercitar.
— Eu estou de acordo – disse Polly, fervorosamente. – Quer dizer, o
exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
— Polly – disse eu, com ternura – o argumento é uma falácia. Dizer que
o exercício é bom, é uma generalização não qualificada. Por
exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm
ordens de seus médicos para não se exercitarem. É preciso qualificar a
generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou
é bom para a maioria das pessoas. Senão, está-se
cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
— Não – confessou ela. – Mas isto é bacana. Quero mais. Quero mais!
— Será melhor se você parar de puxar a manga do meu casaco – disse eu e,
quando ela parou, continuei: – Em seguida, abordaremos uma falácia chamada
Generalização Apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não
sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir
que ninguém na Universidade sabe falar francês.
— É mesmo? – espantou-se Polly. – Ninguém?
Reprimi a minha impaciência.
— É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há
exemplos suficientes para justificar a conclusão.
— Você conhece outras falácias? – perguntou ela, animada. – Isto é até
melhor do que dançar.
Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não
estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra
coisa senão persistente. Continuei.
— A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: não levemos Bill conosco
ao piquenique. Toda a vez que ele vai junto, começa a chover.
— Eu conheço uma pessoa exatamente assim – exclamou Polly. – Uma moça da
minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda a vez que ela vai junto a um
piquenique...
— Polly – interrompi com energia. – É uma falácia. Não é a Eula Becker
que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você
está incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
— Nunca mais farei isso – prometeu ela, contrita. – Você está brabo
comigo?
— Não, Polly – suspirei. – Não estou brabo.
— Então conte outra falácia.
— Muito bem. Vamos experimentar as Premissas Contraditórias.
— Vamos – gorjeou ela, piscando os olhos alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
Aqui vai um exemplo de Premissas Contraditórias. Se Deus pode fazer
tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que Ele mesmo não conseguirá levantar?
— É claro – respondeu ela imediatamente.
— Mas se Ele pode fazer tudo pode levantar a pedra.
— É mesmo – disse ela pensativa. – Bem, então acho que Ele não pode
fazer a pedra.
— Mas Ele pode fazer tudo – lembrei-lhe.
Ela coçou sua cabeça linda e vazia.
— Estou confusa – admitiu.
— É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem,
não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um
objeto irremovível. Compreendeu?
— Conte outra dessas histórias bacanas – disse Polly entusiasmada.
Consultei o relógio.
— Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para casa, e lá pensará no
que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã à noite.
Depositei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada
fora realmente bacana, e voltei desanimadamente para meu quarto. Petey roncava
sobre sua cama, com o casaco de pele de marmota encolhido a seus pés como um
enorme animal cabeludo. Por alguns segundos, brinquei com a ideia de acordá-lo
e dizer que podia ter sua pequena de volta. Era evidente que meu projeto estava
condenado ao fracasso. A moça tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de
Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem
sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido, que era a mente
de Polly, algumas brasas estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda
conseguisse abaná-las até que flamejassem. As perspectivas não eram das mais
animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob o carvalho, na noite seguinte, disse:
— Nossa primeira falácia desta noite se chama Ad
Misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
— Ouça com atenção – comecei. – Um homem vai pedir emprego. Quando o
patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma
mulher e seis filhos em casa, que a mulher é aleijada, as crianças não têm o
que comer, não têm o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há
carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
— Isso é horrível, horrível! – soluçou.
— É horrível – concordei –, mas não é argumento. O homem não respondeu à
pergunta do patrão sobre suas qualificações. Em vez disso, tentou despertar a
sua compaixão. Cometeu a falácia de Ad Misericordiam, compreendeu?
— Você tem um lenço? – pediu ela, entre soluços.
Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava
os olhos.
— A seguir – disse, controlando o tom da voz – discutiremos a Falsa Analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por que, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
— Pois olhe – disse ela, entusiasmada – esta é a ideia mais bacana que
eu já ouvi há muito tempo.
— Polly, – disse eu, com impaciência – o argumento é falacioso. Os
cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo testes para ver o
que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes
e não se pode fazer analogia entre elas.
— Continuo achando a ideia bacana – disse Polly.
— Bolas! – murmurei. E prossegui, persistente. – A seguir, tentaremos a
Hipótese Contrária ao Fato.
— Essa parece ser boa – foi a reação de Polly.
— Ouça: se madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica
numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da
existência do rádio.
— É mesmo, é mesmo – concordou Polly, sacudindo a cabeça. – Você viu o
filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me
fez vibrar.
— Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos – disse eu,
friamente – gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie
teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o
descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese
que não é verdadeira e tirar dela conclusão defensável.
— Eles deviam botar o Walter Pidgeon em mais filmes – disse Polly. – Eu
quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite ao que podemos
suportar.
— A próxima falácia é chamada Envenenar o Poço.
— Que bonitinho! – deliciou-se Polly.
— Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levanta e diz: “Meu
oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só palavra do
que ele disser”. Agora, Polly, pense bem. O que está errado?
Via-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um
brilho de inteligência – o primeiro que eu vira – surgiu nos seus olhos.
— Não é justo! – disse ela com indignação. – Não é nada justo. Que
chance tem o segundo homem se o primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo
dele começar a falar?
— Exato! – gritei, exultante – Cem por cento exato! Não é justo. O primeiro homem envenenou o poço antes que os outros pudessem beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
— Ora – murmurou ela, ruborizando de prazer.
— Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É
só pensar, examinar e avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até
agora.
— Vamos lá – disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei
uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar, citei
exemplos, apontei falhas, martelei sem dar tréguas. Era como cavar um túnel. A
princípio, trabalho, suor e escuridão. Não tinha ideia de quando veria a luz ou
mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com as unhas, e
finalmente fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se
alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu
transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a
bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Estava apta a ser minha esposa,
uma anfitrioa perfeita para as minhas muitas mansões, uma mãe adequada para os
meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor pela moça. Muito pelo
contrário. Assim como Pigmalião amara a mulher perfeita que moldara para si, eu
amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro
seguinte. Chegara a hora de mudar nossas relações, de acadêmicas para
românticas.
— Polly – disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob o carvalho –
hoje não falaremos de falácias.
— Puxa! – disse ela, desapontada.
— Minha querida – prossegui, favorecendo-a com um sorriso – hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
— Generalização Apressada – exclamou ela alegremente.
— Perdão – disse eu.
— Generalização Apressada – repetiu ela. – Como é que você pode dizer
que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável aprendera bem suas
lições.
— Minha querida – disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão –
cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro
para saber se ele é bom ou não.
— Falsa Analogia – disse Polly prontamente. – Eu não sou um bolo, sou
uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão divertido. A criança adorável talvez
tivesse aprendido sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o
indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma
pausa, enquanto meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois
comecei:
— Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para mim, é a lua e as estrelas
e as constelações no firmamento. Por favor, minha querida, diga que será minha
namorada, senão minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a
comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei, está liquidado o assunto.
— Ad Misericordiam – disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmalião; era Frankestein, e o meu monstro
me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava
invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
— Bem, Polly – disse, forçando um sorriso – não há dúvida que você
aprendeu bem as falácias.
— Aprendi mesmo – respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
— E quem foi que as ensinou a você, Polly?
— Foi você.
— Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha
querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
— Hipótese Contrária ao Fato – disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
— Polly – insisti, com voz rouca – você não deve levar tudo ao pé da
letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que
aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
— Dicto Simpliciter – brincou ela, sacudindo o dedo em
minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
— Você vai ou não vai me namorar?
— Não vou – respondeu ela.
— Por que não? – exigi.
— Porque hoje à tarde prometi a Petey Bellows que seria a namorada
dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer,
depois de fecharmos negócio, depois de apertar minha mão!
— Aquele rato! – gritei, chutando a grama. – Você não pode sair com ele,
Polly. É um mentiroso, um traidor, um rato.
— Envenenar o Poço – disse Polly. – E pare de gritar. Acho que gritar
também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei minha voz.
— Muito bem – disse. – Você é uma lógica. Vamos olhar as coisas
logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno
brilhante, um intelectual formidável, um homem com o futuro assegurado. E veja
Petey: um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não
no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey
Bellows?
— Posso, sim – declarou Polly. – Ele tem um casaco de pele de
marmota.
(In: O
Especialista e outros contos, org. Charles Sale. Trad. Hamilcar de Garcia,
Sérgio Jockyman e Luís Fernando Veríssimo. Porto Alegre: Ed. Globo, 1968.)
***
Bugio moqueado
Monteiro Lobato
— Uno!
Ugarte…
— Dos!
Adriano…
— Cinco…
Vilabona…
— …
Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte… Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?
— Mucho, Adriano!
Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está
Ugarte com um ponto já feito. Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para
Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida…
— Mucho, Genúa!
Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi
meu jogo perdido, desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir
a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.
“… coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade
pura. Fui testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo
prato…”
Horrendo prato? Aproximei-me dos velhos um pouco mais e
pus-me de ouvidos, alerta.
— “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com o beiço. Este troco miúdo de quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. É cada estirão!…
“Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender
em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e
preço, era esse Coronel Teotônio, do Tremedal.
“Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro —
zaino, ainda me lembro… E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado
nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos,
testa entiotada de rugas, ar de carrasco… Pensei comigo: Dez mortes no mínimo.
Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões… e aquele, ou
muito me enganava ou tinha divisas de general.
“Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze
galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito
“escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes
cometidos.
“Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a
Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava
a invernada de fora.
“Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo
assentado.
“De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da
manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha
vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe
rejeitei o jantar oferecido.
“Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso
prato coberto em que não se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de
engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a
comer por dois.
“Correram assim os minutos.
“Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três
pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e,
como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com certo frenesi. Atenderam-no
desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco
de mulher.
“Sonâmbula?
“Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem
fulgor nos olhos vidrados, cadavérica, dir-se-ia vinda do túmulo naquele
momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sentou-se de cabeça
baixa.
“Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico
do urutu, aquela morta-viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para
arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso —
ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena
o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremo que nem geleia! Foi assim naquele
dia…
“Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou
para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um
petisco preto, que não pude identificar. Ao vê-lo a mulher estremeceu, como
horrorizada.
— “Sirva-se!” disse o marido.
“Não sei porque, mas aquele convite revelava uma tal crueza
que me cortou o coração como navalha de gelo. Pressenti um horror de
tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro
paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os
olhos em certos casarões sombrios sem que os imagine povoados de dramas
horrendos. Falam-me de hienas. Conheço uma: o homem…
“Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o
convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.
— “Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta
coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher.
“Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento
contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente
elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim
uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de
desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou…
“O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de
esperança, o derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num
lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de frequência,
cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um
momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.
“Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por
dentro venenosamente…
“Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num
escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões!
“A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra
para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à
escuridão, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguardávamos o café,
corri-os pelas paredes e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da
despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas
brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa
preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na
testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cortante:
— “É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço…
“Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho
engolir o insulto e calar-me. Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma
pausa, continuou, entre manso e irônico:
— “Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de
bugio moqueado, e ali dentro há um para abastecer este pratinho… Já comeu bugio
moqueado, moço?
— “Nunca! Seria o mesmo que comer gente…
— “Pois não sabe o que perde!… filosofou ele, como um diabo,
a piscar os olhinhos de cobra.
Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava
colocado e Gaspar, com três pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um
“camarote” infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu
não tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez
Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir mas não pude. A estória estava no
apogeu e antes “perder de ganhar” a próxima quiniela do que perder um capítulo
da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o velhote.
“Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma
nova. Fiz cruz na porteira. “Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela
noite adentro.
“Passaram-se anos.
“Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não
dava conta. Empenhado em descobrir um novo auxiliar que o valesse,
perguntei-lhe uma vez:
— “Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?
— “Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não
existe mais…
— “De que morreu?
— “De morte matada. Foi morto a rabo de tatu… e comido.
— “Comido? repeti com assombro.
— “É verdade. Comido por uma mulher.
“A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a
decifração.
— “Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom
para todo serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em…
— “… em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?
— “Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do carrasco era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!…
— “O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo…
— “Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou
que ele… que ele, perdão da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito
alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe.
Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduína, aquela mulata amiga do coronel. Mas,
inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a
chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima… Morreu. E
depois que morreu foi moqueado.
— “???”
— “Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem.
Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho
para a patroa comer…
Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinquenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13…
(In: Obras completas de Monteiro Lobato. 9ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1959, p. 31-40. Publicado originalmente no livro Negrinha, de 1920.)
***
A
arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro
Rubem
Fonseca
Em uma palavra,
a desmoralização era geral.
Clero, nobreza e
povo estavam todos pervertidos.
Joaquim Manuel de Macedo.
Um passeio pela cidade
do Rio de Janeiro (1862-3).
Augusto,
o andarilho, cujo nome verdadeiro é Epifânio, mora num sobrado acima de uma
chapelaria feminina, na rua Sete de Setembro, no centro da cidade, e anda nas
ruas o dia inteiro e parte da noite. Acredita que ao caminhar pensa melhor,
encontra soluções para os problemas; solvitur ambulando, diz para seus botões.
No
tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele pensou em abandonar
tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que havia publicado um livro de
poesia e outro de contos e estava escrevendo um romance de seiscentas páginas,
lhe disse que o verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era
obsceno, não se podia servir à arte e Mammon ao mesmo tempo, portanto era
melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada dia na companhia de águas e esgotos,
e escrevesse à noite. Seu amigo era casado com uma mulher que sofria dos rins,
pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim
cumpria suas obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não
conseguia se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade
grande gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus
a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos,
agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou
que tinha razão, morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza,
antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo,
junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a coragem de
Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da cidade, pediu demissão
da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao trabalho de escrever, e
adotou o nome de Augusto.
Agora
ele é escritor e andarilho. Assim, quando não está escrevendo – ou ensinando as
putas a ler –, ele caminha pelas ruas. Dia e noite, anda nas ruas do Rio de
Janeiro.
Exatamente
às três da madrugada, ao soar, no seu Casio Melody de pulso, a Mit dem Paukeenschlag, de Hayden,
Augusto volta de suas caminhadas para o sobrado vazio onde mora, e senta-se,
depois de dar comida para os ratos, em frente à pequena mesa ocupada quase por
inteiro pelo enorme caderno de folhas pautadas onde escreve seu livro, sob a
grande claraboia, por onde entra um pouco da luz da rua, misturada com luar
quando as noites são de lua cheia.
Em
suas andanças pelo centro da cidade, desde que começou a escrever o livro,
Augusto olha com atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, telhados, portas,
janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não,
buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos
bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas.
Outro
dia entrou pela primeira vez no cinema-templo do pastor Raimundo. Encontrou o
cinema-templo por acaso, o médico do Instituto lhe dissera que um problema na
mácula da sua retina exigia tratamento com vitamina E combinada com selênio e o
remetera imprecisamente para uma farmácia que preparava essa substância, na rua
Senador Dantas, em algum lugar perto da Alcindo Guanabara. Ao sair da farmácia,
e após caminhar um pouco, passou na porta do cinema, leu o pequeno cartaz que
dizia IGREJA DE JESUS SALVADOR DAS ALMAS DAS 8 ÀS 11 DIARIAMENTE e entrou sem
saber por quê.
Todas
as manhãs, das oito às onze, todos os dias da semana, o cinema é ocupado pela
Igreja de Jesus Salvador das Almas. A partir das duas da tarde exibe filmes
pornográficos. À noite, depois da última sessão, o gerente guarda os cartazes
com mulheres nuas e frases publicitárias indecorosas num depósito ao lado do
sanitário. Para o pastor da igreja, Raimundo, e também para o fiéis – umas
quarenta pessoas, na maioria mulheres idosas e jovens com problemas de saúde –
a programação habitual do cinema não tem importância, todos os filmes são, de
qualquer forma, pecaminosos; e todos os crentes da igreja nunca vão ao cinema,
por proibição expressa do bispo, nem para ver a vida de Cristo, na Semana
Santa.
A
partir do momento em que o pastor Raimundo coloca à frente da tela do cinema
uma vela, na verdade uma lâmpada elétrica num pedestal que imita um lírio, o
local torna-se um templo consagrado a Jesus. O pastor espera que o bispo compre
o cinema, como fez em alguns bairros da cidade, e ali instale uma igreja
permanente, vinte e quatro horas por dia, mas sabe que a decisão do bispo
depende dos resultados do trabalho dele, Raimundo, junto aos fiéis.
Augusto
está indo ao cinema-templo naquela manhã, pela terceira vez em uma semana, com
o intuito de aprender a música que as mulheres cantam, Vai embora, vai embora, Satanás, meu corpo não é teu, minha alma não é
tua, Jesus te passou para trás, uma mistura de rock e samba-enredo. Satanás
é uma palavra que o atrai. Há muito ele não entra num local onde as pessoas
rezem ou façam coisa parecida. Lembra-se de quando criança ter ido durante anos
seguidos a uma grande igreja cheia de imagens e pessoas tristes, na Sexta-Feira
da Paixão, levado por sua mãe, que o obrigava a beijar o pé de Nosso Senhor
Jesus Cristo deitado com uma coroa de espinhos na cabeça. Sua mãe morreu. Uma
recordação difusa da cor roxa nunca o abandonou. Jesus é roxo, a religião está
ligada ao roxo, sua mãe é roxa ou era roxo o cetim que forrava o caixão dela?
Mas não há nada roxo naquele templo-cinema com leões-de-chácara que o vigiam de
longe, dois jovens, um branco e um mulato, magros, pequenos, camisa social de
mangas curtas e gravata escura, circulando entre os fiéis e nunca se
aproximando da poltrona dos fundos onde ele está sentado, imóvel, de óculos
escuros.
Quando
cantam Vai embora, Satanás, Jesus te
passou para trás, as mulheres levantam os braços jogando as mãos para trás
sobre as cabeças, como se estivessem empurrando o demônio para longe; os
leões-de-chácara de camisa de manga curta fazem o mesmo; o pastor Raimundo,
porém, segurando o microfone, comanda o coro levantando apenas um braço.
Neste
dia, o pastor fixa sua atenção no homem de óculos escuros, sem uma orelha, no
fundo do cinema, enquanto diz “meus irmãos, quem estiver com Jesus levante as
mãos”. Todos os fiéis levantam as mãos, menos Augusto. O pastor percebe, muito
perturbado, que Augusto permanece imóvel, como uma estátua, os olhos escondidos
pelas lentes escuras. “Levantem as mãos”, repete emocionado, e alguns fiéis
respondem erguendo-se na ponta dos pés e estendendo ainda mais os braços para o
alto. Mas o homem sem orelha não se mexe.
O
pastor Raimundo migrou do Ceará para o Rio de Janeiro quando tinha sete anos,
junto com a família que fugia da seca e da fome. Aos vinte anos era camelô na
rua Geremário Dantas, em Jacarepaguá; aos vinte e seis, pastor da Igreja Jesus
Salvador das Almas. Todas as noites, agradecia a Jesus essa imensa graça. Tinha
sido um bom camelô, não enganava os fregueses, e um dia um pastor, ouvindo-o
vender suas mercadorias de maneira persuasiva, pois sabia falar uma palavra
depois da outra com a velocidade correta, convidou-o a entrar para a Igreja. Em
pouco tempo Raimundo chegou a pastor; agora tem trinta anos, quase se livrou do
sotaque nordestino, adquiriu a fala neutra de certos cariocas, pois assim,
imparcial e universal, deve ser a palavra de Jesus. É um bom pastor, como foi
um bom camelô e um bom filho, pois tomou conta da sua mãe quando ela ficou
paralítica e fazia cocô na cama, até o dia da sua morte. Ele não consegue
esquecer o corpo senil, decadente e moribundo de sua mãe, principalmente as
partes genitais e excretoras, que era obrigado a limpar todos os dias; às vezes
tem sonhos asquerosos com sua mãe e lamenta que ela não tenha morrido de
enfarto aos cinquenta anos, não que ele se lembre de como ela era aos
cinquenta, ele só se lembra da mãe velha e repelente. Por saber dizer com
rapidez e significados corretos uma palavra depois da outra, foi transferido da
Baixada para o centro da cidade. O centro da cidade é um mistério. A Zona Sul
também é trabalhosa, os ricos desprezam a Igreja evangélica, religião de gente
pobre, e na Zona Sul a igreja é frequentada nos dias da semana por velhas e
jovens doentinhos, que são os fiéis mais fiéis, e aos domingos por empregadas,
porteiros, faxineiros, uma gente parda e mal vestida. Mas os ricos são piores
pecadores e precisam ainda mais da salvação do que os pobres. Um dos sonhos de
Raimundo é ser transferido do centro para a Zona Sul e chegar ao coração dos
ricos.
Mas
o número dos fiéis que vão ao cinema-templo não tem aumentado e Raimundo talvez
tenha que ir pregar em outro templo, talvez seja obrigado a voltar para a
Baixada, pois fracassou, não soube levar de maneira convincente a palavra de
Jesus onde a Igreja de Jesus Salvador das Almas mais precisa ser ouvida,
principalmente nos dias de hoje, em que os católicos, com seus templos às
moscas, abandonam suas posturas intelectuais e contra-atacam com o chamado
movimento carismático, reinventando o milagre, recorrendo ao curandeirismo e ao
exorcismo. Eles, os católicos, já tinham voltado a admitir que só existe o
milagre se existir o demônio, o bem dominando o mal; mas ainda era preciso que
percebessem que o demônio não é metafísico. Você pode pegar no demônio, em
certas ocasiões ele parece de carne e osso, mas possui sempre uma pequena
diferença em seu corpo, uma característica insólita; e você pode cheirar o
demônio, ele fede quando está distraído.
Mas
o problema dele, Raimundo, não é com as altas políticas da relação de sua
Igreja com a Igreja católica, este é um problema do bispo; o problema de
Raimundo são os fiéis da sua igreja, a arrecadação periclitante do dízimo. E
ele está inquieto, também, com aquele homem de óculos escuros, sem uma orelha,
que não levantou a mão em apoio a Jesus. Depois que o homem apareceu, Raimundo
passou a sofrer de insônia, a ter dores de cabeça e a emitir gases intestinais
de odor mefítico que queimam seu cu ao serem expelidos.
Esta
noite, enquanto Raimundo não dorme, Augusto, sentado em frente ao seu enorme
caderno de folhas pautadas, anota o que vê ao caminhar pela cidade e escreve
seu livro A arte de andar nas ruas do Rio
de Janeiro.
Ele
se mudou para o sobrado da chapelaria para melhor escrever o primeiro capítulo,
que compreende, apenas, a arte de andar no centro da cidade. Não sabe qual
capítulo será o mais importante, no fim de tudo. O Rio é uma cidade muito
grande, guardada por morros, de cima dos quais pode-se abarcá-la, por partes,
com o olhar, mas o centro é mais diversificado e obscuro e antigo, o centro não
tem um morro verdadeiro; como ocorre com o centro das coisas em geral, que ou é
plano ou é raso, o centro da cidade tem apenas um pequena colina, indevidamente
chamada de morro da Saúde, e para se ver o centro de cima, e assim mesmo mal e
parcialmente, é preciso ir ao morro de Santa Teresa, mas esse morro não fica em
cima da cidade, fica meio de lado, e dele não dá para se ter a menor ideia de
como é o centro, não se veem as calçadas das ruas, quando muito vê-se em certos
dias o ar poluído pousado sobre a cidade.
Em
suas perambulações Augusto ainda não saiu do centro da cidade, nem sairá tão
cedo. O resto da cidade, o imenso resto que somente o satanás da Igreja de
Jesus Salvador das Almas conhece inteiramente, será percorrido no momento
oportuno.
O
primeiro dono do prédio da chapelaria morou lá com a família muitos anos atrás.
Seus descendentes foram alguns dos poucos comerciantes que continuaram morando
no centro da cidade depois da grande debandada para os bairros, principalmente
para a Zona Sul. Desde os anos 40, quase ninguém morava mais nos sobrados das
principais ruas do centro, no miolo comercial da cidade, que podia ser contido
numa espécie de quadrilátero, tendo como um dos lados o traçado da avenida Rio
Branco, o outro uma linha sinuosa que começasse na Visconde de Inhaúma e
continuasse pela Marechal Floriano até a rua Tomé de Souza, que seria o
terceiro lado, e finalmente, o quarto lado, um percurso meio torto que tivesse
início na Visconde do Rio Branco, passasse pela praça Tiradentes e pela rua da
Carioca até a Rio Branco, fechando o espaço. Os sobrados, nessa área, passaram
a servir de depósitos de mercadorias. Como os negócios da chapelaria foram
diminuindo gradativamente a cada ano, pois as mulheres deixaram de usar
chapéus, até mesmo em casamentos, e não havia mais necessidade de um depósito,
pois o pequeno estoque de mercadorias podia ficar todo na loja, o sobrado, que
não interessava a ninguém, ficou vazio. Um dia Augusto passou na porta da
chapelaria e parou para ver os balcões de ferro lavrado em sua fachada, e o
dono, um velho que havia vendido apenas um chapéu naquele semestre, saiu da
loja e veio conversar com ele. O velho disse que ali havia sido a casa do conde
de Estrela, no tempo em que a rua se chamava rua do Cano porque nela passava o
encanamento de água para o chafariz do largo do Paço, largo que depois se
chamou praça D. Pedro II e depois praça Quinze. “A mania que essa gente tem de
mudar os nomes das ruas. Venha ver uma coisa.” O velho subiu com Augusto para o
sobrado e mostrou-lhe uma claraboia cujo vidro era do tempo da construção,
tinha mais de noventa anos. Augusto ficou encantado com a claraboia, com um enorme
salão vazio, com os quartos, com o banheiro de louça inglesa e com os ratos que
se escondiam quando eles passavam. Gostava de ratos; em criança criara um rato
ao qual se afeiçoara, mas a amizade entre os dois se rompera no dia em que o
rato lhe deu uma dentada no dedo. Mas continuava gostando de ratos. Diziam que
os dejetos, os carrapatos e as pulgas dos ratos transmitiam doenças horríveis,
mas ele sempre se dera bem com eles, com exceção daquele pequeno problema da
mordida. Gatos também transmitiam doenças horríveis, dizia-se, e cães
transmitiam doenças horríveis, dizia-se, e seres humanos transmitiam doenças
horríveis, isso ele sabia. “Os ratos nunca vomitam”, Augusto disse para o
velho. O velho perguntou como se arranjavam quando comiam uma comida que lhes
fizesse mal, e Augusto respondeu que os ratos nunca comiam uma comida que lhes
fizesse mal, pois eram muito cuidadosos e seletivos. O velho, que tinha uma
mente arguta, perguntou então como muitos ratos morriam envenenados, e Augusto
explicou que para matar um rato era preciso um veneno muito potente que matasse
com uma pequena e única mordida do roedor e de qualquer maneira não eram muitos
os ratos que morriam envenenados, considerando-se o total da sua população. O
velho, que também gostava de ratos e pela primeira vez encontrava alguém que
tivesse pelos roedores o mesmo carinho e gostasse de velhas claraboias, e
apesar de ter inferido pela conversa com Augusto que este “era um niilista”,
convidou-o a morar no sobrado.
Augusto
está no enorme salão, sob a grande claraboia, a escrever o seu livro, a parte
referente ao centro da imensa cidade. Às vezes para de ler e contempla, com uma
pequena lente de examinar tecidos, a lâmpada dependurada no teto.
Quando
tinha oito anos, conseguiu uma lente que servia para examinar fibras de tecidos
na loja do seu pai, essa mesma lente que usa neste momento. Deitado, naquele
ano distante, olhou pela lente a lâmpada no teto da casa onde morava, que era
também um sobrado ali no centro da cidade, e cuja fachada foi destruída para
dar lugar a uma imensa placa luminosa de acrílico de uma loja de
eletrodomésticos; no rés-do-chão seu pai tinha uma loja e conversava com as
mulheres fumando seu cigarrinho fino, e ria, e as mulheres riam, seu pai era
outro homem na loja, mais interessante, rindo para aquelas mulheres. Augusto
lembra-se daquela noite, em que ficou olhando para a lâmpada no teto e através
da lente viu seres cheios de garras, patas, hastes ameaçadoras, e imaginou,
assustado, o que poderia acontecer se uma coisa daquelas descesse do teto; os
bichos ora apareciam, ora desapareciam, e o deixavam amedrontado e fascinado. Afinal
descobriu, quando o dia amanhecia, que os bichos eram as suas pestanas; quando
piscava, o monstro aparecia na lente, quando abria os olhos, o monstro sumia.
Depois
de observar, no sobrado com claraboia, os monstros na lâmpada do grande salão –
ainda tem pestanas longas e ainda tem a lente de ver tecidos –, Augusto volta a
escrever sobre a arte de andar nas ruas do Rio. Como anda a pé, vê coisas
diferentes de quem anda de carro, ônibus, trem, lancha, helicóptero ou qualquer
outro veículo. Ele pretende evitar que seu livro seja uma espécie de guia de
turismo para viajantes em busca do exótico, do prazer, do místico, do horror,
do crime e da miséria, como é do interesse de muitos cidadãos de recursos, estrangeiros
principalmente; seu livro também não será um desses ridículos manuais que
associam o andar à saúde, ao bem-estar físico e às noções de higiene. Também
toma cautela para que o livro não se torne um pretexto, à maneira de Macedo, para
arrolar descrições históricas sobre potentados e instituições, ainda que, tal
como o romancista das donzelas, ele às vezes se entregue a divagações prolixas.
Não será um guia arquitetônico do Rio antigo ou compêndio de arquitetura
urbana; Augusto quer encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o
ajudem a estabelecer uma melhor comunhão com a cidade. Solvitur ambulando.
São
onze horas da noite e ele está na rua Treze de Maio. Além de andar ele ensina
as prostitutas a ler e a falar de maneira correta. A televisão e a música pop
tinham corrompido o vocabulário dos cidadãos, das prostitutas principalmente. É
um problema que tem de ser resolvido. Ele tem consciência de que ensinar
prostitutas a ler e a falar corretamente em seu sobrado em cima da chapelaria
pode ser, para elas, uma forma de tortura. Assim, oferece-lhes dinheiro para
ouvirem suas lições, pouco dinheiro, bem menos do que a quantia usual que um
cliente paga. Da rua Treze de Maio vai para a avenida Rio Branco, deserta. O
Teatro Municipal anuncia uma récita de ópera para o dia seguinte, a ópera tem
entrado e saído de moda na cidade desde o início do século. Dois jovens
escrevem com spray nas paredes do teatro, que acabou de ser pintado e exibe poucas
obras de grafiteiro, NÓS OS SÁDICOS DO CACHAMBI TIRAMOS O CABAÇO DO MUNICIPAL
GRAFITEROS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENSIDOS; sob a frase, o logotipo-assinatura dos
Sádicos, um pênis, que no princípio causara estranheza aos estudiosos da
grafitologia mas que já se sabe ser de porco com uma glande humana. “Hei”, diz
Augusto para um dos jovens, “cabaço é com cê-cedilha, vencidos não é com s, e
falta um i no grafiteiros.” O jovem responde “Tio, você entendeu o que a gente
quer dizer, não entendeu?, então foda-se com suas regrinhas de merda”.
Augusto
vê um vulto tentando se esconder na rua que fica atrás do teatro, a Manoel de
Carvalho, e reconhece um sujeito chamado Hermenegildo que não faz outra coisa
na vida senão divulgar um manifesto ecológico contra o automóvel. Hermenegildo
carrega uma lata de cola, uma broxa e dezoito manifestos enrolados num canudo. O
manifesto é grudado com uma cola especial de grande aderência nos para-brisas
dos carros estacionados nas ruas. Hermenegildo faz um sinal para que Augusto se
aproxime do lugar onde ele se esconde. É comum eles se encontrarem de
madrugada, nas ruas. “Preciso da sua ajuda”, diz Hermenegildo.
Os
dois caminham até a rua Almirante Barroso, entram à direita, seguindo até a
avenida Presidente Antônio Carlos. Augusto leva a lata de cola. O objetivo de
Hermenegildo nesta noite é penetrar na garagem pública Menezes Cortes sem ser
pressentido pelos seguranças. Já tentou a empreitada duas vezes, sem sucesso.
Mas acredita que hoje terá melhor sorte. Sobem pela rampa até o primeiro andar,
fechado ao trânsito, onde estão os carros com vaga cativa, muitos estacionados
a noite inteira. Normalmente um ou dois seguranças ficam por ali, mas hoje não
há ninguém. Os guardas provavelmente estão todos no andar de cima, conversando
para passar o tempo. Em pouco mais de vinte minutos Hermenegildo e Augusto
colam os dezoito manifestos nos para-brisas dos carros mais novos. Depois
descem pelo mesmo caminho, entram pela rua da Assembleia e se separam na
esquina da Quitanda. Augusto volta para a avenida Rio Branco. Na avenida entra
à esquerda, passa novamente pela porta do Municipal, onde se detém, algum
tempo, a olhar o desenho do pênis eclético. Vai até a Cinelândia, urinar no
McDonald’s. Os McDonald’s são lugares limpos para urinar, ainda mais se
comparados com os banheiros dos botequins, cujo acesso é complicado; no
botequim ou bar é preciso pedir a chave do banheiro, que vem presa num enorme
pedaço de madeira para não ser extraviada, e o banheiro fica sempre num lugar
sem ar, catinguento e imundo, mas os dos McDonald’s são inodoros, ainda que
também não tenham janelas, e estão bem localizados para quem anda no centro. Este
fica na Senador Dantas quase em frente ao teatro, tem uma saída para a Álvaro
Alvim e o banheiro fica perto dessa saída. Há outro McDonald’s na rua São José,
próximo da rua da Quitanda, outro na avenida Rio Branco perto da rua da
Alfândega. Augusto abre a porta do banheiro com o cotovelo, um truque que ele
inventou, as maçanetas das portas dos banheiros estão cheias de germes de
doenças sexuais. Num dos compartimentos fechados um sujeito acabou de defecar e
assobia satisfeito. Augusto urina num dos vasos de aço inoxidável, lava as mãos
usando o sabão que retira pressionando o bico de metal do recipiente de vidro
transparente preso na parede ao lado do espelho, um líquido verde sem cheiro e
que não faz espuma por mais que esfregue as mãos; depois enxuga as mãos na
toalha de papel e sai, abrindo a porta sempre com o cotovelo, para a rua Álvaro
Alvim.
Próximo
do Cinema Odeon uma mulher sorri para ele. Augusto se aproxima dela. “Você é um
travesti?”, pergunta. “Que tal você mesmo descobrir?”, diz a mulher. Mais
adiante entra na Casa Angrense, ao lado do Cinema Palácio, e pede uma água
mineral. Abre lentamente o copo de plástico e, enquanto bebe em pequenos goles,
como um rato, observa as mulheres em volta. Uma mulher que toma um cafezinho é
escolhida por ele, porque não tem um dente na frente. Augusto se aproxima.
“Você sabe ler?” A mulher o encara com a sedução e a falta de respeito que as
putas sabem demonstrar para os homens. “Claro que sei”, diz ela. “Eu não sei e
queria que você me dissesse o que está escrito ali”, diz Augusto. Refeição
comercial. “Não vendemos fiado”, diz ela. “Você está livre?” Ela informa o
preço e menciona um hotel na rua das Marrecas, que antes se chamava rua das
Boas Noites e havia ali a Casa dos Expostos da Santa Casa, mais de cem anos
atrás; e a rua já se chamou rua Barão de Ladário e se chamou também rua André
Rebouças, antes de ser rua das Marrecas; e depois seu nome foi mudado para rua
Juan Pablo Duarte, mas o nome não pegou e voltou a ser rua das Marrecas.
Augusto diz que mora perto e propõe irem para a casa dele.
Caminham
juntos, constrangidos. Ele compra um jornal na banca em frente à rua Álvaro
Alvim. Vão para o sobrado da chapelaria seguindo pela rua Senador Dantas até o
largo da Carioca, vazio e sinistro àquela hora. A mulher para em frente ao
poste de luz de bronze com um relógio no ápice, ornamentado com quatro mulheres
também de bronze com os seios de fora. Ela diz que quer ver se o relógio está
funcionando, mas como sempre o relógio está parado. Augusto manda a mulher
andar, para não serem assaltados; nas ruas desertas é preciso andar muito
depressa, nenhum assaltante corre atrás do assaltado, precisa chegar perto,
pedir um cigarro, perguntar as horas, precisa poder anunciar o assalto para que
o assalto se consume. O pequeno trecho da rua Uruguaiana até a Sete de Setembro
está silencioso e sem movimento, os marquiseiros têm que acordar cedo e dormem
placidamente nas portas das lojas, enrolados em mantas ou jornais, com a cabeça
coberta.
Augusto
entra no sobrado, bate com os pés, anda com passo diferente, sempre faz isso
quando vem com uma mulher, para que os ratos saibam que um estranho está
chegando e se escondam. Não quer que ela se assuste, as mulheres, por alguma
razão, não gostam de ratos, ele sabe disso, e os ratos, por um motivo ainda
mais misterioso, odeiam as mulheres.
Augusto
retira o caderno onde escreve A arte de
andar nas ruas do Rio de Janeiro de cima da mesa sob a claraboia, colocando
em seu lugar o jornal que comprou. Sempre usa um jornal novo nas primeiras
lições.
“Senta
aqui”, diz para a mulher.
“Onde
está a cama?”, diz ela.
“Anda,
senta”, diz ele, sentando-se na outra cadeira. “Eu sei ler, desculpe ter
mentido para você. Sabe o que estava escrito naquele cartaz no bar? Refeição
comercial. Eles não vendem fiado, é verdade, mas isso não estava escrito na
parede. Eu quero te ensinar a ler, pago o combinado.”
“Você
é broxa?”
“Isso
não interessa. O que você vai fazer aqui é aprender a ler.”
“Não
adianta, já tentei e não consegui.”
“Mas
eu tenho um método infalível. Basta um jornal.”
“Eu
nem sei soletrar.”
“Você
não vai soletrar, esse é o segredo do meu método, o Ivo não vê o ovo. Meu
método se baseia numa simples premissa: nada de soletração.”
“O
que é isso aí em cima?”
“Uma
claraboia. Vou te mostrar uma coisa.”
Augusto
apaga a luz. Aos poucos uma luz azulada penetra pela claraboia.
“Que
luz é essa?”
“É
a lua. Hoje é lua cheia.”
“Caramba!
Há anos que eu não via a lua. Onde fica a cama?”
“Vamos
trabalhar.” Augusto acende a lâmpada elétrica.
O
nome da moça é Kelly, e com ela serão vinte e oito as putas a quem Augusto
ensinou a ler em quinze dias pelo seu método infalível.
De
manhã, deixando Kelly a dormir na cama dele – ela pediu para ficar no sobrado
aquela noite e ele dormiu numa esteira no chão –, Augusto vai até a Ramalho
Ortigão, passa ao lado da igreja de São Francisco e entra na rua do Teatro,
onde agora há um novo ponto de jogo do bicho, um sujeito sentado num banco
escolar anotando num bloco as apostas dos pobres que não perderam a esperança,
eles devem ser muitos, os miseráveis que não perderam a fé, pois cada vez há
mais pontos de jogo espalhados pela cidade. Augusto tem um destino naquele dia,
como aliás em todos os dias que sai de casa; ainda que pareça deambular, nunca
anda exatamente ao léu. Para na rua do Teatro e olha para o sobrado onde sua
avó morava, em cima do que agora é uma loja que vende incenso, velas, colares,
charutos e outros materiais de macumba, mas que ainda outro dia era uma loja
que vendia retalhos de tecidos baratos. Sempre que passa por ali lembra-se de
um parente – a avó, o avô, três tias, um tio postiço, uma prima. Neste dia,
dedica suas lembranças ao avô, um homem cinzento de nariz grande, do qual
costumava tirar melecas, e que fazia pequenos autômatos, passarinhos que
cantavam em poleiros dentro de gaiolas, um macaco pequeno que abria a boca e
rosnava como um cão. Tenta se lembrar da morte do avô e não consegue, o que o
deixa muito nervoso. Não que ele amasse o avô, o velho sempre demonstrou dar
mais importância aos bonecos que construía do que aos netos, mas ele
compreendia isso, achava razoável que o velho preferisse os bonecos e admirava
o avô por ficar dia e noite às voltas com seus maquinismos, talvez nem mesmo
dormisse para poder se dedicar àquela tarefa, por isso era tão cinzento. O avô
era a pessoa que mais se aproximava da ideia de um feiticeiro de carne e osso e
o assombrava e atraía, como podia ter esquecido das circunstância da sua morte?
Morrera de repente? Fora assassinado pela avó? Fora enterrado? Cremado? Ou
simplesmente desaparecera?
Augusto
olha para o último andar do prédio onde morou seu avô, e um monte de basbaques
se junta em torno dele e olha também para o alto, macumbeiros, compradores de
retalhos de tecidos, vadios, estafetas, mendigos, camelôs, transeuntes em
geral, alguns perguntando “o que foi?”, “ele já pulou?”, ultimamente muita
gente no centro da cidade pula das janelas dos altos escritórios e se
esborracha na calçada.
Augusto,
depois de pensar no avô, continua em direção ao seu objetivo nesse dia, mas não
em linha reta, em linha reta ele deveria ir à praça Tiradentes e seguir pela
Constituição, que desemboca quase em frente ao grande portão do lugar aonde ele
vai, ou então pela Visconde do Rio Branco, que ele costuma escolher devido ao
quartel do Corpo de Bombeiros. Mas ele não tem pressa em chegar aonde quer, e da
rua do Teatro vai à Luiz de Camões para dar uma entrada rápida no Real Gabinete
Português de Leitura, ele faz questão que aquela biblioteca tenha seu livro,
quando estiver pronto e publicado. Sente a presença aconchegante daquela enorme
quantidade de livros. Em seguida vai até a avenida Passos, não confundir com a
rua Senhor dos Passos, chega ao beco do Tesouro e volta na direção da Visconde
do Rio Branco pela Gonçalves Ledo, no meio dos comerciantes judeus e árabes
esbarrando na sua freguesia mal vestida, e ao chegar à Visconde do Rio Branco
deixa o comércio de roupas pelo de objetos usados, mas o que o interessa na
Visconde do Rio Branco é o quartel-general do Corpo de Bombeiros, não que
aquele fosse o seu destino, mas ele gosta de ver o prédio do Corpo de
Bombeiros. Augusto para em frente, o pátio lá dentro está cheio de carros grandes
vermelhos, o sentinela na porta vigia-o desconfiado, seria bom se um daqueles
carros vermelhos enormes com a escada Magirus saísse com sua sirene aberta. Mas
os carrões vermelhos não saem e Augusto caminha mais um pouco até a Vinte de
Abril e chega ao portão do Campo de Santana, em frente ao largo do Caco e ao
Hospital Souza Aguiar.
O
Campo de Santana tem nas cercanias lugares que Augusto costuma visitar, o
prédio da casa onde o governo antigamente fabricava dinheiro, o arquivo, a nova
biblioteca, a velha faculdade, o antigo quartel-general do Exército, a estrada
de ferro. Mas neste dia ele quer ver apenas as árvores e entra por um dos portões,
passa pelo maneta que, sentado num tamborete atrás de um tabuleiro, vende
cigarros por unidade, o maço aberto ao meio por um golpe de navalha, que o
maneta esconde na meia presa por um elástico.
Augusto,
logo que entra, vai até o lago, ali perto estão as esculturas dos franceses. O
campo tem uma velha história, dom Pedro foi aclamado imperador no Campo de
Santana, tropas amotinadas ali acamparam enquanto aguardavam ordens de atacar,
mas Augusto pensa apenas nas árvores, as mesmas daquele tempo longínquo, e
passeia por entre os baobás, as figueiras, as jaqueiras ostentando enormes
frutos; como sempre, tem vontade de se ajoelhar ante as árvores mais antigas,
mas ficar de joelhos lembra a religião católica e ele agora odeia todas as
religiões que fazem as pessoas ficarem de joelhos, e também odeia Jesus Cristo,
de tanto ouvir os padres, os pastores, os eclesiásticos, os negociantes falarem
nele; o movimento da Igreja ecumênica é a cartelização dos negócios da
superstição, um pacto político de não-agressão entre mafiosos: não vamos brigar
uns com os outros que o bolo dá para todos.
Augusto
está sentado num banco, ao lado de um homem que usa um relógio digital japonês
num dos pulsos e uma pulseira terapêutica de metal no outro. Aos pés do homem
está deitado um cão grande, a quem o homem dirige suas palavras, com gestos
comedidos, parecendo um professor de filosofia a dialogar com seus alunos numa
sala de aula, ou um tutor dando explicações a um discípulo desatento, pois o
cachorro não parece prestar muita atenção ao que o homem lhe diz e apenas
rosna, olhando em torno com a língua para fora. Se fosse maluco o homem não
usaria relógio, mas um sujeito que ouve respostas de um cão que rosna com a
língua de fora, e a elas retruca, tem que ser maluco, mas um maluco não usa
relógio, a primeira coisa que ele, Augusto, faria se ficasse maluco seria
livrar-se do Casio Melody; e tem certeza de que ainda não está maluco porque,
além do relógio que carrega no pulso, tem ainda no bolso uma caneta-tinteiro, e
os malucos detestam caneta-tinteiro. Esse homem, sentado ao lado de Augusto,
magro, cabelos penteados, a barba raspada, mas com fios pontudos aparecendo
agrupados abaixo da orelha e outros saindo do nariz, de sandálias, calça jeans
maior que suas pernas, com as bainhas dobradas de tamanho diferente, esse
maluco é talvez apenas meio maluco porque parece ter descoberto que um cachorro
pode ser um bom psicanalista, além de mais barato e mais bonito. O cachorro é
alto, de mandíbulas fortes, peito musculoso, olhar melancólico. É evidente que,
além do cachorro – as conversas são, cumulativamente, sinal de loucura e de
inteligência –, a sanidade, ou o ecletismo mental do homem, pode também ser
comprovada pelo relógio.
“Que
horas são?”, pergunta Augusto.
“Veja
no seu relógio”, diz o homem do cachorro, os dois, homem e cachorro, observando
Augusto, curiosos.
“Meu
relógio não tem funcionado muito bem”, alega Augusto.
“Dez
horas trinta e cinco minutos e dois, três, quatro, cinco –”
“Obrigado.”
“–
segundos”, termina o homem, consultando o Seiko no pulso.
“Tenho
que ir”, diz Augusto.
“Não
vá ainda”, diz o cachorro. Não foi o cachorro, o homem é um ventríloquo, quer
fazer-me de bobo, pensa Augusto, é melhor que o homem seja um ventríloquo, cães
não falam e se esse fala, ou se ele ouviu o cão falar, isso pode se tornar um
motivo de preocupação, como por exemplo ver um disco voador, e Augusto não quer
perder tempo com assuntos dessa natureza.
Augusto
passa a mão na cabeça do cachorro. “Tenho que ir.”
Não
tem que ir a lugar algum. Seu plano naquele dia é ficar entre as árvores até a
hora de fechar e quando o guarda começar a apitar ele se esconderá na gruta;
irrita-o só poder ficar com as árvores das sete da manhã às seis da tarde. O que
os guardas temem que se faça durante a noite no Campo de Santana? Algum banquete
noturno de cutias, ou a utilização da gruta como bordel, ou o corte das árvores
para fazer lenha ou outra coisa? Talvez os guardas tenham razão, e marginais
famintos andem comendo cutias e fodendo no meio dos morcegos e dos ratos da
gruta, e cortando árvores para fazer barracos.
Quando
ouve o bip do seu Casio Melody alertando-o, Augusto entra até o ponto mais
fundo da gruta, onde fica imóvel como uma pedra, ou melhor, uma árvore
subterrânea. A gruta é artificial, foi feita por outro francês, mas há tanto
tempo que parece verdadeira. Um apito forte ecoa nas paredes de pedra fazendo
os morcegos baterem asas e guincharem, os guardas estão mandando as pessoas se
retirarem, mas nenhum guarda entra na gruta. Ele continua imóvel no escuro
total e agora que os morcegos se aquietaram ouve o barulhinho delicado dos
ratos já acostumados com sua presença inofensiva. O relógio toca uma musiquinha
rápida, o que significa que transcorreu uma hora. Lá fora certamente já é noite
e os guardas devem ter ido embora, assistir à televisão, comer, alguns são
capazes até de ter família.
Sai
da gruta junto com os morcegos e os ratos. Desliga os sons do seu Casio
Melody. Nunca ficou uma noite inteira dentro do Campo de Santana, já rodeou o
campo à noite, namorando as árvores através das grades hoje pintadas de cinza e
douradas nas pontas. Na escuridão as árvores são ainda mais perturbadoras do
que na claridade e deixam que Augusto, ao caminhar lentamente sob suas sombras
noturnas, comungue com elas como se fosse um morcego. Abraça e beija as
árvores, o que tem vergonha de fazer à luz do dia na frente dos outros; algumas
são tão grandes que ele não consegue juntar os dedos das mãos atrás delas. Entre
as árvores Augusto não sente irritação, nem fome, nem dor de cabeça. Imóveis,
enfiadas na terra, vivendo em silêncio, indulgentes com o vento e os
passarinhos, indiferentes aos próprios inimigos, ali estão elas, as árvores, em
volta de Augusto, e enchem sua cabeça de um gás perfumado e invisível que ele
sente, e que transmite tal leveza ao seu corpo que se ele tivesse a pretensão,
e a vontade arrogante, poderia até mesmo tentar voar.
Quando
o dia surge Augusto aperta um dos pinos do relógio recolocando o desenho de um
sininho no mostrador. Ouve um bip. Escondido atrás de uma árvore vê guardas
abrindo um dos portões. Olha mais uma vez com amor as árvores, passa a mão no
tronco de algumas, se despedindo.
Na
saída já lá está o maneta vendendo um ou dois cigarros para os sujeitos que não
têm dinheiro para comprar um maço inteiro.
Desce
pela Presidente Vargas maldizendo os urbanistas que demoraram dezenas de anos
para perceber que uma rua larga daquelas precisava de sombra e só em anos
recentes plantaram árvores, a mesma insensatez que os fizera plantar
palmeiras-imperiais no canal do Mangue quando o canal fora construído, como se
palmeira fosse uma árvore digna do nome, um tronco comprido que não dá sombra
nem passarinho, que mais parece uma coluna de cimento. Vai pela rua dos
Andradas até a rua do Teatro e posta-se mais uma vez em frente à casa do avô. Tem
a esperança de que um dia ele vá aparecer na porta do prédio, limpando o nariz
distraidamente.
Quando
entra no sobrado da rua Sete de Setembro encontra Kelly andando de um lado para
o outro sob a claraboia.
“Procurei
café e não achei. Você não tem café?”
“Por
que você não vai embora e volta de noite, para a lição?”
“Apareceu
um rato e eu joguei um livro nele mas não consegui acertar.”
“Por
que você fez isso?”
“Pra
matar o rato.”
“A
gente começa matando um rato, depois mata um ladrão, depois um judeu, depois
uma criança da vizinhança com a cabeça grande, depois uma criança da nossa
família com a cabeça grande.”
“Um
rato? Qual o mal em matar um rato?”
“E
uma criança com a cabeça grande?”
“O
mundo está cheio de pessoas nojentas. E quanto mais gente, mais pessoas
nojentas. Como se fosse um mundo de cobras. Vai me dizer que as cobras não são
nojentas?”, diz Kelly.
“As
cobras não são nojentas. Por que você não vai para sua casa e volta à noite
para a lição?”
“Deixa
eu morar aqui até aprender a ler.”
“Só
quinze dias.”
“Está
bem. Você me ajuda a ir em casa apanhar minha roupa?”
“É
tanta roupa assim?”
“Sabe
o que é? Estou com medo do Rezende. Ele disse que corta meu rosto com uma
navalha. Deixei de trabalhar pra ele.”
“Quem
é esse Rezende?”
“É
o rapaz que... É o meu protetor. Ele vai me arranjar dinheiro para eu botar um
dente e trabalhar na Zona Sul.”
“Pensei
que não existisse mais cafetão.”
“Uma
moça não pode viver sozinha.”
“Onde
é sua casa?”
“Gomes
Freire quase esquina da Mem de Sá. Sabe onde tem um supermercado?”
“Você
me mostra.”
Vão
pela Evaristo da Veiga, passam por baixo dos Arcos, entram na Mem de Sá e logo
estão no prédio onde Kelly mora com o Rezende.
Kelly
tenta abrir a porta do apartamento mas ela está trancada por dentro. Toca a
campainha.
Um
sujeito de camisa de meia verde abre a porta dizendo “onde foi que você se
meteu, sua puta?”, mas ao ver Augusto recua, faz um gesto com a mão e diz
gentilmente “tenha a bondade de entrar”.
“Esse
é o Rezende?”, pergunta Augusto.
“Vim
apanhar minha roupa”, diz Kelly com timidez.
“Vai
apanhar a roupa enquanto eu converso com o Rezende”, diz Augusto.
Kelly
entra.
“Eu
conheço você?”, pergunta Rezende, indeciso.
“O
que você acha?”, diz Augusto.
“Tenho
uma memória muito ruim”, diz Rezende.
“Isso
é perigoso”, diz Augusto.
Os
dois ficam calados. Rezende tira do bolso um maço de Continental e oferece um
cigarro para Augusto. Augusto diz que não fuma. Rezende acende o cigarro, vê a
orelha mutilada de Augusto, apressado desvia o olhar para dentro do
apartamento.
Kelly
sai com a mala.
“Você
tem uma navalha afiada?”, pergunta Augusto.
“Pra
que eu preciso de uma navalha afiada?”, diz Rezende, rindo como um idiota,
evitando encarar o resto de orelha de Augusto.
Augusto
e Kelly esperam o elevador chegar, enquanto Rezende fuma encostado na porta do
apartamento, olhando para o chão.
Estão
na rua. Kelly, ao ver o bicheiro na esquina sentado em sua carteira de
estudante, diz que vai fazer uma fezinha. “Jogo no carneiro ou no veado?”,
pergunta rindo. “Ele não fez nada porque você estava comigo, botou o galho
dentro porque ficou com medo de você”.
“Pensei
que vocês estavam organizadas e não havia mais cafetão”, diz Augusto.
“Minha
amiga Cleuza me chamou para a Associação, mas... Quinhentos no veado”, diz ela
para o bicheiro.
“Associação
das putas?”
“Associação
das prostitutas. Mas aí eu descobri que tem três associações de prostitutas e
eu não sei para qual delas entrar. Meu amigo Boca Murcha me disse que organizar
marginal é a coisa mais complicada do mundo, até mesmo bandido que vive junto
dentro da cadeia tem esse problema.”
Fazem
o mesmo caminho de volta, passando novamente embaixo dos Arcos, sobre os quais
um bonde trafega nesse momento.
“Coitado,
eu era a única coisa que ele tinha no mundo”, diz Kelly. Já está com pena do
cafifa. “Vai ter que voltar a vender pó e maconha na zona.”
Na
rua da Carioca, Kelly repete que na casa de Augusto não tem café e ela quer
tomar café.
“Vamos
tomar café na rua”, ele diz.
Param
numa casa de sucos. Não tem café. Kelly quer tomar uma média com pão e
manteiga. “Sei que é difícil achar um lugar que venda média com pão e manteiga,
ainda mais o pão torrado”, diz Kelly.
“Antigamente
havia botequins espalhados pela cidade, onde você sentava e pedia: seu garçom
faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um
pão bem quente com manteiga à beça – você não conhece a música do Noel?”
“Noel?
Não é do meu tempo. Desculpe”, diz Kelly.
“Eu
apenas queria dizer que havia uma infinidade de botequins espalhados pelo
centro da cidade. E você sentava num botequim, não ficava em pé, como nós aqui,
e havia uma mesa de mármore onde você podia fazer desenhos enquanto esperava
alguém e quando a pessoa chegava você podia ficar olhando para a cara dela
enquanto conversava.”
“Nós
não estamos conversando? Você não está me olhando? Faz o desenho neste
guardanapo de papel.”
“Estou
te olhando. Mas tenho que virar o pescoço. Não estamos sentados numa cadeira.
Esse guardanapo de papel borra quando você escreve nele. Você não entende.”
Comem
um hambúrguer com suco de laranja.
“Eu
vou te levar para ver a avenida Rio Branco.”
“Eu
conheço a avenida Rio Branco.”
“Vou
te mostrar os três prédios que não foram demolidos. Eu te mostrei a foto da avenida
antigamente?”
“Não
me interessa velharia. Para com isso.”
Kelly
se recusa a ir ver os prédios velhos, mas, como gosta de crianças, concorda em
ir visitar a menina Marcela, de oito meses, filha de Marcelo e Ana Paula.
Estão
na Sete de Setembro e caminham até a esquina da rua do Carmo, onde, na calçada
sob a marquise, em casinholas de papelão, mora a família Gonçalves. Ana Paula é
branca, assim como Marcelo é branco, e são apenas agregados da família de
negros que controla aquela esquina. Ana Paula está dando de mamar a Marcelinha.
Como é sábado, Ana Paula pôde armar de dia o pequeno barraco de papelão em que
vive com o marido e a filha sob a marquise do Banco Mercantil do Brasil. A
tábua que serve de parede, de um metro e meio de altura, o lado mais alto do
barraco, foi tirada de uma construção abandonada do metrô. Nos dias úteis o
barraco fica desarmado, as grandes folhas de papelão e a tábua tirada do buraco
do metrô são encostadas na parede durante a hora do expediente, e somente à
noite o barraco de Marcelo, e também os barracos de papelão da família
Gonçalves são reconstruídos para que Marcelo, Ana Paula e Marcelinha e os doze
membros da família entrem neles para dormir. Mas hoje é sábado, no sábado e no
domingo não há expediente no Banco Mercantil do Brasil, e o barraco de Marcelo
e Ana Paula, uma caixa de papelão usada como embalagem de uma geladeira grande,
não foi desarmado, e Ana Paula goza desse conforto.
São
dez horas da manhã e o sol lança raios luminosos por entre o monolítico
arranha-céu negro opaco da Cândido Mendes e o torreão da igreja com a imagem de
Nossa Senhora do Carmo, ela em pé, como costumam ficar as Nossas Senhoras, um
círculo de ferro, ou cobre, sobre a cabeça fingindo de auréola. Ana Paula dá
banho de sol na menina nua, já mudou as fraldas, lavou as sujas num balde de
água que apanhou no restaurante de galetos, dependurou-as no varal de arame que
estende somente nos fins de semana, amarrando uma ponta na estaca de ferro com
uma placa de metal onde se lê TurisRio –
9 vagas e outra numa estaca de ferro com uma placa de publicidade; além das
fraldas, Augusto vê bermudas, camisetas, calças jeans e peças de roupa que não
consegue identificar, por delicadeza, para não demonstrar curiosidade.
Kelly
permanece na esquina, não quer chegar perto do pequeno barraco onde Ana Paula
cuida de Marcelinha. Ana Paula tem olhos doces, tem um rosto magro e sossegado,
tem gestos delicados, tem braços delgados, tem uma boca muito bonita, apesar
dos dentes cariados na frente.
“Kelly,
vem ver que menina bonita é a Marcelinha”, diz Augusto.
Neste
instante surge, do fundo de uma das caixas de papelão, Benevides, o chefe do
clã, um preto que está sempre embriagado, e logo aparecem os adolescentes Zé
Ricardo e Alexandre, este o mais simpático de todos, e também dona Tina, a
matriarca, acompanhada de uns oito meninos. Antes eram doze os menores da
família, mas quatro haviam se desgarrado e ninguém sabia por onde eles andavam;
constava que faziam parte de um arrastão, de uma das quadrilhas de pivetes que
agiam na Zona Sul da cidade, assaltando em grandes bandos as lojas elegantes,
pessoas bem vestidas, turistas; e, aos domingos, os otários que estão se
bronzeando na praia.
Um
dos meninos pede uma esmola a Augusto e leva por esse motivo um bofetão de
Benevides.
“Nós
não somos mendigos, moleque.”
“Não
era esmola”, diz Augusto.
“Outro
dia veio aqui um sujeito dizendo que estava organizando os mendigos, numa
associação chamada Mendigos Unidos. Mandei ele tomar dentro. Nós não somos
mendigos.”
“Quem
é esse cara? Onde ele faz ponto?”
“Na
rua do Jogo da Bola.”
“Como
é que se vai nessa rua?”
“Daqui?
Você vai até igreja da Candelária, em linha reta, chegando lá você pega a Rio
Branco, dali vai até a rua Visconde de Inhaúma, entra nela pro lado esquerdo,
vai até o largo de Santa Rita onde ela termina e começa a Marechal Floriano, a
rua Larga, e pela rua Larga você vai até a rua dos Andradas, pelo lado direito,
cruza a rua Leandro Martins, entra na rua Júlia Lopes de Almeida, vai para a
esquerda, pra rua da Conceição, segue até chegar na Senador Pompeu, entra pela
direita numa travessa Coronel não sei o quê, e sempre pela direita chega na rua
do Jogo da Bola. Pergunta por ele, o nome dele é Zé Galinha. Um nego de olho
vermelho, sempre cercado de puxa-sacos. Vai acabar vereador.”
“Obrigado,
Benevides. Como vão os negócios?”
“Tiramos
vinte toneladas de papel este mês”, diz Alexandre.
“Cala
a boca”, diz Benevides.
Um
caminhão passa periodicamente e leva o papel que foi apanhado. Hoje, passou
cedo e levou tudo.
Dona
Tina diz qualquer coisa que Augusto não entende.
“Porra,
mamãe, cala a boca, porra”, grita Benevides, furioso.
A
mãe se afasta e vai colocar umas panelas sobre um fogão desmontável de tijolos,
na porta do Banco Mercantil. Ricardo penteia os cabelos espessos com um pente
de longos dentes de ferro.
“Quem
é aquela bacana?”, Benevides aponta Kelly, a distância, na esquina. Kelly
parece uma princesa de Mônaco, no meio dos Gonçalves.
“Uma
amiga minha.”
“Por
que ela não chega perto?”
“Deve
estar com medo de você, dos seus gritos.”
“Tenho
que gritar. Sou o único aqui que tem cabeça... Às vezes desconfio até do
senhor...”
“Isso
é besteira.”
“No
princípio pensei que o senhor era da polícia. Depois, da Leão XIII, depois,
alguém do banco, mas o gerente é gente fina e sabe que somos trabalhadores e
não ia mandar nenhum espião dedurar a gente. Estamos neste ponto há dois anos e
eu pretendo morrer aqui, o que talvez não demore muito, pois ando com um dor
neste lado da barriga... Sabe que nunca teve assalto neste banco? O único em
toda a área.”
“A
presença de vocês afasta os assaltantes.”
“Desconfio
do senhor.”
“Não
gaste tempo com isso.”
“O
que o senhor quer aqui? Sábado passado não quis tomar sopa comigo.”
“Eu
lhe disse. Quero conversar. E você só precisa me dizer o que quiser dizer. E eu
só gosto de sopas de cor verde, e as suas sopas são amarelas.”
“É
a abóbora”, diz dona Tina, que ouve a conversa.
“Cala
a boca, mamãe. Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente
demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a
gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando
vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente.
Todo o papel jogado fora na Cândido Mendes aí em frente é meu, mas já tem nego
querendo meter a mão.”
Benevides
diz que o homem do caminhão paga melhor o papel branco do que o papel de jornal
ou o rebotalho, o papel sujo, colorido, em pedaços. O papel que ele arrecada na
Cândido Mendes é branco. “Tem muito formulário contínuo de computador,
relatórios, coisas assim.”
“E
vidro? Também pode ser reciclado. Já pensou em vender garrafas?”
“Garrafeiro
tem que ser portuga. Nós somos crioulos. E as garrafas estão acabando, é tudo
de plástico. O único garrafeiro que anda por aqui é o Mané da Boina, e o galego
outro dia veio filar a sopa aqui com a gente. Ele come sopa amarela. Está na
pior merda.”
Kelly
abre os braços, faz uma careta impaciente, na esquina, do outro lado. Augusto
se despede abraçando uns e outros. Benevides aperta Augusto de encontro ao seu
rosto nu, aproximando sua boca de hálito alcoólico do rosto do outro, e olha
assim de perto, curioso, astuto. “Estão dizendo que vai ter aqui na cidade um
grande congresso de estrangeiros e que vão querer esconder a gente dos gringos.
Não quero sair daqui”, murmura ameaçadoramente, “moro ao lado de um banco, tem
segurança, nenhum maluco vai tocar fogo na gente como fizeram com o barraco do
Maílson, atrás do museu do aterro. E eu estou aqui há dois anos, o que
significa que ninguém vai mexer com a nossa casa, faz parte do ambiente,
entendeu?” Augusto, que nasceu e foi criado no centro da cidade, ainda que numa
época mais luminosa, em que as lojas ostentavam na fachada seus nomes em letras
feitas de brilhantes tubos retorcidos de vidro cheios de gases vermelhos, azuis
e verdes, entende bem o que Benevides lhe diz em seu infindável abraço, ele
também não sairia do centro por nada, e aquiesce com a cabeça, roçando
involuntariamente seu rosto no rosto do negro. Quando afinal se separam,
Augusto consegue dar, sem que Benevides perceba, uma nota de cem para um
crioulinho mais esperto. Vai até Ana Paula e se despede dela, de Marcelo e de
Marcelinha, que agora está vestida com um macacão de florzinhas.
“Vamos”,
diz Augusto segurando Kelly pelo braço. Kelly solta o braço. “Não me pega não,
aqueles mendigos devem estar com sarna, você vai ter que tomar um banho antes
de se encostar em mim.”
Andam
até o sebo de livros que fica atrás da igreja do Carmo, enquanto Kelly
desenvolve a teoria de que os mendigos, nos lugares quentes como o Rio, onde
andam seminus, são ainda mais miseráveis; um mendigo sem camisa, com uma calça
velha, suja, rasgada, mostrando um pedaço de bunda, é mais mendigo que um
mendigo num lugar frio vestido com andrajos. Ela viu mendigos paulistas quando
foi a São Paulo num inverno e eles usavam casacos e gorros de lã, tinham um ar
decente.
“Nos
lugares frios os mendigos morrem gelados nas ruas”, diz Augusto.
“É
uma pena que o calor não mate eles também”, diz Kelly.
As
putas não gostam de mendigos, Augusto sabe.
“A
diferença entre um mendigo e os outros”, continua Kelly, “é que quando fica nu
um mendigo não deixa de parecer um mendigo e quando os outros ficam nus eles deixam
de parecer o que são”.
Chegam
ao sebo. Kelly olha da rua, desconfiada, as estantes no interior da loja cheias
de livros. “Existe gente no mundo para ler tantos livros?”
Augusto
quer comprar um livro para Kelly, mas ela se recusa a entrar no sebo. Vão até a
rua São José, dali à rua Graça Aranha, avenida Beira Mar, Obelisco, Passeio
Público.
“Fiz
a vida aqui em frente e nunca entrei neste lugar”, diz Kelly.
Augusto
mostra as árvores para Kelly, diz que elas têm mais de duzentos anos, fala no
mestre Valentim, mas ela não se interessa e somente sai do seu tédio quando
Augusto de cima da pontezinha sobre o lado, do lado oposto à entrada na rua do
Passeio, no outro extremo, onde fica o terraço com a estátua do menino que
atualmente é de bronze, quando de cima da pontezinha Augusto escarra nas águas
para os peixes pequenos comerem o catarro. Kelly acha graça e cospe também, mas
logo se aborrece porque os peixes parecem preferir o cuspe de Augusto.
“Estou
com fome”, diz Kelly.
“Prometi
almoçar com o Velho”, diz Augusto.
“Então
vamos pegar ele”.
Seguem
pela Senador Dantas, onde Kelly também fez a vida, e chegam ao largo da
Carioca. Os tabuleiros dos camelôs ali são em maior número. As principais ruas
do comércio estão atravancadas de tabuleiros repletos de mercadorias, algumas
são contrabandeadas e outras pseudocontrabandeadas, marcas famosas falsificadas
grosseiramente em fabriquetas clandestinas. Kelly para em frente aos
tabuleiros, examina tudo, pergunta o preço dos rádios de pilha, dos brinquedos
elétricos, das calculadoras de bolso, dos cosméticos, de um jogo de dominó de
plástico imitando marfim, dos lápis coloridos, das canetas, das fitas de vídeo
e cassetes virgens, do coador de café de pano, dos canivetes, dos baralhos, dos
pentes, dos relógios e das outras bugingangas.
“Vamos,
o Velho está esperando”, diz Augusto.
“Bagulho
ordinário”, diz Kelly.
No
sobrado, Kelly convence o Velho a pentear o cabelo e a trocar o chinelo por uma
botina preta, inteiriça, de cano alto com elástico dos lados e puxador atrás,
modelo antigo mas ainda em bom estado. O Velho vai sair com eles porque Augusto
prometeu que vão almoçar no Timpanas, na rua São José, e o Velho namorou uma
moça inesquecível que morava num prédio ao lado do restaurante, construído em
mil novecentos e poucos, e que ainda tem, intactos, balcões de ferro, tímpanos
e cimalhas decoradas com estuque.
O
Velho vai à frente com passo firme.
“Não
quero andar muito depressa. Disseram que dá varizes”, protesta Kelly, que na
verdade quer andar devagar para pesquisar os tabuleiros dos camelôs.
Ao
chegarem em frente ao Timpanas, o Velho contempla os prédios enfileirados até a
esquina da rua Rodrigo Silva. “Vai ser tudo demolido”, ele diz. “Vocês podem
entrar, vou em seguida, peçam um arroz de ervilhas para mim.”
Kelly
e Augusto sentam-se numa mesa coberta por toalha branca. Pedem uma caldeirada
para os dois e o arroz de ervilhas do Velho. O Timpanas é um restaurante que
faz a comida como o freguês pede.
“Por
que você não me abraça como fez com aquele negro sujo?”, diz Kelly.
Augusto
não quer discutir. Levanta-se e vai procurar o Velho.
O
Velho está olhando os prédios, muito compenetrado, encostado na grade de ferro
que cerca o antigo Buraco do Lume, que depois de tapado virou um gramado com
poucas árvores, onde moram alguns mendigos.
“Teu
arroz já chegou”, diz Augusto.
“Está
vendo aquela sacada ali, daquele sobrado pintado de azul? As três janelas do
primeiro andar? Foi naquela janela à nossa direita que eu a vi, pela primeira
vez, debruçada no balcão, os cotovelos apoiados numa almofadinha com bordados
vermelhos.”
“O
arroz já está na mesa. Ele tem que ser comido logo que sai do fogo.”
Augusto
puxa o Velho pelo braço e entram no restaurante.
“Ela
era muito bonita. Nunca mais vi uma moça tão bonita.”
“Come
o arroz, vai ficar frio”, diz Augusto.
“Ela
mancava de uma perna. Isso para mim não tinha importância. Mas para ela era
importante.”
“É
sempre assim”, diz Kelly.
“Você
tem razão”, diz o Velho.
“Come
o arroz, vai ficar frio.”
“As
mulheres de vida airada são detentoras de uma sinuosa sabedoria. Você me deu um
momentâneo conforto ao mencionar a inexorabilidade das coisas”, diz o Velho.
“Obrigada”,
diz Kelly.
“Come
o arroz, vai ficar frio.”
“Vai
ser tudo derrubado”, diz o Velho.
“Antigamente
era melhor?”, pergunta Augusto.
“Era.”
“Por
quê?”
“Antigamente
tinha menos gente e quase não havia automóveis.”
“Os
cavalos, enchendo as ruas de bosta, deviam ser considerados uma praga igual aos
carros de hoje”, diz Augusto.
“E
as pessoas, antigamente, eram menos estúpidas”, continua o Velho, com um olhar
triste, “e tinham menos pressa.”
“O
pessoal da antiga era mais inocente”, diz Kelly.
“Era
mais esperançoso. A esperança é uma espécie de libertação”, diz o Velho.
Enquanto
isso, Raimundo, o pastor, chamado pelo bispo para comparecer à sede mundial da
Igreja de Jesus Salvador das Almas, que fica na avenida Suburbana, ouve,
contrito, as palavras do chefe supremo da sua Igreja.
“Cada
pastor é responsável pelo templo em que trabalha. A sua arrecadação tem sido
muito pequena. Sabe quanto o pastor Marcos, de Nova Iguaçu, arrecadou no mês
passado? Mais de dez mil dólares. Nossa Igreja precisa de dinheiro. Jesus
precisa de dinheiro, sempre precisou. Você sabia que Jesus tinha um tesoureiro,
Judas Iscariotes?”
O
pastor Marcos, de Nova Iguaçu, foi o inventor do Envelope de Doações. Os
envelopes têm impressos o nome da Igreja de Jesus Salvador das Almas, a frase Peço orações por estas pessoas seguida
de cinco linhas para o pedinte escrever os nomes das pessoas, um quadrado onde
se lê Cr$ e, em letras grandes, a categoria das doações. Os votos ESPECIAIS,
com quantias maiores, são verde-claro; os SIMPLES são pardos, e neles só podem
ser solicitadas duas orações. Outras igrejas copiaram o Envelope, o que deixou
o bispo muito aborrecido.
“O
demônio tem ido à minha igreja”, diz Raimundo, “e desde que ele passou a ir à
minha igreja os fiéis não fazem doações, nem mesmo pagam mais o dízimo.”
“Lúcifer?”
O bispo olha para ele, um olhar que Raimundo gostaria que fosse de admiração;
provavelmente o bispo nunca viu o demônio, pessoalmente. Mas o bispo é
insondável. “Qual o disfarce que ele está usando?”
“Usa
óculos escuros, não tem uma orelha e senta-se nos bancos dos fundos, e um dia,
no segundo dia em que apareceu no templo, em volta dele se fez uma aura
amarela.” O bispo deve saber que o diabo pode aparecer como bem entender, como
um cão negro ou como um homem de óculos escuros sem uma orelha.
“Alguém
mais viu essa luz amarela?”
“Não
senhor.”
O
bispo medita algum tempo.
“E
depois que ele apareceu os fiéis deixaram de pagar o dízimo? Você tem certeza
que foi esse —”
“Sim,
foi depois que ele apareceu. Os fiéis dizem que não têm dinheiro, que perderam
o emprego, que ficaram doentes, que foram roubados.”
“E
você acredita que estão falando a verdade? E joias? Nenhum deles tem uma joia?
Uma aliança de ouro?”
“Sim,
estão falando a verdade. Nós podemos pedir joias?”
“Por
que não? São para Jesus.”
O
rosto do bispo é inescrutável.
“O
demônio não tem aparecido. Eu estou procurando ele. Não tenho medo, ele anda
pela cidade e eu vou encontrá-lo”, diz Raimundo.
“E
quando você o encontrar, o que pretende fazer?”
“Se
o senhor bispo pudesse me iluminar com seu conselho...”
“Você
mesmo tem que descobrir, nos livros sagrados, o que deve fazer. Silvestre II
fez um pacto com o diabo, para conseguir o Papado e a Sabedoria. O demônio
sempre que aparece é para fazer um pacto. Lúcifer apareceu para você, não para
mim. Mas lembre-se, se o demônio for mais esperto do que você, isso significa
que você não é um bom pastor.”
“Todo
bem vem de Deus e todo mal vem do Diabo”, diz Raimundo.
“Sim,
sim”, diz o bispo com um suspiro enfastiado.
“Mas
o bem pode vencer o mal.”
“Sim”,
outro suspiro.
O
almoço no Timpanas continua. O Velho fala do Cinema Ideal, na rua da Carioca.
“De
um lado da rua ficava o Ideal, do outro o Cinema Iris. O Iris ainda está de pé.
Agora passa filmes pornográficos.”
“Talvez
vire uma igreja”, diz Augusto.
“Durante
as sessões noturnas o teto do Ideal abria e deixava entrar o frescor da noite.
Você podia ver as estrelas no céu”, diz o Velho.
“Só
um maluco vai ao cinema para ver estrelas”, diz Kelly.
“Como
é que o teto abria?”, pergunta Augusto.
“Um
sistema de engenharia muito avançado para a época. Roldanas, roldanas... O Rui
Barbosa ia sempre lá e algumas vezes sentei perto dele.”
“Sentou
perto dele?”
O
Velho percebe alguma incredulidade na voz de Augusto. “Você está pensando o
quê? Rui Barbosa morreu outro dia, em 1923.”
“Minha
mãe nasceu em 1950”, diz Kelly, “é uma velha caindo aos pedaços.”
“Durante
muito tempo, depois que o Rui morreu, e até que o cinema virasse uma sapataria,
a cadeira dele ficou isolada por um cordão de veludo e havia uma placa dizendo Esta cadeira era ocupada pelo senador Rui
Barbosa. Votei nele para presidente, duas vezes, mas os brasileiros sempre
elegem os presidentes errados.”
“O
cinema virou uma sapataria?”
“Se
o Rui estivesse vivo não deixaria fazerem isso. As duas fachadas, uma de pedra
e outra de mármore, e a marquise de vidro, um vidro igual ao da minha
claraboia, ainda estão lá, mas dentro só existem pilhas de sapatos ordinários;
é de cortar o coração”, diz o Velho.
“Vamos
lá ver?”, propõe Augusto para Kelly.
“Não
vou mais a lugar nenhum com você pra ver chafariz, prédios caindo aos pedaços e
árvores nojentas enquanto você não parar para ouvir a história da minha vida.
Ele não quer ouvir a história da minha vida. Mas ouve a história da vida de
todo mundo.”
“Por
que você não quer ouvir a história da vida dela?”, pergunta o Velho.
“Porque
já ouvi vinte e sete histórias de vida de putas e são todas iguais.”
“Não
é assim que se trata uma namorada”, diz o Velho.
“Ela
não é minha namorada. É alguém a quem estou ensinando a ler e a falar.”
“Se
ela puser um dente aí na frente é capaz de ficar bonita”, diz o Velho.
“Pra
que botar um dente? Não vou mais ser puta. Deixei.”
“Vai
fazer o quê?”
“Ainda
estou pensando.”
Na
segunda-feira, arrependido por ter tratado Kelly mal, ainda mais tendo em vista
que ela está aprendendo a ler com grande rapidez, Augusto sai de casa para ir à
praça Tiradentes comprar uma pedra semipreciosa em estado bruto, para lhe dar
de presente. Tem um amigo, de nome falso Mojica, que compra e vende essas
pedras, que mora no Hotel Rio, na rua Silva Jardim, e pode lhe fazer um preço
barato. Mojica, antes de se estabelecer como vendedor de pedras, ganhava a vida
como apanhador de mulher gorda, uma especialização de gigolôs preguiçosos.
Na
rua Uruguaiana, centenas de camelôs, proibidos pela Prefeitura de instalar suas
barracas e ajudados por jovens desempregados e outros passantes, depredam e
saqueiam as lojas. Alguns seguranças contratados pelas lojas atiram para o ar.
O barulho das vitrines quebradas e das portas de aço sendo arrombadas mistura-se
com os gritos de mulheres a correr pela rua. Augusto entra na Ramalho Ortigão e
segue pela rua da Carioca em direção à praça Tiradentes. O tempo está encoberto
e ameaça chover. Está quase chegando na Silva Jardim quando o pastor Raimundo
surge inesperadamente à sua frente.
“O
senhor sumiu”, diz o pastor Raimundo com voz trêmula.
“Tenho
andado ocupado. Escrevendo um livro”, diz Augusto.
“Escrevendo
um livro... O senhor está escrevendo um livro... Posso saber o assunto?”
“Não.
Desculpe”, diz Augusto.
“Eu
não sei o seu nome. Posso saber o seu nome?”
“Augusto.
Epifânio.”
Neste
momento começa a trovejar e a cair uma chuva grossa.
“O
que o senhor quer de mim? Um pacto?”
“Entrei
no seu cinema por acaso, por causa das cápsulas com selênio.”
“Cápsulas
com selênio”, diz o pastor, empalidecendo ainda mais. Não era selênio um dos
elementos usados pelo demônio? Ele não consegue se lembrar.
“Adeus”,
diz Augusto. Ficar na chuva não o incomoda, mas o ex-apanhador de mulher gorda
espera por ele.
O
pastor segura Augusto pelo braço, num arroubo de coragem. “É um pacto? É um
pacto?” Cambaleia como se fosse desmaiar, abre os braços, e só não cai ao chão
porque Augusto o ampara. Recobrando seu vigor, o pastor livra-se dos braços de
Augusto, grita “solte-me, solte-me, isto é demais.”
Augusto
desaparece, entrando no Hotel Rio. Raimundo treme convulsivamente e cai,
desmaiado. Fica estendido algum tempo com a cara na sarjeta, molhado pela forte
chuva, uma espuma branca escorrendo do canto da boca, sem despertar a atenção
das almas caridosas, da polícia ou dos transeuntes em geral. Afinal, a água da
sarjeta escorrendo sobre o seu rosto o faz voltar a si; Raimundo consegue
forças para levantar-se e caminhar tropegamente à procura do demônio; transpõe
a praça, cruza a rua Visconde do Rio Branco, avança cambaleante por entre os
músicos desempregados que se reúnem na esquina da avenida Passos sob a marquise
do Café Capital, do lado oposto ao Teatro João Caetano; passa na porta da
igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, sente o cheiro das velas sendo queimadas
lá dentro e atravessa a rua para o lado do teatro, correndo a fim de se livrar
dos automóveis; em todas as ruas da cidade os automóveis batem uns nos outros à
procura de espaço para se locomoverem e passam por cima das pessoas mais lentas
ou distraídas. Tonto, Raimundo apoia-se por uns instantes na base da estátua de
bronze de um homenzinho gordo cheio de cocô de pombos, de saiote grego e
sandálias gregas segurando uma espada, em frente ao teatro; ao lado, um camelô
que vende cuecas e fitas métricas finge que não vê seu sofrimento. Raimundo
vira à esquerda na rua Alexandre Herculano, uma rua pequena que só tem uma
porta, a porta dos fundos da Faculdade de Filosofia que parece nunca ser usada,
e afinal entra numa lanchonete na rua da Conceição, onde toma um suco de goiaba
e rememora seu inominável encontro. Ele descobriu o nome sob o qual Satã se
esconde, Augusto Epifânio. Augusto: magnífico, majestoso; Epifânio: oriundo de
manifestação divina. Ah! Ele não podia esperar outra coisa de Belzebu senão
soberba e zombaria. E se esse que finge se chamar Augusto Epifânio não for o
próprio Coisa Ruim é no mínimo um sócio dos seus malefícios. Lembra-se do
versículo 22,18 do Êxodo: “Tu castigarás de morte aqueles que usarem de
sortilégios, e de encantamentos”.
Volta a trovejar e a chover.
Mojica,
o ex-apanhador de mulher gorda, diz a Augusto que os negócios não estão muito
bons, a crise também o atingiu, está até pensando em voltar ao antigo negócio;
por motivos que ele não sabe explicar, aumentou na cidade a quantidade de
coroas gordas com dinheiro querendo casar com um homem magro cheio de músculos
e de pau grande como ele, as gordas são crédulas, têm bom gênio, quase sempre
estão jogadas fora e não dão muito trabalho para serem engrupidas. “Basta uma
por ano para o degas aqui levar uma vida confortável; e a cidade é grande.”
Da
praça Tiradentes, descartando parte das instruções de Benevides, Augusto vai
para a rua do Jogo da Bola seguindo pela avenida Passos até a avenida
Presidente Vargas; atravessar a Presidente Vargas, mesmo no sinal de trânsito,
é sempre perigoso, está sempre morrendo gente atropelada naquela rua, e Augusto
espera o momento certo e atravessa a rua correndo por entre os automóveis que
passam velozes nas duas direções e chega do outro lado esbaforido mas com a
sensação eufórica de quem conseguiu realizar uma proeza; descansa alguns
minutos antes de seguir pela direita até a rua dos Andradas, dali até a rua
Júlia Lopes de Almeida, de onde vê o morro da Conceição e logo chega na rua
Tenente Coronel Julião, anda alguns metros e afinal encontra a rua do Jogo da
Bola.
“Onde
é que eu encontro o Zé Galinha?”, ele pergunta a um homem de bermudas, sandália
havaiana e camiseta de meia com um cordão de contas de três voltas enrolado no pescoço,
mas o homem olha para Augusto com cara feia, não responde e se afasta. Mais
adiante Augusto vê um menino. “Onde é que eu encontro o chefe dos mendigos?”,
pergunta, e o menino responde “o tio me arranja uns trocadinhos?”. Augusto dá
um dinheiro para o menino. “Não conheço quem o senhor falou”, diz o menino,
“vai até a esquina da praça Major Valô, lá fica um pessoal que pode dizer pro
senhor.”
Na
esquina da praça Major Valô estão alguns homens e Augusto se dirige para eles.
Ao se aproximar, nota que está no grupo o homem de bermudas e colar de contas
de três voltas no pescoço. “Bom dia”, diz Augusto, e ninguém responde. Um negro
grande, sem camisa, pergunta “quem foi que disse que meu nome é Zé Galinha?”.
Augusto
percebe que não é bem-vindo. Um dos homens tem um porrete na mão.
“Foi
o Benevides, que mora na rua do Carmo, esquina da Sete de Setembro.”
“Aquele
nego bebo é um vendido, feliz por poder morar numa caixa de papelão, agradecido
por poder apanhar papel na rua e vender pros tubarões. Esse tipo de gente não
apoia nosso movimento.”
“Alguém
tem que dar uma lição nesse puto”, diz o homem do porrete, e Augusto fica na
dúvida se o puto é ele ou o Benevides.
“Ele
disse que o senhor é o presidente da União dos Mendigos.”
“E
você quem é?”
“Estou
escrevendo um livro chamado A arte de
andar nas ruas do Rio de Janeiro.”
“Mostra
o livro”, diz o sujeito do colar de três voltas.
“Não
está comigo, não está pronto.”
“Como
é o seu nome?”
“Aug
– Epifânio.”
“Que
merda de nome é esse?”
“Revista
ele”, diz Zé Galinha.
Augusto
deixa-se revistar pelo homem do porrete. Este dá para Zé Galinha a caneta, a
carteira de identidade, o dinheiro, o pequeno bloco de papel e a pedra dentro
de um saquinho de pano que Augusto ganhou do apanhador de mulher gorda.
“Esse
cara é lelé”, diz um preto velho, que observa os acontecimentos.
Zé
Galinha pega Augusto pelo braço. Diz: “Vou conversar com ele”.
Os
dois caminham até o beco Escada da Conceição.
“Olha
aqui, ô distinto, primeiro meu nome não é Zé Galinha, é Zumbi do Jogo da Bola,
entendeu? E depois eu não sou presidente de porra nenhuma de União dos
Mendigos, isso é sacanagem da oposição. Nosso nome é União dos Desabrigados e
Descamisados, a UDD. Nós não pedimos esmolas, não queremos esmolas, exigimos o
que tiraram da gente. Não nos escondemos debaixo das pontes e dos viadutos ou
dentro de caixas de papelão como esse puto do Benevides, nem vendemos chiclete
e limão nos cruzamentos.”
“Correto”,
diz Augusto.
“Queremos
ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, nossa sujeira, que sintam o nosso
bodum em toda parte; que nos observem fazendo nossa comida, dormindo, fodendo,
cagando nos lugares bonitos onde os bacanas passeiam ou moram. Dei ordem para
os homens não fazerem a barba, para os homens e mulheres e crianças não tomarem
banho nos chafarizes, nos chafarizes a gente mija e caga, temos que feder e
enojar como um monte de lixo no meio da rua. E ninguém pede esmolas. É
preferível a gente roubar do que pedir esmola.”
“Vocês
não têm medo da polícia?”
A
polícia não tem lugar para botar a gente, as cadeias estão repletas e somos
muitos. Ela prende e tem que soltar. E fedemos demais para eles terem vontade
de bater na gente. Eles tiram a gente da rua e a gente volta. E se matarem
alguns de nós, e acho que isso vai acontecer a qualquer momento, e é até bom
que aconteça, a gente pega o corpo e exibe a carcaça pelas ruas como fizeram
com a cabeça do Lampião.”
“Você
sabe ler?”
“Se
não soubesse ler estava morando feliz dentro de uma caixa de papelão apanhando
restos.”
“Onde
vocês conseguem recursos para a associação de vocês?”
“Acabou
o papo, Epifânio. Guarda o meu nome, Zumbi do Jogo da Bola, cedo ou tarde você
vai ouvir falar de mim, e não será pelo bunda-suja do Benevides. Pega tuas
coisas e te manda.”
Augusto
volta para o sobrado da Sete de Setembro descendo do beco Escada da Conceição
até a praça Major Valô. Segue pela ladeira João Homem até a travessa Liceu,
onde tem um lugar chamado Casa do Turista, dali para a rua do Acre, depois rua
Uruguaiana. A Uruguaiana está ocupada por tropas de choque da Polícia Militar,
portando escudos, capacetes com viseiras, cassetetes, metralhadoras, bombas de
gás. As lojas estão fechadas.
“Isso
é para você”, diz Augusto.
“Não,
muito obrigada. Você pensa que eu sou um cachorro de circo? Estou aprendendo a
ler porque quero. Não preciso de agradinhos.”
“Toma,
é uma ametista.”
Kelly
pega a pedra e joga com força para cima. A pedra bate na claraboia e cai no
chão. Kelly dá um pontapé na cadeira, amassa o jornal numa bola, que joga em
cima de Augusto. Outras putas já tinham feito coisas ainda piores, elas têm
ataques de nervos quando ficam muito tempo sozinhas com um cara e ele não quer
deitar com elas; uma quis pegar Augusto à força e deu uma mordida na orelha
dele arrancando a orelha inteira, que ela cuspiu na latrina e puxou a descarga.
“Você
está maluca? Podia quebrar essa claraboia, ela tem mais de cem anos, ia matar o
Velho de desgosto.”
“Você
pensa que eu estou engalicada, ou com AIDS, é isso?”
“Não.”
“Quer
ir ao médico comigo pra ele me examinar? Você vai ver que eu não tenho doença
nenhuma.”
Kelly
está quase chorando, e com a careta que faz aparece a falha do dente, o que lhe
dá um ar sofredor, desamparado, lembra os dentes que ele, Augusto, não tem e
desperta nele um amor fraterno e uma desconfortável pena, dela e dele.
“Você
não quer deitar comigo, não quer ouvir a história da minha vida, eu faço tudo
por você, aprendi a ler, trato bem dos seus ratos, cheguei a abraçar uma árvore
no Passeio Público e você nem tem uma orelha e eu nunca falei nisso que você
nem tem uma orelha pra não te chatear.”
“Quem
abraçou a árvore fui eu.”
“Você
não sente vontade?”, ela grita.
“Nem
tenho desejo, nem esperança, nem fé, nem medo. Por isso ninguém pode me fazer
mal. Ao contrário do que o Velho disse, a falta de esperança me libertou.”
“Eu
te odeio!”
“Não
grita que você vai acordar o Velho.”
O
Velho mora nos fundos da loja, embaixo.
“Como
é que eu vou acordar ele se ele não dorme?”
“Não
gosto de ver você gritando.”
“Grito!
Grito!”
Augusto
abraça Kelly e ela fica soluçando com o rosto encostado no peito dele. As
lágrimas de Kelly molham a camisa de Augusto.
“Por
que você não me leva ao convento de Santo Antônio? Por favor, me leva ao
convento de Santo Antônio.”
Santo
Antônio é considerado um santo casamenteiro. Nas terças-feiras o convento se
enche de mulheres solteiras de todas as idades fazendo promessa para o santo. É
um dia muito bom para os mendigos, pois as mulheres, depois de rezarem para o
santo, dão sempre esmolas para os miseráveis pedintes, o santo pode estar
notando aquele gesto de caridade e resolver favoravelmente o pedido delas.
Augusto
não sabe o que fazer com Kelly. Diz que vai à loja conversar com o Velho.
O
Velho está deitado, no quartinho do fundo da loja. É uma cama tão estreita que
ele só não cai dela porque não dorme nunca.
“Posso
falar um pouco com o senhor?”
O
Velho senta na cama. Faz um gesto para Augusto sentar-se ao seu lado.
“Por
que as pessoas querem continuar vivas?”
“Você
quer saber por que eu quero continuar vivo, sendo tão velho?”
“Não,
todas as pessoas.”
“Por
que você quer continuar vivendo?”,
pergunta o Velho.
“Eu
gosto das árvores. Quero acabar de escrever meu livro. Mas às vezes penso em me
matar. Hoje Kelly me abraçou chorando e tive vontade de morrer.”
“Você
quer morrer para acabar com o sofrimento dos outros? Nem Cristo conseguiu
isso.”
“Não
me fale em Cristo”, diz Augusto.
“Eu
fico vivo porque não sinto muitas dores no corpo e gosto de comer. E tenho boas
lembranças. Também ficaria vivo, se não tivesse lembrança alguma”, diz o Velho.
“E
a esperança?”
“A
esperança na verdade só liberta os jovens.”
“Mas
você disse no Timpanas...”
“Que
a esperança é uma espécie de libertação... Mas você precisa ser jovem para
gozar isso.”
Augusto
sobe as escadas de volta para o sobrado.
“Dei
queijo para os ratos”, diz Kelly.
“Você
tem alguma lembrança boa da sua vida?”, pergunta Augusto.
“Não,
minhas lembranças são todas horríveis.”
“Vou
sair”, diz Augusto.
“Você
volta?”, pergunta Kelly.
Augusto
diz que vai andar nas ruas. Solvitur ambulando.
Na
rua do Rosário, vazia, pois já é noite, perto do mercado das flores, vê um
sujeito arrebentando um telefone de orelhão, não é a primeira vez que ele
encontra esse indivíduo. Augusto não gosta de se meter na vida dos outros, essa
é a única maneira de andar nas ruas de madrugada, mas Augusto não gosta do
quebrador de cabines telefônicas, não porque se importe com os telefones, desde
que saiu da companhia de águas e esgotos nunca mais falou num telefone, mas não
gosta da cara do homem, grita “para com essa merda”, e o depredador sai
correndo em direção à praça Monte Castelo.
Agora
Augusto está na rua do Ouvidor, indo em direção à rua do Mercado, onde não há
mais mercado algum, antes havia um, uma estrutura monumental de ferro pintada
de verde, mas foi demolido e deixaram apenas uma torre. A rua do Ouvidor, que
de dia está sempre tão cheia de gente que não se pode andar nela sem dar
encontrões nos outros, está deserta. Augusto caminha pelo lado ímpar da rua e
dois sujeitos vêm vindo em sentido contrário, do mesmo lado da rua, a uns
duzentos metros de distância. Augusto apressa o passo. De noite não basta andar
depressa nas ruas, é preciso também evitar que o caminho seja obstruído, e
assim ele passa para o lado par. Os dois sujeitos passam para o lado par e
Augusto volta para o lado ímpar. Algumas lojas têm vigias, mas os vigias não
são bestas de se meterem nos assaltos dos outros. Agora os sujeitos se separam
e um vem pelo lado par e outro pelo lado ímpar. Augusto continua andando, mais
apressado, em direção ao sujeito do lado par, que não aumentou a velocidade dos
seus passos, parece até que diminuiu um pouco o ritmo da sua passada, um homem
magro, com a barba por fazer, uma camisa de grife e tênis sujo, que troca um
olhar com o seu parceiro do outro lado, meio surpreso com o ímpeto da marcha de
Augusto. Quando Augusto está a cerca de cinco metros do homem do lado par, o
sujeito do lado ímpar atravessa a rua e junta-se ao seu comparsa. Os dois
param. Augusto aproxima-se mais e, quando está a pouco mais de um metro dos
homens, atravessa a rua para o lado ímpar e segue em frente sempre na mesma
velocidade. “Hei!”, diz um dos sujeitos. Mas Augusto continua a sua marcha sem
virar a cabeça, a orelha boa atenta ao barulho de passos às suas costas, pelo
som será capaz de saber se os perseguidores andam ou correm atrás dele. Quando
chega no cais Pharoux, olha para trás e não vê ninguém.
Seu
Casio Melody toca a música de Haydn das três da madrugada, está na hora de
escrever seu livro, mas ele não quer voltar para casa e encontrar Kelly.
Solvitur ambulando. Vai até o cais dos Mineiros, caminha até a estação das
barcas, na praça Quinze, ouvindo o mar bater na muralha de pedra.
Espera o dia raiar, em pé na beira do cais. As águas do mar fedem. A maré sobe e baixa de encontro ao paredão do cais, causando um som que parece um suspiro, um gemido. É domingo, o dia surge cinzento; aos domingos a maioria dos restaurantes do centro não abre; como todo domingo, será um dia ruim para os miseráveis que vivem dos restos de comida jogados fora.
(In: Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 593-627. Publicado originalmente em Romance Negro e outras histórias, 1992.)
***
Esta é, incrédulos do mundo inteiro, a
verdadeira história da Mamãe Grande, soberana absoluta do reino de Macondo, que
viveu em função de domínio durante 92 anos e morreu com cheiro de santidade
numa terça-feira de setembro passado e a cujos funerais veio o Sumo Pontífice.
Agora que a nação sacudida em suas entranhas recobrou o equilíbrio; agora que os gaiteiros de San Jacinto, os contrabandistas da Guajira, os arrozeiros do Sinu, as prostitutas de Guacamayal, os feiticeiros da Sierpe e os bananeiros de Aracataca penduraram suas redes para restabelecer-se da extenuante vigília e que recuperaram a serenidade e voltaram a tomar posse de seus cargos o presidente da República e seus ministros e todos aqueles que representaram o poder público e as potências sobrenaturais na mais esplêndida ocasião funerária que registram os anais históricos; agora que o Sumo Pontífice subiu aos Céus em corpo e alma e que é impossível transitar em Macondo por causa das garrafas vazias, das pontas de cigarro, dos ossos roídos, das latas e trapos e excrementos deixados pela multidão que veio ao enterro, agora é a hora de encostar um tamborete à porta da rua e começar a contar desde o princípio os pormenores desta comoção nacional, antes que os historiadores tenham tempo de chegar.
Há quatorze semanas, depois de intermináveis noites de cataplasmas, sinapismos e ventosas, demolida pela delirante agonia, a Mamãe Grande ordenou que a sentassem em sua velha cadeira de balanço de cipó para expressar sua última vontade. Era o único requisito que lhe faltava para morrer. Aquela manhã, por intermédio do padre Antonio Isabel, tinha arrumado os negócios de sua alma e só lhe faltava arrumar os de suas arcas com os nove sobrinhos, seus herdeiros universais, que velavam em torno do leito. O pároco, falando sozinho e prestes a completar cem anos, permanecia no quarto. Foram precisos dez homens para subi-lo até o quarto da Mamãe Grande, e decidira-se que ele ficaria ali, para não se ter de descê-lo e tornar a subi-lo no minuto final.
Nicanor, o sobrinho mais velho, hercúleo e montanhês, vestido de cáqui, botas com esporas e um revólver calibre 38, cano longo, ajustado sob a camisa, foi em busca do notário. A enorme mansão de dois andares, cheirando a melaço e a orégão, com seus escuros aposentos abarrotados de grandes arcas e quinquilharias de quatro gerações convertidas em pó, paralisara-se desde a semana anterior na expectativa daquele momento. No profundo corredor central, cheio de ganchos nas paredes, onde em outro tempo se penduravam porcos esfolados e se sangravam veados nos sonolentos domingos de agosto, os peões dormiam amontoados sobre sacos de sal e instrumentos agrícolas, esperando a ordem de selar os cavalos para divulgar a má notícia no âmbito da fazenda imensurável. O resto da família estava na sala. As mulheres lívidas, esgotadas pela herança e pela vigília, guardavam um luto fechado que era uma soma de incontáveis lutos superpostos. A rigidez matriarcal da Mamãe Grande tinha cercado sua fortuna e seu nome com uma auréola sacramental, dentro da qual os tios se casavam com as filhas das sobrinhas, e os primos com as tias, e os irmãos com as cunhadas, até formar um intrincado emaranhado de consanguinidade que converteu a procriação em um círculo vicioso. Só Magdalena, a menor das sobrinhas, logrou escapar ao cerco; aterrorizada pelas alucinações, fez-se exorcizar pelo padre Antonio Isabel, raspou a cabeça e renunciou às glórias e vaidades do mundo no noviciado da Prefeitura Apostólica. À margem da família oficial, e em exercício do direito de pernada, os varões tinham fecundado fazendas, lugarejos e casarios com toda uma descendência bastarda, que circulava entre a criadagem sem nome a título de afilhados, dependentes favoritos e protegidos da Mamãe Grande.
A iminência da morte removeu a extenuante expectativa. A voz da moribunda, acostumada à homenagem e à obediência, não foi mais sonora que um baixo de órgão no quarto fechado, mas ressoou nos mais afastados rincões da fazenda. Ninguém era indiferente a essa morte. Durante o presente século, a Mamãe Grande fora o centro de gravidade de Macondo, como seus irmãos, seus pais e os pais de seus pais o foram no passado, em uma hegemonia que preenchia dois séculos. A aldeia foi fundada em torno de seu nome. Ninguém conhecia a origem, nem o limite nem o valor real do patrimônio, mas todo mundo acostumara-se a acreditar que a Mamãe Grande era dona das águas correntes e paradas, chovidas e por chover, e dos caminhos vicinais, dos postes do telégrafo, dos anos bissextos e do calor e que tinha além disso um direito herdado sobre vida e fazendas. Quando se sentava para gozar a fresca da tarde na varanda de sua casa, com todo o peso de suas vísceras e de sua autoridade aplastado em sua velha cadeira de balanço de cipó, parecia de fato infinitamente rica e poderosa, a matrona mais rica e poderosa do mundo.
A ninguém teria ocorrido pensar que a Mamãe Grande fosse mortal, salvo aos membros de sua tribo, e a ela mesma, aguilhoada pelas premonições senis do padre Antonio Isabel. Ela acreditava, porém, que viveria mais de 100 anos, como sua avó materna, que na guerra de 1875 enfrentou uma patrulha do coronel Aureliano Buendía, entrincheirada na cozinha da fazenda. Só em abril deste ano a Mamãe Grande compreendeu que Deus não lhe concederia o privilégio de liquidar pessoalmente, em franca refrega, uma horda de maçons federalistas.
Na primeira semana de dores o médico da
família entreteve-a com cataplasmas de mostarda e meias de lã. Era um médico
hereditário, laureado em Montpellier, contrário por convicção filosófica aos progressos de sua ciência,
a quem a Mamãe Grande havia
concedido a prebenda de que se
proibisse o estabelecimento de outros médicos em Macondo. Houve uma época em
que ele percorria o povoado a cavalo,
visitando os lúgubres enfermos do entardecer e a natureza concedeu-lhe o
privilégio de ser pai de numerosos filhos alheios. O artritismo,
porém, ancilosou-o numa rede e acabou por atender os seus pacientes sem
visitá-los, por meio de suposições, mexericos e recados. Solicitado pela Mamãe
Grande, atravessou a praça de pijama, apoiado em duas bengalas, e se instalou
no quarto da doente. Só quando compreendeu que a Mamãe Grande agonizava, mandou
trazer uma arca com frascos de porcelana com inscrições em latim e durante três
semanas besuntou a moribunda por dentro e por fora com todo tipo de emplastros
acadêmicos, julepes magníficos e supositórios magistrais. Depois aplicou-lhe
sapos defumados no lugar da dor e sanguessugas nos rins, até a madrugada
daquele dia em que teve que enfrentar a
alternativa de fazê-la sangrar pelo barbeiro ou exorcizar pelo padre Antonio
Isabel.
Nicanor mandou buscar o pároco. Seus dez
melhores homens o levaram da casa paroquial até o dormitório da Mamãe Grande,
sentado na sua crepitante cadeira de balanço de vime sob o bolorento pálio das
grandes ocasiões. A campainha do Viático no morno amanhecer de setembro foi o
primeiro aviso aos habitantes de Macondo. Quando o sol apareceu, a pracinha em
frente à casa de Mamãe Grande parecia uma feira rural.
Era como uma lembrança de outra época. Até completar 70 anos, a Mamãe Grande comemorou seu aniversário com as feiras mais prolongadas e tumultuosas de que se tem memória. Punham-se garrafões de aguardente à disposição do povo, sacrificavam-se reses na praça pública e uma banda de música instalada em um palanque tocava sem parar durante três dias. Debaixo das amendoeiras empoeiradas onde na primeira semana do século acamparam as legiões do coronel Aureliano Buendía, vendiam-se aguardente de arroz, pamonhas, chouriços, torresmos, pastéis, salsichas, bolinhos de aipim, pãezinhos de queijo, bolinhos de milho, empadas, linguiças, dobradinhas, cocadas, garapas, entre todos os tipos de miudezas, bagatelas, cacarecos e trambolhos, e ingressos de rinhas de galo e bilhetes de loteria. Em meio à confusão da multidão alvoroçada, vendiam-se quadros e escapulários com a imagem da Mamãe Grande.
As festividades começavam na antevéspera e terminavam no dia do aniversário, com um estrondo de fogos de artifício e um baile familiar na casa da Mamãe Grande. Os seletos convidados e os membros legítimos da família, generosamente servidos pelos bastardos, dançavam ao compasso da velha pianola equipada com rolos da moda. Mamãe Grande presidia a festa do fundo do salão, em uma poltrona com almofadas de linho, distribuindo discretas instruções com sua mão direita adornada de anéis em todos os dedos. Às vezes de cumplicidade com os namorados, mas quase sempre aconselhada por sua própria inspiração, naquela noite engrenava os casamentos do ano entrante. Para coroar a festa, a Mamãe Grande saía ao balcão enfeitado com diademas e lanternas de papel, e jogava moedas para a multidão.
Aquela tradição fora interrompida, em
parte pelas sucessivas divergências da família, em parte pela incerteza política dos últimos tempos. As novas
gerações conheceram apenas de ouvido aquelas manifestações de esplendor. Não
chegaram a ver a Mamãe Grande na missa principal, abanada por algum membro do
poder civil, desfrutando o privilégio de não se ajoelhar nem mesmo na hora da
elevação para não estragar sua saia de volantes holandeses e suas anáguas engomadas de cambraia. Os velhos
recordavam como uma alucinação da juventude os duzentos metros de tapete que se
estenderam da casa-grande até o altar-mor, na tarde em que Maria del Rosário
Castañeda y Montero assistiu aos funerais de seu pai, e voltou pela rua
atapetada investida de sua nova e irradiante dignidade, transformada aos 22
anos de idade na Mamãe Grande. Aquela visão medieval pertencia então não só ao
passado da família, como ao passado da nação. Cada vez mais imprecisa e
distante, visível somente em seu balcão sufocado então pelos gerânios nas
tardes de calor, Mamãe Grande esfumava-se em sua própria lenda. Sua autoridade
exercia-se através de Nicanor. Existia a promessa tácita, formulada pela
tradição, de que no dia em que a Mamãe Grande lacrasse seu testamento, os
herdeiros decretariam três noites de festejos públicos. Sabia-se também,
todavia, que ela decidira não expressar a sua última vontade até poucas horas
antes de morrer e ninguém pensava seriamente na possibilidade de que a Mamãe
Grande fosse mortal. Somente naquela madrugada, acordados pelos chocalhos do
Viático, os habitantes de Macondo se convenceram de que a Mamãe Grande não só
era mortal, como também estava morrendo.
Sua hora tinha chegado. Na cama
acortinada, lambuzada de aloés até as orelhas, sob o toldo de escumilha empoeirada, apenas se
adivinhava a vida na tênue respiração de suas tetas matriarcais. Mamãe Grande,
que até os cinquenta anos recusara os mais apaixonados pretendentes, e que fora
dotada pela natureza para amamentar sozinha toda a sua espécie, agonizava
virgem e sem filhos. No momento da extrema-unção, o padre Antonio Isabel teve
que pedir ajuda para lhe aplicar os óleos na palma das mãos, pois desde o
início de sua agonia a Mamãe Grande tinha os punhos cerrados. De nada adiantou
a ajuda das sobrinhas. Em sua resistência, pela primeira vez em uma semana, a
moribunda apertou contra o peito a mão constelada de pedras preciosas
e fixou nas sobrinhas um olhar sem cor, dizendo:
“Assaltantes.”
Depois viu o padre Antonio Isabel em indumentária litúrgica
e o sacristão com os instrumentos sacramentais e murmurou com uma convicção
tranquila: “Estou morrendo.” Tirou então o anel com o Diamante Maior e deu-o a
Magdalena, a noviça, a quem tocava, por ser a herdeira caçula. Aquele era o
final de uma tradição: Magdalena tinha renunciado à herança em favor da Igreja.
Ao amanhecer, a Mamãe Grande pediu que a
deixassem a sós com Nicanor para transmitir suas últimas instruções. Durante
meia hora, com perfeito domínio de suas faculdades, informou-se sobre o
andamento dos negócios. Deu instruções especiais sobre o destino de seu cadáver
e por último ocupou-se do velório.
“Você precisa ficar com os olhos abertos”, disse. “Guarde sob chave todas as coisas de valor, pois muita gente só vai aos
velórios para roubar.” Pouco depois, a sós com o pároco, fez uma
confissão dispendiosa, sincera e
detalhada, e comungou mais tarde na presença dos sobrinhos. Foi então que pediu
que a sentassem na cadeira de balanço de cipó para expressar sua última
vontade.
Nicanor tinha preparado, em vinte e
quatro folhas escritas com letra bem clara, uma escrupulosa relação de seus
bens. Respirando tranquilamente, com o médico e o padre Antonio Isabel por
testemunhas, a Mamãe Grande ditou ao notário a lista de suas propriedades,
fonte suprema e única de sua grandeza e autoridade. Reduzido às suas proporções
reais, o patrimônio físico se limitava a três sesmarias adjudicadas por Cédula
Real durante a Colônia, e que com o transcurso do tempo, em virtude de
intrincados casamentos de conveniência, tinham-se acumulado sob o domínio da
Mamãe Grande. Nesse território ocioso, sem limites definidos, que abarcava
cinco municípios e no qual jamais se semeou um só grão por conta dos
proprietários, viviam a título de arrendatárias 352 famílias. Todos os anos, em
vésperas de seu aniversário, a Mamãe Grande exercia o único ato de domínio que
havia impedido o retorno das terras ao estado:
a cobrança dos arrendamentos. Sentada no pátio interior da casa, ela recebia pessoalmente o pagamento pelo direito de
habitar em suas terras, como durante mais de um século o receberam seus
antepassados dos antepassados dos arrendatários. Passados os três dias da
coleta, o pátio estava abarrotado de porcos, perus e galinhas e dos dízimos e
primícias sobre os frutos da terra
que se depositavam ali como presentes. Na realidade, essa era a única colheita
que a família extraía de um território morto desde suas origens, calculado à
primeira vista em 100 mil hectares.
As circunstâncias históricas haviam disposto, porém, que dentro desses limites
crescessem e prosperassem os seis povoados do distrito de Macondo, inclusive a
cabeça do município, de modo que todos os que habitavam uma casa teriam direito
de propriedade apenas sobre o material, pois a terra pertencia à Mamãe Grande e
a ela se pagava o aluguel, como o governo tinha que pagá-lo pelo uso que os cidadãos
faziam das ruas.
Nos arredores dos povoados vagava um
número jamais contado de animais marcados nos quartos traseiros com a forma de
um cadeado. A marca hereditária, que mais pela desordem que pela quantidade se
tinha feito familiar em remotos municípios aonde chegavam no verão, mortas de
sede, as reses dispersas, era um dos mais sólidos suportes da lenda. Devido a
razões que ninguém se detivera a explicar, as extensas cavalariças da casa
esvaziaram-se progressivamente desde a última guerra civil, e nos últimos
tempos instalaram-se nelas trapiches de cana, currais de ordenha e uma usina de arroz.
Fora o enumerado, constava do testamento a existência de três potes cheios de moedas de ouro, enterrados em algum lugar da casa durante a guerra da Independência, que não foram encontrados em periódicas e laboriosas escavações. Com o direito de continuar a exploração da terra arrendada e de receber os dízimos e primícias e todo tipo de dádivas extraordinárias, os herdeiros recebiam também um mapa levantado de geração em geração, e aperfeiçoado por cada geração, que facilitaria o encontro do tesouro enterrado.
Mamãe Grande precisou de três horas para
enumerar seus assuntos terrenos. No abafamento do quarto, a voz da moribunda
parecia dignificar em seu lugar cada coisa enumerada. Quando estampou sua
assinatura trêmula, e sob ela as testemunhas estamparam as suas, um tremor secreto sacudiu o coração da multidão que
começava a concentrar-se diante da casa, à sombra das amendoeiras empoeiradas.
Só faltava então o relato minucioso dos
bens morais. Fazendo um esforço supremo — o mesmo que fizeram seus antepassados
antes de morrer para assegurar o predomínio de sua espécie — Mamãe Grande
ergueu-se sobre as nádegas monumentais, e com voz dominante e sincera, abandonada
à sua memória, ditou ao notário a lista de seu patrimônio invisível:
A riqueza do subsolo, as águas
territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos
tradicionais, os direitos do homem, as liberdades do cidadão, o primeiro
magistrado, a segunda instância, a terceira discussão, as cartas de recomendação, as contingências históricas, as eleições livres, as rainhas de beleza, os discursos
transcendentais, as grandiosas manifestações,
as distintas senhoritas, os corretos cavalheiros, os pundonorosos
militares, sua senhoria ilustríssima, a corte suprema de justiça, os artigos de
importação proibida, as damas liberais, o problema da carne, a pureza da
linguagem, os exemplos para o mundo, a ordem jurídica, a imprensa livre mas
responsável, a Atenas sul-americana, a opinião pública, as lições democráticas,
a moral cristã, a escassez de divisas, o direito de asilo, o perigo comunista,
a nave do estado, a carestia da vida, as tradições republicanas, as classes
desfavorecidas, as mensagens de adesão.
Não chegou a terminar. A trabalhosa
enumeração abreviou seu último suspiro. Afogando-se no mare magnum de fórmulas abstratas que durante dois séculos
constituíram a justificação moral do
poderio da família, Mamãe Grande emitiu um sonoro arroto e expirou.
Os habitantes da capital
distante e sombria viram nessa tarde
o retrato de uma mulher
de vinte anos na primeira página das edições extraordinárias e pensaram
que era uma nova rainha de beleza. Mamãe Grande vivia outra vez a momentânea
juventude de sua fotografia, ampliada em quatro colunas e com retoques
urgentes, a abundante cabeleira presa no alto do crânio com um pente de marfim
e um diadema sobre a gola de rendas. Aquela imagem, captada por um fotógrafo ambulante que passou por Macondo
no começo do século e arquivada pelos jornais durante muitos anos na divisão de
personagens desconhecidos, estava destinada a perdurar na memória das gerações
futuras. Nos ônibus decrépitos, nos elevadores dos ministérios, nos lúgubres salões
de chá forrados de pálidos cartazes, sussurrou-se com veneração e respeito
sobre a autoridade morta em seu distrito de calor e malária, cujo nome se
ignorava no resto do país até há poucas horas, antes de ser consagrado pela
palavra impressa. Uma chuvinha miúda cobria os transeuntes de receio e de limo.
Os sinos de todas as igrejas dobravam a finados. O presidente da República,
surpreendido pela notícia quando se dirigia para o ato de graduação dos novos
cadetes, sugeriu ao ministro da Guerra, em um bilhete escrito de seu próprio
punho e letra no avesso do telegrama, que concluísse seu discurso com um minuto
de silêncio em homenagem à Mamãe Grande.
A ordem social fora arranhada pela morte. O próprio presidente da República, a quem os sentimentos urbanos chegavam como que através de um filtro de purificação, pôde perceber de seu automóvel, em uma visão instantânea mas até certo ponto brutal, a silenciosa consternação da cidade. Só permaneciam abertos alguns botequins vagabundos, e a Catedral Metropolitana, preparada para nove dias de honras fúnebres. No Capitólio Nacional, onde os mendigos envoltos em papéis dormiam ao amparo de colunas dóricas e taciturnas estátuas de presidentes mortos, as luzes do Congresso estavam acesas. Quando o primeiro mandatário entrou em seu gabinete, comovido pela visão da capital enlutada, seus ministros o esperavam vestidos de tafetás funerários, de pé, mais solenes e pálidos do que de costume.
Os acontecimentos daquela noite e das
seguintes seriam mais tarde definidos como uma lição histórica. Não só pelo
espírito cristão que inspirou os mais elevados personagens do poder público,
como pela abnegação com que se conciliaram interesses díspares e critérios
contrapostos, no propósito comum de enterrar um cadáver ilustre. Durante muitos
anos Mamãe Grande garantira a paz social e a concórdia política de seu império,
em virtude dos três baús de cédulas eleitorais falsas que formavam parte de seu
patrimônio secreto. Os varões da criadagem, seus protegidos e arrendatários, maiores
e menores de idade, exerciam não só seu próprio direito de sufrágio, como
também o dos eleitores mortos em um século. Ela era a prioridade do poder
tradicional sobre a autoridade transitória, o predomínio da classe sobre a
plebe, a transcendência da sabedoria divina sobre a improvisação mortal. Em
tempos pacíficos, sua vontade hegemônica concedia, e retirava prelazias,
prebendas e sinecuras, e velava pelo bem-estar dos associados mesmo que para
consegui-lo tivesse que recorrer à trapaça ou à fraude eleitoral. Em tempos
tormentosos, Mamãe Grande contribuiu em segredo para armar seus partidários e
prestou de público socorro às vítimas. Esse zelo patriótico a credenciava às
mais altas honras.
O presidente da República não precisara
recorrer aos seus conselheiros para medir o peso de sua responsabilidade. Entre
a sala de audiências do Palácio e o pequeno pátio lajeado que serviu de
cocheira aos vice-reis, havia um jardim interior de ciprestes sombrios onde um
frade português se enforcou por amor nos últimos tempos da colônia. Apesar de
sua ruidosa guarda de oficiais condecorados, o presidente não podia reprimir um
ligeiro tremor de inquietação quando passava por esse lugar depois do
crepúsculo. Àquela noite, porém, o tremor teve a força de uma premonição. Adquiriu
então plena consciência de seu destino histórico, e decretou nove dias de luto
nacional, e homenagens póstumas à Mamãe Grande na categoria de heroína morta
pela pátria no campo de batalha. Como
o expressou no dramático discurso que dirigiu àquela madrugada aos seus
compatriotas através da cadeia nacional de rádio e televisão, o primeiro
mandatário da nação confiava em que os funerais da Mamãe Grande se
constituíssem num novo exemplo para o mundo.
Tão altos propósitos deviam tropeçar sem dúvida em graves inconvenientes. A estrutura jurídica do país, construída por remotos ascendentes da Mamãe Grande, não estava preparada para acontecimentos como os que começavam a se produzir. Sábios doutores da lei, comprovados alquimistas do direito mergulharam em hermenêuticas e silogismos, em busca da forma que permitisse ao presidente da República assistir aos funerais. Viveram-se dias de sobressalto nas altas esferas da política, do clero e das finanças. No vasto hemiciclo do Congresso, rarefeito por um século de legislação abstrata, entre retratos a óleo de próceres nacionais e bustos de pensadores gregos, a evocação da Mamãe Grande alcançou proporções insuspeitáveis, enquanto seu cadáver se enchia de borbulhas no duro setembro de Macondo. Pela primeira vez falou-se dela e pensou-se nela sem sua cadeira de balanço de cipó, seus cochilos às duas da tarde e suas cataplasmas de mostarda, e ela foi vista pura e sem idade, destilada pela lenda.
Horas intermináveis encheram-se de palavras, palavras, palavras que repercutiam no âmbito da República, prestigiadas pelas sumidades da palavra impressa. Até que alguém dotado de sentido da realidade naquela assembleia de jurisconsultos ascéticos interrompeu o blá-blá-blá histórico para lembrar que o cadáver da Mamãe Grande esperava a decisão a 40 graus à sombra. Ninguém se perturbou diante daquela irrupção do senso comum na atmosfera pura da lei escrita. Distribuíram-se ordens para que o cadáver fosse embalsamado, enquanto se encontravam fórmulas, se conciliavam pareceres ou se faziam emendas constitucionais que permitissem ao presidente da República assistir ao enterro.
Tanto se falara, que o palavrório
transpôs as fronteiras, ultrapassou o oceano e atravessou como um
pressentimento os aposentos pontificais de Castel Gandolfo. Refeito da modorra
do ferragosto recente, o Sumo Pontífice estava em sua janela, vendo submergirem
no lago os mergulhadores que procuravam a cabeça da donzela decapitada. Nas
últimas semanas os jornais da tarde não se tinham ocupado de outra coisa e o
Sumo Pontífice não podia ser indiferente a um enigma proposto a tão curta
distância de sua residência de verão. Mas naquela tarde, em uma troca
imprevista, os jornais substituíram as fotografias das possíveis vítimas pela
de uma só mulher de vinte anos de idade, recoberta com uma faixa de luto. “A
Mamãe Grande”, exclamou o Sumo
Pontífice, reconhecendo na hora o manchado daguerreótipo que muitos anos antes
lhe tinha sido ofertado por ocasião de sua ascensão ao Trono de São Pedro.
“Mamãe Grande”, exclamaram em coro em seus aposentos privados os membros do
Colégio Cardinalício e pela terceira vez em vinte séculos houve uma hora de
confusões, afobações e correrias no império sem
limites da cristandade, até que o Sumo Pontífice se achou instalado em sua
longa gôndola negra, rumo aos fantásticos e remotos funerais da Mamãe Grande.
Ficaram
para trás as luminosas plantações de pêssegos, a Via Ápia Antiga com amenas atrizes de
cinema dourando-se nos terraços sem ter ainda notícia da comoção, e depois o
sombrio promontório de Castelo de Santo Ângelo no horizonte do Tibre. Ao
crepúsculo, o profundo dobrar dos sinos da Basílica de São Pedro entremeava-se
com o repicar rachado dos bronzes de Macondo. Sob seu toldo sufocante, através dos canais intrincados
e dos lamaçais misteriosos que delimitavam o
Império Romano e as fazendas
da Mamãe Grande, o Sumo Pontífice ouviu a noite inteira a algazarra dos macacos
alvoroçados pela passagem das multidões. Em seu itinerário noturno a canoa pontifícia fora se enchendo de sacos de aipim,
cachos de banana
verde e jacás de
galinha e de homens e mulheres que abandonavam suas ocupações habituais para tentar
a fortuna vendendo coisas nos
funerais da Mamãe Grande. Sua Santidade padeceu essa noite, pela primeira vez na história da Igreja, a
febre da vigília e o tormento dos pernilongos. Mas o prodigioso amanhecer sobre
os domínios da Grande Velha, a visão primitiva do reino da balsâmica e da
iguana, apagaram de sua memória os padecimentos da viagem e o compensaram do
sacrifício.
Nicanor fora despertado por três pancadas na porta que anunciavam a chegada iminente de Sua Santidade. A morte tomara posse da casa. Inspirados por sucessivas e opressivas locuções presidenciais, pelas febris controvérsias dos parlamentares que tinham perdido a voz e continuavam entendendo-se por meio de sinais convencionais, homens e congregações de todo o mundo desinteressaram-se de seus assuntos e encheram com sua presença os escuros corredores, os abarrotados passadiços, os asfixiantes balcões, e os que chegaram atrasados tiveram que subir e acomodar-se da melhor maneira possível em barbacãs, paliçadas, atalaias, madeiramentos e vigias. No salão central, mumificando-se à espera das grandes decisões, jazia o cadáver da Mamãe Grande, sob um tremulante promontório de telegramas. Extenuados pelas lágrimas, os nove sobrinhos velavam o corpo em um êxtase de vigilância recíproca.
O universo teve ainda que prolongar a vigília por muitos dias. No salão do conselho municipal, acondicionado com quatro tamboretes de couro, uma talha de água filtrada e uma rede de fibra, o Sumo Pontífice sofreu uma insônia sudorífera, entretendo-se com a leitura de memoriais e disposições administrativas nas dilatadas noites sufocantes. Durante o dia, distribuía caramelos italianos às crianças que vinham vê-lo pela janela, e almoçava sob a pérgula de flores com o padre Antonio Isabel e ocasionalmente com Nicanor. Assim viveu semanas intermináveis e meses alongados pela expectativa e pelo calor, até que Pastor Pastrana se plantou no meio da praça com seu tarol e leu o comunicado com a decisão. Declarava-se conturbada a ordem pública, rataplã, e o presidente da República, rataplã, lançava mão das faculdades extraordinárias, rataplã, que lhe permitiam assistir aos funerais da Mamãe Grande, rataplã, rataplã, rataplã, plã, plã.
Era chegado o grande dia. Nas ruas
congestionadas de roletas, fogareiros de frituras e mesas de jogos, e de homens
com cobras enroladas no pescoço que apregoavam o bálsamo definitivo para curar
a erisipela e assegurar a vida eterna; na pracinha colorida onde a multidão
tinha pendurado seus toldos e desenrolado suas esteiras, galhardos
arcabuzeiros abriam caminho
para a autoridade. Lá
estavam, à espera do momento supremo, as lavadeiras de São Jorge, os pescadores de pérolas do Cabo de Vela, os
tarrafeiros de Ciénega, os camaroneiros de Tasajera, os feiticeiros de Monjana,
os salineiros de Manaure, os acordeonistas de Valledupar, os camelôs de Ayapel,
os plantadores de mamão de San Pelayo, os galistas de La Cueva, os repentistas
das Sabanas de Bolívar, os aldrabões
de Rebolo, os canoeiros do
Magdalena, os rábulas de Mompox, além dos que foram enumerados no
começo desta crônica, e muitos outros. Até os veteranos do coronel Aureliano
Buendía — o duque de Marlborough à frente, em seu casaco de peles e unhas e
dentes de tigre — sobrepuseram-se ao seu rancor centenário pela Mamãe Grande e
os de sua casta, e vieram aos funerais, para solicitar ao presidente da
República o pagamento das pensões de guerra que esperavam há sessenta anos.
Pouco antes das onze, a multidão delirante
que se asfixiava ao sol, contida por uma elite imperturbável de guerreiros
uniformizados de dólmãs guarnecidos e espumosas barretinas, lançou um poderoso rugido de júbilo. Dignos, solenes em seus fraques e cartolas, o presidente da República e os ministros; as comissões
do Parlamento, a Corte Suprema de Justiça, o Conselho de Estado, os partidos
tradicionais e o clero, e os representantes dos bancos, do comércio e da
indústria, fizeram sua aparição na esquina do telégrafo. Calvo e rechonchudo, o
velho e enfermo presidente da República
desfilou diante dos olhos atônitos
das multidões que o haviam
eleito sem conhecê-lo e que
só agora podiam prestar um testemunho verídico de sua existência. Entre os
arcebispos extenuados pela gravidade de seu
ministério e os militares de robusto
tórax couraçado de insígnias, o primeiro mandatário da nação transpirava o
hálito inconfundível do poder.
Em um segundo grupo, em um sereno
perpassar de rendas de luto, desfilavam as rainhas nacionais de todas as coisas
existentes e por existir. Desprovidas pela primeira vez do esplendor terreno,
ali passaram, precedidas pela rainha universal, a rainha da manga espada, a
rainha da abobrinha verde, a rainha da banana-maçã, a rainha da mandioca-brava,
a rainha da goiaba branca, a rainha do coco verde, a rainha do feijão-fradinho,
a rainha de 426 quilômetros de fieiras
de ovos de iguana, e todas as que omitimos para não tornar esta crônica
interminável.
Em seu féretro com panejamentos de púrpura, separada da realidade por oito torniquetes de cobre, a Mamãe Grande estava então por demais embebida em sua eternidade de formol para perceber a magnitude de sua grandeza. Todo o esplendor com que ela havia sonhado no balcão de sua casa durante as vigílias do calor cumpriu-se com aquelas quarenta e oito gloriosas horas em que todos os símbolos da época renderam homenagem à sua memória. O próprio Sumo Pontífice, a quem ela imaginara em seus últimos delírios suspenso em uma carruagem resplandecente sobre os jardins do Vaticano, sobrepôs-se ao calor com um leque de palha trançada e honrou com sua dignidade suprema os maiores funerais do mundo.
Deslumbrado pelo espetáculo do poder, o populacho não percebeu o ávido esvoejar que ocorreu na cumeeira da casa quando se impôs o acordo na disputa dos ilustres, e se retirou o catafalco para a rua nos ombros dos mais ilustres. Ninguém viu a vigilante sombra de urubus que seguiu o cortejo pelas ardentes ruazinhas de Macondo, nem reparou que ao passar dos ilustres elas se iam cobrindo por um pestilento rastro de excrementos. Ninguém percebeu que os sobrinhos, afilhados, servos e protegidos da Mamãe Grande fecharam as portas tão logo foi retirado o cadáver, e desmontaram as portas, despregaram as tábuas e desenterraram os alicerces para dividir a casa. A única coisa que não passou inadvertida a ninguém no fragor daquele enterro foi o estrondoso suspiro de descanso que exalou a multidão quando se completaram os quatorze dias de preces, exaltações e ditirambos, e a tumba foi selada com uma placa de chumbo. Alguns dos presentes dispuseram de clarividência suficiente para compreender que estavam assistindo ao nascimento de uma nova época. Agora o Sumo Pontífice podia subir ao céu em corpo e alma, cumprida sua missão na terra, e o presidente da República podia sentar-se a governar segundo o bom critério, e as rainhas de tudo o que existe e por existir podiam casar-se e ser felizes e conceber e parir muitos filhos, e as multidões podiam erguer suas tendas segundo seu leal modo de ver e entender nos desmesurados domínios da Mamãe Grande, porque a única pessoa que poderia opor-se a isso e tinha suficiente poder para fazê-lo começara a apodrecer sob uma plataforma de chumbo. Só faltava então que alguém encostasse um tamborete na porta para contar esta história, lição e escarmento das gerações futuras, e que nenhum dos incrédulos do mundo ficasse sem conhecer a notícia da morte da Mamãe Grande, porque, amanhã, quarta-feira, virão os varredores e varrerão o lixo de seus funerais, por todos os séculos dos séculos.
(In: Os funerais da Mamãe Grande. Trad. Edson Braga. Rio de Janeiro: Record, 2007, 13ª ed.)
***
A Mboitatá
João Simões Lopes Neto
I
Foi assim:
num tempo muito
antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria
luz do dia.
Noite escura como
breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos
pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram
abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam
labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam
se apagando e era preciso poupar os tições...
Os olhos andavam tão
enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando, sem ver as
brasas vermelhas do nhanduvai... as brasas somente, porque as faíscas, que
alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão
fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum
flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até nem
sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia
andando... ia andando...
II
Minto:
no meio do escuro e
do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em
quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo,
que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a
volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já...
Só o téu-téu de vez
em quando cantava; o seu — quero-quero! — tão claro, vindo de lá do fundo da
escuridão, ia aguentando a esperança dos homens, amontoados no redor
avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o
mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada
III
Minto:
na última tarde em
que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo
do minuano, e de onde sobe a estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou
uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e
durou… e durou...
Os campos foram
inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e
banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso
d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando,
campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E
nessas coroas e que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no
assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains,
tudo amigo, de puro medo. E então!...
Nas copas dos butiás
vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos
aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas, boiavam os ratões e outros
miúdos.
E, como a água encheu
todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a — boiguaçu — que, havia já
muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu,
rabeando.
Começou depois a
mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer as carniças. Mas só comia os
olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando,
a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
IV
Cada bicho guarda no
corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só
come trevo maduro dá no leite o cheiro do milho verde; o cerdo que come carne
de bagual nem alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho o biguá
matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até
sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos
guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidados com os amarelos; e,
toma tendência doble com os raiados e baços!...
Assim foi também, mas
doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu.
V
Todos — tantos,
tantos! que a cobra-grande comeu —, lavam, entranhado e luzindo, um rastilho da
última luz eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu...
E os olhos — tantos,
tantos! — com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no princípio um
punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada...
VI
E aí vai...
como a boiguaçu não
tinha pelos como o boi, nem escamas o dourado, nem penas como o avestruz, nem
casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando
transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos
olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de
luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas,
já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que
fora guardada neles, quando ainda estavam vivos...
VII
Foi assim e foi por
isso que os homens, quando pela vez primeira viram a boiguaçu tão demudada, não
a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra,
chamam-na desde então, de boitatá, cobra de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a
boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que
o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por
curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente
— tatá, de fogo — que media mais braças que três laços de conta e ia alumiando
baçamente as carquejas... E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo,
pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a
boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a
enfartavam...
VIII
Mas como dizia...
na escuridão só
avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu cantava
de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado um tempo, a
boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o
corpo mas não lhe deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os
olhos em si entranhada tiveram quando vivos...
Depois de rebolar-se
rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas,
sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela
desmanchou-se, também como coisa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a
luz que estava presa se desatou por aí.
E até pareceu coisa
mandada: o sol apareceu de novo!
IX
Minto:
apareceu sim, mas não
veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as
estrelas; e estas se foram sumindo no cobreado do céu; depois foi sendo mais
claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista de luz… depois
a metade de uma cambota de fogo… e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até
vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a
noite, em metades, para sempre.
X
Tudo o que morre no
mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo: só a luz da
boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e
só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno,
de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois
da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá, toda
enroscada, como uma bola — tatá, de fogo! — empeça a correr o campo, coxilha
abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo
azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais; e
rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagando... e quando
um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
XI
Quem encontra a
boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de
se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem
respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço,
fazer uma armada grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço
de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem
acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se
desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na
aragem que ajuda.
XII
Campeiro precatado!
reponte o seu gado da querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!
(In: Contos gauchescos e lendas do sul. Porto Alegre: Globo, 1965. Republicado em: Os grandes contos populares do mundo. Org. Flávio Moreira da Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 62-67.)
***
A Parasita Azul
Machado de Assis
CAPÍTULO PRIMEIRO
VOLTA AO BRASIL
Há cerca de dezesseis anos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo da
Europa, o Sr. Camilo Seabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar
medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração.
Voltava depois de uma ausência de oito anos, tendo visto e admirado as
principais coisas que um homem pode ver e admirar por lá, quando não lhe falta
gosto nem meios. Ambas as coisas possuía, e se tivesse também, não digo muito,
mas um pouco mais de juízo, houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça
poderia dizer que vivera.
Não abonava muito os seus sentimentos patrióticos o rosto com que entrou
a barra da capital brasileira. Trazia-o fechado e merencório, como quem abafa
em si alguma coisa que não é exatamente a bem-aventurança terrestre. Arrastou
um olhar aborrecido pela cidade, que se ia desenrolando à proporção que o navio
se dirigia ao ancoradouro. Quando veio a hora de desembarcar fê-lo com a mesma
alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere. O escaler afastou-se do
navio em cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor; Camilo murmurou consigo:
— Adeus, França!
Depois envolveu-se num magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.
O espetáculo da cidade, que ele não via há tanto tempo, sempre lhe
prendeu um pouco a atenção. Não tinha, porém, dentro da alma o alvoroço de
Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Comparava o que
via agora com o que vira durante longos anos, e sentia a mais e mais
apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava. Encaminhou-se para o
primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns
dias, antes de seguir para Goiás. Jantou solitário e triste com a mente cheia
de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior
desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou
a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.
Na opinião dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente
experimentasse a hostilidade do destino. Nem no martirológio cristão, nem nos
trágicos gregos, nem no Livro de Jó havia sequer um pálido esboço dos seus
infortúnios. Vejamos alguns traços patéticos da existência do nosso herói.
Nascera rico, filho de um proprietário de Goiás, que nunca vira outra
terra além da sua província natal. Em 1828 estivera ali um naturalista francês,
com quem o comendador Seabra travou relações, e de quem se fez tão amigo, que
não quis outro padrinho para o seu único filho, que então contava um ano de
idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera umas venialidades poéticas
que mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo — velho trapeiro da
eternidade — levou consigo para o infinito depósito das coisas inúteis. Tudo
lhe perdoara o ex-poeta, menos o esquecimento de um poema em que ele metrificara
a vida de Fúrio Camilo, poema que ainda então lia com sincero entusiasmo. Como
lembrança desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado Camilo, e com esse
nome o batizou o padre Maciel, a grande aprazimento da família e seus amigos.
— Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar,
hei de mandá-lo para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra coisa em
que se faça homem. No caso de lhe achar jeito para andar com plantas e
minerais, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que lhe parecer como
se fora seu pai, que o é, espiritualmente falando.
— Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista.
— Oh! há de viver! protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua
têmpera é de ferro. Não o vejo eu andar todos os dias por esses matos e campos,
indiferente a sóis e a chuvas, sem nunca ter a mais leve dor de cabeça? Com
metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. Há de viver e cuidar do meu
rapaz, apenas ele tiver concluído cá os seus primeiros estudos.
A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camilo seguiu para
Paris, logo depois de alguns preparatórios, e ali o padrinho cuidou dele como
se realmente fora seu pai. O comendador não poupava dinheiro para que nada
faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia bem servir para duas ou três
pessoas em iguais circunstâncias. Além da mesada, recebia ele por ocasião da
Páscoa e do Natal amêndoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam
às mãos debaixo da forma de alguns excelentes mil francos.
Até aqui o único ponto negro na existência de Camilo era o padrinho, que
o trazia peado, com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipícios da
grande cidade. Quis, porém, a sua boa estrela que o ex-poeta de 1810 fosse
repousar no nada ao lado das suas produções extintas, deixando na ciência
alguns vestígios da sua passagem por ela. Camilo apressou-se a escrever ao pai
uma carta cheia de reflexões filosóficas.
O período final dizia assim:
Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessário juízo para concluir
aqui os meus estudos, e se tem confiança na boa inspiração que me há de dar a
alma daquele que lá se foi deste vale de lágrimas para gozar a infinita
bem-aventurança, deixe-me cá ficar até que eu possa regressar ao meu país como
um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua
vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pai,
porque então não me demorarei um instante mais nesta terra, que já foi meia
pátria para mim, e que hoje (hélas!) é apenas uma terra de exílio.
O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas desta
lacrimosa epístola o verdadeiro sentimento que a ditara. Chorou de alegria ao
ler as palavras do filho, mostrou a carta a todos os seus amigos, e apressou-se
a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo o tempo necessário para
completar os seus estudos, e que, além da mesada que lhe dava, nunca recusaria
tudo quanto lhe fosse indispensável em circunstâncias imprevistas. Além disto,
aprovava de coração os sentimentos que ele manifestava em relação à sua pátria
e à memória do padrinho. Transmitia-lhe muitas recomendações do tio Jorge, do
Padre Maciel, do Coronel Veiga, de todos os parentes e amigos, e concluía
deitando-lhe a bênção.
A resposta paterna chegou às mãos de Camilo no meio de um almoço, que
ele dava no Café de Madri a dois ou três estroinas de primeira qualidade.
Esperava aquilo mesmo, mas não resistiu ao desejo de beber à saúde do pai, ato
em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos. Nesse mesmo dia
planeou Camilo algumas circunstâncias imprevistas (para o comendador) e o
próximo correio trouxe para o Brasil uma extensa carta em que ele agradecia as
boas expressões do pai, dizia-lhe as suas saudades, confiava-lhe as suas
esperanças, e pedia-lhe respeitosamente, em post
scriptum, a remessa de uma pequena quantia de dinheiro.
Graças a estas facilidades atirou-se o nosso Camilo a uma vida solta e
dispendiosa, não tanto, porém, que lhe sacrificasse os estudos. A inteligência
que possuía, e certo amor-próprio que não perdera, muito o ajudaram neste
lance; concluído o curso, foi examinado, aprovado e doutorado.
A notícia do acontecimento foi transmitida ao pai com o pedido de uma
licença para ir ver outras terras da Europa. Obteve a licença, e saiu de Paris
para visitar a Itália, a Suíça, a Alemanha e a Inglaterra. No fim de alguns
meses estava outra vez na grande capital, e aí reatou o fio da sua antiga
existência, já livre então de cuidados estranhos e aborrecidos. A escala toda
dos prazeres sensuais e frívolos foi percorrida por este esperançoso mancebo
com uma sofreguidão que parecia antes suicídio. Seus amigos eram numerosos,
solícitos e constantes: alguns não duvidavam dar-lhe a honra de o constituir
seu credor. Entre as moças de Corinto era o seu nome verdadeiramente popular;
não poucas o tinham amado até o delírio. Não havia pateada célebre em que a
chave dos seus aposentos não figurasse, nem corrida, nem ceata, nem passeio, em
que não ocupasse um dos primeiros lugares cet aimable brésilien.
Desejoso de o ver, escreveu-lhe o comendador pedindo que regressasse ao
Brasil; mas o filho, parisiense até à medula dos ossos, não compreendia que um
homem pudesse sair do cérebro da França para vir internar-se em Goiás.
Respondeu com evasivas e deixou-se ficar. O velho fez vista grossa a esta
primeira desobediência. Tempos depois insistiu em chamá-lo; novas evasivas da
parte de Camilo. Irritou-se o pai e a terceira carta que lhe mandou foi já de
amargas censuras. Camilo caiu em si e dispôs-se com grande mágoa a regressar à
pátria, não sem esperanças de voltar e acabar os seus dias no Boulevard dos
Italianos ou à porta do Café Helder.
Um incidente, porém, demorou ainda desta vez o regresso do jovem médico.
Ele, que até ali vivera de amores fáceis e paixões de uma hora, veio a
enamorar-se repentinamente de uma linda princesa russa. Não se assustem; a
princesa russa de quem falo, afirmavam algumas pessoas que era filha da Rua do
Bac e trabalhara numa casa de modas, até a revolução de 1848. No meio da
revolução apaixonou-se por ela um major polaco, que a levou para Varsóvia,
donde acabava de chegar transformada em princesa, com um nome acabado em ine ou
em off, não sei bem. Vivia misteriosamente, zombando de todos os seus
adoradores, exceto de Camilo, dizia ela, por quem sentia que era capaz de
aposentar as suas roupas de viúva. Tão depressa, porém, soltava estas
expressões irrefletidas, como logo protestava com os olhos no céu:
— Oh! não! nunca, meu caro Alexis, nunca desonrarei a tua memória
unindo-me a outro.
Isto eram punhais que dilaceravam o coração de Camilo. O jovem médico
jurava por todos os santos do calendário latino e grego que nunca amara a
ninguém como a formosa princesa. A bárbara senhora parecia às vezes disposta a
crer nos protestos de Camilo; outras vezes porém abanava a cabeça e pedia
perdão à sombra do venerando príncipe Alexis. Neste meio tempo chegou uma carta
decisiva do comendador. O velho goiano intimava pela última vez ao filho que
voltasse, sob pena de lhe suspender todos os recursos e trancar-lhe a porta.
Não era possível tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave moléstia;
mas a ideia de que o pai podia não acreditar nela e suspender-lhe realmente os
meios, aluiu de todo este projeto. Camilo nem ânimo teve de ir confessar a sua
posição à bela princesa; receava além disso que ela, por um rasgo de
generosidade, — natural em quem ama, — quisesse dividir com ele as suas terras
de Novogorod. Aceitá-las seria humilhação, recusá-las poderia ser ofensa.
Camilo preferiu sair de Paris deixando à princesa uma carta em que lhe contava
singelamente os acontecimentos e prometia voltar algum dia.
Tais eram as calamidades com que o destino quisera abater o ânimo de
Camilo. Todas elas repassou na memória o infeliz viajante, até que ouviu bater
oito horas da noite. Saiu um pouco para tomar ar, e ainda mais se lhe acenderam
as saudades de Paris. Tudo lhe parecia lúgubre, acanhado, mesquinho. Olhou com
desdém olímpico para todas as lojas da Rua do Ouvidor, que lhe pareceu apenas
um beco muito comprido e muito iluminado. Achava os homens deselegantes, as
senhoras desgraciosas. Lembrou-se, porém, que Santa Luzia, sua cidade natal,
era ainda menos parisiense que o Rio de Janeiro, e então, abatido com esta
importuna ideia correu para o hotel e deitou-se a dormir.
No dia seguinte, logo depois do almoço, foi à casa do correspondente de
seu pai. Declarou-lhe que tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para
Goiás, e recebeu dele os necessários recursos, segundo as ordens já dadas pelo
comendador. O correspondente acrescentou que estava incumbido de lhe facilitar
tudo o que quisesse no caso de desejar passar algumas semanas na Corte.
— Não, respondeu Camilo; nada me prende à Corte, e estou ansioso por me
ver a caminho.
— Imagino as saudades que há de ter. Há quantos anos?
— Oito.
— Oito! Já é uma ausência longa.
Camilo ia-se dispondo a sair, quando viu entrar um sujeito alto, magro,
com alguma barba embaixo do queixo e bigode, vestido com um paletó de brim
pardo e trazendo na cabeça um chapéu-de-chile. O sujeito olhou para Camilo,
estacou, recuou um passo, e depois de uma razoável hesitação, exclamou:
— Não me engano! é o Sr. Camilo!
— Camilo Seabra, com efeito, respondeu o filho do comendador, lançando
um olhar interrogativo ao dono da casa.
— Este senhor, disse o correspondente, é o Sr. Soares, filho do
negociante do mesmo nome, da cidade de Santa Luzia.
— Quê! é o Leandro que eu deixei apenas com um buço…
— Em carne e osso, interrompeu Soares; é o mesmo Leandro que lhe aparece
agora todo barbado, como o senhor, que também está com uns bigodes bonitos!
— Pois não o conhecia…
— Conheci-o eu apenas o vi, apesar de o achar muito mudado do que era.
Está agora um moço apurado. Eu é que estou velho. Já cá estão vinte e seis… Não
se ria: estou velho. Quando chegou?
— Ontem.
— E quando segue viagem para Goiás?
— Espero o primeiro vapor de Santos.
— Nem de propósito! Iremos juntos.
— Como está seu pai? Como vai toda aquela gente? O Padre Maciel? O
Veiga? Dê-me notícias de todos e de tudo.
— Temos tempo para conversar à vontade. Por agora só lhe digo que todos
vão bem. O vigário é que esteve dois meses doente de uma febre maligna e
ninguém pensava que arribasse; mas arribou. Deus nos livre que o homem adoeça,
agora que estamos com o Espírito Santo à porta.
— Ainda se fazem aquelas festas?
— Pois então! O imperador este ano, é o Coronel Veiga; e diz que quer
fazer as coisas com todo o brilho. Já prometeu que daria um baile. Mas nós
temos tempo de conversar, ou aqui ou em caminho. Onde está morando?
Camilo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do
comprovinciano, satisfeito de haver encontrado um companheiro que de algum modo
lhe diminuísse os tédios de tão longa viagem. Soares chegou à porta e
acompanhou com os olhos o filho do comendador até perdê-lo de vista.
— Veja o senhor o que é andar por essas terras estrangeiras, disse ele
ao correspondente, que também chegava à porta. Que mudança fez aquele rapaz,
que era pouco mais ou menos como eu!
CAPÍTULO II
PARA GOIÁS
Daí a dias seguiam ambos para Santos, de lá para S. Paulo e tomavam a
estrada de Goiás.
Soares, à medida que ia reavendo a antiga intimidade com o filho do
comendador, contava-lhe as memórias da sua vida, durante os oito anos de
separação, e, à falta de coisa melhor, era isto o que entretinha o médico nas
ocasiões e lugares em que a natureza lhe não oferecia algum espetáculo dos
seus. Ao cabo de umas quantas léguas de marcha estava Camilo informado das
rixas eleitorais de Soares, das suas aventuras na caça, das suas proezas
amorosas, e de muitas coisas mais, umas graves, outras fúteis, que Soares
narrava com igual entusiasmo e interesse.
Camilo não era espírito observador, mas a alma de Soares andava-lhe tão
patente nas mãos, que era impossível deixar de a ver e examinar. Não lhe
pareceu mau rapaz; notou-lhe porém, certa fanfarronice, em todo o gênero de
coisas, na política, na caça, no jogo, e até nos amores. Neste último capítulo
havia um parágrafo sério; era o que dizia respeito a uma moça que ele amava
loucamente, de tal modo que prometia aniquilar a quem quer que ousasse levantar
olhos para ela.
— É o que lhe digo, Camilo, confessava o filho do comerciante, se alguém
tiver o atrevimento de pretender essa moça pode contar que há no mundo mais
dois desgraçados, ele e eu. Não há de acontecer assim felizmente; lá todos me
conhecem; sabem que não cochilo para executar o que prometo. Há poucos meses o
Major Valente perdeu a eleição só porque teve o atrevimento de dizer que ia
arranjar a demissão do juiz municipal. Não arranjou a demissão, e por castigo
tomou taboca; saiu na lista dos suplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A coisa
foi…
— Mas por que não se casa com essa moça? perguntou Camilo desviando
cautelosamente a narração da última vitória eleitoral de Soares.
— Não me caso porque… tem muita curiosidade de o saber?
— Curiosidade… de amigo e nada mais.
— Não me caso porque ela não quer.
Camilo estacou o cavalo.
— Não quer? disse ele espantado. Então por que motivo pretende impedir
que ela…
— Isso é uma história muito comprida. A Isabel…
— Isabel?… interrompeu Camilo. Ora espere, será a filha do Dr. Matos,
que foi juiz de direito há dez anos?
— Essa mesma.
— Deve estar uma moça?
— Tem seus vinte anos bem contados.
— Lembra-me que era bonitinha aos doze.
— Oh! mudou muito… para melhor! Ninguém a vê que não fique logo com a
cabeça voltada. Tem rejeitado já uns poucos de casamentos. O último noivo
recusado fui eu. A causa por que me recusou foi ela mesma que me veio dizer.
— E que causa era?
— “Olhe, Sr. Soares, disse-me ela. O senhor merece bem que uma moça o
aceite por marido; eu era capaz disso, mas não o faço porque nunca seríamos
felizes.”
— Que mais?
— Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar.
— Nunca mais se falaram?
— Pelo contrário, falamo-nos muitas vezes. Não mudou comigo; trata-me
como dantes. A não serem aquelas palavras que ela me disse, e que ainda me doem
cá dentro, eu podia ter esperanças. Vejo, porém, que seriam inúteis; ela não
gosta de mim.
— Quer que lhe diga uma coisa com franqueza?
— Diga.
— Parece-me um grande egoísta.
— Pode ser; mas sou assim. Tenho ciúmes de tudo, até do ar que ela
respira. Eu, se a visse gostar de outro, e não pudesse impedir o casamento,
mudava de terra. O que me vale é a convicção que tenho de que ela não há de
gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais.
— Não admira que não saiba amar, reflexionou Camilo pondo os olhos no
horizonte como se estivesse ali a imagem da formosa súdita do tzar. Nem todas
receberam do céu esse dom, que é o verdadeiro distintivo dos espíritos seletos.
Algumas há porém, que sabem dar a vida e a alma a um ente querido, que lhe
enchem o coração de profundos afetos, e deste modo fazem jus a uma perpétua
adoração. São raras, bem sei, as mulheres desta casta; mas existem…
Camilo terminou esta homenagem à dama dos seus pensamentos abrindo as
asas a um suspiro que, se não chegou ao seu destino, não foi por culpa do
autor. O companheiro não compreendeu a intenção do discurso, e insistiu em
dizer que a formosa goiana estava longe de gostar de ninguém, e ele ainda mais
longe de lho consentir.
O assunto agradava aos dois comprovincianos; falaram dele longamente até
o aproximar da tarde. Pouco depois chegaram a um pouso onde deviam pernoitar.
Tirada a carga dos animais, cuidaram os criados primeiramente do café, e
depois do jantar. Nessas ocasiões ainda mais pungiam ao nosso herói as saudades
de Paris. Que diferença entre os seus jantares dos restaurants dos boulevards
e aquela refeição ligeira e tosca, num miserável pouso de estrada, sem os
acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Figaro ou da Gazette des
Tribunaux!
Camilo suspirava consigo mesmo; tornava-se então ainda menos
comunicativo. Não se perdia nada porque o seu companheiro falava por dois.
Acabada a refeição, acendeu Camilo um charuto e Soares um cigarro de
palha. Era já noite. A fogueira do jantar alumiava um pequeno espaço em roda;
mas nem era precisa, porque a lua começava a surgir de trás de um morro; pálida
e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas águas tranquilas do rio que
serpeava ali ao pé.
Um dos tropeiros sacou a viola e começou a gargantear uma cantiga que a
qualquer outro encantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao
filho do comendador apenas fez lembrar com tristeza as volatas da Ópera.
Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bela moscovita, molemente sentada
num camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, para
contemplá-lo de longe cheirando um raminho de violetas.
Soares atirou-se à rede e adormeceu.
O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silêncio
no pouso.
Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e
solene. Não faltava ao jovem goiano a inteligência do belo; e a quase novidade
daquele espetáculo que uma longa ausência lhe fizera esquecer, não deixava de o
impressionar imensamente.
De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longínquos, de
alguma fera que vagueava na solidão. Outras vezes eram aves noturnas, que
soltavam ao perto os seus pios tristonhos. Os grilos, e também as rãs e os
sapos formavam o coro daquela ópera do sertão, que o nosso herói admirava
decerto, mas à qual preferia indubitavelmente a ópera cômica.
Assim esteve longo tempo, cerca de duas horas, deixando vagar o seu
espírito ao sabor das saudades, e levantando e desfazendo mil castelos no ar.
De repente foi chamado a si pela voz do Soares, que parecia vítima de um
pesadelo. Afiou o ouvido e escutou estas palavras soltas e abafadas que o seu
companheiro murmurava:
— Isabel… querida Isabel… Que é isso?… Ah! meu Deus! Acudam!
As últimas sílabas eram já mais aflitas que as primeiras. Camilo correu
ao companheiro e fortemente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se,
olhou em roda de si e murmurou:
— Que é?
— Um pesadelo.
— Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas são?
— Ainda é noite.
— Já está levantado?
— Agora é que me vou deitar. Durmamos que é tempo.
— Amanhã lhe contarei o sonho.
No dia seguinte efetivamente, logo depois das primeiras vinte braças de
marcha, referiu Soares o terrível sonho da véspera.
— Estava eu ao pé de um rio, disse ele, com a espingarda na mão,
espiando as capivaras. Olho casualmente para a ribanceira que ficava muito
acima, do lado oposto, e vejo uma moça montada num cavalo preto, vestida de
preto, e com os cabelos, que também eram pretos, caídos sobre os ombros…
— Era tudo uma escuridão, interrompeu Camilo.
— Espere; admirei-me de ver ali, e por aquele modo, uma moça que me
parecia franzina e delicada. Quem pensava o senhor que era?
— A Isabel.
— A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra
fronteira ao lugar onde ela estava, e perguntei-lhe o que fazia ali. Ela esteve
algum tempo calada. Depois, apontando para o fundo do grotão, disse:
— O meu chapéu caiu lá embaixo.
— Ah!
— O senhor ama-me? disse ela passados alguns minutos.
— Mais que a vida!
— Fará o que eu lhe pedir?
— Tudo.
— Bem, vá buscar o meu chapéu.
— Olhei para baixo. Era um imenso grotão em cujo fundo fervia e roncava
uma água barrenta e grossa. O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali
abaixo até perder-se de todo, ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do
fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossível. Olhei para todos os
lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia…
— Veja o que é imaginação escaldada! observou Camilo.
— Já eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da sua
terrível ideia, quando senti pousar-me uma mão no ombro. Voltei-me; era um
homem, era o senhor.
— Eu?
— É verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para
ela e depois olhou para o abismo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como,
estava o senhor embaixo e estendia a mão para tirar o chapelinho fatal.
— Ah!
— A água porém, engrossando subitamente, ameaçava submergi-lo. Então
Isabel, soltando um grito de angústia, esporeou o cavalo e atirou-se pela
ribanceira abaixo. Gritei… chamei por socorro; tudo foi inútil. Já a água os
enrolava em suas dobras… quando fui acordado pelo senhor.
Leandro Soares concluiu esta narração do seu pesadelo parecendo ainda
assustado do que lhe acontecera… imaginariamente. Convém dizer que ele
acreditava nos sonhos.
— Veja o que é uma digestão mal feita! exclamou Camilo quando o
comprovinciano terminou a narração. Que porção de tolices! O chapéu, a
ribanceira, o cavalo, e mais que tudo a minha presença nesse melodrama
fantástico, tudo isso é obra de quem digeriu mal o jantar. Em Paris há teatros
que representam pesadelos assim, — piores do que o seu porque são mais
compridos. Mas o que eu vejo também é que essa moça não o deixa nem dormindo.
— Nem dormindo!
Soares disse estas duas palavras quase como um eco, sem consciência.
Desde que concluíra a narração, e logo depois das primeiras palavras de Camilo,
entrara a fazer consigo uma série de reflexões que não chegaram ao conhecimento
do autor desta narrativa. O mais que lhes posso dizer é que não eram alegres,
porque a fronte lhe descaiu, enrugou-se-lhe a testa, e ele, cravando os olhos
nas orelhas do animal, recolheu-se a um inviolável silêncio.
A viagem, daquele dia em diante, foi menos suportável para Camilo de que
até ali. Além de uma leve melancolia que se apoderara do companheiro, ia-se-lhe
tornando enfadonho aquele andar léguas e léguas que pareciam não acabar mais.
Afinal voltou Soares à sua habitual verbosidade, mas já então não podia vencer
o tédio mortal que se apoderara do mísero Camilo.
Quando porém avistou a cidade, perto da qual estava a fazenda, onde
vivera as primeiras auroras da sua mocidade, Camilo sentiu abalar-se-lhe
fortemente o coração. Um sentimento sério o dominava. Por algum tempo, ao
menos, Paris com os seus esplendores cedia o lugar à pequena e honesta pátria
dos Seabras.
CAPÍTULO III
O ENCONTRO
Foi um verdadeiro dia de festa aquele em que o comendador cingiu ao
peito o filho que oito anos antes mandara a terras estranhas. Não pôde reter as
lágrimas o bom velho, — não pôde, que elas vinham de um coração ainda viçoso de
afetos e exuberante de ternura. Não menos intensa e sincera foi a alegria de
Camilo. Beijou repetidamente as mãos e a fronte do pai, abraçou os parentes, os
amigos de outro tempo, e durante alguns dias, — não muitos, — parecia completamente
curado dos seus desejos de regressar à Europa.
Na cidade e seus arredores não se falava em outra coisa. O assunto, não
principal, mas exclusivo das palestras e comentários era o filho do comendador.
Ninguém se fartava de o elogiar. Admiravam-lhes as maneiras e a elegância. A
mesma superioridade com que ele falava a todos achava entusiastas sinceros.
Durante muitos dias foi totalmente impossível que o rapaz pensasse em outra
coisa que não fosse contar as suas viagens aos amáveis conterrâneos. Mas
pagavam-lhe a maçada, porque a menor coisa que ele dissesse tinha aos olhos dos
outros uma graça indefinível. O Padre Maciel, que o batizara vinte e sete anos
antes, e que o via já homem completo, era o primeiro pregoeiro da sua
transformação.
— Pode gabar-se, Sr. comendador, dizia ele ao pai de Camilo, pode
gabar-se de que o céu lhe deu um rapaz de truz! Santa Luzia vai ter um médico
de primeira ordem, se me não engana o afeto que tenho a esse que era ainda
ontem um pirralho. E não só médico, mas até bom filósofo; é verdade, parece-me
bom filósofo. Sondei-o ontem nesse particular, e não lhe achei ponto fraco ou
duvidoso.
O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho
Camilo. O Tenente-coronel Veiga agradecia à Providência a chegada do Dr. Camilo
nas proximidades do Espírito Santo.
— Sem ele, o meu baile seria incompleto.
O Dr. Matos não foi o último que visitou o filho do comendador. Era um
velho alto e bem feito, ainda que um tanto quebrado pelos anos.
— Venha, doutor, disse o velho Seabra apenas o viu assomar à porta:
venha ver o meu homem.
— Homem, com efeito, respondeu Matos contemplando o rapaz. Está mais
homem do que eu supunha. Também já lá vão oito anos! Venha de lá esse abraço!
O moço abriu os braços ao velho. Depois, como era costume fazer a
quantos o iam ver, contou-lhe alguma coisa das suas viagens e estudos. É
perfeitamente inútil dizer que o nosso herói omitiu sempre tudo quanto pudesse
abalar o bom conceito em que estava no ânimo de todos. A dar-lhe crédito,
vivera quase como um anacoreta; e ninguém ousava pensar o contrário.
Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem
médico, lisonjeado com a inesperada recepção que teve, continuou a não pensar
muito em Paris. Mas o tempo corre, e as nossas sensações com ele se modificam.
No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas impressões; a
fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as árvores
monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele próprio monótono.
Invadiu-o então uma coisa a que podemos chamar — nostalgia do exílio.
“Não, dizia ele consigo, não posso ficar aqui mais três meses. Paris ou
o cemitério, tal é o dilema que se me oferece. Daqui a três meses, estarei
morto ou em caminho da Europa.”
O aborrecimento de Camilo não escapou aos olhos do pai, que quase vivia
a olhar para ele.
“Tem razão, pensava o comendador. Quem viveu por essas terras que dizem
ser tão bonitas e animadas, não pode estar aqui muito alegre. É preciso dar-lhe
alguma ocupação… a política, por exemplo.”
— Política! exclamou Camilo, quando o pai lhe falou nesse assunto. De
que me serve a política, meu pai?
— De muito. Serás primeiro deputado provincial; podes ir depois para a
Câmara no Rio de Janeiro. Um dia interpelas o ministério, e se ele cair, podes
subir ao governo. Nunca tiveste ambição de ser ministro?
— Nunca.
— É pena!
— Por quê?
— Porque é bom ser ministro.
— Governar os homens, não é? disse Camilo rindo; é um sexo ingovernável;
prefiro o outro.
Seabra riu-se do repente, mas não perdeu a esperança de convencer o
herdeiro.
Havia já vinte dias que o médico estava em casa do pai, quando se
lembrou da história que lhe contara Soares e do sonho que este tivera no pouso.
A primeira vez que foi à cidade e esteve com o filho do negociante,
perguntou-lhe:
— Diga-me, como vai sua Isabel, que ainda a não vi?
— Soares olhou para ele com o sobrolho carregado e levantou os ombros
resmungando um seco:
— Não sei.
Camilo não insistiu.
“A moléstia ainda está no período agudo”, disse ele consigo.
Teve porém curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra
deitara aquele verboso cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em dez
léguas em redor, havia já falado o jovem médico. Isabel era a única esquiva até
então. Esquiva não digo bem. Camilo fora uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a
filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram.
— Descanse, dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impaciência de
conhecer a amada de Leandro Soares; há de vê-la no baile do Coronel Veiga, ou
na festa do Espírito Santo, ou em outra qualquer ocasião.
A beleza da moça, que ele não julgava pudesse ser superior nem sequer
igual à da viúva do príncipe Alexis, a paixão incurável de Soares, e o tal ou
qual mistério com que se falava de Isabel, tudo isso excitou ao último ponto a
curiosidade do filho do comendador.
No domingo próximo, oito dias antes do Espírito Santo, saiu Camilo da
fazenda para ir à missa na igreja da cidade, como já fizera nos domingos anteriores.
O cavalo ia a passo lento, a compasso com o pensamento do cavaleiro, que se
espreguiçava pelo campo fora em busca de sensações que já não tinha e que
ansiava ter de novo.
Mil singulares ideias atravessavam o cérebro de Camilo. Ora, almejava
alar-se com cavalo e tudo, rasgar os ares e ir cair defronte do Palais-Royal,
ou em outro qualquer ponto da capital do mundo. Logo depois fazia a si mesmo a
descrição de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-se almoçando no Café
Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o Padre Maciel.
De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas
senhoras a cavalo acompanhadas por um pajem. Picou de esporas e dentro de pouco
tempo estava junto dos três cavaleiros. Uma das senhoras voltou a cabeça,
sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a cabeça descoberta, e estendeu-lhe a
mão, que ela apertou.
A senhora a quem cumprimentara era a esposa do Tenente-coronel Veiga.
Representava ter quarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A outra
senhora, sentindo o movimento da companheira, fez parar também o cavalo, e
voltou igualmente a cabeça. Camilo não olhava então para ela. Estava ocupado em
ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel.
— Agora só pensa na festa, dizia ela; já deve estar na igreja. Vai à
missa, não?
— Vou.
— Vamos juntos.
Trocadas estas palavras, que foram rápidas, Camilo procurou com os olhos
a outra cavaleira. Ela porém ia já alguns passos adiante. O médico colocou-se
ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva continuou a andar. Iam assim conversando
havia já uns dez minutos, quando o cavalo da senhora que ia adiante estacou.
— Que é, Isabel? perguntou D. Gertrudes.
— Isabel! exclamou Camilo, sem dar atenção ao incidente que provocara a
pergunta da esposa do coronel.
A moça voltou a cabeça e levantou os ombros respondendo secamente:
— Não sei.
A causa era um rumor que o cavalo sentira por trás de uma espessa moita
de taquaras que ficava à esquerda do caminho. Antes porém que o pajem ou Camilo
fosse examinar a causa da relutância do animal, a moça fez um esforço supremo,
e chicoteando vigorosamente o cavalo, conseguiu que este vencesse o terror, e
deitasse a correr a galope adiante dos companheiros.
— Isabel! disse Camilo a D. Gertrudes. Aquela moça será a filha do Dr.
Matos?
— É verdade. Não a conhecia?
— Há oito anos que não a vejo. Está uma flor! Já não me admira que se
fale aqui tanto na sua beleza. Disseram-me que estava doente…
— Esteve; mas as suas doenças são coisas de pequena monta. São nervos;
assim se diz, creio eu, quando se não sabe do que uma pessoa padece…
Isabel parara ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia
admirar o espetáculo da natureza. Daí a alguns minutos estavam perto dela os
seus companheiros. A moça ia prosseguir a marcha, quando D. Gertrudes lhe
disse:
— Isabel!
A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela.
— Não te lembras do Dr. Camilo Seabra?
— Talvez não se lembre, disse Camilo. Tinha doze anos quando eu saí
daqui, e já lá vão oito!
— Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem olhar
para o médico.
E chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais
singular que fosse aquela maneira de reatar conhecimento antigo, o que mais
impressionou então o filho do comendador foi a beleza de Isabel, que lhe
pareceu estar na altura da reputação.
Tanto quanto se podia julgar à primeira vista, a esbelta cavaleira devia
ser mais alta que baixa. Era morena, — mas de um moreno acetinado e macio, com
uns delicadíssimos longes cor-de-rosa, — o que seria efeito da agitação, visto
que afirmavam ser extremamente pálida. Os olhos, — não lhes pôde Camilo ver a
cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apesar de o não terem fitado,
e compreendeu logo que com olhos tais a formosa goiana houvesse fascinado o
mísero Soares.
Não averiguou, — nem pôde, as restantes feições da moça; mas o que pôde
contemplar à vontade, o que já vinha admirando de longe, era a elegância nativa
do busto e o gracioso desgarro com que ela montava. Vira muitas amazonas
elegantes e destras. Aquela porém tinha alguma coisa em que se avantajava às
outras; era talvez o desalinho do gesto, talvez a espontaneidade dos
movimentos, outra coisa talvez, ou todas juntas que davam à interessante goiana
incontestável supremacia.
Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra à esposa
do coronel, a respeito de qualquer acidente, — de um efeito de luz, de um
pássaro que passava, de um som que se ouvia, — mas em nenhuma ocasião encarava
ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador. Absorvido na contemplação
da moça, Camilo deixou cair a conversa, e havia já alguns minutos que ele e D.
Gertrudes iam cavalgando, sem dizer palavra, ao lado um do outro. Foram
interrompidos em sua marcha silenciosa por um cavaleiro que vinha atrás da
comitiva a trote largo.
Era Soares.
O filho do negociante vinha bem diferente do que até ali andava.
Cumprimentou-os sorrindo e jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do
médico. Não era porém difícil conhecer que a alegria de Soares era um
artifício. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou fazia um
gesto de desespero que felizmente escapava aos outros. Ele receava o triunfo de
um homem que, física e intelectualmente lhe era superior; que, além disso,
gozava naquela ocasião a grande vantagem de dominar a atenção pública, que era
o urso da aldeia, o acontecimento do dia, o homem da situação. Tudo conspirava
para derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver morrer a
moça isenta de todo o vínculo conjugal! O infeliz namorado tinha o sestro,
aliás comum, de querer ver quebrada ou inútil a taça que ele não podia levar
aos lábios.
Cresceu porém seu receio quando, estando escondido no taquaral de que
falei acima, para ver passar Isabel, como costumava fazer muitas vezes,
descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Não pôde reter uma exclamação de
surpresa, e chegou a dar um passo na direção da estrada. Deteve-se a tempo. Os
cavaleiros, como vimos, passaram adiante, deixando o cioso pretendente a jurar
aos céus e à terra que tomaria desforra do seu atrevido rival, se o fosse.
Não era rival, bem sabemos; o coração de Camilo guardava ainda fresca a
memória da Artemisa moscovita, cujas lágrimas, apesar da distância, o rapaz
sentia que eram ardentes e aflitivas. Mas quem poderia convencer a Leandro
Soares que o elegante moço da Europa, como lhe chamavam, não ficaria enamorado
da esquiva goiana?
Isabel, entretanto, apenas vira o infeliz pretendente, deteve o cavalo e
estendeu-lhe afetuosamente a mão. Um adorável sorriso acompanhou esse
movimento. Não era bastante para dissipar as dúvidas do pobre moço. Diversa foi
porém a impressão de Camilo.
“Ama-o, ou é uma grande velhaca,” pensou ele.
Casualmente, — e pela primeira vez, olhava Isabel para o filho do
comendador. Perspicácia ou adivinhação, leu-lhe no rosto esse pensamento
oculto; franziu levemente a testa com uma expressão tão viva de estranheza, que
o médico ficou perplexo e não pôde deixar de acrescentar, já então com os
lábios, à meia voz falando para si:
— Ou fala com o diabo.
— Talvez, murmurou a moça com os olhos fitos no chão.
Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo não
podia desviar os olhos da formosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois
da palavra murmurada por ela em tão singulares condições. Soares olhava para
Camilo com a mesma ternura com que um gavião espreita uma pomba. Isabel
brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do padre
Maciel e receber um reparo amigável do marido, deu voz de marcha, e a comitiva
seguiu imediatamente.
CAPÍTULO IV
A FESTA
No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte
correra uma chusma de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo.
Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas
festas clássicas, resto de outras eras que os escritores do século futuro hão
de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contemporâneos um Brasil que
eles já não hão de conhecer. No tempo em que esta história se passa, uma das
mais genuínas festas do Espírito Santo era a da cidade de Santa Luzia.
O Tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do Divino, estava em
uma casa que possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o bando dos
pastores, composto de homens e mulheres, com o seu pitoresco vestuário, e
acompanhado pelo clássico velho, que era um sujeito de calção e meia, sapato
raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mão.
Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos
pastores, com alguns músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram logo, ali
mesmo na rua, um círculo; um pastor e uma pastora iniciaram a dança clássica.
Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala do coronel, que estava
literalmente a lamber-se de gosto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca será
liquidado, se o Tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de
Estado a ser imperador do Espírito Santo.
E todavia aquilo era apenas uma amostra da grandeza do tenente-coronel.
O sol do domingo devia alumiar maiores coisas. Parece que esta razão determinou
o rei da luz a trazer nesse dia os seus melhores raios. O céu nunca se mostrara
mais limpidamente azul. Algumas nuvens grossas, durante a noite, chegaram a
emurchecer as esperanças dos festeiros; felizmente, sobre a madrugada soprara
um vento rijo que varreu o céu e purificou a atmosfera.
A população correspondeu à solicitude da natureza. Logo cedo apareceu
ela com os seus vestidos domingueiros, — jovial, risonha, palreira, — nada
menos que feliz.
O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à
cerimônia religiosa.
Camilo passara a noite na cidade em casa do Padre Maciel, e foi
acordado, mais cedo do que supusera, com os repiques e foguetada e mais
demonstrações da cidade alegre. Em casa do pai continuara o moço os seus
hábitos de Paris, em que o comendador julgou não dever perturbá-lo. Acordava
portanto às 11 horas da manhã, exceto os domingos, em que ia à missa, para de
todo em todo não ofender os hábitos da terra.
— Que diabo é isto, padre? gritou Camilo do quarto onde estava, e no
momento em que uma girândola lhe abria definitivamente os olhos.
— Que há de ser? respondeu o Padre Maciel, metendo a cabeça pela porta:
é a festa.
— Então a festa começa de noite?
— De noite? exclamou o padre. É dia claro.
Camilo não pôde conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se.
Almoçou com o padre, contou duas anedotas, confessou ao hóspede que Paris era o
ideal das cidades, e saiu para ir ter à casa do imperador do Divino. O padre
saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro Soares.
— Não me dirá, padre, perguntou Camilo, por que razão a filha do Dr.
Matos não atende àquele pobre rapaz que gosta tanto dela?
Maciel consertou os óculos e expôs a seguinte reflexão:
— Você parece tolo.
— Não tanto, como lhe pareço, replicou o filho do comendador, porque
mais de uma pessoa tem feito a mesma pergunta.
— Assim é, na verdade, disse o padre; mas há coisas que outros dizem e a
gente não repete. A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente porque não
gosta.
— Não lhe parece que essa moça é um tanto esquisita?
— Não, disse o padre, parece-me uma grande finória.
— Ah! por quê?
— Suspeito que tem muita ambição; não aceita o amor do Soares, a ver se
pilha algum casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas.
— Ora, disse Camilo levantando os ombros.
— Não acredita?
— Não.
— Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual dá
uma explicação à isenção de Isabel; todas as explicações porém me parecem
absurdas; a minha é a melhor.
Camilo fez algumas objeções à explicação do padre, e despediu-se dele
para ir à casa do tenente-coronel.
O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez
que exercia aquele cargo honorífico e timbrava em fazê-lo brilhantemente, e até
melhor que os seus predecessores. Ao natural desejo de não ficar por baixo,
acrescia o elemento da inveja política. Alguns adversários seus diziam pela
boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar conta da mão.
— Pois verão se sou capaz, foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos
a malícia dos adversários.
Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas
ordens relativas ao jantar que se devia seguir à festa, e ouvia algumas
informações que lhe dava um irmão definidor acerca de uma cerimônia da
sacristia.
— Não ouso falar-lhe, coronel, disse o filho do comendador, quando o
Veiga ficou só com ele; não ouso interrompê-lo.
— Não interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo estar
acabado. O comendador vem?
— Já cá deve estar.
— Já viu a igreja?
— Ainda não.
— Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não
desmerecerá das outras, e até em algumas coisas há de ir melhor.
Era absolutamente impossível não concordar com esta opinião, quando
aquele que a exprimia fazia assim o seu próprio louvor. Camilo encareceu ainda
mais o mérito da festa. O coronel ouvia-o com um riso de satisfação íntima, e
dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda não apreciava bem a situação,
quando este desviou a conversa, perguntando:
— Ainda não veio o Dr. Matos?
— Já.
— Com a família?
— Sim, com a família.
Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma
música que se aproximava.
— São eles! disse Veiga; vêm buscar-me. Há de dar-me licença.
O coronel estava até então de calça preta e rodaque de brim. Correu a
preparar-se com o traje e as insígnias do seu elevado cargo. Camilo chegou à
janela para ver o cortejo. Não tardou que este aparecesse composto de uma banda
de música, da irmandade do Espírito Santo e dos pastores da véspera. Os irmãos
vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo que
enchia a rua e se aglomerava à porta do tenente-coronel para vê-lo sair.
Quando o cortejo parou em frente da casa do tenente-coronel cessou a
música de tocar e todos os olhos se voltaram curiosamente para as janelas. Mas
o imperador estreante estava ainda por completar a sua edição, e os curiosos
tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr. Camilo. Entretanto, quatro ou seis
irmãos mais graduados destacaram-se do grupo e subiram as escadas do
tenente-coronel.
Minutos depois cumprimentava Camilo os ditos irmãos graduados, um dos
quais, mais graduado que os outros, não o era só no cargo, mas também, e
sobretudo, no tamanho. E a estatura do Major Brás seria a coisa mais notável da
sua pessoa, se lhe não pedisse meças a magreza do próprio major. A opa do
major, apesar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia até abaixo da curva da perna
como a dos outros, nem lhe ficava na cintura, como devera, no caso de ter sido
feita pela mesma medida. Era uma opa termo-médio. Ficava-lhe entre a cintura e
a curva, e foi feita assim de propósito para conciliar os princípios da
elegância com a estatura do major.
Todos os irmãos graduados estenderam a mão ao filho do comendador e
perguntaram ansiosamente pelo tenente-coronel.
— Não tarda; foi vestir-se, respondeu Camilo.
— A igreja está cheia, disse um dos irmãos graduados; só se espera por
ele.
— É justo esperar, opinou o Major Brás.
— Apoiado, disse o coro dos irmãos.
— Demais, continuou o imenso oficial, temos tempo; e não vamos para
longe.
Os outros irmãos apoiaram com o gesto esta opinião do major, que, ato
contínuo, começou a dizer a Camilo os mil trabalhos que a festa lhes dera, a
ele e aos cavalheiros que o acompanhavam naquela ocasião, não menos que ao
tenente-coronel.
— Como recompensa dos nossos débeis esforços (Camilo fez um sinal
negativo a estas palavras do Major Brás), temos consciência de que a coisa não
sairá de todo mal.
Ainda estas palavras não tinham bem saído dos lábios do digno oficial,
quando assomou à porta da sala o tenente-coronel em todo o esplendor da sua
transformação.
Camilo perdera de todo as noções que tinha a respeito do traje e
insígnias de um imperador do Espírito Santo. Não foi pois sem grande pasmo que
viu assomar à porta da sala a figura do tenente-coronel.
Além da calça preta que já tinha no corpo quando ali chegou Camilo, o
tenente-coronel envergara uma casaca, que pela regularidade e elegância do
corte podia rivalizar com as dos mais apurados membros do Cassino Fluminense.
Até aí tudo ia bem. Ao peito rutilava uma vasta comenda da Ordem da Rosa, que
lhe não ficava mal. Mas o que excedeu a toda a expectação, o que pintou no
rosto do nosso Camilo a mais completa expressão de assombro, foi uma brilhante
e vistosa coroa de papelão forrado de papel dourado que o tenente-coronel
trazia na cabeça.
Camilo recuou um passo e cravou os olhos na insígnia imperial do
tenente-coronel. Já lhe não lembrava aquele acessório indispensável em ocasiões
semelhantes, e tendo vivido oito anos no meio de uma civilização diversa, não
imaginava que ainda existissem costumes que ele julgava enterrados.
O tenente-coronel apertou a mão a todos os amigos e declarou que estava
pronto a acompanhá-los.
— Não façamos esperar o povo, disse ele.
Imediatamente, desceram à rua. Houve no povo um movimento de
curiosidade, quando viu aparecer à porta a opa encarnada de um dos irmãos que
haviam subido. Logo atrás apareceu outra opa, e não tardou que as restantes
opas aparecessem também flanqueando o vistoso imperador. A coroa dourada,
apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a despedir faíscas quase inverossímeis.
O tenente-coronel olhou a um lado e outro, fez algumas inclinações leves de
cabeça a uma ou outra pessoa da multidão, e foi ocupar o seu lugar de honra no
cortejo. A música rompeu logo uma marcha, que foi executada pelo tenente-coronel,
a irmandade e os pastores, na direção da igreja.
Apenas da igreja avistaram o cortejo, o sineiro que já estava à
espreita, pôs em obra as lições mais complicadas do seu ofício, enquanto uma
girândola, entremeada de alguns foguetes soltos, anunciava às nuvens do céu que
o imperador do Divino era chegado. Na igreja houve um rebuliço geral apenas se
anunciou que era chegado o imperador. Um mestre-de-cerimônias ativo e
desempenado ia abrindo alas, com grande dificuldade, porque o povo, ansioso por
ver a figura do tenente-coronel, aglomerava-se desordenadamente e desfazia a
obra do mestre-de-cerimônias. Afinal aconteceu o que sempre acontece nessas
ocasiões; as alas foram-se abrindo por si mesmas, e ainda que com algum custo,
o tenente-coronel atravessou a multidão, precedido e acompanhado pela
irmandade, até chegar ao trono que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com
firmeza os degraus do trono, e sentou-se nele, tão orgulhoso como se governasse
dali todos os impérios juntos do mundo.
Quando Camilo chegou à igreja, já a festa havia começado. Achou um lugar
sofrível, ou antes inteiramente bom, porque dali podia dominar um grande grupo
de senhoras, entre as quais descobriu a formosa Isabel.
Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. O encontro na
estrada e a singular perspicácia de que a moça dera prova nessa ocasião não lhe
haviam saído da cabeça. A moça pareceu não dar por ele; mas Camilo era tão
versado em tratar com o belo sexo, que não lhe foi difícil perceber que ela o
tinha visto e intencionalmente não voltava os olhos para o lado dele. Esta
circunstância, ligada aos incidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no
espírito a seguinte pergunta:
— Mas que tem ela contra mim?
A festa prosseguiu sem novidade. Camilo não tirava os olhos de sua bela
charada, nome que já lhe dava, mas a charada parecia refratária a todo o
sentimento de curiosidade. Uma vez porém, quase no fim, encontraram-se os olhos
de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz surpreendeu a moça a olhar
para ele. Cumprimentou-a; foi correspondido; nada mais. Acabada a festa foi a
irmandade levar o tenente-coronel até a casa. No meio da lufa-lufa da saída,
Camilo, que estava embebido a olhar para Isabel, ouviu uma voz desconhecida que
lhe dizia ao ouvido:
— Veja o que faz!
Camilo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos miúdos e
vivos, pobre mas asseadamente trajado. Encararam-se alguns segundos sem dizer
palavra. Camilo não conhecia aquela cara e não se atrevia a pedir a explicação
das palavras que ouvira, conquanto ardesse por saber o resto.
— Há um mistério, continuou o desconhecido. Quer descobri-lo?
Houve algum tempo de silêncio.
— O lugar não é próprio, disse Camilo; mas se tem alguma coisa que me
dizer…
— Não; descubra o senhor mesmo.
E dizendo isto desapareceu no meio do povo o homem baixinho e magro, de
olhos vivos e miúdos. Camilo acotovelou umas dez ou doze pessoas, pisou uns
quinze ou vinte calos, pediu outras tantas vezes perdão da sua imprudência, até
que se achou na rua sem ver nada que se parecesse com o desconhecido.
— Um romance! disse ele; estou em pleno romance.
Nisto saíam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Matos. Camilo
aproximou-se do grupo e cumprimentou-os. Matos deu o braço a D. Gertrudes;
Camilo ofereceu timidamente o seu a Isabel. A moça hesitou; mas não era
possível recusar. Passou o braço no do jovem médico e o grupo dirigiu-se para a
casa onde o tenente-coronel já estava e mais algumas pessoas importantes da
localidade. No meio do povo havia um homem que também se dirigia para a casa do
coronel e que não tirava os olhos de Camilo e de Isabel. Esse homem mordia o
lábio até fazer sangue. Será preciso dizer que era Leandro Soares?
CAPÍTULO V
PAIXÃO
A distância da igreja à casa era pequena, e a conversa entre Isabel e
Camilo não foi longa nem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te
merece a princesa moscovita, deves sinceramente lastimá-la. A aurora de um novo
sentimento começava a dourar as cumeadas do coração de Camilo; ao subir as
escadas, confessava o filho do comendador de si para si, que a interessante
patrícia tinha qualidades superiores às da bela princesa russa. Hora e meia
depois, isto é, quase no fim do jantar, o coração de Camilo confirmava
plenamente esta descoberta do seu investigador espírito.
A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente indiferentes;
mas Isabel falava com tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a sua
habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de ver ao perto, e os cabelos
também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o nosso ardente
mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graças
juntas.
O jantar correu sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do
tenente-coronel todas as notabilidades do lugar, o vigário, o juiz municipal, o
negociante, o fazendeiro, reinando sempre de uma ponta à outra da mesa a maior cordialidade
e harmonia. O imperador do Divino, já então restituído ao seu vestuário comum,
fazia as honras da mesa com verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto da
geral conversa, entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos
estavam de acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.
O Major Brás tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e
eloquentes em cada jantar de certa ordem a que assistisse. A facilidade com que
ele se exprimia não tinha rival em toda a província. Além disso, como era
dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o auditório, que o simples
levantar-se era já meio triunfo.
Não podia o Major Brás deixar passar incólume o jantar do
tenente-coronel; ia-se entrar na sobremesa quando o eloquente major pediu
licença para dizer algumas palavras singelas e toscas. Um murmúrio, equivalente
aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do orador, e o auditório
preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe iam cair da boca.
— O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha
ousadia; não vos fala o talento, senhores; fala-vos o coração.
“Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre
Tenente-coronel Veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo;
a minha voz nada adiantaria…”
O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro
membro desta última frase, e com restrições o segundo; isto é, cumprimentou o
tenente-coronel e o major; e o orador que, para ser coerente com o que acabava
de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da seguinte maneira:
— O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que
nunca se apagará da vossa memória. Muitas festas do Espírito Santo têm havido
nesta cidade e em outras; mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um
esplendor, uma animação, um triunfo igual ao que nos proporcionou o nosso
ilustre correligionário e amigo, o Tenente-coronel Veiga, honra da classe a que
pertence, e glória do partido a que se filiou…
— E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.
— Nem outra coisa era de esperar de V. Ex.ª, disse o orador mudando de
voz para dar a estas palavras um tom de parênteses.
Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar
nada aos méritos do tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e
cinco minutos com grande mágoa do Padre Maciel, que namorava de longe um fofo e
trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que estava ansioso por ir fumar. A
peroração desse memorável discurso foi pouco mais ou menos assim:
— Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário,
de subordinado e de admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e não vos
dissesse em linguagem tosca, sim (sinais de desaprovação), mas sincera, os
sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo de que me sinto
possuído, quando contemplo o venerando e ilustre tenente-coronel Veiga, e se
vos não convidasse a beber comigo à saúde de S. Ex.ª.
O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual
respondeu o tenente-coronel com estas poucas, mas sentidas palavras:
— Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brás são verdadeiros
favores de uma alma grande e generosa; não os mereço, senhores; devolvo-os
intactos ao ilustre orador que me precedeu.
No meio da festa e da alegria que reinava ninguém reparou nas atenções
que Camilo prestava à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal; Leandro
Soares, que fora convidado ao jantar, e assistira a ele, não tirava os olhos do
elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.
Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que
Soares assistia aos ataques do adversário. Não é milagre; Soares também
interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença, talvez o desdém, com
que tratava o filho do comendador.
“Nem eu, nem ele,” dizia consigo o pretendente.
Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que
passava aumentava a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia
desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único
mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.
A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta
transformação. Fazendo de si próprio melhor ideia que do rival, Camilo dizia
consigo:
“Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho de
Soares. Mas por que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há para que
eu seja derrotado como qualquer pretendente vulgar?”
Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e
das palavras que lhe dissera.
— Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?
Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos
e vivos. Ninguém lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a descobrir
naquelas paragens um homem que naturalmente alguém devia conhecer; redobrou de
esforços; ninguém sabia quem era o misterioso sujeito.
Entretanto Camilo frequentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar
algumas vezes. Era difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem mais
adiantados costumes; fazia entretanto o que podia para comunicar à bela moça os
seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às comunicações do
rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se
que ali dentro morava um coração de neve.
Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a
vergonha, e tudo isto, junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu
com o nosso Camilo na cama, onde por agora o deixaremos, entregue aos médicos
seus colegas.
CAPÍTULO VI
REVELAÇÃO
Não há mistérios para um autor que sabe investigar todos os recantos do
coração. Enquanto o povo de Santa Luzia faz mil conjecturas a respeito da causa
verdadeira da isenção que até agora tem mostrado a formosa Isabel, estou
habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela ama.
— E a quem ama? pergunta vivamente o leitor.
Ama… uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita.
Deve ser então uma flor muito linda, — um milagre de frescura e de
aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de flor, seco,
mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no pé, mas que
hoje na cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira, a não ser de
curiosidade. Sim, porque é realmente curioso que uma moça de vinte anos, em
toda a força das paixões, pareça indiferente aos homens que a cercam, e
concentre todos os seus afetos nos restos descorados e secos de uma flor.
Ah! mas aquela foi colhida em circunstâncias especiais. Dera-se o caso
alguns anos antes. Um moço da localidade gostava então muito de Isabel, porque
era uma criança engraçada, e costumava chamá-la sua mulher, gracejo inocente
que o tempo não sancionou. Isabel também gostava do rapaz, a ponto de fazer
nascer no espírito do pai da moça a seguinte ideia:
— Se daqui a alguns anos as coisas não mudarem por parte dela, e se ele
vier a gostar seriamente da pequena, creio que os posso casar.
Isabel ignorava completamente esta ideia do pai; mas continuava a gostar
do moço, o qual continuava a achá-la uma criança interessantíssima.
Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma
árvore.
— Que bonita flor! disse ela.
— Aposto que você a quer?
— Queria, sim… disse a menina que, sem aprender, conhecia já esse falar
oblíquo e disfarçado.
O moço despiu o paletó com a sem-cerimônia de quem trata com uma criança
e trepou pela árvore acima. Isabel ficou embaixo ofegante e ansiosa pelo
resultado. Não tardou que o complacente moço deitasse a mão à flor e
delicadamente a colhesse.
— Apanhe! disse ele de cima.
Isabel aproximou-se da árvore e recolheu a flor no regaço. Contente por
ter satisfeito o desejo da menina, tratou o rapaz de descer, mas tão
desastradamente o fez, que no fim de dois minutos jazia no chão aos pés de
Isabel. A menina deu um grito de angústia e pediu socorro; o rapaz procurou
tranquilizá-la dizendo que nada era, e tentando levantar-se alegremente.
Levantou-se com efeito, com a camisa salpicada de sangue; tinha ferido a
cabeça.
A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moço
completamente restabelecido.
A impressão que Isabel recebeu naquela ocasião foi profunda. Gostava até
então do rapaz; daí em diante passou a adorá-lo. A flor que ele lhe colhera
veio naturalmente a secar; Isabel guardou-a como se fora uma relíquia;
beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante até chorava sobre ela. Uma
espécie de culto supersticioso prendia o coração da moça àquela mirrada
parasita.
Não era ela porém tão mau coração que não ficasse vivamente
impressionada quando soube da doença de Camilo. Fez indagar com assiduidade do
estado do moço, e cinco dias depois foi com o pai visitá-lo à fazenda do
comendador.
A simples visita da moça, se não curou o doente, deu em resultado
consolá-lo e animá-lo; viçaram-lhe algumas esperanças, que já estavam mais
secas e mirradas que a parasita cuja história acima narrei.
“Quem sabe se me não amará agora?” pensou ele.
Apenas ficou restabelecido foi o seu primeiro cuidado ir à fazenda do
Dr. Matos; o comendador quis acompanhá-lo. Não o acharam em casa; estavam
apenas a irmã e a filha. A irmã era uma pobre velha, que além desse achaque,
tinha mais dois: era surda e gostava de política. A ocasião era boa; enquanto a
tia de Isabel confiscava a pessoa e a atenção do comendador, Camilo teve tempo
de dar um golpe decisivo e rápido, dirigindo à moça estas palavras:
— Agradeço-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha
moléstia. Essa mesma bondade anima-me a pedir-lhe uma coisa mais…
Isabel franziu a testa.
— Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que já
estava morta. Será ilusão minha? Uma palavra sua, um gesto seu resolverá esta
dúvida.
Isabel ergueu os ombros.
— Não compreendo, disse ela.
— Compreende, disse Camilo em tom amargo. Mas eu serei mais franco, se o
exige. Amo-a; disse-lho mil vezes; não fui atendido. Agora porém…
Camilo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse
diante de si a pessoa que ele desejava o ouvisse. Isabel, porém, não lhe deu
tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem fazer um gesto, atravessou a
extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade onde a velha tia punha à
prova os excelentes pulmões do comendador.
O desapontamento de Camilo estava além de toda a descrição. Pretextando
um calor que não existia saiu para tomar ar, e ora vagaroso, ora apressado,
conforme triunfava nele a irritação ou o desânimo, o mísero pretendente
deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de vingança, ideou mil maneiras
de ir lançar-se aos pés da moça, rememorou todos os fatos que se haviam dado
com ela, e ao cabo de uma longa hora chegou à triste conclusão de que tudo
estava perdido. Nesse momento deu acordo de si: estava ao pé de um riacho que
atravessava a fazenda do Dr. Matos. O lugar era agreste e singularmente feito
para a situação em que ele se achava. A uns duzentos passos viu uma cabana, onde
pareceu que alguém entoava uma cantiga do sertão.
Importuna coisa é a felicidade alheia quando somos vítima de algum
infortúnio. Camilo sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente perguntou a si
mesmo se alguém podia ser feliz estando ele com o coração a sangrar de
desespero. Daí a nada aparecia à porta da cabana um homem e saía na direção do
riacho. Camilo estremeceu; pareceu-lhe reconhecer o misterioso que lhe falara
no dia do Espírito Santo. Era a mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se
rapidamente e parou a cinco passos de distância. O homem voltou o rosto: era
ele!
Camilo correu ao desconhecido.
— Enfim! disse ele.
O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mão que Camilo lhe
oferecia.
— Quer descansar? perguntou-lhe.
— Não, respondeu o médico. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz, mas
desde já, por favor, desejo que me explique as palavras que me disse outro dia
na igreja.
Novo sorriso do desconhecido.
— Então? disse Camilo vendo que o homem não respondia.
— Antes de mais nada, diga-me: gosta deveras da moça?
— Oh! muito!
— Jura que a faria feliz?
— Juro!
— Então ouça. O que vou contar a V. S.ª é verdade, porque o soube por
minha mulher que foi mucama de D. Isabel. É aquela que ali está.
Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante,
que olhava para ele com curiosidade.
— Agora, continuou o desconhecido, afastemo-nos um pouco; para que ela
nos não ouça, porque eu não desejo venha a saber-se de quem V. S.ª ouviu esta
história.
Afastaram-se com efeito costeando o riacho. O desconhecido narrou então
a Camilo toda a história da parasita, e o culto que até então a moça votava à
flor já seca. Um leitor menos sagaz imagina que o namorado ouviu essa narração
triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha logo que a confidência
do desconhecido despertou na alma de Camilo os mais incríveis sobressaltos de
alegria.
— Aqui está o que há, disse o desconhecido ao concluir, creio que V. S.ª
com isto pode saber em que terreno pisa.
— Oh! sim! sim! disse Camilo. Sou amado! sou amado!
Sabedor daquela novidade ardia o médico por voltar a casa, donde saíra
havia tanto tempo. Meteu a mão na algibeira, abriu a carteira e tirou uma nota
de vinte mil-réis.
— O serviço que me acaba de prestar é imenso, disse ele; não tem preço.
Isto porém é apenas uma lembrança…
Dizendo estas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se
desdenhosamente sem responder palavra. Depois, estendeu a mão à nota que Camilo
lhe oferecia, e, com grande pasmo deste, atirou-a ao riacho. O fio d’água, que
ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou consigo o bilhete, de
envolta com uma folha que o vento lhe levara também.
— Deste modo, disse o desconhecido, nem o senhor fica devendo um
obséquio, nem eu recebo a paga dele. Não pense que tive tenção de servir a V.
S.ª; não. Meu desejo é fazer feliz a filha do meu benfeitor. Sabia que ela
gostava de um moço, e que esse moço era capaz de a fazer feliz; abri caminho
para que ele chegue até onde ela está. Isto não se paga; agradece-se apenas.
Acabando de dizer estas palavras, o desconhecido voltou as costas ao
médico, e dirigiu-se para a cabana. Camilo acompanhou com os olhos aquele homem
rústico. Pouco tempo depois estava em casa de Isabel, onde já era esperado com
alguma ansiedade. Isabel viu-o entrar, alegre e radiante.
— Sei tudo, disse-lhe Camilo pouco antes de sair.
A moça olhou espantada para ele.
— Tudo? repetiu ela.
— Sei que me ama, sei que esse amor nasceu há longos anos, quando era
criança, e que ainda hoje…
Foi interrompido pelo comendador que se aproximava. Isabel estava pálida
e confusa; estimou a interrupção, porque não saberia que responder.
No dia seguinte escreveu-lhe Camilo uma extensa carta apaixonada,
invocando o amor que ela conservara no coração, e pedindo-lhe que o fizesse
feliz. Dois dias esperou Camilo a resposta da moça. Veio no terceiro dia. Era
breve e seca. Confessava que o amara durante aquele longo tempo, e jurava não
amar nunca a outro.
Apenas isso, concluía Isabel. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quisera
entregar a minha vida a quem tivesse um amor igual ao meu. O seu amor é de
ontem; o meu é de nove anos; a diferença de idade é grande demais; não pode ser
bom consórcio. Esqueça-me e adeus.
Dizer que esta carta não fez mais do que aumentar o amor de Camilo, é
escrever no papel aquilo que o leitor já adivinhou. O coração de Camilo só
esperava uma confissão escrita da moça para transpor o limite que o separava da
loucura. A carta transtornou-o completamente.
CAPÍTULO VII
PRECIPITAM-SE OS
ACONTECIMENTOS
O comendador não perdera a ideia de meter o filho na política.
Justamente nesse ano havia eleição; o comendador escreveu às principais
influências da província para que o rapaz entrasse na respectiva assembleia.
Camilo teve notícia desta premeditação do pai; limitou-se a erguer os ombros,
resolvido a não aceitar coisa nenhuma se não fosse a mão de Isabel. Em vão o
pai, o Padre Maciel, o tenente-coronel lhe mostravam um futuro esplêndido e
todo semeado de altas posições. Uma só posição o contentava: casar com a moça.
Não era fácil, decerto: a resolução de Isabel parecia inabalável.
“Ama-me, porém”, dizia o rapaz consigo; “é meio caminho andado”.
E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo que o
meio de ganhar a diferença da idade, era mostrar que o tinha mais violento e
capaz de maiores sacrifícios.
Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou
para ir vê-la todos os dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se Isabel
tivesse a curiosidade infantil de ver na mão a estrela d’alva, é muito provável
que ele achasse meio de lha trazer.
Ao mesmo tempo cessara de a importunar com epístolas ou palavras
amorosas. A última que lhe disse foi:
— Esperarei!
Nesta esperança andou ele muitas semanas, sem que a sua situação
melhorasse sensivelmente.
Alguma leitora menos exigente há de achar singular a resolução de
Isabel, ainda depois de saber que era amada. Também eu penso assim; mas não
quero alterar o caráter da heroína, porque ela era tal qual a apresento nestas
páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela única razão de ter o moço
voltado de Paris, enquanto ela gastara largos anos a lembrar-se dele e a viver
unicamente dessa recordação, entendia, digo eu, que isto a humilhava, e porque
era imensamente orgulhosa, resolvera não casar com ele nem com outro. Será
absurdo; mas era assim.
Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e por outro lado,
convencido de que era necessário mostrar uma dessas paixões invencíveis a ver
se a convencia e lhe quebrava a resolução, planeou Camilo um grande golpe.
Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se abalou
com a ausência do moço, porque ele costumava dar longos passeios, quando
porventura acordava mais cedo. A coisa porém começou a assustar à proporção que
o tempo ia passando. Saíram emissários para todas as partes, e voltaram sem dar
novas do rapaz.
O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a
parte em dez léguas ao redor. No fim de cinco dias de infrutíferas pesquisas
soube-se que um moço, com todos os sinais de Camilo, fora visto a meia légua da
cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro asseverou depois ter visto um
moço junto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar que probabilidade de
morte lhe traria uma queda.
O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse notícia
segura do filho. Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e
os campos, e nesta inútil labutação correu uma semana.
Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram
dar notícia do desaparecimento de Camilo? A primeira impressão foi
aparentemente nenhuma; o rosto não revelou a tempestade que imediatamente
rebentara no coração. Dez minutos depois a tempestade subiu aos olhos e
transbordou num verdadeiro mar de lágrimas.
Foi então que o pai teve conhecimento da paixão tão longo tempo
incubada. Ao ver aquela explosão não duvidou que o amor da filha pudesse vir a
ser-lhe funesto. Sua primeira ideia foi que o rapaz desaparecera para fugir a
um enlace indispensável. Isabel tranquilizou-o dizendo que, pelo contrário, era
ela quem se negara a aceitar o amor de Camilo.
— Fui eu que o matei! exclamava a pobre moça.
O bom velho não compreendeu muito como é que uma moça apaixonada por um
mancebo, e um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de caminharem para o
casamento, tratassem de se separar um do outro. Lembrou-se que o seu
procedimento fora justamente o contrário, logo que travou o primeiro namoro.
No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo nosso
já conhecido morador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.
— Está salvo disse ele.
— Salvo! exclamaram o pai e a filha.
— É verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontrá-lo no
fundo de uma ribanceira, quase sem vida, ontem de tarde.
— E por que não vieste dizer-nos?… perguntou o velho.
— Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si
quis ir outra vez tentar contra os seus dias; eu e minha mulher impedimo-lo de
fazer tal. Está ainda um pouco fraco; por isso não veio comigo.
O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lágrimas, poucas e
silenciosas, ainda lhe correram dos olhos; mas eram já de alegria e não de
mágoa.
Miguel saiu com a promessa de que o velho iria lá buscar o filho do
comendador.
— Agora, Isabel, disse o pai apenas ficou só com ela, que pretendes
fazer?
— O que me ordenar, meu pai!
— Eu só ordenarei o que te disser o coração. Que te diz ele?
— Diz…
— O quê?
— Que sim.
— É o que devia ter dito há muito tempo, porque…
O velho estacou.
“Mas se a causa deste suicídio for outra? pensou ele. Indagarei tudo.”
Comunicada a notícia ao comendador, não tardou que este se apresentasse
em casa do Dr. Matos, onde pouco depois chegou Camilo. O mísero rapaz trazia
escrita no rosto a dor de haver escapado à morte trágica que procurara; pelo
menos, assim o disse muitas vezes em caminho, ao pai de Isabel.
— Mas a causa dessa resolução? perguntou-lhe o doutor.
— A causa… balbuciou Camilo que espreitava a pergunta; não ouso
confessá-la…
— É vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso benévolo.
— Oh! não!…
— Mas que causa é?
— Perdoa-me, se eu lha disser?
— Por que não?
— Não, não ouso… disse resolutamente Camilo.
— É inútil, porque eu já sei.
— Ah!
— E perdoo a causa, mas não lhe perdoo a resolução; o senhor fez uma
coisa de criança.
— Mas ela despreza-me!
— Não… ama-o!
Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e acompanhou
o velho até a casa, onde encontrou o pai, que não sabia se devia mostrar-se
severo ou satisfeito.
Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara no
coração de Isabel.
— Ora pois! disse o pai da moça. Agora que o ressuscitamos é preciso
prendê-lo à vida com uma cadeia forte.
E sem esperar a formalidade do costume nem atender às etiquetas normais
da sociedade, o pai de Isabel deu ao comendador a novidade de que era
indispensável casar os filhos.
O comendador ainda não voltara a si da surpresa de ter encontrado o
filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a tribo dos Xavantes viesse cair em
cima dele armada de arco e flecha não sentiria espanto maior. Olhou
alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razão de um
fato aliás mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camilo e Isabel,
causa única do suicídio meio executado pelo filho. O comendador aprovou a
escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer que no caso dele teria feito
o mesmo, se não contasse com a vontade da moça.
— Serei enfim digno do seu amor? perguntou o médico a Isabel quando se
achou só com ela.
— Oh! sim!… disse ela. Se morresse, eu morreria também!
Camilo apressou-se a dizer que a Providência velara por ele; e não se
soube nunca o que é que ele chamava Providência.
Não tardou que o desenlace do episódio trágico fosse publicado na cidade
e seus arredores.
Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e Camilo
ficou literalmente fora de si. Mil projetos lhe acudiram à mente, cada qual
mais sanguinário: em sua opinião eram dois pérfidos que o haviam traído;
cumpria tirar uma solene desforra de ambos.
Nenhum déspota sonhou nunca mais terríveis suplícios do que os que
Leandro Soares engendrou na sua escaldada imaginação. Dois dias e duas noites
passou o pobre namorado em conjecturas estéreis. No terceiro dia resolveu ir
simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe em rosto a sua vilania e
assassiná-lo depois.
Muniu-se de uma faca e partiu.
Saía da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua
imaginação ideava agora uma vida cheia de bem-aventurança e deleites celestes;
a imagem da moça dava a tudo o que o rodeava uma cor poética. Ia todo engolfado
nestes devaneios quando viu em frente de si o preterido rival. Esquecera-se
dele no meio da sua felicidade; compreendeu o perigo e preparou-se para ele.
Leandro Soares, fiel ao programa que se havia imposto desfiou um rosário
de impropérios que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar à
prática o ponto final sanguinolento, Camilo respondeu:
— Atendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade
que vou casar com essa moça; mas também é verdade que ela o não ama. Qual é o
nosso crime neste caso? Ora, ao passo que o senhor nutre a meu respeito
sentimentos de ódio, eu pensava na sua felicidade.
— Ah! disse Soares com ironia.
— É verdade. Disse comigo que um homem das suas aptidões não devia estar
eternamente dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como meu pai quer
à força fazer-me deputado provincial, disse-lhe que aceitava o lugar para o dar
ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer resistências políticas e
ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede creio que lhe
merece alguma estima, — pelo menos não lhe merece tanto ódio.
Não creio que a língua humana possua palavras assaz enérgicas para
pintar a indignação que se manifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue
subiu-lhe todo às faces, enquanto os olhos pareciam despedir chispas de fogo.
Os lábios trêmulos como que ensaiavam baixinho uma imprecação eloquente contra
o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz rompeu nestes termos:
— A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava
juntar-lhe o escárnio…
— O escárnio! interrompeu Camilo.
— Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na
verdade, é a sua, que depois de me roubar a maior, a única felicidade que eu
podia ter, vem oferecer-me uma compensação política!
Camilo conseguiu explicar que não lhe oferecia nenhuma compensação;
pensara naquilo por conhecer as tendências políticas de Soares e julgar que
deste modo lhe seria agradável.
— Ao mesmo tempo, concluiu gravemente o noivo, fui levado pela ideia de
prestar um serviço à província. Creia que em nenhum caso, ainda que me devesse
custar a vida, proporia coisa desvantajosa à província e ao país. Eu cuidava
servir a ambos apresentando a sua candidatura, e pode crer que a minha opinião
será a de todos.
— Mas o senhor falou de resistências… disse Soares cravando no adversário
um olhar inquisitorial.
— Resistências, não por oposição pessoal, mas por conveniências
políticas, explicou Camilo. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os
verdadeiros princípios do partido que tem a honra de o possuir entre seus
membros.
Leandro Soares não tirava os olhos de Camilo; nos lábios pairava-lhe
agora um sorriso irônico e cheio de ameaças. Contemplou-o ainda alguns
instantes sem dizer palavra, até que de novo rompeu o silêncio.
— Que faria o senhor no meu caso? perguntou ele dando ao seu irônico
sorriso um ar verdadeiramente lúgubre.
— Eu recusava, respondeu afoitamente Camilo.
— Ah!
— Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece o mesmo
com o senhor, que a tem, e é por assim dizer o apoio do partido em toda esta
comarca.
— Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho.
— Não é o único: todos lhe fazem justiça.
Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaçavam-lhe na mente
terríveis inspirações, ou a humanidade reclamava alguma moderação no gênero de
morte que daria ao rival? Decorreram cinco minutos. Ao cabo deles, Soares parou
em frente de Camilo e ex abrupto lhe perguntou:
— Jura-me uma coisa?
— O quê?
— Que a fará feliz?
— Já o jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.
— Seria meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra
mim; não importa; estou disposto a tudo.
— Creia que eu sei avaliar o seu grande coração, disse Camilo
estendendo-lhe a mão.
— Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que me fica
na alma, a dor imensa que me há de acompanhar até a morte. Amores destes vão
até a sepultura.
Parou e sacudiu a cabeça, como para expelir uma ideia sinistra.
— Que pensamento é o seu? perguntou Camilo vendo o gesto de Soares.
— Descanse, respondeu este; não tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei à
sorte: e se aceito essa candidatura política que me oferece é unicamente para
afogar nela a dor que me abafa o coração.
Não sei se este remédio eleitoral servirá para todos os casos de doença
amorosa. No coração de Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em
favor do doente.
Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de Soares;
mas empenhou-se logo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal conseguiu-se que
Leandro Soares fosse incluído numa chapa e apresentado aos eleitores na próxima
campanha. Os adversários do rapaz, sabedores das circunstâncias em que lhe foi
oferecida a candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons que ele vendera
o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.
Havia já um ano que o filho do comendador estava casado, quando apareceu
na sua fazenda um viajante francês. Levava cartas de recomendação de um dos
seus professores de Paris. Camilo recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da
França, que ele ainda amava, dizia, como a sua pátria intelectual. O viajante
disse-lhe muitas coisas, e sacou por fim da mala um maço de jornais.
Era o Figaro.
— O Figaro! exclamou Camilo, lançando-se aos jornais.
Eram atrasados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele tivera
durante longos anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ela a vida
atual, havia sempre uma natural curiosidade em despertar recordações de outro
tempo.
No quarto ou quinto número que abriu deparou-se-lhe uma notícia que ele
leu com espanto.
Dizia assim:
Uma célebre Leontina Caveau, que se dizia viúva de um tal príncipe
Alexis, súdito do tzar, foi ontem recolhida à prisão. A bela dama (era bela!)
não contente de iludir alguns moços incautos, alapardou-se com todas as joias
de uma sua vizinha, Mlle. B… A roubada queixou-se a tempo de impedir a fuga da
pretendida princesa.
Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notícia, quando Isabel entrou
na sala.
— Estás com saudades de Paris? perguntou ela vendo-o tão atento a ler o
jornal francês.
— Não, disse o marido, passando-lhe o braço à roda da cintura; estava
com saudades de ti.
(In: Histórias da Meia Noite. Rio de Janeiro: Garnier, 1873. Publicado originalmente no Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, junho-setembro, 1872).
***
A cortina carmesim
Jules Barbey
d’Aurevilly
Really.
Há muitíssimos anos, fui caçar patos nos pântanos do Oeste, e como
não havia, naquela época, ferrovias na região para onde eu devia viajar,
tomei a diligência de *** que passava no cruzamento do castelo de Rueil e que,
naquele momento, não tinha, em seu compartimento, mais do que uma pessoa. Essa
pessoa, muito notável sob todos os aspectos, e que eu conhecia por tê-la
encontrado muitas vezes, era um homem que eu lhes pedirei a permissão para chamar
de Visconde de Brassard. Precaução provavelmente inútil! Aquelas poucas
centenas de pessoas que, em Paris, se consideram como sendo o mundo, são
certamente capazes de substituí-lo por seu verdadeiro nome… Era cerca de cinco
horas da tarde. O sol iluminava com seus enfraquecidos raios uma estrada
empoeirada, marginada por uma fileira de choupos e por uma extensa campina, e
sobre a qual nós nos lançamos, ao galope de quatro vigorosos cavalos, cujas
traseiras musculosas nós víamos se erguer pesadamente a cada golpe de chicote
do cocheiro, cuja imagem é a de quem sempre estala exageradamente seu chicote
na hora da partida!
O Visconde de Brassard estava naquela fase da vida em que não se estala mais o seu chicote… Mas trata-se de um desses temperamentos dignos dos ingleses (ele foi educado na Inglaterra), os quais, feridos de morte, jamais se entregam, e morrem sustentando que continuam vivos. Tem-se, no mundo, e mesmo nos livros, o hábito, quando se é jovem, de ridicularizar as pretensões daqueles que ultrapassaram essa idade feliz da inexperiência e da ignorância, e se tem razão, quando a forma dessas pretensões é ridícula; mas quando ela não é, – quando, ao contrário, ela é imponente como a altivez que não se deixa curvar e que a inspira, não digo que isso não seja insensato, pois isso é inútil, mas que é uma coisa tão bela quanto tantas outras coisas insensatas!… Se o sentimento da guarda que morre e não se rende é uma coisa heróica em Waterloo, ela não o é menos face à velhice, que não tem, essa, a poesia das baionetas para nos golpear. Ora, para cabeças construídas de uma certa maneira militar, nunca se render é, sempre, a propósito de tudo, como em Waterloo, a verdadeira questão!
O Visconde de Brassard, que não se rendeu (ele ainda vive, e, mais
tarde, eu direi como, pois vale a pena sabê-lo), o Visconde de Brassard era,
pois, no momento em que subi na diligência de ***, aquilo que o mundo, feroz
como uma jovem mulher, chama, deslealmente, de “um belo velho”. É verdade que
para aquelas pessoas que não economizam palavras ou números nessa questão da
idade, na qual não se tem, nunca, a não ser aquilo que se parece ter, o
Visconde de Brassard poderia passar por “belo”, sem qualquer outra
qualificação. Pelo menos, nessa época, a Marquesa de V…, que era
especializada em jovens e que tinha tosquiado uma dezena deles, como Dalila
tosquiara Sansão, portava com uma certa ostentação, sobre um fundo azul, em
um bracelete xadrez muito grande, dourado e preto, uma ponta do bigode do
Visconde que o diabo tinha tornado ainda mais ruço que o tempo… Velho ou não,
cuidem apenas para não atribuir a essa expressão de “belo”, que o mundo
criou, nada de frívolo, por mais que ela seja fraca ou exígua, pois vocês não
terão uma ideia justa de meu Visconde de Brassard, no qual, intelecto, modos,
fisionomia, tudo era grande, pleno, opulento, cheio de lentidão
aristocrática, como convinha ao mais magnífico dândi que conheci, eu, que vi
Brummel enlouquecer e d’Orsay morrer!
Ele tivera essa beleza que é necessária mais ao soldado que ao civil,
pois não há juventude sem a beleza, e o exército é a juventude da França!
Essa beleza, de resto, que não seduz apenas as mulheres, mas as próprias
circunstâncias, – essas libertinas!, – não tinha sido a única proteção que
tinha se estendido sobre a cabeça do Capitão Brassard. Ele era, creio, da
raça normanda, da raça de Guilherme, o Conquistador, e ele tinha, dizia-se,
muito conquistado… Depois da abdicação do Imperador, ele passou naturalmente
para o lado dos Bourbons e, durante a Guerra dos Cem Dias, muito naturalmente,
permaneceu-lhes fiel. Igualmente, quando os Bourbons retornaram pela segunda
vez, o Visconde foi nomeado Chevalier de Saint-Louis pelo próprio Carlos X
(então Monsieur). Durante todo o tempo da Restauração, não houve uma única
vez em que o belo Brassard fizesse a guarda nas Tulherias sem que a Duquesa
d’Angoulème não lhe dirigisse, ao passar, algumas amáveis palavras. Ela,
cuja infelicidade tinha lhe tirado a graça, sabia encontrá-las para ele. O
ministro, vendo esse favor, teria feito tudo pela promoção do homem que
Madame assim distinguia; mas, com a melhor vontade do mundo, que fazer por esse
enraivecido dândi que – num dia de revista – tinha tirado a espada, à frente
da bandeira de seu regimento, contra seu inspetor geral, por causa de uma
observação de serviço?… Já foi o bastante ter conseguido poupá-lo do
Conselho de Guerra! Esse desprezo impassível pela disciplina, o Visconde de
Brassard demonstrava-o em toda parte. Exceto em expedições militares, quando
o oficial se mostrava em sua plenitude, ele nunca se submetia às obrigações
militares. Muitas vezes, ele era visto, por exemplo, sob o risco de ser
submetido a detenções infinitamente prolongadas, deixar furtivamente sua
guarnição para ir se divertir em uma localidade vizinha e não regressar a
não ser para os dias de parada ou de revista, advertido por algum soldado que
gostava dele, pois se os chefes não se importavam de ter sob suas ordens um
homem à cuja natureza repugnava toda espécie de disciplina e de rotina, seus
soldados, por sua vez, o adoravam. Ele era excelente para eles. Ele não exigia
senão que fossem corajosos, muito minuciosos e muito elegantes, fazendo o
tipo, enfim, do antigo soldado francês, sobre o qual três ou quatro velhas
canções, que constituem obras-primas, nos deixaram uma imagem tão exata e
tão cativante. Ele os pressionava, talvez um pouco exageradamente, ao duelo,
mas ele tinha a convicção que esse era o melhor meio que ele conhecia de
desenvolver neles o espírito militar. “Não são sou um governo, dizia ele, e
não tenho decorações a lhes dar quando eles se batem bravamente entre si;
mas as decorações das quais eu sou o grande-mestre (ele era muito rico, por
causa de sua fortuna pessoal), são as luvas, os implementos de couro para
fazer a recarga das armas, e tudo aquilo que lhes pode adornar, desde que as
prescrições não o impeçam”. Da mesma forma, a companhia que ele comandava
apagava, pela beleza de seu porte, todas as outras companhias de granadeiros
dos regimentos da Guarda, que já eram bastante brilhantes. Era assim que ele
exaltava exageradamente a personalidade do soldado, sempre pronto, na França,
à fatuidade e à galanteria, essas duas provocações permanentes, uma pelo
tom que ela assume, a outra pela inveja que ela suscita. Compreender-se-á,
depois disso, que as outras companhias de seu regimento tivessem inveja da sua.
Lutava-se para entrar na sua companhia e lutava-se mais ainda para não sair
dela.
Essa fora, sob a Restauração, a posição inteiramente excepcional do
Capitão Visconde de Brassard. E como não havia, naquela época, todas as manhãs,
como sob o Império, o recurso do heroísmo em ação, que tudo faz perdoar,
ninguém teria certamente podido prever ou adivinhar quanto teriam durado esses
atos de insubordinação que surpreendiam seus camaradas, e que ele exercia
contra seus chefes com a mesma audácia com que ele teria posto em jogo sua
vida se fosse enviado ao campo de batalha, caso a Revolução de 1830 lhes
tirasse, se eles a tivessem, a precaução, e ele, o imprudente capitão, a
humilhação de uma destituição que o ameaçava mais a cada dia. Ferido
gravemente na Guerra dos Três Dias, ele se recusou a prestar serviço sob a
nova dinastia dos Orleans, os quais ele desprezava. Quando a Revolução de
Julho os fez donos de um país que eles não souberam cuidar, ela encontrou o
capitão em seu leito, enfermo de um ferimento que ele teve no pé quando
dançava – como ele o teria expressado – no último baile da Duquesa de Berry.
Mas ao primeiro rufar dos tambores, ele não deixou de se levantar para
juntar-se à sua companhia e como não lhe era possível calçar botas, por
causa do ferimento, ele foi à insurreição como ele teria ido ao baile, com
sapatos de verniz e meias de seda, e foi assim que ele tomou o comando de seus
granadeiros na Praça da Bastilha, encarregado como estava, de liberar, em toda
a sua extensão, o bulevar. Paris, onde as barricadas ainda não estavam
erguidas, tinha um aspecto sinistro e temível. A cidade estava deserta. O sol
caía a prumo, como uma primeira chuva de fogo à qual outra se deveria seguir,
uma vez que todas as janelas, cobertas com suas persianas, iriam, em seguida,
expelir a morte… O Capitão de Brassard organizou seus soldados em duas linhas,
ao longo e o mais perto possível das casas, de maneira que cada fileira de
soldados não ficasse exposta aos golpes de fuzil que lhes chegavam de frente,
e ele, mais dândi que nunca, assumiu o meio do pavimento. Sob a mira, pelos
dois lados, de milhares de fuzis, de pistolas e de carabinas, desde a Bastilha
até a Rua de Richilieu, ele não foi atingido, apesar da largura de um peito
de que ele se orgulhava um tanto exageradamente, pois o Capitão de Brassard
oferecia seu peito ao fogo, como uma bela mulher, num baile, que põe seu seio
em julgamento, quando, chegado à frente de Frascati, na esquina da Rua de
Richilieu, e no momento em que ordenava à sua tropa que se concentrasse atrás
dele para arrastar a primeira barricada que ele encontrou erguida em seu
caminho, ele recebeu uma bala em seu magnífico peito, duplamente contundente,
primeiramente, por sua largura e, depois, pelos longos alamares de prata que
resplandeciam de um ombro ao outro, e ele teve o braço atingido por uma pedra,
– o que não o impediu de tomar de assalto a barricada e de ir até à
Madeleine, à frente de seus entusiasmados homens. Ali, duas mulheres em uma
caleche, que fugiam da Paris em revolta, ao ver esse oficial da Guarda ferido,
coberto de sangue e deitado sobre os blocos de pedra que rodeavam, nessa
época, a Igreja da Madeleine, a qual ainda estava em obras, colocaram seu
carro à disposição, e ele foi conduzido por elas ao Gros-Caillou, onde se
encontrava então o Marechal de Raguse, ao qual ele disse, militarmente:
“Marechal, não viverei talvez mais que duas horas, mas durante essas duas
horas, posicione-me onde o senhor quiser!”. Só que ele estava enganado… Ele ia
viver mais que duas horas. A bala que o tinha atravessado não o matara. Faz
mais de quinze anos que o conheci e ele afirmava então, à revelia da medicina
e de seu médico, que o havia expressamente proibido de beber durante todo o
tempo que havia durado a febre de seu ferimento, que só tinha se salvado da
morte certa por beber vinho de Bordeaux.
E ao bebê-lo, como ele bebia!, pois, dândi em tudo, ele era, em sua
maneira de beber, como em tudo o resto… ele bebia como um polonês. Ele mandou
fazer um esplêndido cálice em cristal da Boêmia, na medida de uma garrafa
inteira de Bordeaux, e ele o bebia de um trago! Ele acrescentava, após
haver bebido, que ele fazia tudo nessa mesma medida, e era verdade! Mas em uma
época em que a força, sob todas as formas, vai diminuindo, pode-se
considerar, talvez, que não haja nada de que se orgulhar. Ele era orgulhoso
como Bassompierre e ele tolerava o vinho como ele. Eu o vi beber de uma só
vez doze doses de sua taça da Boêmia sen dar a mínima impressão de
tê-lo feito! Eu o vi ainda, frequentemente, nessas refeições que as pessoas
decentes chamam de “orgias”, e ele não ultrapassava, após esses grandes
goles, aquele grau de embriaguez que ele chamava, com uma graça ligeiramente
soldadesca, de “estar um tanto alegrinho”, fazendo o gesto militar de colocar
um pompom vermelho em seu quepe. Eu, que muito gostaria de fazer com que vocês
compreendessem o tipo de homem que ele era, no interesse da história que vai
se seguir, por que eu não lhes diria que eu vi esse bom “braguard”, como o teria chamado o século XVI, com sua língua
pitoresca – com sete amantes titulares de uma vez só. Ele as intitulava
poeticamente de “as sete cordas de sua lira” e, na verdade, eu não aprovo essa
maneira musical e leviana de falar de sua própria imoralidade! Mas, que é que
vocês querem? Se o Capitão Visconde de Brassard não fosse tudo que tive a
honra de lhes dizer, minha história seria menos picante e, provavelmente, eu
não teria pensado em lhes contar.
É certo que eu não esperava encontrá-lo ali, quando subi na
diligência de ***, no entroncamento do castelo de Rueil. Havia muito tempo que
não nos víamos e gostei de reencontrá-lo, com a perspectiva de passar
algumas horas junto a um homem que ainda era de nossa época e que, ao mesmo
tempo, já diferia tanto dos homens de nossa época. O Visconde de Brassard,
que podia entrar na armadura de François I e com ela se mover tão à vontade
quanto em seu elegante fraque de oficial da Guarda Real, não se parecia, nem
pelo estilo, nem pelas proporções, com os mais glorificados dos jovens do
presente. Esse sol poente, de uma elegância grandiosa e por tão longo tempo
radiosa, teria feito com que esses pequenos ascendentes da moda que se levantam
agora no horizonte parecessem bem magricelas e bem pálidos! Belo, do tipo da
beleza do Imperador Nicolau, que ele lembrava pelo torso, mas menos ideal no
rosto e menos grego no perfil, ele cultivava uma barba curta, que continuava
escura, tal como seus cabelos, por um mistério de organização ou de toalete…
impenetrável, e essa barba espalhava-se até o alto de suas faces, com um
colorido animado e masculino. Sob uma fronte da mais alta nobreza, – uma fronte
arqueada, sem nenhuma ruga, branca como braço de mulher, – e que o quepe de
couro de granadeiro, que faz cair os cabelos, tal como o capacete,
descobrindo-o um pouco no alto da testa, tinha tornado mais ampla e mais
altiva, o Visconde de Brassard quase escondia, de tão afundados que estavam
sob a arcada das sobrancelhas, dois olhos cintilantes, de um azul muito escuro,
mas muito brilhantes em sua profundidade e que daí se sobressaíam como duas
safiras pontiagudas! Esses olhos não se davam ao trabalho de escrutar, mas eles
eram penetrantes. Nós trocamos um aperto de mão e nos pusemos a conversar. O
Capitão de Brassard falava lentamente, com uma voz vibrante que imaginávamos
ser capaz de abarcar todo o Champ-de-Mars com as ordens que ele dava. Educado
desde a infância, como lhes disse, na Inglaterra, ele pensava talvez em
inglês; mas essa lentidão, sem prejuízo do resto, dava um volteio muito
particular ao que ele dizia, e até mesmo às suas brincadeiras, pois o
Capitão gostava das brincadeiras, até mesmo daquelas um pouco arriscadas. Ele
tinha aquilo que chamamos de viva resolução. O Capitão de Brassard ia sempre
demasiado longe, dizia a Condessa de F…, essa alegre viúva, que não veste
mais que três cores depois que se tornou viúva: preto, violeta e branco. Era
preciso que ele se encontrasse em muito boa companhia para que não fosse
frequentemente encontrado em má companhia. Mas quando se está em má
companhia, vocês certamente sabem que acontece de tudo no faubourg
Saint-Germain!
Uma das vantagens da conversa quando se está viajando de carro, é que
ela pode parar quando não se tem mais nada a dizer, e isso sem nenhum
constrangimento para ninguém. Em uma sala de visitas, não se tem essa
liberdade. A polidez impõe-nos o dever de falar de qualquer maneira e somos
frequentemente punidos por essa hipocrisia inocente, pelo vazio e pelo enfado
dessas conversações em que os idiotas, mesmo que tenham nascido silenciosos
(e existem os desse tipo), se esforçam e fazem o impossível para dizer alguma
coisa e serem amáveis. Em um carro público, todo mundo está em sua casa, ao
mesmo tempo que na dos outros, – e pode- se, sem parecer inconveniente,
mergulhar no silêncio que agrada e que faz com que o devaneio se suceda à
conversação… Infelizmente, os acasos da vida são terrivelmente monótonos, e
outrora (pois já é outrora), subia-se vinte vezes em um carro público, –
como, hoje, sobe-se vinte vezes em um vagão, – sem encontrar uma pessoa cuja
conversa seja animada e interessante… O Visconde de Brassard trocava comigo,
inicialmente, algumas ideias que os acidentes da estrada, os detalhes da
paisagem e algumas recordações do mundo em que havíamos nos encontrado
outrora tinham feito nascer; depois, o dia que terminava fez, com seu
crepúsculo, cair sobre nós o seu silêncio. A noite que, no outono, parece
cair a pique do céu, de tão rápida que ela vem!, tomou conta de nós, com
seu ar fresco, e nós nos enrolamos em nossos casacos, buscando com a cabeça o
duro canto que é o travesseiro daqueles que viajam. Não sei se meu
companheiro adormeceu em seu canto do compartimento; mas, quanto a mim,
continuei acordado no meu. Eu estava tão indiferente ao trajeto que fazíamos
e que eu tinha tantas vezes feito, que eu mal prestava atenção aos objetos
exteriores, que desapareciam no movimento do carro, e que pareciam correr na
noite, em sentido oposto ao daquele que nós corríamos. Atravessamos vários
lugarejos, espalhados, aqui e lá, por essa longa estrada que os cocheiros de carros
postais ainda chamavam, orgulhosamente, de “fita de rabo de cavalo”, em
recordação de sua própria “fita de rabo de cavalo” que, no entanto, já há
muito tinha sido cortada. A noite tornou-se negra como um forno extinto, – e,
nessa obscuridade, essas cidades desconhecidas pelas quais passávamos eram
estranhas fisionomias e davam a ilusão que estávamos no fim do mundo… Essa
espécie de sensação que anoto aqui, como a recordação das últimas
impressões de um estado de coisas desaparecido, não existem mais e não
regressarão nunca para ninguém. Nos tempos atuais, as ferrovias, com suas
estações à entrada das cidades, não permitem mais ao viajante apreender de
uma só vez, em uma rápida vista d’olhos, o panorama fugidio de suas ruas, como
se pode fazer ao galope dos cavalos de uma diligência que vai, em seguida,
fazer a troca dos cavalos, para voltar a partir. Na maior parte dessas pequenas
cidades que atravessávamos, os reflexos, esse luxo tardio, eram raros, e
via-se, aí, certamente, bem menos que nas estradas que acabávamos de deixar.
Ali, ao menos, o céu tinha sua amplidão, e a grandeza do espaço lançava uma
vaga luz, enquanto que aqui, a aproximação das casas que pareciam se beijar,
suas sombras projetadas sobre as ruas estreitas, o pouco de céu e de estrelas
que se percebiam entre as duas fileiras de tetos, tudo se acrescentava ao
mistério dessas vilas adormecidas, nas quais o único homem que se encontrava
era – à porta de algum albergue – um garoto de cavalariça, com sua lanterna,
que conduzia os cavalos de revezamento, e que afivelava as correias de sua
atrelagem, assobiando ou praguejando contra seus cavalos recalcitrantes ou
demasiadamente ariscos… Fora isso e a eterna interpelação, sempre a mesma, de
algum viajante, tonto de sono, que baixava uma janela e gritava na noite, que
se tornava mais sonora por causa do silêncio: “Onde estamos, cocheiro?…”, não
se escutava nada de vivo e nada se via ao redor e nem nesse carro cheio de
pessoas que dormiam, nessa cidade adormecida, na qual, talvez, algum sonhador,
como eu, buscava, através da vidraça de seu compartimento, discernir a
fachada das casas encobertas pela noite, ou suspendia seu olhar e seu
pensamento à vista de alguma janela ainda iluminada a essa hora avançada,
nessas pequenas cidades de costumes regrados e simples, para as quais a noite
foi feita, sobretudo, para dormir. A vigília de um ser humano, – mesmo a de um
sentinela, – quando todos os outros seres estão mergulhados nesse torpor que é
o torpor da animalidade fatigada, tem sempre algo de imponente. Mas a
ignorância daquele que se deixa ficar em vigília por detrás de uma janela
com cortinas abaixadas, em que a luz indica a vida e o pensamento, acrescenta a
poesia do sonho à poesia da realidade. Ao menos, para mim, não pude nunca ver
uma janela, – em uma noite iluminada, – em uma cidade adormecida, pela qual eu
passava, – sem ligar a esse quadro de luz um mundo de pensamentos, – sem
imaginar, por detrás dessas cortinas, intimidades e dramas… E agora, sim, ao
cabo de tantos anos, tenho ainda na cabeça essas janelas que aí permanecem
eterna e melancolicamente luminosas, e que me fazem frequentemente dizer,
quando ao pensar nelas, eu as revejo em meus devaneios:
“Que havia, pois, por detrás dessas cortinas?”.
Vejamos! uma das que mais permaneceram na minha memória (mas logo em
seguida vocês compreenderão a razão disso) é certa janela de uma das ruas da
cidade de ***, pela qual passávamos nessa noite. Estava situada três casas
– vejam como minha lembrança é precisa – acima do hotel diante do qual nós
fazíamos o revezamento dos cavalos; mas essa janela, eu tive o prazer de
considerá-la por mais tempo que o tempo de um simples revezamento de cavalos.
Tinha acabado de ocorrer um acidente a uma das rodas de nosso carro e alguém
foi em busca do segeiro, que estava dormindo. Ora, acordar um segeiro, numa vila adormecida de província, e
fazê-la levantar-se para apertar uma porca de parafuso da roda de uma
diligência que não tinha concorrentes nessa linha, não era um caso simples,
de apenas alguns minutos… Se ele tivesse tão adormecido em seu leito quanto
nós estávamos em nosso carro, não iria ser fácil despertá-lo… De meu
compartimento, eu ouvia, através da divisória, os roncos dos viajantes da
parte inferior, mas nenhum dos viajantes da parte superior – os quais, como se
sabe, têm a mania de sempre descer assim que a diligência para,
provavelmente (pois a vaidade se esconde em toda parte na França, mesmo na
parte superior dos carros) para mostrar sua destreza em voltar a subir – tinha
descido… É verdade que o hotel diante do qual nós tínhamos parado estava
fechado. Nós não ceamos aí. Nós havíamos ceado na troca anterior de cavalos.
O hotel, tal como nós, dormia. Nada aí denunciava a vida. Nenhum ruído
perturbava o profundo silêncio… a não ser o golpe de uma vassoura, monótono
e enfadonho, de alguém (homem ou mulher… não se sabia, a noite estava muito
escura para que se pudesse perceber) que varria, então, o grande pátio desse
hotel mudo, cujo portão permanecia habitualmente aberto. Esse golpe arrastado
de vassoura, sobre o pavimento, também parecia dormir, ou, ao menos, parecia
ter uma enorme vontade de dormir! A fachada do hotel estava escura como as
outras casas da rua, nas quais não havia nenhuma luz a não ser numa única
janela… essa janela que precisamente eu tenho carregado na minha memória e que
tem estado sempre, ali, bem à frente!… A casa, na qual não se podia dizer que
essa luz brilhava, pois ela estava suavizada por uma dupla cortina carmesim e
cuja espessura ela misteriosamente atravessava, era uma casa grande que só
tinha dois andares, mas o segundo andar era bem alto…
– É singular! - disse o Visconde de Brassard, como se estivesse falando
consigo mesmo. - Dir-se-ia que é ainda a mesma cortina!
Voltei-me para ele, como se o pudesse ver em nosso escuro
compartimento; mas a lâmpada, colocada sobre o assento do cocheiro, e que
serve para iluminar os cavalos e a estrada, acabava de se apagar… Eu achava que
ele dormia, mas não, e ele estava impressionado, como eu, pela atmosfera que
cercava essa janela; mas ele, mais experiente que eu, sabia por qual razão!
Ora, o tom com que ele se pôs a dizer isso – uma coisa de uma tal
simplicidade! – era tão baixo na voz do dito Visconde de Brassard e me
impressionou tão fortemente que eu quis satisfazer imediatamente a curiosidade
de ver seu rosto, o que me fez riscar um fósforo como se eu quisesse acender
meu charuto. A luz azulada do fósforo interrompeu a escuridão.
Ele estava pálido, não como um morto… mas como a própria Morte.
Por que ele estava pálido?… Essa janela, de um aspecto tão particular,
essa reflexão e essa palidez de um homem que, em geral, empalidecia tão
pouco, pois ele era sanguíneo, e a emoção, quando ele estava emocionado,
devia fazê-lo ruborizar até o crânio, o frêmito que senti correr nos
músculos de seu forte bíceps, que se chocava, então, com meu braço, na
intimidade do carro, tudo isso produzia o efeito de ocultar alguma coisa… que
eu, caçador de histórias, poderia, talvez, vir a descobrir, se eu procedesse
adequadamente.
– O senhor também olhava, pois, essa janela, capitão, e o senhor a
reconheceu? – disse-lhe eu com esse tom de indiferença que parece não esperar
resposta e que constitui a hipocrisia da curiosidade.
– Por Deus!, se a reconheço!, disse ele, com seu tom normal de voz,
ricamente timbrada e que enfatizava as palavras.
A calma já tinha retornado a esse dândi, o mais firme e o mais
majestoso dos dândis, os quais – vocês o sabem! – desprezam toda emoção,
considerando-a inferior, e não acreditam, tal como esse tolo do Goethe, que a
surpresa possa representar, alguma vez, uma posição honrosa para o espírito
humano.
– Não passo por aqui com frequuência, – continuou, então, muito
tranquilamente, o Visconde de Brassard, – e até mesmo evito de passar por
aqui. Mas há coisas que não esquecemos. Não são muitas, mas elas existem. Conheço
três delas: o primeiro uniforme que vestimos, a primeira batalha que travamos,
e a primeira mulher que tivemos. Bem, para mim, essa janela é a quarta coisa
que não posso esquecer.
Ele se deteve, baixou a vidraça que estava à frente dele… Era para ver
melhor essa janela de que me falava?… O condutor tinha ido buscar a pessoa para
consertar a carroça e não tinha voltado. Os cavalos de revezamento, imóveis
em sua fadiga, estafados, ainda não desatrelados, a cabeça caindo sobre as
pernas, nem sequer conseguiam golpear, com impaciência, o silencioso
pavimento, sonhando com a cavalariça em que descansariam. Nossa diligência
adormecida parecia um carro encantado, paralisado pelo condão das fadas, em um
cruzamento de clareira, na floresta da Bela Adormecida.
– O fato é que, – disse eu, – que para um homem de imaginação, essa
janela tem uma fisionomia.
– Não sei qual ela tem para o senhor, – replicou o Visconde de
Brassard, – mas eu sei qual ela tem para mim. É a janela do quarto que foi meu
primeiro quarto de meu período de guarnição. Eu morava lá… Diabos!, parece
que foi agora, mas lá se vão trinta e cinco anos!, por detrás dessa cortina… que parece
não ter mudado nesses anos todos, e que eu vejo iluminada, absolutamente
iluminada, como ela estava quando…
Ele se deteve outra vez, reprimindo seu pensamento; mas eu estava
disposto a arrancá-lo.
– Isso se passou quando o senhor estudava sua tática, capitão, em suas
primeiras vigílias de subtenente?
– O senhor muito me honra, respondeu ele. Eu era, é verdade,
subtenente nessa época, mas as noites que eu passava então, eu não as
passava estudando minha tática, e se eu matinha minha lâmpada acesa, a essas
horas indevidas, como dizem as pessoas ordeiras, não era para ler o Marechal
de Saxe.
– Mas, – disse eu, ligeiro como um golpe de raquete, – era, talvez, de qualquer forma, para imitá-lo?
Ele me devolveu a bola.
– Oh, – disse ele, – não era nessa época que eu imitava o Marechal de Saxe, como parece ser sua compreensão… Isso foi muito mais tarde. Nessa época, eu não passava de um modesto subtenente, bem aprumado em meu uniforme, mas muito desajeitado e muito tímido com as mulheres, embora elas nunca quisessem acreditar nisso, provavelmente por causa de minha grande estatura… nunca tirei, com elas, vantagem de minha timidez. De resto, eu não tinha mais que dezessete anos nessa maravilhosa época. Eu estava saindo da Escola Militar. Saía-se da Escola Militar no momento em que, atualmente, nela se entra, pois se o Imperador, esse terrível consumidor de homens, tivesse durado, ele teria acabado por ter soldados de doze anos, tal como os sultões da Ásia têm odaliscas de nove.
Se ele se põe a falar do Imperador e das odaliscas, – pensei eu, –
ficarei sem saber de nada.
– E, entretanto, Visconde, – disse eu, retomando o fio da conversa, – eu
apostaria que o senhor não teria tão presente a lembrança dessa janela, que
se ilumina ali no alto, se não fosse porque havia, para o senhor, uma mulher
por detrás da cortina!
– E o senhor ganharia a aposta, – disse ele gravemente.
– Ah, por Deus! – continuei eu – Eu estava certíssimo disso! Para um
homem como o senhor, em uma pequena vila de província, pela qual o senhor
não passou, talvez, dez vezes, desde sua primeira guarnição, só um cerco que
o senhor possa ter sustentado ou alguma mulher que o senhor tenha conquistado,
por uma tomada de assalto, poderia tornar-lhe sagrada, de uma forma tão viva,
a janela de uma casa que o senhor vê hoje estranhamente iluminada na
escuridão!
– Não sustentei, entretanto, nenhum cerco… ao menos militarmente, –
respondeu ele, sempre sério; mas ser sério era frequentemente sua maneira de
brincar, – e, por outro lado, quando a rendição se dá tão rapidamente,
podemos chamar isso de cerco?… Mas quanto a conquistar uma mulher com ou sem
tomada de assalto, eu lhe disse, eu era, nessa época, inteiramente incapaz
disso.. Além disso, não foi uma mulher que foi, no caso, conquistada: fui eu!
Eu o saudei. Teria ele percebido o meu gesto nesse compartimento
sombrio?
– Tínhamos capturado Berg-op-Zoom, – disse-lhe eu.
– E os subtenentes de dezessete anos, – acrescentou ele, – não são, em
geral, como Berg-op-Zoom, em termos de sensatez e de continência
inexpugnáveis!
– Assim, – digo eu prazerosamente, – uma senhora ou uma senhorita Putifar…
– Tratava-se de uma senhorita, – interrompeu ele, com uma bonomia um tanto
cômica.
– A ser colocada na pilha de todas as outras, Capitão! Apenas que, aqui, o
José era militar… um José que não fugiu…
– Que, ao contrário, fugiu completamente, – continuou ele, com o maior
sangue-frio, – embora demasiadamente tarde e com medo!!! Com um medo que me
fez compreender a frase do Marechal Ney que escutei pessoalmente e que, vindo
de um homem como ele, confesso, me aliviou um pouco: “Eu gostaria de saber qual
o desgraç… (o marechal não terminou a palavra) que disse que jamais teve
medo!…”
– Uma história na qual o senhor teve esse tipo de sensação deve ser
merecidamente interessante, Capitão!
– Por Deus!, – disse ele, bruscamente, – posso perfeitamente, se o
senhor está curioso, contar-lhe essa história, que foi um acontecimento,
corrosivo sobre a minha vida como um ácido sobre o aço, e que marcou para
sempre com uma mancha negra todos os meus prazeres de pessoa de vida
desregrada! – acrescentou ele, com uma melancolia que me impressionou, nesse
folgazão formidável que eu acreditava ser forrado de cobre como um brique
grego.
E ele levantou a vidraça que havia baixado, seja porque temesse que o som de sua voz ultrapassasse os limites de nosso compartimento e que se
ouvisse, de fora, o que ele ia contar, embora não houvesse ninguém em volta
desse carro, que continuava imóvel e como que abandonado; seja porque aquele
regular golpe de vassoura, que ia e vinha, e que arranhava tão pesadamente o
pavimento do grande pátio do hotel, parecia-lhe um acompanhamento inoportuno
para sua história; – e eu o escutava, – atento unicamente à sua voz, – às
mínimas nuances de sua voz, – uma vez que eu não podia ver seu rosto, nesse
escuro e fechado compartimento, – e os olhos fixados mais que nunca nessa
janela, na cortina carmesim, que brilhava ainda com a mesma e fascinante luz e
sobre a qual ele ia me falar:
“Eu tinha então dezessete anos; e saía da Escola Militar, – retomou
ele o curso da conversação. – Nomeado subtenente em um simples regimento de
infantaria de linha, que esperava, com a impaciência que tínhamos nessa
época, a ordem de partir para a Alemanha, onde o Imperador conduzia essa
campanha que a história chamou de “A Campanha de 1813”, eu não tivera senão
o tempo para ir cumprimentar meu pais no interior de sua província, antes de
me reunir, na cidade onde agora estamos, ao batalhão de que eu fazia parte;
pois essa minúscula cidade de, no máximo, alguns milhares de habitantes, não
tinha, como guarnição, senão nossos dois primeiros batalhões… Os dois
outros haviam sido distribuídos pelos povoados vizinhos. O senhor que,
provavelmente, não fez mais do que passar por esta cidade onde estamos agora,
quando o senhor voltava para o seu Oeste, o senhor não pode duvidar do que ela
significa – ou ao menos do que ela significava há trinta anos – para quem é
obrigado, como eu era então, a aí permanecer. Era certamente a pior
guarnição, na qual o acaso – que eu creio ser sempre o diabo e,
especificamente, nessa época, o ministro da guerra – podia me enviar para
minha estreia. Deus do céu!, que monotonia! Não me lembro de ter tido, em
qualquer outro lugar, desde então, uma estada tão enfadonha e tão
aborrecida. Apenas que, com a idade que eu tinha, e com a primeira embriaguez
pelo uniforme, – uma sensação que o senhor não conhece, mas que conhecem
todos aqueles que o vestiram, – eu praticamente não sentia aquilo que, mais
tarde, me iria parecer insuportável. No fundo, o que me causava essa morna
vila de província?… Eu a habitava, afinal, muito menos que meu uniforme, –
uma obra-prima de Thomassin e Pied, que me extasiava! Esse uniforme, que me fascinava, funcionava como um filtro que embelezava, para mim, todas as
coisas; e era – isso vai lhe parecer forte, mas é a pura verdade! – esse
uniforme que era, literalmente, minha verdadeira guarnição! Quando eu me
aborrecia demasiado nessa vila sem movimento, sem interesse e sem vida, eu me
colocava em uniforme de gala, – todos os adornos expostos, – e o enfado fugia
diante de meu colarinho alto! Eu era como essas mulheres que não deixam de
fazer sua maquilagem quando elas estão sozinhas e não estão esperando por
ninguém. Eu me vestia… para mim. Eu me comprazia solitariamente com minhas
dragonas e com o afiador de meu sabre, que brilhava ao sol, em alguma esquina
de avenida deserta, onde, em torno das quatro horas, eu tinha o hábito de
passear, sem procurar ninguém para ser feliz e, ali, eu inchava o peito, tanto
que, mais tarde, no bulevar de Grand, ouvi dizerem, às minhas costas, quando
eu dava o braço a alguma mulher: “É preciso concordar que vai ali uma altiva
figura de oficial!”. Só havia, aliás, nessa pequena vila muito pouco rica,
e que não tinha nenhum comércio ou atividade de qualquer espécie, antigas
famílias mais ou menos arruinadas, que mostravam indiferença pelo Imperador,
uma vez que não se devia, como elas diziam, fazer concessões aos ladrões da
Revolução, e que, por essa razão, celebravam muito pouco seus oficiais.
Portanto, nem reuniões, nem bailes, nem saraus, nem diversões. No máximo, no
domingo, um pobre fim de avenida, onde, depois da missa do meio-dia, quando
fazia bom tempo, as mães iam passear e exibir suas filhas até às duas horas,
– a hora das Vésperas, que, ao som da primeira badalada, fazia arrebanhar
todas as saias e esvaziava essa infeliz avenida. Aliás, essa missa de
meio-dia, na qual nós nunca íamos, eu a vi se transformar, sob a
Restauração, em uma missa militar à qual o estado-maior dos regimentos era
obrigado a assistir, e era, ao menos, um acontecimento vivo nessa terra de
ninguém de guarnições mortas! Para rapazes que estavam, como nós, naquela
época da vida em que o amor, a paixão pelas mulheres, ocupavam um lugar tão
importante, essa missa militar era um consolo. Excetuando-se dois de nós que
faziam parte do destacamento de serviço armado, todo o corpo de oficiais se
dispersava e se colocava, como era de sua preferência, na nave da igreja.
Quase sempre nós nos instalávamos atrás das mulheres mais bonitas que vinham
a essa missa, onde elas estavam certas de que iriam ser vistas, e nós lhes
dávamos o máximo de distração possível, ao falar, entre nós, à meia-voz,
de maneira a podermos ser ouvidos por elas, sobre o que elas tinham de mais
atraente em seu rosto ou em seu porte. Ah!, a missa militar. Vi começar aí
muitos romances. Eu vi se insinuar nos regalos que essas jovens deixavam sobre os
bancos, quando elas se ajoelhavam perto de suas mães, muitos bilhetes ternos,
aos quais elas davam resposta, nos mesmos regalos, no domingo seguinte! Mas,
sob o regime do Imperador, não havia nenhuma missa militar. Nenhum meio,
consequentemente, de se aproximar das jovens, como seria preciso, nessa
pequena vila onde elas não passavam, para nós, de sonhos mais ou menos
ocultos, sob véus, e vistas apenas de longe! Não havia nenhuma compensação
para essa perda estéril da população mais interessante da vila de ***.
Não, não havia… As estalagens para caravanas, sobre as quais, como o senhor
sabe, não se fala quando se está na companhia de pessoas decentes, eram
horrorosas. Os cafés nos quais afogamos tantas nostalgias, nessas terríveis horas
ociosas das guarnições, eram tais que era impossível ali colocar os pés,
por menos que se respeitasse suas dragonas… Tampouco havia, nessa pequena
vila, na qual o luxo desenvolveu-se agora como em toda parte, um único hotel
onde pudéssemos ter uma mesa de oficial razoável, sem sermos roubados como em
um bosque, tanto assim que muitos de nós tínhamos renunciado à vida coletiva
e se tinham dispersado pelas pensões particulares, na casa de burgueses pouco
ricos, que lhes alugavam quartos pelo maior preço possível, e
acrescentavam, assim, alguma coisa à penúria ordinária de suas mesas e à
mediocridade de suas rendas.
“Eu era um desses. Um de meus camaradas que permanecia aqui, no Correio Montado, no qual havia um quarto, pois o Correio Montado ficava nesta rua,
naquela época – veja só!, à distância de algumas portas atrás de nós, e
talvez, se fosse dia, o senhor ainda veria, sobre a fachada desse Correio Montado, a pintura de um velho sol dourado, destacando-se, pela metade, de seu
fundo de alvaiade, e que parecia o mostrador de um relógio com sua
inscrição: “Ao sol nascente!” – Um de meus camaradas tinha encontrado, para
mim, um apartamento em sua vizinhança; – nessa janela que está colocada tão
lá no alto, e que tem o efeito, nesta noite, de continuar parecendo ser a
minha, como se fosse ontem! Deixei-me alojar por ele. Ele era mais velho que
eu, estava há muito tempo no regimento, e ele gostava de me guiar nesses
primeiros momentos e nesses primeiros detalhes de minha vida de oficial, em
minha inexperiência, que era feita também de uma certa despreocupação! Eu
lhe disse, excetuando-se a sensação do uniforme sobre o qual me apóio, uma
vez que reside aí uma sensação sobre a qual a sua geração, congregada em
torno da paz e dos falatórios filosóficos e humanitários não teria, tão
cedo, a mínima ideia, e a esperança de ouvir ressoar o canhão na primeira
batalha em que deveria perder (permita-me utilizar essa expressão soldadesca!)
minha virgindade militar, para mim tanto fazia! Eu só vivia dessas ideias, –
da segunda, sobretudo, uma vez que ela era uma esperança, e que se vive mais
na vida quando não se tem senão a vida que se tem. Eu não amava para
amanhã, como o avaro, e eu compreendia perfeitamente os devotos que se reúnem
sobre esta terra como nos reunimos em um lugar perigoso no qual não temos que
passar mais que uma noite. Nada se assemelha mais a um monge que um soldado, e
eu era soldado! Era assim que me reunia com minha guarnição. Excetuando-se as
horas de refeição que eu fazia com as pessoas que me alugavam o apartamento e
sobre as quais eu lhe falava há pouco, e as horas do serviço e das manobras
de todos os dias, eu vivia a maior parte de meu tempo em meu quarto, deitado
sobre um enorme canapé de marroquim azul escuro, cujo frescor me causava o
efeito de um banho frio após o exercício, e eu não me levantava a não ser
para os exercícios militares e para algum jogo de cartas na casa de meu amigo
que morava em frente: Louis de Meung, o qual era menos ocioso que eu, uma vez
que ele tinha conseguido, dentre as garotas modestas da cidade, uma jovenzinha
bastante divertida, que ele tinha adotado como amante, e que lhe servia, como
ele dizia, para matar o tempo… Mas o que eu conhecia das mulheres não me
estimulava muito a imitar meu amigo Louis. O que eu sabia tinha
vulgarmente aprendido ali onde os alunos de Saint-Cyr aprendem nos dias de
folga… E, depois, há temperamentos que despertam tardiamente… O senhor
conheceu Saint-Rémy, o sujeito mais desregrado de toda uma vila, célebre
por seus sujeitos desregrados, que nós chamamos de “Minotauro”, não por causa
dos chifres, embora ele os tivesse, uma vez que ele havia matado o amante de
sua mulher, mas por causa das jovens que ele consumia?…”.
– Sim, eu o conheci, – respondi , – mas velho, incorrigível, se
corrompendo cada vez mais, a cada ano que lhe caía sobre a cabeça. Por Deus!,
como eu o conheci, esse grande corrompido de Saint-Rémy, como dizemos em
Brantôme!
– Ele era, com efeito, um homem de Brantôme, – replicou o Visconde.
– Bem! Saint-Rémy, chegado aos vinte e sete anos, não tinha ainda
tocado nem um copo nem uma saia. Ele mesmo lhe dirá, se o senhor desejar! Aos
vinte e sete anos, ele era, em questão de mulheres, tão inocente quanto a
criança que vem de nascer e que, embora não sugasse mais o seio de sua
nutriz, não tinha, entretanto, bebido senão leite e água.
– Ele alegremente recuperou o tempo perdido!, disse eu.
– Sim, – disse o Visconde, – e eu também! Mas eu tive menos dificuldade
em recuperar o tempo perdido! Quanto a mim, meu primeiro período de sensatez,
não passou, praticamente, da época em que vivi nesta vila de ***; e embora
eu não tivesse a virgindade absoluta de que fala Saint-Rémy, eu vivia,
entretanto, meu Deus!, como um verdadeiro cavalheiro de Malta, o que eu era,
como era esperado desde o berço… O senhor sabia disso? Eu teria inclusive
sucedido a um de meus tios em seu papel de comandante, se não fosse a
Revolução que aboliu a Ordem, cuja faixa, ainda que abolida, foi-me
permitida, algumas vezes, carregar. Uma fatuidade!
“Quanto aos anfitriões que me couberam, ao alugar seu apartamento, –
continuou o Visconde de Brassard, – eles eram tudo o que o senhor puder
imaginar de mais burguês. Eram apenas dois, o marido e a mulher, ambos
idosos. Não tinham maus modos, muito pelo contrário. Em suas relações
comigo, eles tinham inclusive essa polidez que não se encontra mais, sobretudo
em sua classe, que é como que o perfume de um tempo desaparecido. Eu não
estava na idade em que se observa por observar, e eles me interessavam muito
pouco para que eu pensasse em penetrar no passado dessas duas pessoas idosos a
cujas vidas eu me misturava da maneira mais superficial duas horas por dia, –
ao meio-dia e à noite, – para o almoço e para a ceia com eles. Nada
transpirava desse passado em suas conversas diante de mim, as quais tratavam,
em geral, das coisas e das pessoas da vila, que elas me davam a conhecer e
das quais elas falavam, o marido com uma ponta de alegre maledicência, e a
mulher, muito piedosa, com mais reserva, mas certamente com não menos prazer.
Acredito, entretanto, ter ouvido o marido dizer que ele tinha viajado em sua
juventude por causa de não sei quem e de não sei o quê, e que ele tinha
voltado tarde para esposar sua mulher… que o tinha esperado. Eles eram, em
suma, pessoas muito corajosas, de maneiras muito polidas e com vidas muito
calmas. A mulher passava a vida a tricotar meias caneladas para seu marido, e o
marido, amante da música, a arranhar seu violino com a música antiga de
Viotti, em um quarto no sótão, acima do meu… Talvez eles tivessem sido mais
ricos. Talvez alguma perda de fortuna que eles não queriam revelar os tenha
forçado a admitir um inquilino em sua casa; mas, excetuando-se o fato de haver
um inquilino, não se percebia nada disso. Tudo em sua residência respirava o
conforto dessas casas dos tempos de outrora, abundantes em roupas brancas que
cheiram bem, em prataria pesada, e cujos móveis pareciam imóveis, tão pouca
era a preocupação em renová-los! Eu me sentia bem aí. A mesa era boa, e eu
desfrutava amplamente da permissão de deixá-la desde que eu tivesse, como
dizia a velha Olive que nos servia, “as barbas limpas”, o que constituía
evidentemente uma honra, pois não se podia chamar de “barbas” aos três pelos
de gato do bigode de um subtenente que não passava de um garoto que não tinha
ainda acabado de crescer!
Eu estava, pois, ali, aproximadamente há um semestre, tão tranquilo
quanto meus hospedeiros, dos quais não ouvi nunca uma única palavra que
dissesse respeito à existência da pessoa que eu iria encontrar na casa deles,
quando um dia, ao descer para cear na hora costumeira, percebi, em um canto da
sala de refeições uma pessoa alta que, de pé e na ponta dos pés, pendurava
pelas faixas seu chapéu a um cabide que estava colocado bem no alto, como uma
mulher que se sentia como se estivesse em sua casa e que tivesse acabado de
regressar. Curvada exageradamente, como ela estava, para pendurar seu chapéu
nesse cabide colocado muito no alto, ela exibia o corpo magnífico de uma
dançarina que se inclina, e esse corpo estava preso (é a palavra certa, de
tanto que ela estava enlaçada!) no corpete brilhante de um casaquinho de seda
verde de pregas que caíam sobre seu vestido branco, um desses vestidos dos
tempos de outrora, que se apertavam na altura dos quadris e que não tinham
receio de mostrá-los, quando se os tinha… O braço ainda no ar, ela se voltou ao
me ouvir entrar, e imprimiu à sua nuca uma torção que me fez ver seu rosto;
mas ela realizou seu movimento como se eu não estivesse lá, olhou se ela não
tinha amarrotado as fitas do chapéu aos suspendê-lo, e isso tudo feito
lentamente, atentamente e quase impertinentemente, pois, afinal, eu estava ali,
de pé, esperando, para cumprimentá-la, que ela me desse atenção. Ela me
concedeu, enfim, a honra de me olhar com dois olhos negros, muito frios, aos
quais seus cabelos, cortados à maneira de Titus e encaracolados sobre a
fronte, davam uma espécie de profundidade que esse penteado dá ao olhar… Eu
não sabia quem podia ser, a essa hora e nesse lugar. Não havia nunca ninguém
para cear na casa de meus hospedeiros… Entretanto, ela vinha provavelmente para
cear. A mesa estava posta, e havia quatro conjuntos de talheres… Mas minha
surpresa em vê-la ali foi amplamente ultrapassada pela surpresa de saber quem
ela era, quando eu o soube… quando meus dois hospedeiros, entrando na sala,
apresentaram-na a mim como sendo sua filha que estava saindo do internato e que
ia, a partir de agora, viver com eles.
A filha deles! Não havia mais ninguém tão impossível de ser filha de
pessoas como aquelas como essa jovem que ali estava! Não que as mais belas jovens
do mundo não possam nascer de todo tipo de pessoas. Eu conheci alguns desses
casos… e o senhor também, não é verdade? Fisiologicamente, o ser mais feio
pode produzir o ser mais belo. Mas ela!, entre ela e eles, havia o abismo de
uma raça… Aliás, fisiologicamente, pois que eu me permito usar essa palavra
pedante, que é da sua época e não da minha, não se podia destacá-la senão
pelo jeito que ela tinha, e que era singular em uma jovem tão jovem quanto
ela, pois era uma espécie de jeito impassível, muito difícil de
caracterizar. Ela não era daquelas sobre as quais se podia dizer: “Eis aí uma
jovem bela!” e tampouco se poderia pensar sobre ela como se pensa sobre todas
essas jovens belas que encontramos por acaso; e às quais se dá esse qualificativo,
para nunca mais se pensar, depois, nelas. Mas esse jeito… que a separava, não
apenas de seus pais, mas de todos outros, dos quais ela não parecia ter nem as
paixões, nem os sentimentos, esse jeito nos fazia calar… de surpresa, nos
deixando imóveis… A Infanta, de Velasquez [do quadro “As Meninas”], poderia,
se o senhor o conhece, lhe dar uma ideia desse jeito, que não era nem
arrogante, nem desdenhoso, nem de desprezo, não!, mas apenas simplesmente
impassivo, pois o jeito arrogante, desdenhoso, de desprezo, diz às pessoas que
elas existem, pois quem tem esse jeito se dá ao trabalho de os desdenhar ou de
os desprezar, enquanto que o jeito de que estou falando diz tranquilamente:
“Para mim, você nem sequer existe”. Admito que essa fisionomia me obrigou a
fazer, nesse primeiro dia e em muitos outros, a pergunta que, para mim, é
ainda hoje insolúvel: como essa jovem alta, que ali estava, tinha saído desse
tipo atarracado, que se vestia com uma sobrecasaca de amarelo esverdeado e com
um colete branco, que tinha uma aparência que era da cor dos doces de sua
mulher, que tinha uma excrescência sobre a nuca, a qual sobressaía de sua
gravata de musselina bordada, e que gaguejava?… E se o marido não
desconcertava, pois o marido nunca desconcerta nesse tipo de questão, a mãe
me parecia inteiramente impossível de explicar. A Senhorita Albertine (esse
era o nome dessa arquiduquesa das alturas, caída do céu, indo parar na casa
desses burgueses como se o céu tivesse querido zombar deles), a Senhorita
Albertina, que seus pais chamavam de Alberte por uma questão de brevidade, mas
que era um nome que combinava muito melhor com seu porte e com toda a sua
pessoa, não parecia ser filha nem de um nem de outro… Nessa primeira ceia,
como naquelas que se seguiriam, ela me pareceu uma jovem bem educada, sem
afetação, habitualmente silenciosa, que, quando falava, dizia com palavras
adequadas o que ela tinha a dizer, mas que não ultrapassava nunca essa linha…
De resto, ela devia ter todo o espírito que eu ignorava que ela tinha, que ela
não tinha quase tido a ocasião de mostrar nas ceias que fazíamos. A
presença de sua filha tinha necessariamente modificado os mexericos dos dois
velhos. Eles tinham suprimido os pequenos escândalos da cidade. Literalmente,
não se falava mais, nessa mesa, senão de coisas tão interessantes quanto a
chuva e o bom tempo. Além disso, a Senhorita Albertine ou Alberte, que tinha
me impressionado tanto, inicialmente, por seu jeito impassível, não tendo
absolutamente senão isso para me oferecer, logo me cansou com aquele seu
jeito… Se eu a tivesse encontrado no mundo para o qual eu era feito, e no qual
eu iria viver, essa impassibilidade teria com toda certeza me excitado
vivamente… Mas, para mim, ela não era uma jovem à qual eu pudesse fazer a
corte… nem mesmo com os olhos. Minha posição relativamente a ela, como
inquilino que eu era de seus pais, era delicada, e um nada qualquer poderia dar
errado… Ela não estava o suficientemente perto ou o suficientemente longe de
mim, na vida, para que pudesse significar alguma coisa para mim… e eu logo
respondi, naturalmente, à sua impassibilidade, e sem intenção alguma de
qualquer tipo, com a mais completa indiferença.
E isso não foi nunca desmentido, nem de seu lado nem do meu. Não houve
entre nós mais do que a polidez mais fria, a mais parca em palavras. Ela não
era para mim senão uma imagem que eu mal via; e eu, para ela, o que eu era?…
Uma mesa, – nós não nos encontrávamos a não ser ali, – ela olhava mais para
a rolha da garrafa ou para o açucareiro que para minha pessoa… O que ela aí
dizia, muito corretamente, sempre muito bem dito, mas insignificante, não me
fornecia nenhuma chave do caráter que ela podia ter. E, depois, de resto, o
que isso me importava?… Eu teria passado toda minha vida sem pensar apenas
nessa calma e insolente jovem, com um jeito tão deslocado quanto o da Infanta
de Velasquez… Para isso, foi preciso a circunstância que vou lhe contar, e que
me atingiu como um raio, como um raio sem ter havido trovoada!
Uma noite, fazia mais ou menos um mês que a Senhorita Alberte tinha
voltado à casa e nós nos pusemos à mesa para cear. Ela estava sentada ao meu
lado, e eu prestava tão pouca atenção a ela que eu não tinha ainda me dado
conta desse detalhe de todos os dias que iria me impressionar: que ela
estivesse à mesa ao meu lado em vez de estar entre sua mãe e seu pai, quando,
no momento em que eu desdobrava meu guardanapo sobre meus joelhos… não, nunca
poderei lhe dar a ideia dessa sensação e dessa surpresa!, senti que uma mão
tomava atrevidamente a minha por debaixo da mesa. Pensei que estava sonhando…
ou, antes, eu não pensava absolutamente nada… Não tive senão a incrível
sensação dessa mão atrevida, que vinha buscar a minha até por debaixo de
meu guardanapo! E isso foi tão inaudito quanto inesperado! Todo meu sangue,
exaltado por esse ato, se jogou de meu coração para essa mão, como se
extraído por ela, depois subiu furiosamente, como impelido por uma bomba, de
volta, até meu coração! Vi tudo escuro… meus ouvidos zumbiam. Devo ter
ficado de uma palidez pavorosa. Pensei que ia desmaiar… que ia me dissolver na
indizível voluptuosidade causada pela carne espessa dessa mão, um pouco
grande, forte como a de um jovem homem, que se tinha fechado sobre a minha. –
E, como, o senhor sabe, nessa primeira idade da vida, a voluptuosidade tem seu
pavor, eu fiz um movimento para retirar minha mão dessa insensata mão que a
tinha prendido, mas que, apertando-a, então, com o crescimento do prazer que
ela tinha consciência de me proporcionar, privava-a de autoridade, vencida
como minha vontade, e no envolvimento mais caloroso, deliciosamente sufocado…
Faz trinta e cinco anos que isso aconteceu, e o senhor me faria honra se
acreditasse que minha mão se tornou um pouco indiferente ao estreitamento da
mão das mulheres; mas tenho ainda ali, quando penso nisso, a impressão
daquela mão que estreitava a minha com um despotismo tão insensatamente
apaixonado! Tomado como presa dos milhares de frêmitos que essa envolvente
mão lançava a todo o meu corpo, eu temia denunciar o que eu experimentava
diante desse pai e dessa mãe, cuja filha, sob seus olhos, demonstrava essa
ousadia… Envergonhado, entretanto, por ser menos homem do que essa atrevida
jovem que se expunha a ser flagrada, e cujo incrível sangue-frio disfarçava o
desvario, mordi meus lábios até sair sangue, em um esforço sobre-humano para
deter o frêmito do desejo, que podia tudo revelar a essas pobres pessoas que
de nada desconfiavam, e foi então que meus olhos procuraram a outra dessas
duas mãos que eu não tinha notado e que, nesse perigoso momento, apertava
friamente o botão de uma lâmpada que tinha acabado de ser posta sobre a mesa,
pois o dia começava a ir embora… Eu a fitei… Era, pois, a irmã dessa mão que
eu sentia penetrando a minha, como um foco de onde se irradiavam e se estendiam
ao longo de minhas veias imensas ondas de fogo! Essa mão, um pouco espessa,
mas de dedos longos e bem torneados, na ponta dos quais a luz da lâmpada, que
caía a prumo sobre ela, iluminava transparências rosas, não tremia e fazia
seu pequeno trabalho de arranjo da lâmpada, para fazê-la funcionar, com um
movimento que era uma de firmeza, de uma facilidade e de uma graça incomparáveis!
Entretanto, nós não podíamos continuar assim… Nós precisávamos de nossas
mãos para cear… A da Senhorita Alberte deixou, pois, a minha; mas no momento
em que deixou, seu pé, tão expressivo quanto a mão, se apoiou com a mesma
ousadia, a mesma paixão, a mesma soberania, sobre meu pé, e aí ficou todo o
tempo que durou essa ceia demasiadamente curta, a qual me deu a sensação de
um desses banhos, de início insuportavelmente ferventes, mas aos quais nos
acostumamos, e nos quais acabamos por nos sentir tão bem que acreditamos de
bom grado que um dia os condenados às penas eternas poderiam se sentir tão
bem nas brasas do inferno, como os peixes na água!… Deixo a seu cargo pensar
se eu ceei nesse dia, e se eu me envolvi muito nos pequenos assuntos de meus
honestos hospedeiros, que não desconfiavam, em sua placidez, do drama
misterioso e terrível que se representava sob sua mesa. Eles não perceberam
nada; mas eles poderiam ter percebido alguma coisa e, positivamente, eu me
preocupava por eles… por eles, muito mais que por mim e por ela. Eu tinha a
honestidade e a comiseração de meus dezessete anos… Eu me dizia: “É ela
impudente? É ela insensata?”. E eu a olhava pelo canto do olho, essa insensata
que não perdia uma única vez, durante a ceia, seu jeito de Princesa em
cerimônia, e cujo rosto continuava tão calmo como se seu pé não tivesse
dito e feito sobre o meu todas as loucuras que pode dizer e fazer um pé!
Admito que eu estava ainda mais surpreso de sua ousadia que de sua insensatez.
Eu tinha lido muito desses livros leves em que a mulher não é tratada com o
devido respeito. Eu tinha recebido uma educação de escola militar.
Utopicamente, ao menos, eu era o Lovelace de fatuidade que são mais ou menos
todos os jovens que crêem serem belos rapazes e que colheram uma porção de
beijos por detrás das portas e nos degraus das escadas, dos lábios das
criadas de suas mães. Mas isso desconcertava minha pequena ousadia de Lovelace
de dezessete anos. Isso me parecia mais forte do que aquilo que eu havia lido,
do que tudo que eu tinha ouvido dizer sobre como a mentira era natural às
mulheres, – sobre a força do disfarce que elas podem dar às suas mais
violentas ou às suas mais profundas emoções. Pense, pois!, ela tinha dezoito
anos! Será que os tinha mesmo? … Ela saíra de um internato do qual eu não
tinha nenhuma razão para suspeitar, com a moralidade e a piedade da mãe que o
tinha escolhido para sua filha. Essa ausência de qualquer constrangimento,
digamos a palavra, essa falta absoluta de pudor, essa dominação segura de si
mesma, ao fazer as coisas mais impudentes, as mais perigosas para uma jovem, na
qual nenhum gesto, nenhum olhar havia prevenido o homem ao qual ela se
entregava por uma ousadia tão enorme, tudo isso me subia à cabeça e aparecia
claramente a meu espírito, apesar da agitação de minhas sensações… Mas nem
nesse momento, nem mais tarde, me detive a filosofar ali, naquele quarto cuja
janela estamos vendo agora. Não mostrei nenhum falso horror pela conduta dessa
jovem de uma tão extraordinária precocidade no mal. De resto, não era na
idade que eu tinha e nem mesmo muito mais tarde que considerávamos como
depravada a mulher que – ao primeiro olhar – se entrega a nós. Estamos quase
dispostos a achar isso, ao contrário, muito natural, e se dizemos “A pobre
mulher!” é muito mais por decoro que por piedade. Enfim, se eu era tímido, eu
não queria ser um idiota! A grande razão francesa para fazer sem remorso tudo
o que há de pior. Eu sabia certamente, não há dúvida sobre isso, que o que
essa jovem experimentava por mim não era o amor. O amor não procede com esse
impudor e essa impudência, e eu sabia perfeitamente que, além disso, o ela me
fazia experimentar não era o amor. Mas, amor ou não… seja o que fosse, eu o
queria!… Quando me levantei da mesa, eu estava decidido… A mão dessa Alberte,
na qual eu não pensara um minuto antes que ela tivesse pego a minha, me tinha
deixado, até ao fundo de meu ser, com o desejo de me jogar todo inteiro a ela,
por sua vez, também toda inteira, tal como sua mão estava enlaçada à minha
mão!
“Subi até meu quarto como um louco, e quando consegui me acalmar um
pouco pela reflexão, perguntei-me o que eu iria fazer para travar um belo
namoro, como se diz na província, com uma jovem tão diabolicamente
provocante. Eu sabia mais ou menos – como um homem que não procurou sabê-lo
com certeza – que ela não deixava nunca sua mãe; – que ela trabalhava
habitualmente perto dela, na mesma mesa de costura, situada no vão dessa sala
de refeições, que lhes servia de sala de estar; – que ela não tinha nenhuma
amiga na cidade que a viesse ver, e que ela não saía a não ser no domingo
para ir à missa e às vésperas com seus pais. Tudo isso não era nada
encorajador!… Eu começava a me arrepender de não ter vivido um pouco mais com
essas duas pessoas que eu havia tratado sem altivez, mas com a polidez indiferente
e às vezes distraída que se tem por aqueles que não têm, para nós, senão
um interesse secundário na vida; mas eu disse a mim mesmo que eu não podia
modificar minhas relações com eles, sem me expor a lhes revelar ou a lhes
fazer suspeitar o que eu queria lhes esconder… Eu não tinha, para falar
secretamente com a Senhorita Alberte, senão os encontros nos degraus da
escada, quando eu subia para o meu quarto ou quando dele descia; mas, sobre os
degraus da escada, nós podíamos nos ver e falar… O único recurso à minha
disposição, nessa casa tão bem arrumada e tão estreita, na qual todo mundo
se acotovelava, era escrever; e uma vez que a mão dessa jovem atrevida sabia
tão bem buscar a minha sob a mesa, essa mão não faria, provavelmente, muitas
cerimônias para apanhar o bilhete que eu lhe deixaria e que lhe escrevi. Foi o
bilhete da circunstância, o bilhete suplicante, imperioso e arrebatado, de um
homem que já havia bebido um primeiro gole de felicidade e que exigia um
segundo… Só que, para remetê-lo, era preciso esperar a ceia do dia seguinte,
e isso me parecia muito tempo; mas, enfim, essa ceia chegou! A provocante mão,
cujo contato eu sentia sobre a minha mão há vinte e quatro horas, não deixou
de voltar a buscar, sob a mesa, a minha, como no dia anterior. A Senhorita
Alberte tateou meu bilhete e o pegou firmemente, como eu havia previsto. Mas o
que eu não havia previsto é que com esse jeito de Infanta que desafiava tudo
por sua indiferente altivez, ela o meteu no centro de seu corpete, no qual ela
levantou uma renda dobrada, com um pequeno e rápido movimento, e tudo isso com
uma tal naturalidade e com uma tal presteza que sua mãe que, com os olhos
postos no que fazia, que era servir a sopa, não percebeu nada, e que seu imbecil
pai, que sempre entoava alguma coisa, pensando em seu violino, quando ele não
o tocava, nada viu”.
– Isso é muito comum nessa situação, Capitão! – interrompi eu,
alegremente, porque me parecia que sua história estava se transformando muito
rapidamente em uma indiscreta aventura de guarnição; mas eu não desconfiava
do que ia se seguir! – Escute só! Há não muitos dias, havia na Ópera, em um
camarote ao lado do meu, uma mulher provavelmente do gênero de sua Senhorita
Alberte. Ela tinha mais de dezoito anos, por exemplo; mas eu lhe dou minha
palavra de honra que raramente tenho visto uma mulher com mais decência.
Durante toda a duração da peça, ela permaneceu sentada e imóvel como sobre
uma base de granito. Ela não se voltou, uma única vez, nem para a direita nem
para a esquerda; mas, provavelmente, ela via pelas costas, que ela as tinha bem
à mostra e bem belas, um jovem que também estava no meu camarote e, consequentemente,
atrás de nós dois, que parecia tão indiferente quanto ela a tudo que não
fosse a ópera que se representava nesse momento. Eu posso certificar que esse
jovem não fez um único dos sinais que os homens fazem às mulheres nos
lugares públicos, e que podemos chamar de declarações a distância. Apenas
quando a peça terminou e que, na espécie de tumulto geral dos camarotes que
se esvaziam, a dama se levantou, em seu camarote, para apanhar seu casaco, eu a
ouvi dizendo a seu marido, com a voz mais conjugalmente imperiosa e mais clara:
“Henri!, pega meu capuz!”, e, então, por cima das costas de Henri, que se
precipitou de pernas para o ar para cumprir sua ordem, ela estendeu o braço e
a mão e apanhou um bilhete do jovem, tão simplesmente quanto se tivesse pego
das mãos de seu marido seu leque ou seu buquê. Ele se tinha levantado, o
pobre homem!, segurando o capuz – um capuz de cetim vermelho, mas menos
vermelho que seu rosto, e que ele tinha encontrado do jeito que pôde, e sob o
risco de sofrer uma apoplexia, sob os pequenos bancos… Meu Deus!, depois de ter
visto isso, eu me fui, pensando que em vez de entregá-lo à sua mulher, ele
poderia ter muito bem ficado com esse capuz, a fim de esconder, sob sua
cabeça, aquilo que, de repente, aí acabava de nascer!
– Sua história é boa, – disse o Visconde de Brassard, muito friamente;
– em um outro momento; talvez ele tenha tirado mais prazer dela; mas deixe-me
terminar a minha. Admito que com uma jovem como essa, não me inquietei mais do
que durante dois minutos com o destino de meu bilhete. Por mais que estivesse
sempre pendurada à cintura de sua mãe, ela logo encontrou um meio de ler os
meus bilhetes e de me responder. Eu contava mesmo, para todo um futuro de
conversação por escrito, com esse pequeno correio sob a mesa que acabávamos
de inaugurar, quando, no dia seguinte, ao entrar na sala de refeições com a
certeza, muito alimentada no fundo de minha pessoa, de ter, no mesmo instante,
uma resposta muito categórica ao meu bilhete da véspera, eu acreditei estar
tendo visões ao ver que o jogo de talheres tinha sido mudado, e que a
Senhorita Alberte estava colocada ali onde sempre deveria ter estado, entre seu
pai e sua mãe… E por que essa mudança?… Que se tinha, pois, passado que eu
não sabia?… O pai ou a mãe tinham desconfiado de alguma coisa? Eu tinha a
Senhorita Alberte à minha frente, e eu a olhava com essa intenção fixa que
quer ser compreendida. Havia vinte e cinco pontos de interrogação nos meus
olhos; mas os seus estavam tão calmos, tão mudos, tão indiferentes quantos
nos outros dias. Eles me olhavam como se não me vissem. Não vi nunca olhares
mais perturbadores do que esses longos olhares tranqüilos que caem sobre nós
como sobre uma coisa. Eu fervilhava de curiosidade, de contrariedade, de
inquietude, de uma porção de sentimentos agitados e frustrados… e eu não
compreendia como essa mulher, tão segura de si mesma que se podia acreditar
que em vez de nervos, ela tinha sob sua fina pele quase tantos músculos quanto
eu, – parecia não ousar fazer um sinal de compreensão que me advertisse, –
que me fizesse pensar, – que dissesse, tão rapidamente quanto possível, que
nós nos entendíamos, – que nós éramos coniventes e cúmplices no mesmo
mistério, fosse ele o do amor ou não!… Era de se perguntar se era
verdadeiramente a mesma mulher das mãos e dos pés sob a mesa, do bilhete
apanhado e deslizado na véspera, tão naturalmente, em seu corpete, diante de
seus pais, como se ela tivesse aí feito deslizar uma flor! Ela havia feito
tanta coisa que não devia ficar constrangida em me enviar um olhar. Mas não!
Não tive nada. A ceia se passou inteiramente sem esse olhar que eu espreitava,
que eu esperava, que eu queria que refletisse o meu, e que não refletia! “Ela
teria achado alguma coisa que me responder”, dizia-me eu, ao sair da mesa e ao
subir para o meu quarto, não pensando que uma tal pessoa pudesse recuar,
depois de ter tão incrivelmente avançado; – não admitindo que ela pudesse
temer qualquer coisa e poupar qualquer coisa, quando se tratava de suas
fantasias, e por Deus!, francamente, não podendo crer que ela não tivesse ao
menos uma delas por mim!
“Se seus pais não suspeitavam, – dizia-me eu, – se foi o acaso que fez
essa mudança de talheres à mesa, amanhã me encontrarei de novo perto dela…
“Mas nem no dia seguinte, nem nos outros dias, eu fui colocado perto da
Senhorita Alberte, que continuou a ter a mesma e incompreensível fisionomia e
o mesmo e incrível tom desenvolto para dizer as insignificâncias e as coisas
comuns que tínhamos o hábito de dizer nessa mesa de pequenos burgueses. O
senhor pode perfeitamente adivinhar que eu a observava como um homem
interessado. Ela não demonstrava, além disso, quase nenhuma contrariedade,
enquanto eu ia até à cólera, – uma cólera que me partia em dois e que era
preciso esconder. E esse jeito, que ela não perdia nunca, me colocava ainda
mais longe dela que essa mesa interposta entre nós! Eu estava tão
violentamente exasperado que acabaria por não mais temer comprometê-la ao
olhar para ela, e ao apoiar sobre seus grandes e impenetráveis olhos, que
permaneciam gelados, o peso ameaçador e inflamado dos meus! Essa sua conduta
era um jogo? Era uma estratégia de sedução? Não passava de um capricho
após o outro,… ou simplesmente estupidez? Conheci, mais tarde, sobre essas
mulheres, inicialmente, uma elevação da razão, e então, depois, toda
espécie de estupidez! “Se a gente soubesse o momento!”, dizia Ninon. O momento
de Ninon tinha já passado? Entretanto, eu ainda esperava… o quê? uma palavra,
um sinal, uma mínima e arriscada manobra, em voz baixa, ao me levantar da mesa
sob o ruído das cadeiras que a gente desarranja, e como isso não vinha, eu
meu atirei às ideias insensatas, a tudo o que havia no mundo de mais absurdo.
Meti na cabeça que, com todas as impossibilidades que nos cercavam na casa,
ela me escreveria pelo correio; – que ela seria suficiente hábil, quando ela
saísse com sua mãe, para deixar cair um bilhete na caixa postal e, sob o
domínio dessa ideia, eu roía, regularmente, as unhas, duas vezes ao dia, uma
hora antes que o carteiro passasse pela casa… Nessa hora, eu dizia duas vezes
à velha Olive, com uma voz abafada: “Há cartas para mim, Olive?” e ela sempre
me respondia impertubavelmente: “Não, Senhor, não há”. Ah!, a impaciência
acaba por ser demasiadamente aguda! O desejo iludido se transforma em ódio. Eu
me pus a odiar essa Alberte, e, por causa do ódio produzido por esse desejo
iludido, a explicar sua conduta comigo pelos motivos que mais me podia fazer-me
desprezá-la, pois o ódio tem sede de desprezo! O desprezo é o néctar do
ódio! “Vagabunda, que tem medo de uma carta!”, eu me dizia. O senhor vê, eu
chegava a usar palavras grosseiras. Eu a insultava em meu pensamento, não
pensando que, ao insultá-la, eu a caluniava. Eu me esforçava até mesmo em
não mais pensar nela. Eu lhe dirigia os epítetos mais militares quando eu
falava a Louis de Meung, pois eu falava sobre isso com ele!, pois o excesso à
qual ela me havia lançado tinha apagado em mim toda espécie de cavalheirismo,
– e eu tinha contado toda minha aventura ao meu bravo amigo Louis, que havia
enrolado seu longo bigode loiro ao me escutar, e que me havia dito, sem se
perturbar, pois nós não éramos moralistas no 27o Regimento:
“– Faz como eu! Uma paixão cura a outra. Adota por amante uma
costureirinha da cidade, e não pensa mais nessa maldita jovem!”
“Mas não segui o conselho de Louis. Para isso, eu estava demasiadamente
envolvido. Se houvesse a possibilidade de ela ficar sabendo que eu havia
adotado uma amante, eu teria talvez adotado uma para lhe espicaçar o coração
ou a vaidade por ciúme. Mas ela não o saberia. Como poderia ela sabê-lo?… Ao
trazer, se eu o fizesse, uma amante para meu quarto, como Louis, em sua
hospedaria do Correio, eu estaria rompendo com as boas pessoas na casa das
quais eu morava, e que teriam imediatamente exigido que fosse procurar um outro
alojamento; e eu não queria renunciar, se eu não pudesse ter senão isso, à
possibilidade de reencontrar a mão ou o pé dessa maldita Alberte, que, depois
do que ela havia ousado fazer, continuava ainda a ser a grande e impassível
Senhorita.
“– Admite que se trata de uma coisa impossível” – dizia Louis, que me
ridicularizava.
“Um mês inteiro se passou, e malgrado minhas resoluções a me mostrar
tão distante e tão indiferente quanto ela, em colocar mármore contra
mármore e frieza contra frieza, não vivi mais que a vida tensa da espreita, –
da espreita que eu detesto, mesmo quando estou na caça! Sim, Senhor, isso não
era mais que uma espreita perpétua nos meus dias! Espreita quando eu descia
para cear e esperava encontrá-la sozinha na sala de refeições como da
primeira vez! Espreita na ceia, na qual meu olhar alvejava de frente ou de lado
o dela que ele encontrava inteira e infernalmente calmo e que não evitava o
meu, mas também não lhe correspondia! Espreita depois da ceia, pois eu ficava
um pouco ali, após a ceia, vendo essas damas retomar seus trabalhos, no vão
em que faziam suas costuras e tricôs, prestando atenção se ela não deixaria
cair alguma coisa, seu dedal, sua tesoura, um pedaço de pano, que eu pudesse
juntar, e ao lhe devolver, tocar sua mão, – essa mão que eu tinha agora
atravessada no cérebro! Espreita em meu quarto, quando eu subia para me
recolher, e imaginando ainda ouvir ao longo do corredor esse pé que tinha
tocado o meu, com uma vontade tão absoluta. Espreita até nos degraus da
escada, nos quais eu acreditava poder reencontrá-la, e nos quais a velha Olive
me surpreendeu um dia, para minha grande confusão, em posição de sentinela!
Espreita em minha janela – essa janela que o senhor agora vê – na qual eu me
colocava quando ela tinha que sair com sua mãe, e da qual eu não saía antes
que ela tivesse voltado, mas tudo isso era tão vão quanto o resto! Quando ela
saía, escondida em seu xale de jovem mulher, – um xale de listas vermelhas e
brancas: eu não esqueci nada! tingido de flores negras e amarelas, ela não
voltava seu torso insolente uma única vez, e quando ela voltava, sempre ao lado
de sua mãe, ela não levantava nem a cabeça nem os olhos para a janela em que
eu esperava! Esses eram os miseráveis exercícios aos quais eu me havia
condenado! Certamente eu sei muito bem que as mulheres nos fazem mais ou menos
servir-lhes de criado, mas a esse ponto! O velho orgulhoso que deveria estar
morto em mim ainda se revolta! Ah!, eu não pensava mais na felicidade de meu
uniforme! Quando eu tinha terminado o serviço do dia, – após o exercício da
revista, – eu voltava ligeiro para casa, mas não mais para ler as pilhas de
memórias ou de romances, minhas únicas leituras nessa época. Eu não ia mais
à casa de meu amigo Louis de Meung. Eu não tocava mais em meus floretes de
esgrima. Eu não tinha o recurso do fumo que entorpece as horas vazias quando
elas nos devoram, e que vocês, que são mais jovens e que me seguiram na vida,
têm! Nós não fumávamos no 27o Regimento, a não ser entre os soldados, no
corpo de guarda, quando jogávamos carta sobre os tambores… Eu ficava, pois,
com meu corpo na inatividade, a me roer… não sei se era o coração, sobre
esse canapé que não fazia mais o bom frio que eu adorava nesses seis pés
quadrados de quarto, onde eu me agitava como um leãozinho em sua jaula, quando
ele sente carne fresca a seu lado.
“E se assim era o dia, ocorria a mesma coisa durante uma grande parte da
noite. Eu ia me deitar tarde. Eu não dormia mais. Ela me fazia ficar acordado,
essa infernal Alberte, que tinha me inflamado as veias e que tinha, depois, se
afastado, como o incendiário que não volta nem mesmo a cabeça para ver o
fogo inflamar-se por detrás dele! Eu baixava, tal como está lá, na noite de
hoje”, – aqui o Visconde passou sua luva sobre a vidraça do carro que estava
diante dele, para secar o vapor que começava a verter” – essa mesma cortina
carmesim, nessa mesma janela, que tinha tantas persianas quanto as que tem
agora, a fim de que os vizinhos, mais curiosos na província que em outros
lugares, não vislumbrassem o fundo de meu quarto. Era um quarto daqueles que
havia naquela época, – um quarto do Império, assoalhado à maneira húngara,
sem tapete, no qual o bronze revestia, em toda parte, a madeira, começando
pelas cabeças de esfinges nos quatro cantos da cama e pelas patas de leões
nos quatro pés e terminando, em todas as gavetas da cômoda e da escrivaninha,
por camafeus em forma de caras de leão, com anéis de cobre caindo de suas
bocas esverdeadas, e que empunhávamos quando se queria abri-las. Uma mesa
quadrada, de uma madeira mais rosada que o resto dos móveis, com um topo de
mármore cinza, com fios de cobre, estava colocada à frente da cama, contra a
parede, entre a janela e a porta de um grande quarto de banho; e, em frente à
lareira, o grande canapé de marroquim azul do qual já lhe falei… Em todos os
cantos desse quarto de uma grande altura e de um enorme espaço, havia
cantoneiras de falso laque da China, e sobre uma delas via-se, misterioso e
branco, no escuro do canto, um velho busto de Niobé, à maneira antiga, que
era surpreendente que estivesse ali, na casa desses burgueses vulgares. Mas
essa incompreensível Alberte, não era, ela, ainda mais surpreendente? As
paredes, revestidas de lambril e pintadas a óleo, de um branco amarelado, não
tinham nem quadros, nem gravuras. Eu tinha ali apenas minhas armas, acomodadas
em grandes suportes de cobre dourado. Quando eu tinha alugado esse grande
apartamento que se parecia com uma enorme cabaça, – como dizia elegantemente o
Tenente Louis de Meung, que não costuma poetisar as coisas, – eu tinha
colocado no meio uma grande mesa redonda que eu cobria de mapas militares, de
livros e de papéis: era meu escritório. Eu aí escrevia quando eu tinha que
escrever… Bem!, uma tarde, ou, antes, uma noite, eu tinha arrastado o canapé
para junto dessa grande mesa, e eu desenhava sob a lâmpada, não para me
distrair do único pensamento que me submergia há um mês, mas para me afundar
ainda mais, pois era a cabeça dessa enigmática Alberte que eu desenhava, era
o rosto desse demônio de mulher de que eu estava possuído, como os devotos
dizem quando se trata do diabo. Era tarde. A rua, – na qual passavam, cada
noite, duas diligências em direções inversas, – como hoje, – uma à meia
noite e quinze e a outra às dez e meia da manhã, e que se detinham, as duas,
no Hotel do Correio, para fazer o revezamento dos cavalos, – a rua estava
silenciosa como o fundo de um poço. Dava para se ouvir uma mosca voando; mas
se, por acaso, houvesse uma em meu quarto, ela devia dormir em algum canto de
vidro ou em uma das dobras caneladas dessa cortina, de um espesso tecido de
seda tramada, que eu tinha tirado de seu suporte e que caia sobre a janela,
perpendicular e imóvel. O único ruído que havia em torno de mim, nesse
profundo e completo silêncio, era eu que o fazia com meu lápis e meu
esfuminho. Sim, era ela que eu desenhava, e Deus sabe com que toque de mão e
com que preocupação inflamada! De repente, sem qualquer ruído de fechadura
que pudesse ter me advertido, minha porta se entreabriu, produzindo esse som
agudo das portas cujas dobradiças estão ressecadas, e permaneceu assim
entreaberta, como se ela tivesse tido medo do som que havia emitido! Eu
levantei os olhos, acreditando ter fechado mal essa porta que, por si mesma,
inopinadamente, se abria, ao emitir esse som queixoso, capaz de fazer
estremecer na noite aqueles que estão acordados e de acordar aqueles que
dormem. Levantei-me de minha mesa para ir fechá-la; mas a porta entreaberta se
abriu mais ainda e sempre muito suavemente, mas recomeçando o som agudo que se
arrastava como um gemido na casa em silêncio, e eu vi, quando se abriu
inteiramente, Alberte! – Alberte que, malgrado as precauções de um medo que
devia ser imenso, não tinha sido capaz de impedir essa maldita porta de
ranger!
“Ah!, meu Deus!, eles falam de visões, aqueles que nelas crêem; mas a
visão mais sobrenatural não teria me dado a surpresa, a espécie de golpe no
coração que eu senti e que se repetiu e palpitações insensatas, quando vi
chegar até mim, – dessa porta aberta, – Alberte, assustada com o ruído que
essa porta acabara de fazer ao se abrir, e que iria começar outra vez se ela a
fechasse! Lembre-se o senhor que eu não tinha nem dezoito anos! Ela viu talvez
meu terror diante do seu: ela reprimiu, por um gesto enérgico, o grito de
surpresa que poderia me escapar, – que teria certamente me escapado sem esse
gesto, – e ela fechou a porta, não mais lentamente, uma vez que essa lentidão
a teria feito ranger, mas rapidamente, para evitar esse rangido das dobradiças,
– que ela não evitou, e que recomeçou mais claramente, mais abertamente, de
uma vez só e extremamente agudo; – e, a porta fechada e a orelha colocada
contra a porta, ela escutava se um outro ruído, que poderia ser mais
inquietante e mais terrível, não respondia a esse ruído aqui… Eu acreditei
vê-la vacilar… Eu me joguei e a peguei imediatamente em meus braços.
– Mas ela se saiu bem, sua Alberte, – disse eu ao Capitão.
– O Senhor crê, talvez, – retomou ele a sua fala, como se ele não
tivesse escutado minha brincalhona observação, que ela caíra, em meus
braços, de terror, de paixão, de enlouquecimento, como uma jovem perseguida
ou que se pode perseguir, – que não sabe mais o que faz quando ela faz a
última das loucuras, quando ela se abandona – como se diz – a esse demônio
que têm todas as mulheres, em toda parte, e que seria o Grão-Senhor sempre,
se não houvesse outros dois nelas, – a Covardia e a Vergonha, – para
contrariar aquele outro! Bem, não, não era isso! Se o Senhor acreditou que
era isso, o Senhor se enganou… Ela não tinha nada desses medos vulgares e
ousados… Não fui eu que a tomei em meus braços; foi, antes, ela que me tomou
nos seus… Seu primeiro movimento tinha sido de jogar sua fronte contra meu
peito, mas ela a ergueu e me olhou, os olhos bem abertos, – olhos imensos! –
como para ver se era mesmo eu que ela tinha, assim, em seus braços! Ela estava
horrivelmente pálida. Eu não a tinha nunca visto pálida!; mas seus traços
de Princesa não tinham mudado. Eles tinham ainda a imobilidade e a firmeza de
uma medalha. Só que sua boca, com os lábios ligeiramente inchados, divagavam
por não sei qual devaneio, que não era o da paixão feliz ou que vai, de
repente, se transformar em tal! E esse devaneio tinha alguma coisa de tão
sombrio em um momento como aquele que, para não vê-lo, eu depositei sobre
seus lábios encarnados e eréteis, o robusto e fulminante beijo do desejo
triunfante e senhor de si! A boca se entreabriu… mas os olhos negros, de uma
negrura profunda, e cujas longas pálpebras quase tocavam, naquele momento,
minhas pálpebras, não se fecharam, – nem sequer palpitaram, – mas bem no
fundo, como sobre sua boca, eu vi passar sua demência! Presa nesse beijo de
fogo e como que arrebatada pelos lábios que penetravam os seus, aspirada pelo
sopro que a respirava, eu a conduzi, ainda colada a mim, para o canapé de
marroquim azul, – minha grelha de São Laurêncio, durante esse mês em que aí
eu me debatia pensando nela, – e cujo marroquim se pôs voluptuosamente a
estalar sob suas costas nuas, pois ela estava semi-nua. Ela saíra de seu leito
e para vir até ao meu quarto, ela tinha… o senhor pode acreditar?, sido
obrigada a atravessar o quarto em que seu pai e sua mãe dormiam! Ela o tinha
atravessado tateando, as mãos à frente, para não se chocar com algum móvel
que pudesse fazer ressoar seu choque e que poderia acordá-los.
– Ah!, – exclamei eu, – ela foi mais corajosa do que um soldado na
trincheira. Ela era digna de ser a amante de um soldado!
– E ela o foi desde essa primeira noite, continuou o Visconde. – Ela o
foi tão violenta quanto eu, e eu lhe juro que eu o fui! Mas não importa… essa
foi a minha revanche! Nem ela nem eu pudemos esquecer, nos mais vivos de nossos
arrebatamentos, a temível situação em que ela havia nos colocado, aos dois.
No interior dessa felicidade que veio buscar e me oferecer, ela estava, então,
como que estupefata pelo ato que realizava com uma vontade, entretanto, tão
firme, com uma obstinação tão inarredável. Eu não me surpreendia com isso.
Quanto a mim, eu estava bastante estupefato! Eu tinha certamente, sem dizer-lhe
e sem demonstra-lhe, a mais terrível ansiedade no coração, enquanto ela me
pressionava, ao ponto de me asfixiar, sobre o seu. Eu escutava, através de
seus suspiros, através de seus beijos, através do aterrorizante silêncio que
pesava sobre essa casa adormecida e confiante, uma coisa horrível: e se sua
mãe se acordasse, se seu pai se levantasse! E até por cima de suas costas, eu
verificava por detrás dela, se essa porta, da qual ela não tinha tirado a
chave, pelo medo do ruído que poderia fazer, não iria se abrir novamente e me
mostrar, pálidas e indignadas, essas duas cabeças de Medusa, esses dois
velhos, que nós enganávamos com uma vileza tão ousada, surgir de repente na
noite, imagens da hospitalidade violada e da Justiça! Até esses voluptuosos
estalidos do marroquim azul, que tinham sido postos a soar pela Diana do Amor,
me faziam tremer de medo… Meu coração batia contra o seu, que parecia me
repercutir suas batidas… Era inebriante e frustrante, ao mesmo tempo, mas era
terrível! Acostumei- me a tudo isso mais tarde. À força de renovar
impunemente essa imprudência sem nome, tornei-me tranqüilo nessa
imprudência. À força de viver nesse risco de ser surpreendido, eu me tornei
indiferente. Eu não pensava mais no que fazia. Eu não pensava mais que em ser
feliz. Desde aquela primeira e formidável noite, que devia ter o mesmo terror
das outras, ela tinha decidido que ela viria até ao meu quarto de duas em duas
noites, uma vez que eu não podia ir ao seu aposento, – seu quarto de jovem
mulher não tendo outra saída senão aquela que dava para o apartamento de
seus pais, – e ela vinha ao meu quarto regularmente a cada duas noites; mas ela
nunca perdeu a sensação, – a surpresa da primeira vez! O tempo não produziu
sobre ela o efeito que produziu sobre mim. Ela não se tornou indiferente ao
perigo, que era afrontado a cada noite. Ela ainda continuava, até quando
estava sobre meu coração, silenciosa, mal me falando com a voz, pois, de
resto, o senhor pode perfeitamente adivinhar que ela era eloqüente; e quando,
mais tarde, a calma me voltou, por causa do risco afrontado e do bom resultado,
e quando eu lhe falei, como se fala à amante, daquilo que já tinha se passado
entre nós, – dessa frieza inexplicável e desmentida, uma vez que eu a tinha
em meus braços, e sobre o que tinha acontecido durante suas primeiras
audácias; quando eu lhe dirigi, enfim, todos os insaciáveis porquês do amor,
que não passam, no fundo, de curiosidade, ela não me respondeu nunca senão
por longos abraços. Sua boca triste continuava inteiramente muda… exceto
quanto aos beijos! Há mulheres que dizem: “Eu me perco por você”; há outras
que lhe dizem: “Você vai certamente me desprezar”; e essas são maneiras
diferentes de exprimir a fatalidade do amor. Mas ela, não! Ela não dizia uma
palavra… Coisa estranha! Mais estranha ainda a pessoa! Ela me produzia o efeito
de uma espessa e dura tampa de mármore que queimava, aquecida por baixo… Eu
acreditava que chegaria um momento em que o mármore se fundiria, enfim, sob o
calor ardente, mas o mármore não perdeu nunca sua rígida densidade. Nas
noites em que ela vinha, ela nem demonstrava mais abandono, nem dizia mais
palavras e, permito-me essa palavra eclesiástica, ela continuou tão
indisposta a se confessar quanto na primeira noite em que ela veio. Eu não
conseguia extrair nada dela… No máximo, extraía um monossílabo, de
obsessão, desses belos lábios pelos quais eu estava tanto mais apaixonado por
tê-los visto mais frios e mais indiferentes durante o dia e, além disso, um
monossílabo que não lançava grandes luzes sobre a natureza dessa jovem, que
me parecia mais esfinge, ela sozinha, que todas as Esfinges cujas imagens se
multiplicavam em torno de mim, nesse apartamento do tempo do Império.
– Mas, Capitão, interrompi eu mais uma vez, – isso tudo teve,
entretanto, um fim? O senhor é um homem forte, e todas as Esfinges são
animais fabulosos. Não há outra coisa na vida, e o senhor certamente acabou
por descobrir, que o diabo!, aquele que ela tinha em seu colo, essa sua
amiguinha!
– Um fim! Sim, teve um fim, – disse o Visconde de Brassard, baixando
bruscamente a vidraça do compartimento, como se tivesse faltado a respiração
ao seu monumental peito e como se ele tivesse necessidade de ar para concluir
aquilo que ele tinha a contar. – Mas o colo, como o senhor diz, dessa singular
jovem não se tornou mais aberto por isso. Nosso amor, nossa relação, nosso
caso, – chame-se isso como se queira, – nos deu, ou, melhor, deu a mim,
sensações que eu não acredito que tenha jamais experimentado, desde então,
com mulheres mais amadas que essa Alberte, que talvez não me amasse, que eu
talvez não tenha amado!! Nunca compreendi bem o que eu tinha por ela e o que
ela tinha por mim, e isso durou mais de seis meses! Durante esses seis meses,
tudo o que eu compreendi foi que era um tipo de felicidade de que não se tem
ideia na juventude. Compreendi a felicidade daqueles que se escondem.
Compreendi o gozo do mistério na cumplicidade, que, mesmo sem a esperança de
ser bem-sucedido, ainda assim produziria conspiradores incorrigíveis. Alberte,
à mesa de seus pais, como por toda parte, era sempre a Madame Infanta, que me
tinha impressionado no primeiro dia em que a vi. Sua fronte neroniana, sob seus
cabelos azuis de tão negros, que se encaracolavam todo e tocavam suas
sobrancelhas, não deixavam transparecer nada da noite culpável, que não
deixava em sua face nenhum traço de rubor. E eu, que tentava ser tão
impenetrável quanto ela, mas que, estou certo disso, deveria me denunciar dez
vezes se ficasse frente a observadores, eu me comprazia orgulhosa e quase
sensualmente, no mais profundo de meu ser, com a ideia de que toda essa
magnífica indiferença era certamente por minha causa e que ela tinha por mim
todas as baixezas da paixão, caso a paixão possa, alguma vez, ser qualificada
de baixa! Ninguém mais, além de nós, sobre a terra, sabia sobre aquilo… e
era delicioso esse pensamento! Ninguém, nem mesmo meu amigo, Louis de Meung,
com o qual me tornei discreto desde que me tornei feliz! Ele tinha tudo
adivinhado, provavelmente, uma vez que ele era tão discreto quanto eu. Ele
não me interrogava. Retomei, com ele, sem esforço, meus hábitos de
intimidade, os passeios no pátio, vestidos de maneira formal ou informal, o
jogo de cartas, a esgrima e a bebida! Por Deus!, quando sabemos que a
felicidade virá, sob a forma de uma bela jovem que tem como que uma forte dor
dentes no coração, nos visitar regularmente cada duas noites, à mesma hora,
isso simplifica alegremente os dias!”.
– Mas eles dormiam, pois, como os Sete Dorminhocos, os pais dessa
Alberte? – disse eu, gracejando, claramente interrompendo as reflexões do
velho dândi com uma brincadeira, e para não parecer demasiadamente envolvido
por sua história, que me envolvia, pois, com os dândis, não se conta senão
com as brincadeiras para se dar um pouco de respeito.
– O Senhor acredita, pois que procuro causar efeitos de contador de
casos, ao contar coisas fora da realidade? – disse o Visconde. – Mas eu não
sou romancista! Algumas vezes, Alberte não vinha. A porta, cujas dobradiças
lubrificadas estavam agora macias como o algodão, simplesmente não se abriu
uma noite, e o que ocorreu foi que, então, sua mãe a havia ouvido e pôs-se a
gritar, ou foi seu pai que a tinha percebido fugindo ou tateando através do
quarto. Só que Alberte encontrava, a cada vez, com sua cabeça fria, um
pretexto. Ela estava doente… Ela estava procurando pelo açucareiro sem levar
uma vela, com medo de despertar alguém…
– Essas cabeças frias não são tão raras quando o senhor parece
pensar, Capitão! – interrompi eu, uma vez mais. Eu estava a contrariá-lo. –
Sua Alberte, afinal, não era mais forte que a jovem que recebia todas as
noites, no quarto de sua avó, adormecida por detrás de suas cortinas, um
amante que entrava pela janela e que, não tendo canapé de marroquim azul, se
estabelecia, sem cerimônias, sobre o tapete… O Senhor sabe tão bem quanto eu
a história. Uma tarde, aparentemente estimulado pela jovem demasiadamente
feliz, um suspiro mais forte que os outros acordou a avó, que emitiu, de
debaixo de suas cortinas um: “Que tens, minha pequena?”, que fez a jovem se
desvanecer contra o coração de seu amante; mas ela não deixou, por sua vez,
de responder: “É minha boca, vovó, que me dói, por procurar minha agulha que
caiu sobre o tapete, e eu não consegui encontrá-la!”.
– Sim, conheço a história, continuou o Capitão de Brassard, que eu
creio ter humilhado, por ter feito uma comparação com sua Alberte. – Era, se
me recordo bem, uma jovem de sobrenome Guise, aquela sobre a qual o senhor
fala. Ela se comportou como uma jovem digna de seu sobrenome; mas o senhor não
diz que a partir dessa noite, ela não mais abriu a janela para seu amante, que
era, creio, o Monsieur de Noirmoutier, enquanto que Alberte retornava no dia
seguinte ao desses terríveis imprevistos, e se expunha, bela como sempre, ao
temido risco, como se nada tivesse acontecido. Eu não passava, então, de um
subtenente bem medíocre em matemática e dela me ocupava muito pouco; mas era
evidente, para quem sabe o mínimo do cálculo das probabilidades, que um dia…
uma noite… haverá um desenlace…
– Ah, sim! – disse eu, me lembrando das palavras que ele tinha dito
antes de começar sua história, – o desenlace que deveria fazer com que o
Senhor fosse conhecer a sensação do medo, Capitão.
– Precisamente, – respondeu ele, com um tom mais grave e que contrastava
com o tom leve que eu afetava. – O senhor percebeu, não é mesmo?, desde minha
mão agarrada sob a mesa até ao momento em que ela surgiu naquela primeira
noite, como uma aparição na moldura de minha porta aberta, Alberte não me
havia poupado a emoção. Ela me tinha feito passar na alma mais de um tipo de
frêmito, mais de um tipo de terror; mas isso não tinha sido ainda senão a
impressão das balas que silvam ao redor de nós e das balas de canhão cujo
vento nós sentimos; nós estremecemos, mas nós vamos em frente. Bem, isso
não aconteceu mais. O que ocorreu foi o medo, o medo completo, o verdadeiro
medo, e não mais por Alberte, mas por mim, e unicamente por mim! O que eu
experimentei foi positivamente essa sensação que deve tornar o coração
ainda mais pálido que o rosto; foi desse pânico que faz um regimento inteiro
pôr-se em fuga. Eu, que agora lhe falo, eu vi Chamboran fugir, a toda
velocidade, o heróico Chamboran, levando, em seu amedrontado grupo, seu
coronel e seus oficiais! Mas nessa época eu ainda não tinha visto nada, e eu
conheci… aquilo que eu acreditava impossível.
“Escute, pois… Era uma noite. Com a vida que nós levávamos, não podia
ser senão uma noite… uma longa noite de inverno. Não diria que era uma de
nossas noites mais tranqüilas. Elas eram todas tranqüilas, nossas noites. Elas
se tornaram tranquilas por serem felizes. Nós dormíamos sobre esse canhão
carregado. Nós não tínhamos a mínima preocupação, ao fazer amor sobre
essa lâmina de sabre colocada através de um abismo, como a ponte do inferno
dos turcos! Alberte tinha vindo mais cedo que de costume, para ficar por mais
tempo. Quando ela vinha assim, minha primeira carícia, meu primeiro movimento
de amor era por seus pés, seus pés que não calçavam, então, mais seus
sapatinhos verdes ou de cor de hortênsia, esses dois feitiços e essas minhas
duas delícias, e que, nus para não fazer ruído, me chegavam transidos de
frio dos tijolos sobre os quais ela havia andado, ao longo do corredor que
levava do quarto de seus pais ao meu quarto, situado no outro extremo da casa.
Eu os aquecia, esses pés gelados por minha causa, que talvez pegassem, por
mim, ao sair de uma cama quente, alguma horrível doença pulmonar… Eu sabia
qual método utilizar para aquecer esses pés pálidos e frios e dar-lhes uma
cor rosa ou vermelha; mas nessa noite meu método falhou… Minha boca foi
impotente para fazer surgir no peito desse pé arqueado e fascinante a camada
de sangue que, de um vermelho-papoula, eu frequuentemente adorava fazer
surgir… Alberte, nessa noite, estava mais silenciosamente amorosa que nunca.
Seus abraços tinham esse langor e essa força que eram para mim uma linguagem,
e uma linguagem tão expressiva que, se eu ainda lhe falava, se eu ainda lhe
contava todas as minhas demências e todos os meus êxtases, eu não lhe exigia
mais que ela me respondesse e que me falasse. Mas seus abraços, a esses eu
escutava. De repente, eu não a escutei mais. Seus braços pararam de me
pressionar sobre o coração, e eu pensei que ela tivera um desses desmaios que
ela frequuentemente tinha, embora em geral ela conservasse, em seus
desvanecimentos, a força contraída do abraço… Não há pudores entre nós
dois. Somos dois homens e podemos falar como dois homens… Eu tinha a
experiência dos espasmos voluptuosos de Alberte, e quando eles a tomavam, eles
não interrompiam minhas carícias. Eu continuava como eu estava, sobre seu
coração, esperando que ela voltasse à vida consciente, e que o raio que a
tinha atingido a ressuscitaria ao voltar a atingi-la... Mas minha experiência
se enganou. Eu a olhei como ela estava, unida a mim, sobre o canapé azul,
esperando o momento em que seus olhos, desaparecidos sob suas longas
pálpebras, me voltassem a mostrar suas belas órbitas de veludo negro e de
fogo; no qual seus dentes, que se cerravam e rangiam ao ponto de partir o
esmalte ao menor beijo aplicado bruscamente sobre seu pescoço e prolongado
longamente sobre suas costas, deixavam, ao se abrir, passar seu hálito. Mas
nem os olhos voltaram a se abrir, nem os dentes voltaram a descerrar-se… O frio
dos pés de Alberte subiu até seus lábios e sob os meus… Quando senti esse
horrível frio, levantei-me a meio corpo para melhor vê-la; eu me separei em
sobressalto de seus braços, dos quais um deles caiu sobre ela e o outro
pendia, do canapé sobre o qual ela estava deitada, sobre o chão. Apavorado,
mas ainda lúcido, eu coloquei minha mão sobre seu coração… Não havia nada!
nada nos pulsos, nada nas têmporas, nada nas artérias carótidas, nada em
parte alguma… uma vez que a morte estava em toda parte, e já com sua terrível
rigidez!
Eu estava certo de sua morte… e eu não queria acreditar nisso! A
cabeça humana tem dessas vontades estúpidas contra a clareza mesma da
evidência e do destino. Alberte estava morta. De quê?… Eu não sabia. Eu não
era médico. Mas ela estava morta; e embora eu visse com a claridade do dia que
qualquer coisa que eu fizesse era inútil, fiz, entretanto, tudo que me parecia
tão desesperadamente inútil. Na falta absoluta de tudo, de conhecimentos, de
instrumentos, de recursos, eu lhe esvaziei sobre a fronte todos os frascos de
minha toalete. Eu lhe golpeei firmemente as mãos, correndo o risco de provocar
ruídos, nessa casa em que o menor ruído nos fazia tremer. Eu tinha ouvido um
de meus tios, chefe de esquadrão do 4o regimento de dragões, dizer que um dia
ele tinha salvado um de seus amigos de uma apoplexia ao lhe sangrar
imediatamente com um desses instrumentos que se utiliza para sangrar os
cavalos. Eu tinha uma porção de armas em meu quarto. Eu massacrei esse braço
esplêndido de onde o sangue nem sequer corria mais. Algumas gotas se
coagularam. Ela estava rígida. Nem beijos, nem sucções, nem mordidas puderam
galvanizar esse corpo rígido, que se transformara em cadáver sob meus
lábios. Não sabendo mais o que fazer, acabei por me estender por cima dela,
que era o meio que empregavam (diziam as velhas histórias) os Taumaturgos
ressuscitadores, não esperando fazer com que a vida voltasse aí a se aquecer,
mas fazendo como se eu o esperasse! E foi sobre esse corpo gelado que uma
ideia, que não tinha se despregado do caos no qual a perturbadora morte
súbita de Alberte me havia jogado, me apareceu claramente… e eu tive medo!
Oh!, … mas um medo… um medo imenso! Alberte morreu no meu quarto, e sua
morte dizia tudo! Que iria ser de mim? Que seria preciso fazer?… Com esse
pensamento, senti a mão, a mão física dessa pobre horrenda, em meus cabelos
que tinham se transformado em agulhas! Minha coluna vertebral se fundira em uma
gelatina gelada, e eu queria lutar – mas em vão – contra essa desonrada
situação… Eu disse a mim mesmo que era preciso ter sangue-frio.. que eu era,
afinal, um homem.. que eu era militar. Coloquei a cabeça entre as mãos e
quando o cérebro me voltou ao crânio, me esforcei por raciocinar sobre a
situação horrível em que eu tinha me colocado… e por deter, para fixá-las e
examiná-las, todas as ideias que me fustigavam o cérebro como um pião
cruel, e que iam, todas, a cada vez, se chocar com o cadáver que estava no meu
quarto, com esse corpo inanimado de Alberte que não podia mais voltar a seu
próprio quarto, e que sua mãe devia encontrar no dia seguinte no quarto do
oficial, morta e desonrada! A ideia dessa mãe, cuja filha eu tinha talvez
matado, ao desonrá-la, me pesava mais sobre o coração que o próprio
cadáver de Alberte… Não se podia ocultar a morte; mas a desonra,
experimentada pelo cadáver em meu quarto, não haveria um meio de ocultá-la?
… Essa era a questão que eu me fazia, que eu contemplava, e que tomava as
proporções de uma impossibilidade absoluta. Alucinação apavorante!, por
alguns momentos o cadáver de Alberte me parecia preencher todo o meu quarto e
não poder dali sair. Ah!, se o seu quarto não estivesse situado atrás do
apartamento de seus pais, eu a teria, correndo todo o risco, levado de volta à
sua cama! Mas poderia eu fazer, com seu corpo morto em meus braços, o que ela
fazia, já tão imprudentemente, quando viva, e me aventurar, assim, a
atravessar um quarto que eu não conhecia, no qual eu jamais havia entrado, e
no qual repousavam adormecidos do sono leve dos velhos, o pai e a mãe da
infeliz?… E, entretanto, o estado de minha cabeça era tal, o medo do dia de
amanhã e desse cadáver que estava em meu quarto me perseguiam com tanta
fúria que foi essa ideia, essa temeridade, essa loucura de levar Alberte de
volta ao seu quarto que se apoderou de mim como o único meio de salvar a honra
da pobre jovem e de me poupar a vergonha das reprovações do pai e da mãe, de
me livrar, enfim, dessa ignomínia. O senhor acreditaria? Eu mal acredito em
mim próprio, quando penso nisso! Eu tive a força de tomar o cadáver de
Alberte e, levantando-o pelos braços, colocá-los sobre minhas costas.
Horrível carga, mais pesada, convenhamos, que esses condenados, no inferno de
Dante! Foi preciso carregá-la, como eu o fiz, essa carga de uma carne que me
fazia ferver o sangue de desejo não havia mais de uma hora e que agora me
fazia enregelar!… Seria preciso tê-la carregado para saber do que se tratava!
Abri minha porta assim carregado e, pés descalços como ela, para fazer menos
ruído, me enfiei pelo corredor que conduzia ao quarto de seus pais, e cuja
porta estava no fundo, me detendo a cada passo, pouco seguro sobre minhas
pernas desfalecidas, para escutar o silêncio da casa na noite, que eu não
ouvia mais, por causa das batidas de meu coração! Isso durou por muito tempo.
Nada se mexia… Um passo seguia um outro… Só que quando cheguei, apesar de
tudo, à terrível porta do quarto de seus pais, – pela qual eu precisava
passar e que ela não tinha, ao se dirigir ao meu quarto, fechado inteiramente
para encontrá-la aberta ao retornar, e quando ouvi as duas respirações
longas e tranqüilas desses dois pobres velhos que dormiam com toda a
confiança de sua vida, eu não ousei ir adiante!… Não ousei mais ultrapassar
esse limiar negro e escancarado nas trevas… Eu recuei; fugi com meu fardo!
Voltei ao meu quarto cada vez mais apavorado. Voltei a colocar o corpo de
Alberte sobre o canapé e recomecei, agachado sobre os joelhos, ao lado dela, a
fazer as suplicantes perguntas: “Que fazer? Qual seria o futuro?…” Na ruína
que se abria diante de mim, a ideia insensata e atroz de jogar o corpo da bela
jovem, minha amante por seis meses!, pela janela, me percorreu o espírito.
Despreze-me! Abri a janela… afastei a cortina que o Senhor está vendo ali… e
olhei para o buraco negro ao fundo do qual estava a rua, pois estava muito
escuro nessa noite. Não se via o pavimento. “Vão achar que foi um suicídio”,
pensei eu, e eu voltei a pegar Alberte e a levantei… Mas eis que uma luz de bom
senso atravessou minha loucura! “De onde teria ela se matado? De onde teria ela
caído se ela for encontrada amanhã sob minha janela?…”, perguntava-me eu. A
impossibilidade daquilo que eu queria fazer me fustigava! Eu ia voltar a fechar
a janela cujo fecho rangia. Afastei a cortina da janela, mais morto que vivo
por causa dos ruídos que eu fazia. De resto, pela janela, – sobre a escada, –
no corredor, – por toda parte em que eu pudesse deixar ou jogar o cadáver,
eternamente acusador, a profanação era inútil. O exame do cadáver revelaria
tudo, e o olho de uma mãe, tão cruelmente advertida, veria tudo o que o
médico ou o juiz desejaria lhe esconder… O que eu experimentava era
insuportável, e a ideia de me matar com um tiro de pistola, no vil estado em
que se encontrava minha desmoralizada alma (uma palavra do Imperador que mais
tarde vim a compreender!), me atravessou a mente, ao ver reluzir minhas armas
contra a parede de meu quarto. Mas o que queria o senhor?… Serei franco: eu
tinha dezessete anos e eu amava… minha espada. Era por gosto e sentimento de
raça que eu era soldado. Eu nunca tinha visto o fogo de uma arma e eu queria
vê-lo. Eu tinha a ambição militar. No regimento nós ridicularizávamos
Werther, um herói da época, que nos causava piedade, a nós, os outros
oficiais! O pensamento que me impediu de me subtrair, ao me matar, ao ignóbil
medo de que eu ainda estava tomado, me conduziu a um outro que me pareceu a
própria salvação, no impasse em que eu me retorcia! “Se eu fosse procurar o
Coronel?, disse-me eu. – O Coronel é a paternidade militar, – e eu me vesti
como nos vestimos quando soa o toque de reunir, em uma situação de surpresa…
Peguei minhas pistolas por uma precaução de soldado. Quem sabia o que poderia
acontecer?… Abracei uma última vez, com o sentimento que se tem aos dezessete
anos, – e somos sempre sentimentais aos dezessete anos, – a boca muda, e que
sempre o tinha sido, dessa bela Alberte falecida, e que me satisfazia há seis
meses com seus mais inebriantes favores… Desci sobre as pontas dos pés os
degraus da escada dessa casa em que eu deixava a morte… Ofegando como um homem
que se salva, gastei uma hora (essa era, ao menos, minha impressão!) a
destravar a porta da rua e a girar a grande chave em sua enorme fechadura, e
depois de tê-la voltado a fechar com a precaução de um ladrão, corri, como
um desertor, para a casa de meu coronel.
Toquei a campainha como se estivéssemos numa batalha. Eu a fiz ressoar
como uma trombeta, como se o inimigo estivesse no ato de raptar a bandeira do
regimento! Eu investi contra tudo, até contra o ordenança que queria se opor
a que eu entrasse, a tal hora, no quarto de seu senhor, e uma vez o coronel
despertado pela tempestade do ruído que eu fazia, eu lhe contei tudo.
Confessei-me de um fôlego só e profundamente, rápida e corajosamente, pois
os minutos premiam, suplicando-lhe que me salvasse…
Era um homem esse coronel! Ele viu imediatamente o horrível abismo em
que eu me debatia… Ele teve piedade do mais novo de seus meninos, como ele me
chamava, e creio que eu estava, então, em um estado de dar dó! Ele me disse,
com o palavrão mais francês, que era preciso começar por desaparecer
imediatamente da cidade, e que ele se encarregaria de tudo… que ele veria os
pais assim que eu partisse, mas que era preciso partir, tomar a diligência que
iria fazer o revezamento dos cavalos em dez minutos no Hotel do Correio, chegar
até uma cidade à qual ele me indicou e para a qual ele me escreveria… Ele me
deu dinheiro, pois eu havia esquecido de apanhá-lo, me aplicou cordialmente
sobre a face seus velhos bigodes grisalhos, e dez minutos depois dessa
entrevista, eu subi (não havia senão este lugar vago) na parte superior da
diligência, que fazia o mesmo serviço no qual estamos atualmente, e passei a
galope sob a janela (o senhor pode adivinhar que olhares eu lhe lançava!) do
fúnebre quarto em que eu tinha deixado Alberte morta, e que estava iluminada
como ela está esta noite”.
O Visconde de Brassard se deteve, sua forte voz um pouco alquebrada. O
silêncio não foi longo entre nós.
– E depois? – perguntei-lhe eu.
– Bem, aí é que está – respondeu ele, não houve um depois! É isso
que há muito tempo atormenta minha curiosidade exasperada. Segui cegamente as
instruções do coronel. Esperei com impaciência uma carta que me desse a
conhecer o que ele havia feito e o que tinha acontecido após minha partida.
Esperei por cerca de um mês; mas, ao fim desse mês, não foi uma carta que
recebi do coronel, que não escrevia senão com seu sabre sobre a figura do
inimigo; foi a ordem de mudança de regimento. Ele me ordenou que eu me
reunisse ao 35º Regimento, que ia entrar em campanha, e que era preciso que, em
vinte e quatro horas, eu chegasse ao novo regimento ao qual agora eu pertencia.
As imensas distrações de uma campanha, e era a primeira!, as batalhas das
quais eu fazia parte, as fadigas e também as aventuras com mulheres que se
seguiram àquela que aconteceu aqui, me fizeram esquecer de escrever ao
coronel, e me desviaram da lembrança cruel da história de Alberte, sem poder,
entretanto, apagá-la. Eu a guardei como uma bala que não se pode extrair… Eu
dizia a mi mesmo que um dia ou outro eu voltaria a encontrar o coronel, que me
poria, enfim, ao corrente do que eu desejava saber, mas o coronel também tinha
se matado um mês antes… É também desprezível, isso, – acrescentou o
capitão, – mas tudo se adormece mesmo na alma mais robusta, e talvez
justamente porque ela é a mais robusta… A curiosidade devoradora de saber o
que se passou depois de minha partida acabou por me deixar tranqüilo. Eu
poderia, passados tantos anos, e mudado como eu estava, ter voltado sem ser
reconhecido, a esta pequena cidade e, ao menos, ter me informado sobre aquilo
que se sabia, sobre o que havia transparecido de minha trágica aventura. Mas
alguma coisa que não é certamente o respeito da opinião alheia, a qual eu
ridicularizei toda minha vida, alguma coisa que se assemelhava a esse medo que
eu não queria sentir uma segunda vez, sempre me impediu de fazer isso”.
Ele se calou novamente, esse dândi que tinha me contado, sem o menor
dandismo, uma história de uma realidade tão triste. Eu sonhava, sob a impressão
dessa história, e eu compreendia que esse brilhante Visconde de Brassard, a
flor não das ervilhas, mas das mais altivas papoulas vermelhas do dandismo, o
grandioso bebedor de vinho, à maneira inglesa, estava como que transformado em
um outro homem, um homem mais profundo do que aquele que ele aparentava ser.
Voltou-me à mente a palavra que ele me havia dito, ao começar, sobre a mancha
negra que, durante toda sua vida, tinha afligido seus prazeres de pessoa
desregrada… quando, de repente, para me impressionar ainda mais, ele me tomou o
braço bruscamente:
– Escuta!, – disse-me ele, olha para a cortina!
A sombra esbelta de uma cintura de mulher acabava de passar por ali,
desenhando-se sobre a cortina. – A sombra de Alberte! – disse o Capitão. – O
acaso está demasiadamente inclinado à zombaria esta noite, acrescentou ele
com amargor.
A cortina tinha já voltado a deixar transparecer apenas sua vidraça
vazia, vermelha e iluminada. Mas o consertador de carroças, que, enquanto o
Visconde falava, fazia o seu trabalho, tinha terminado sua tarefa. Os cavalos
de revezamento estavam prontos e batiam os pés com impaciência e faziam o
pavimento faiscar. O condutor do carro, com seu boné de astracã sobre as
orelhas, com o registro da viagem grudado aos dentes, tomou as rédeas e se
levantou, e uma vez erguido sobre o banco da parte superior do carro, gritou,
na noite, com sua voz clara, a palavra de ordem:
“A rodar!”.
E nós rodamos, e logo ultrapassamos a misteriosa janela, que ainda vejo
nos meus sonhos, com sua cortina carmesim.
[Paris,
1874]
(In:
Quatro novelas e um conto: as ficções do
platô 8 de Mil platôs, de Deleuze e
Gualtari. Trad. e Org. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2014).
***
O destino dos
filhos de Lir
Lenda celta-cristã irlandesa
Na
época em que os Thuata de Dananan1 escolheram um rei para si, depois
da batalha de Tailltin, Lir soube que a coroa fora dada a Bodb Dearg, o que o
desgostou; sem uma palavra e sem se despedir, ele deixou o grupo, pois se
julgava no direito de ser rei.
Sua
partida não impediu Bodb de tomar posse do reino, porque dos cinco
concorrentes, apenas Lir se opôs à escolha. Eles determinaram que Lir deveria
ser perseguido e sua casa queimada, e que ele deveria ser atacado com lança e
espada pelo fato de não prestar obediência ao rei que tinha sido escolhido. “Não,
não faremos nada disso”, disse Bodb Dearg. “Esse homem defenderia qualquer
lugar em que estivesse. E pelo fato de ele não se submeter, não sou menos rei
dos Thuata de Dananan”.
Tudo
correu bem por um bom tempo, mas então um grande infortúnio sobreveio a Lir,
pois sua esposa morreu, depois de três noites enferma. Essa perda foi um duro
golpe para Lir e, depois disso, a depressão apoderou-se de sua mente. E muito
se falou da morte daquela mulher na época.
A
notícia se espalhou por toda a Irlanda e chegou à casa de Bodb, em cuja
companhia estavam os melhores Homens de Dea.2 E Bodb disse: “Se Lir
aceitá-las, minha ajuda e minha amizade serão de valia para ele, agora que sua
esposa o deixou só. Eis que tenho aqui comigo três donzelas de corpo perfeito e
bela aparência e de uma das melhores famílias da Irlanda, Aobh, Aoife e Aibhe,
as três filha de Oilell de Aran, minhas três filhas adotivas”. Os Homens de Dea
consideraram que essa era uma boa ideia e que tudo o que ele dissera constituía
a pura verdade.
Mensagens
e mensageiros foram então enviados por Bodb Dearg ao lugar onde Lir vivia, para
lhe dizer que se aceitasse aliar-se ao filho de Dagda e o reconhecesse como
soberano, receberia como esposa uma de suas filhas adotivas. Lir refletiu sobre
a oferta e no dia seguinte partiu com cinquenta carruagens do Sidhe Fionnachaid,3
e tomou todos os atalhos possíveis até chegar ao locar de residência de Bodb,
no lago Dearg, onde teve festiva recepção; e todos na ocasião se mostraram
satisfeitos e alegres com sua presença, e Lir e sua comitiva tiveram naquela
noite excelente acolhida.
E
as três filhas de Oilell, rei de Aran, sentaram-se em um mesmo banco ao lado da
esposa de Bodb Dearg, a rainha dos Thuata de Dananan, mãe adotiva delas. E Bodb
disse: “Você pode escolher entre as três jovens, Lir”. E Lir respondeu: “Não
sei por qual delas me decidir, posso escolher qualquer uma, mas a que for a
mais velha será também a mais nobre e a esta seria mais conveniente eleger”.
“Se é assim”, disse Bodb, “Aobh é a mais velha e ela lhe será dada, se assim
for de seu desejo”. “É de meu desejo”, ele respondeu. E tomou Aobh por esposa
naquela noite, e lá permaneceu por uma quinzena, após o que a levou para o seu
palácio, onde promoveu uma grande festa de casamento.
Com
o decorrer do tempo, Aobh deu à luz duas crianças, uma menina e um menino,
chamados Fionnuala e Aodh. E passado mais algum tempo, ela se deitou outra vez
para dar à luz mais dois filhos, de nome Fiachra e Conn. E faleceu em
consequência do parto deles. Isso trouxe grande tristeza a Lir, e somente a
preocupação pelos quatro filhos impediu que ele morresse de dor.
Essas
notícias chegaram ao palácio de Bodb Dearg e todas a pessoas lançaram três
fortes gritos de dor, para lamentar a perda do ente querido. E depois de terem
pranteado a morta, disse Bodb Dearg: “Sofremos por nossa filha ter morrido; e
não só por ela, mas também pelo bom homem a quem a entregamos, já que estamos
gratos por sua amizade e lealdade. No entanto, nossa mútua amizade não será
rompida, porque lhe darei por esposa a irmã dela, Aoife”, disse ele.
Ao
ouvir essas palavras, Lir dirigiu-se até onde a moça estava, casou-se com ela e
levou-a para a sua casa. E Aoife mostrou consideração e afeto pelos filhos da
irmã; e de fato ninguém conseguia ver aquelas quatro crianças sem lhes dedicar
o mais profundo amor.
E
Bodb Dearg habituou-se a visitar com frequência a casa de Lir, por causa das
crianças; e também costumava levá-las para sua própria casa por um bom tempo,
antes de permitir que voltassem para a casa delas. Os Homens de Dea, por
ocasião de seu regresso, comemoravam a Festa do Tempo em todas as colinas do
Sidhe; e quando chegavam à colina de Lir, aquelas quatro crianças constituíam
sua alegria e deleite, por causa da beleza de sua aparência; e era lá que
costumavam dormir, em camas sob a vista de seu pai Lir. Ele tinha por hábito
levantar-se ao romper de cada manhã e ir deitar-se entre seus filhos.
Mas
foi isso que desatou o fogo do ciúme em Aoife, e ela começou primeiro a
desgostar dos filhos da irmã e depois a odiá-los.
Fingiu
então desenvolver uma doença grave, durante quase um ano. E ao cabo desse
tempo, perpetrou por ciúme um ato de cruel traição contra os filhos de Lir.
Um
dia, ela mandou atrelar os cavalos à carruagem e levou consigo as quatro
crianças, rumo à morada de Bodb Dearg, mas Fionnuala não queria acompanhá-la,
por perceber que a outra tinha algum plano visando a morte ou a destruição
deles, depois de ter visto em sonhos que a traição habitava a mente de Aoife. Mesmo
assim, não pôde escapar ao que a aguardava.
Quando
estavam a caminho, Aoife disse a seus acompanhantes: “Se vocês matarem agora os
quatro filhos de Lir, por quem o pai deles relegou o meu amor, eu lhes darei
como recompensa o que houver de melhor no mundo”. “Não faremos isso de jeito
nenhum. Só por ter tido essa ideia já constitui uma má ação e você pagará por
isso”, responderam eles.
Ao
ver que seu pedido não seria aceito, ela pegou uma espada para pôr fim à vida
das crianças, mas sendo mulher e dotada de pouca coragem e de ânimo fraco, não
foi capaz de ir em frente.
Eles
tomaram então o caminho do lago Dairbhreach, o lago dos Carvalhos, onde
detiveram os cavalos. Então, Aoife incitou os filhos de Lir a descer da
carruagem e se banharem no lago; eles obedeceram. Tão logo Aoife os viu dentro
d’água, tocou-os com uma varinha mágica e os transformou em quatro cisnes,
brancos e belos. E proclamou: “Sumam, filhos do rei, sua sorte perdeu-se para
todo o sempre; triste é a história a ser contada a seus amigos; os gritos de
vocês só serão ouvidos, para todo o sempre, entre os bandos de pássaros”.
E
Fionnuala disse: “Feiticeira, sabemos agora que o nome que te cabe é esse; você
nos deixou sem qualquer esperança de alívio. Mas embora nos tenha condenado a
seguir de onda em onda, em algumas ocasiões pousaremos em terra. Pediremos socorro
a quem nos vir; pediremos ajuda e tudo o mais que nos for benéfico. E embora
tenhamos de dormir sobre o lago, ao amanhecer nossas mentes estarão longe
daqui”.
E
os quatro filhos de Lir voltaram-se para Aoife, e Fionnuala disse: “Má ação
você cometeu, Aoife, e é uma traição à amizade ter nos destruído sem motivo; a
vingança por este feito se abaterá sobre você, e você pagará por isso, já que
seu poder de fazer o mal não é maior que o poder de nossos amigos de vingar o
que nos fez; estabeleça neste momento um limite para o tempo do encantamento
que você jogou sobre nós”.
“Farei
isso”, disse Aoife. “E é lamentável que você me tenha feito tal pedido. E o
limite será quando a Mulher do Sul e o Homem do Norte se encontrarem. E já que
você quis ouvir isso de mim, nenhum amigo seu ou qualquer poder será, ao longo
de suas vidas, capaz de tirá-los das formas em que vocês foram postos, até que
tenham completado trezentos anos no lago Dairbhreach, e trezentos anos em Sruch
na Maoile, entre a Irlanda e Alban,4 e ainda mais trezentos anos em Irrus
Dommann e Inis Gluaire; e só então vocês terão completado sua jornada de
libertação”.
Mas
então arrependimento apossou-se de Aoife e ela disse: “Uma vez que não há
qualquer outra ajuda que eu possa lhes dar agora, vocês conservarão o dom da
fala; e cantarão as doces melodias de Sidhe, capazes de adormecer os homens
sobre a Terra; e não haverá no mundo música igual. E os seus sentidos e a sua
nobreza continuarão com vocês, de modo que não será tão penoso permanecerem
como pássaros. E sumam de minha vista agora, filhos de Lir, com suas faces
brancas e seu irlandês gaguejante. É uma grande maldição que recai sobre débeis
crianças, a de serem arrastadas pelo vento inclemente. Novecentos anos para
estarem sobre as águas é um longo sofrimento para qualquer um lamentar. Eu
impus isso a vocês usando de traição, e o melhor que têm a fazer é obedecer
minhas determinações. Lir, que tantas vezes saiu vitorioso dos embates, tem
agora o coração enlutado; os gemidos do grande herói me incomodam, ainda que eu
tenha feito por merecer a sua raiva”.
Em
seguida, os cavalos de Aoife foram trazidos e atrelados à sua carruagem. Ela
partiu para o palácio de Bodb Dearg e foi recepcionada pelas pessoas notáveis
do lugar. E o filho de Dagda perguntou-lhe por que os filhos de Lir não estavam
com ela. “Vou contar-lhe a verdade”, ela disse. “É porque Lir não gosta de você
e não tem confiança em lhe entregar seus filhos, por medo de que possar querer
ficar com eles”.
“Fico
surpreso com isso”, disse Bodb Dearg, “porque amo essas crianças como se fossem
meus próprios filhos”.
Ele
pensou consigo que a mulher estava querendo enganá-lo e decidiu enviar
mensageiros para o norte, em direção a Sidhe Fionnachaidh. Ao vê-los, Lir lhes
perguntou porque ali estavam.
“À
procura de seus filhos”.
Mas
eles não foram em companhia de Aiofe ter com vocês?”.
“Não.
Eles não apareceram”, retrucaram. “E Aiofe disse que você é que não permitiu
que eles fossem para lá”.
Foi
com abatimento e tristeza que Lir ouviu esta notícia, pois compreendeu que
Aiofe havia matado ou dado algum outro fim a seus filhos. E ainda na madrugada
seus cavalos foram encilhados e ele tomou a estrada para sudoeste. E quando
aproximou-se das margens do lago Dairbhreach, as quatro crianças viram os
cavalos vindo em sua direção e Fionnuala disse: “Saudemos a tropa de cavaleiros
que vejo aproximando-se do lago. Eles são fortes e há tristeza em seus
semblantes. É a nós que procuram. Vamos nos aproximar da margem. Aodh, Fiachra
e meu belo Conn. Esses que estão chegando não podem ser senão Lir e seus
familiares”.
Lir
chegou à borda do lago e percebeu os cisnes com vozes humanas e lhes perguntou
como eram capazes do prodígio de falar.
“Vou
lhe contar, Lir”, disse Fionnuala. “Somos seus quatro filhos e assim ficamos
por obra de sua esposa e irmã de nossa mãe, tomada pelo ciúme”.
“Há
alguma maneira de vocês recuperarem a antiga forma?”, perguntou Lir.
“Não
há maneira”, respondeu Fionnuala. “Nem todos os homens do mundo poderiam nos
ajudar, antes de transcorrido o prazo do encanto, que é de novecentos anos”.
Quando
Lir e sua comitiva escutaram isso, soltaram três profundos gritos de dor e
desespero e começaram a chorar.
“Há
algum problema em vocês nos seguirem em terra, já que conservam seus sentidos e
sua memória?”, perguntou Lir.
“Não
temos o poder”, respondeu Fionnuala, “de viver com qualquer pessoa durante esse
período. Mas conservamos nossa língua, o irlandês, e temos a capacidade de
cantar doces canções; e isso é o bastante para consolar toda a raça humana que
ouvir essas canções. Detenham-se aqui esta noite e nós os encantaremos com
nossa música”.
Desse
modo, Lir e seu pessoal lá se detiveram para ouvir a música dos cisnes e
puderam dormir com tranquilidade aquela noite. Lir levantou cedo no dia
seguinte e fez ressoar este lamento:
“É
tempo de deixar este lugar. Não consigo dormir, embora tenha me deitado. O fato
de estar separado de meus queridos filhos atormenta meu coração. Ó meus filhos,
eu vos cobri com o manto da infelicidade, ao trazer Aoife, filha de Oilell de
Aran, para minha casa. Eu nunca teria seguido tal conselho se pudesse ter
previsto o que iria acontecer”.
E
exclamou:
“Ó
Fionnuala, encantador Conn, ó Aodh, ó Fiachra de belos braços; é desolado que
os deixo, que deixo para trás os limites da baía em que agora habitam”.
Em
seguida Lir dirigiu-se ao palácio de Bodb Dearg, onde teve uma calorosa
recepção. E Bodb Dearg o recriminou por não trazer seus filhos consigo.
“Ah,
como é grande meu desgosto”, disse Lir. “E não é simplesmente por não os trazer
comigo. Acontece que Aiofe, sua filha adotiva e tia deles, transformou-os em
quatro cisnes brancos no lago Dairbhreach, à vista de todos os homens da
Irlanda. Mas eles conservam seus sentidos, sua razão, sua voz e a capacidade de
falar irlandês”.
Bodb
Dearg deu um salto ao ouvir isso e sentiu que o que Lir dizia era a pura
verdade. E condenou com veemência Aiofe, dizendo:
“Essa
traição acabará por ser pior para você, Aoife, do que para os filhos de Lir.
Qual a pior forma possível que imagina a que eu possa condená-la?”, perguntou.
“Penso
que o pior de tudo seria me transformar numa bruxa vagando pelo espaço”, ela
respondeu.
“Pois
é a forma em que vou coloca-la agora”, disse Bodb. Tocou-a então com uma
varinha mágica e ela se transformou numa bruxa, e assim foi carregada pelo
vento, e assim ainda permanece e assim permanecerá até o fim da vida e dos
tempos.
Em
seguida Bodb Dearg e seu povo, os Tuatha de Danaan, dirigiram-se para as
margens do lago Dairbhreach, ali acamparam e ficaram ouvindo o canto dos
cisnes.
E
os filhos de Gael acostumaram-se a lá ir, do mesmo modo que os Homens de Dea e
outros de todas as partes da Irlanda, porque jamais se ouviu música tão
deliciosa para os ouvidos do que a música dos cisnes. E os cisnes habituaram-se
a todos os dias contar histórias e conversar com os homens da Irlanda, e também
com os seus antigos professores, os colegas de escola e os amigos. E todas as
noites costumavam cantar a música muito doce do Sidhe; e todos os que ouviam
aquela melodia dormiam em paz e tranquilidade, não importava as dificuldades ou
doenças que estivessem enfrentando; pois todos os que ouvem a música dos
pássaros ficam contentes e felizes depois disso.
E
aqueles dois agrupamentos, o dos Tuatha de Danaan e o dos filhos de Gael, se
estabeleceram em torno do lago Dairbhreach e ali permaneceram ao longo de
trezentos anos. E foi então que Fionnuala anunciou aos irmãos:
“Saibam,
transcorreu todo o tempo que tínhamos para passar aqui e só nos resta esta
noite”.
Grande
foi a tristeza dos filhos de Lir quando ouviram estas palavras, pois achavam
que ficar conversando com seus amigos e companheiros era o mesmo que ser outra
vez uma pessoa viva; e preferiam ficar ali no lago Dairbhreach, em vez de
enfrentar o frio e a penúria do mar de Maoil, ao norte.
E
pela manhã vieram até seu pai e seu pai adotivo para dar-lhes adeus; e
Fionnuala disse em tom de lamento:
“Adeus,
Bodb Dearg, homem a quem todos reverenciam. E adeus nosso outro pai, Lir da
Colina dos Campos Brancos. É chegado o momento de deixá-los, ó amados
companheiros. Nossa dor é porque não nos veremos mais. Daqui para a frente, ó
amigos do fundo de nosso coração, ó companheiros, é no tormentoso curso do
Maoil que estaremos, sem ter por perto a voz de qualquer pessoa. Trezentos anos
aqui e trezentos anos na baía dos Homens de Domnann; é uma lástima que o sal
das ondas do mar será o cobertor dos quatro belos filhos de Lir durante a
noite”.
E
disse para os irmãos:
“Ó
meus três irmãos de faces exangues, vamos agora deixar o lago, a multidão que
nos ama, dolorosa é a nossa partida”.
E
após esse lamento, os quatro levantaram voo, leves e graciosos, e assim
seguiram até Sruth na Maiole, entre a Irlanda e Alban. E tal foi a dor entre os
homens da Irlanda que eles decretaram que dali para a frente em todo o país
nenhum cisne seria morto, não importava a oportunidade que se oferecesse para
isso.
Foi
terrível para os filhos de Lir habitarem Sruth na Maiole. Quando contemplavam a
vastidão da costa diante de si, enchiam-se de frio e tristeza e pensavam que
tudo o que tinham passado até então era nada em comparação com o que iriam
passar naquele mar.
Uma
noite, enquanto lá estavam, uma grande tempestade desabou sobre eles e eis o
que Fionnuala falou: “Queridos irmãos, é uma pena que não estejamos preparados
para esta noite, pois é certo que a tempestade nos irá separar. E tratemos de
nos fixar em algum lugar onde possamos nos encontrar mais tarde, caso sejamos
separados durante a noite”.
“Deixemos
combinado”, disseram os outros, “que nos encontraremos no Carraig na Ron, o
Rochedo das Focas, pois todos o conhecemos”.
E
quando a meia-noite chegou, trouxe consigo o vento; o ruído das ondas cresceu
em meio ao clarão de relâmpagos, e uma violenta procela varreu com tamanha
força o lugar que os filhos de Lir ficaram espalhados pelo grande mar, e na sua
imensidão se extraviaram, sem que nenhum conseguisse saber por onde o outro
andava. Mas depois daquela tormenta uma grande quietude voltou ao mar e
Fionnuala ficou sozinha em Sruth na Maoile; e quando percebeu que seus irmãos
estavam desaparecidos, pranteou-os com grande aflição e com este lamento:
“Que
sofrimento para mim encontrar-me viva como estou; minhas asas congelam nos meus
flancos; por muito pouco o vento não me partiu o coração dentro do peito, com a
perda de Aodh.
“Trezentos
anos no lago Dairbhreach sem retomar minha própria forma não seria pior do que
o tempo que devo ficar em Sruth na Maiole.
“Os
três que eu amava, ai de mim! Os três que eu amava, que dormiam sob o abrigo de
minhas penas, não mais os verei até o dia em que os mortos voltarem para o
reino dos vivos.
“É
triste sobreviver a Fiachra, a Aodh e ao formoso Conn, e não ter nenhuma
notícia deles; meu desgosto é estar aqui para enfrentar todas as agruras desta
noite”.
Ela
passou a noite inteira no Rochedo das Focas, e até o nascer do sol atenta à
amplidão do mar, e por fim viu Conn aproximar-se, as penas empapadas e a cabeça
caída, e deu-lhe uma calorosa acolhida de todo o coração. Depois foi a vez de
Fiachra chegar encharcado, exausto e sem conseguir dizer uma palavra que os
outros pudessem entender, devido ao frio e às dificuldades porque passara. E
Fionnuala abrigou-o sob suas asas e disse: “Nos sentiríamos afortunados agora
se pelo menos Aodh pudesse estar conosco”.
Não
transcorrera muito tempo quando viram Aodh aproximar-se com a cabeça seca e a
plumagem majestosa. Fionnuala saudou-o com entusiasmo e colocou-o sob as penas
de seu peito, Fiachra sob sua asa direita e Conn sob sua asa esquerda, de modo
a cobrir todos com suas plumas. “Que tristeza, meus irmãos!”, ela exclamou.
“Foi uma noite terrível para nós, e muitas outras teremos à nossa frente antes
que isto tenha um fim”.
E
ali ficaram ainda durante muito tempo, enfrentando o frio e a penúria de Maoil,
até que por fim chegou uma noite como jamais haviam visto igual, castigada por
gelo, neve, vento e frio. E choraram e lamentaram a dureza de suas vidas, o
frio da noite, a intensidade da neve e a crueza do vento. E depois de terem
padecido com o frio durante um ano, uma noite pior ainda tombou sobre eles, no
meio do inverno. Estavam em Carraig na Ron, e a água congelou em torno deles;
como apoiavam-se sobre a rocha, seus pés, suas asas e suas penas enrijeceram e
os prenderam no solo, impedindo-os de se mover. E fizeram tão grande esforço
para liberar-se que deixaram a pele de seus pés, as suas plumas e as pontas das
asas atrás deles no rochedo.
“Que
aflição, filhos de Lir”, disse Fionnuala, “é triste o estado em que nos encontramos,
pois não conseguimos suportar o toque da água salgada e temos grilhões que não
permitem que nos afastemos dela; e se a água salgada penetrar em nossas
feridas”, prosseguiu, “ela provocará a nossa morte”. E continuou a se lastimar:
“É
deplorável a nossa condição esta noite; não temos pena para cobrir nossos
corpos; está frio e a rocha é áspera e irregular sob nossos pés nus.
“Como
foi cruel nossa madrasta ao lançar um feitiço sobre nós e nos jogar como cisnes
ao mar.
“O
local onde nos banhamos fica na crista da baía, na espuma da instável cabeleira
do mar; a cerveja a nós destinada é a água salgada da maré azul.
“Uma
filha e três filhos; é nas fendas do rochedo que nos abrigamos; é na dura rocha
que estamos, e deplorável é nosso estado”.
Entretanto,
voltaram à corrente do Maoil e a água salgada lhes parecia penetrante, áspera e
amarga, e não conseguiam escapar ou abrigar-se dela. E permaneceram na costa sob
todo aquele martírio até o dia em que suas penas voltaram a crescer, assim como
suas asas, e suas feridas ficaram inteiramente curadas. E eles então passaram a
voar todos os dias para a costa da Irlanda ou de Alban, mas tinham de voltar
para Sruth na Maiole a cada noite.
Um
dia eles chegaram à boca do Banna, ao norte da Irlanda, e viram um grupo de
formosos cavaleiros, com roupas de uma só cor, montados em bem-treinados
cavalos brancos puros-sangues, seguindo pela estrada que vinha diretamente do
sudoeste.
“Sabem
quem são aqueles cavaleiros, filhos de Lir?”, perguntou Fionnuala.
“Não
sabemos”, responderam, “mas talvez pertençam às tropas dos filhos de Gael ou
dos Tuatha de Danaan”.
Aproximaram-se
mais da costa para que pudessem saber quem eles eram, e quando os cavaleiros os
viram, vieram ao seu encontro para que conversassem.
E
os chefes do grupo eram dois filhos de Bodb Dearg. Aodh Aithfhiosach, o de
espírito sagaz, e Fergus Fithchiollach, o mestre do xadrez. A terça parte dos
cavaleiros do Sidhe os acompanhavam e eram os cisnes que eles procuravam havia
muito tempo, e quando se encontraram trocaram afáveis e carinhosas saudações.
Os
filhos de Lir pediram notícias de todos os Homens de Dea, e principalmente de
Lir, de Bodb Dearg e do seu povo.
“Estão
todos bem e juntos, num mesmo lugar”, eles disseram, “na casa de seu pai em
Sidhe Fionnachaidh, desfrutando da Festa do Tempo com alegria e felicidade, e
sem nenhuma inquietude, a não ser pela ausência de vocês, e por estarem sem
saber o que lhes aconteceu desde o dia em que deixaram o lago Dairbhreach”.
“Nossas
notícias não são as mesmas”, disse Fionnuala, “pois enfrentamos muitas
dificuldades, agruras e tormentos nas marés do mar até o dia de hoje”.
E
ela assim lamentou-se:
“Reina
grande alegria esta noite na casa de Lir! Há muita cerveja e muito vinho; no
entanto é numa fria morada que estão os quatro filhos do rei nesta noite.
“Não
dormimos mais em camas e nossos corpos são cobertos só de plumas; entretanto
muitas vezes no passado usamos vestes luxuosas e bebemos delicioso mel.
“Nossa
comida e nossa bebida são a branca areia e a amarga água do mar; mas
relembramos com frequência como sorvemos o néctar da avelã em copos agradáveis
aos nossos lábios.
“Nossas
camas hoje são as rochas nuas batidas pelas fortes ondas; mas muitas vezes nos
estendemos em leitos feitos da pluma do peito de pássaros.
“Ainda
que nossa missão seja agora a de atravessar a água congelada em meio ao rumor
das ondas, muitas vezes um grupo de filhos de reis nos seguiu até a Colina de
Bodb.
“O
que consumiu a minha força foi esse ir e vir ao sabor das correntes do Maoil,
como jamais me acontecera, e nunca repousar na relva macia sob a luz do sol.
“A
cama de Fiachra e a cama de Conn estarão sob o abrigo de minhas asas no mar.
Aodh tem seu lugar sob as penas de meu peito; estaremos sempre os quatro lado a
lado.
“Os
ensinamentos de Manannan sem nenhuma falsidade, a conversa de Bodb Dearg na
escarpa agradável; a voz de Angus, seus doces beijos; ao lado deles nada então
me afligia”.
Depois
disso os cavaleiros partiram para a casa de Lir e contaram ao chefe dos Tuatha
de Danaan tudo o que os pássaros haviam sofrido e o estado em que se
encontravam. “Não temos poder sobre eles”, os chefes disseram, “mas estamos
contentes que estejam ainda vivos, pois terão ajuda quando a maldição se
cumprir”.
Quanto
aos filhos de Lir, eles retornaram ao seu antigo lugar no Maoil e ali
permaneceram o tempo que precisavam permanecer. E então Fionnuala anunciou:
“Eis
que é chegado o momento de deixarmos este lugar. E é para Irrus5 Domnann
que precisamos ir agora”, ela disse, “depois de nossos trezentos anos aqui. Certamente
lá não haverá repouso para nós, nenhum pedaço de terra firme, nenhum abrigo
contra as tormentas. No entanto, como é chegado o momento de irmos embora,
partamos com o vento frio, de modo a não perdermos o rumo”.
Puseram-se
então a caminho e deixaram Sruth na Maiole para trás, seguiram até Irrus Domnann
e ali se fixaram, e foi uma vida de frio e miséria que levaram. E então chegou
o momento em que o mar congelou ao redor deles e eles não puderam mais se
movimentar; os irmãos se lamentavam e Fionnuala os confortava, pois sabia que
por fim haveria de chegar ajuda para eles.
E eles
permaneceram em Irrus Domnann até que se passasse o tempo que precisavam ali permanecer.
E então Fionnuala falou: “É chegada a hora de voltarmos para Sidhe
Fionnachaidh, onde nosso pai mantém sua morada em companhia de nosso povo”.
“Ficamos
felizes por ouvir isso”, eles disseram.
Então
voaram suavemente pelos ares até chegarem a Sidhe Fionnachaidh; e foi assim que
o encontraram vazio, sem nada à vista a não ser pequenas colinas e moitas de
urtiga. Não havia uma casa, um fogo, o calor de um lar. E os quatro
aproximaram-se uns dos outros, deram três gritos tristes e Fionnuala emitiu
este lamento:
“É
uma surpresa para mim este lugar; ele não tem uma casa, não tem uma moradia. Vê-lo
no estado em que está agora, ó infelicidade, traz amargura ao meu coração.
“Sem
animais domésticos, sem cães para a caça, sem mulheres, sem grandes reis; nunca
o vimos desse modo enquanto nosso pai aqui esteve.
“Não
copos nem xícaras, não há bebida na casa iluminada; não há jovens nem
cavaleiros; o estado em que está hoje é um presságio de dor.
“Ver
as pessoas do lugar no estado em que estão agora, ó tristeza, é uma angústia
para o meu coração! Está claro esta noite na minha mente que o chefe da casa
não vive mais.
“Que
tristeza ver a casa onde costumávamos ter música, brincadeiras e pessoas
reunidas! É uma grande mudança vê-la abandonada como está esta noite.
“A
extensão do sofrimento por que passamos enquanto vagávamos pelo mar, de onda em
onda, é maio do que tudo o que já foi relatado por qualquer outra pessoa.
“A
grama e os arbustos são raros neste lugar; não há ser vivente que nos conheça, e
se houvesse se espantaria de nos ver aqui”.
No
entanto, os filhos de Lir demoraram-se aquela noite na morada de seu pai e de
seu avô, onde tinham sido criados, e cantaram uma doce música do Sidhe. E levantaram-se
muito cedo na manhã do dia seguinte e foram para Inis Gluaire, e todos os
pássaros da região reuniram-se ao redor deles no lago Na-n Ean, o lago dos
Pássaros. E eles habituaram-se todos os dias a sair em busca de alimento para
os mais longínquos recantos do país, para Inis Geadh e para Accuill, local em
que Donn, filho de Miled, e sua gente se afogaram e foram enterrados, e para
todas as ilhas ocidentais de Connacht; e costumavam voltar para Inis Gluaire
todas as noites.
Foi
mais ou menos nessa época que aconteceu de eles encontrarem um jovem homem de
boa raça, de nome Aibric; ele logo se apercebeu dos pássaros e seu canto soou
doce aos seus ouvidos e ele encantou-se com as aves e elas se encantaram com
ele. E foi esse jovem homem que contou toda a história da gente que ali vivera,
dando-lhe boa ordem.
E a
história que ele contou sobre o que lhes acontecera foi a seguinte.
Foi
depois que a fé de Cristo e o abençoado Patrick6 chegaram à Irlanda,
foi então que o Santo Mochaomhog veio para Inis Gluaire. E na primeira noite
que ele passou na ilha, os filhos de Lir ouviram a voz de seu sino ecoar perto
deles. E os irmãos tiveram um sobressalto de horror quando a ouviram. “Não
conhecemos”, eles disseram, “essa voz fraca e desagradável que ouvimos”.
“É
a voz do sino de Mochaomhog”, disse Fionnuala, “e é por meio desse sino que
vocês serão libertados da dor e da miséria”.
Eles
ouviram a música do sino até as matinas acabarem de ser ditas, e em seguida
começaram a cantar a suave e doce música do Sidhe.
E o
Santo Mochaomhog ouviu-os e rogou a Deus que lhe revelasse quem cantava aquela
música e lhe foi revelado que eram os filhos de Lir que a cantavam. Na manhã do
dia seguinte, ele foi até o lago dos Pássaros, viu os cisnes à sua frente, e
aproximou-se deles na margem. “Vocês são os filhos de Lir?”, perguntou.
“Sim,
somos”, eles responderam.
“Dou
graças a Deus por isso”, ele falou, “pois foi por amor a vocês que vim para
esta ilha mais longínqua do que qualquer outra. E venham agora para terra firme”,
ele continuou, “e confiem em mim, pois desse modo serão capazes de fazer boas
ações e livrar-se dos seus pecados”.
Foram
todos eles então para terra firme e acreditaram em Mochaomhog, que os levou
para a sua própria casa; e eles acostumaram-se a ouvir a missa em sua
companhia. Ele conseguiu um bom ferreiro e pediu-lhe que fizesse para eles
correntes de prata brilhante e colocou uma corrente entre Aodh e Fionnuala, e
uma corrente entre Conn e Fiachra. E os quatro elevavam seu coração e alegravam
seu espírito, e nenhum perigo ou infortúnio que antes afligia os cisnes os
perturbava agora.
Naquela
época o rei de Connacht era Lairgren, filho de Colman, filho de Cobthach, e
Deoch, filha de Finghin, era a sua esposa. E essa era a aproximação do Homem do
Norte e da Mulher do Sul de que Aoife havia falado.
Deoch
ouviu falar dos pássaros e, tomada de grande desejo de possuí-los, pediu a
Lairgren que os trouxesse até ela, e ele respondeu que os pediria a Mochaomhog.
Ela
então jurou que não passaria mais uma única noite na companhia dele a menos que
os trouxesse até ela. E, decidida, deixou a casa. Lairgren mandou mensageiros
para trazê-la de volta, mas eles não conseguiram alcançá-la antes de ela chegar
a Cill Dun. Ela então voltou para casa com eles e Lairgren enviou mensageiros a
Mochaomhog para pedir-lhe os pássaros, mas não conseguiu.
Lairgren
foi então tomado por grande ira e dirigiu-se pessoalmente até onde morava Mochaomhog,
e perguntou-lhe se era verdade que ele lhe havia recusado os pássaros. “Sim, é
verdade”, respondeu. Ao ouvir isso, Lairgren levantou-se, agarrou os cisnes e
arrancou-os do altar, dois deles em cada mão, para leva-los para Deoch. Mas tão
logo colocou a mão neles, a sua plumagem caiu, e o que restou no lugar dos
cisnes foram três velhos magros e fracos e uma mulher também velha e fraca, sem
sangue ou carne.
Diante
dessa visão, Lairgren teve um grande sobressalto e fugiu do local. Foi então
que Fionnuala disse a Mochaomhog: “Aproxime-se e nos batize agora, pois em
breve a morte chegará para nós; e estamos certos de que não é menos penoso para
você separar-se de nós do que é para nós nos separarmos de você. E construa
depois a nossa tumba”, ela disse, “e faça repousar Conn ao meu lado direito e
Fiachra à minha esquerda, e Aodh diante de meu rosto, entre meus dois braços. E
reze a Deus do céu”, continuou, “para que você consiga nos batizar”.
Os
filhos de Lir foram então batizados e logo morreram e foram enterrados como
Fionnuala havia desejado; Fiachra e Conn, um de cada lado seu, e Aodh diante de
seu rosto. E uma pedra foi colocada sobre eles e nela foram gravados seus nomes
em Ogham; e ali foram pranteados e o céu recebeu suas almas.
E esse
foi o destino dos filhos de Lir.
__________________
NOTAS
1
Povo mágico que habitava sob a Terra. (Nota do Tradutor)
2
A nobreza. (Nota do Tradutor)
3 Palácio da Colina Branca, em gaélico. (Nota do Tradutor)
4
Atual Escócia. (Nota do Tradutor)
5
Irrus: ilha, em gaélico. (Nota do Tradutor)
6
São Patrício, apóstolo e padroeiro da Irlanda, onde viveu como missionário e
depois Bispo, entre 432 e 461, tendo falecido em 17 de março de 461, aos 74
anos de idade. (Nota por Isabel Pires)
***
A Cartomante
Machado de Assis
HAMLET observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era: apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou, interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Villela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Villela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Villela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Villela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Villela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Villela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Villela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Villela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Villela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Villela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pode ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Villela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Villela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Villela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Villela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Villela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Villela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Villela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Villela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras coisas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela em baixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Villela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobriu a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir.
Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Villela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Villela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Villela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Villela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
(In: Obra
completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994, vol. VII. Publicado originalmente
em 1884 na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, e posteriormente em Várias histórias, em 1896).
***
As formigas
Lygia Fagundes Telles
Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
– É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
– Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
– É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção.
– Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
– Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
– Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
– Ele disse que eram de adulto. De um anão.
– De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí – admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
– Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa, recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
– Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
– De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
– É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
– Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
– Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
– São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
– Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
– Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.
– Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
– Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
– Esquisito. Muito esquisito.
– O quê?
– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
– Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas.
Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:
– E as formigas?
– Até agora, nenhuma.
– Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
– Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
– Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
– Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
– Elas voltaram.
– Quem?
– As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
– E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… estão se organizando.
– Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
– Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
– Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
– Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
– Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
– Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
– Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
– Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.
– Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava…
– Que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
– Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
– Você está falando sério?
– Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
– Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
– Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.
– E para onde a gente vai?
– Não interessa, depois a gente vê.
Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.
(In: Seminário dos Ratos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1977]).
***
Onze de Maio
Rubem Fonseca
O café da manhã, o almoço e o lanche são servidos no
cubículo. É um enorme trabalho, levar marmitas e canecas até o cubículo de cada
um. Deve haver alguma razão para isso.
O cubículo tem cama, armário,
penico e televisão. A tv fica ligada o dia inteiro. Deve haver, também, alguma
razão para isso. Os programas são transmitidos em circuito fechado de algum
lugar do Lar. Velhas novelas, transmitidas sem interrupção.
Hoje um Irmão apreendeu o rádio
que o Baldomero estava montando. A filha levara-lhe as peças. Ouvir é
permitido, disse o Irmão, mas o lazer não pode ser uma fonte de injustiças,
aqui todos devem ter as mesmas coisas. Lá se foi o brinquedinho de Baldomero.
Baldomero, antes de se aposentar,
era engenheiro eletricista. Diz ele ter inventado uma técnica de distribuição
subterrânea de eletricidade, chamada sistema polidictioide. Eu sou, quer dizer,
era, professor de história, meus conhecimentos tecnológicos são mínimos, não
sei se o que ele diz é verdade, os velhos mentem muito. A aposentadoria de
Baldomero o deixou muito deprimido. Antes de vir para cá foi internado numa
clínica de adaptação ao lazer, onde, diz ele sem rancor, foi tratado com
eletrochoques. Com sua profissão, não devem ter sido os primeiros que tomou.
Viemos para o Onze de Maio na mesma época. Ele é um homem deprimido, qualquer
dia se mata. É comum os velhos se matarem, devido à melancolia do ócio, à
solidão, à doença. Noventa por cento das pessoas de mais de sessenta anos
sofrem de alguma doença.
Estou sentado no pátio com
Baldomero e um sujeito chamado Pharoux, que foi policial. Pharoux não tem um
olho, perdido num distúrbio de rua, segundo consta. É um homem de poucas
palavras, desconfiado, magro, de rosto vincado por fundas rugas. O olho que lhe
falta está tapado por uma venda negra. Parece um pirata de novela, tenho
vontade de lhe dizer isso, mas sei que ele não tem senso de humor e calo-me.
Do lugar onde estou vejo a
chaminé do forno de lixo, jogando fumaça para o ar. A fumaça é negra. Que lixo
será que eles queimam? Restos de comida, papéis sujos? A fumaça fica branca.
Acabaram de escolher um novo
Papa, digo.
Pharoux me olha sério. Rio, mas
ele continua sério. Um homem de personalidade forte e maus bofes.
Nos muros do pátio está escrito:
A Vida é Bela. Está escrito também: Chegou a Hora da Colheita.
Sabe o que a gente vai colher?,
pergunto para Baldomero. Marmelada mastigada, diz Baldomero.
Bocejos, eu digo. Eu ia dizer:
morte, essa é a colheita que nos resta. Mas um velho inerte, preguiçoso e
entediado só pode abrir a boca para bocejar.
Bocejo, abro a boca o mais que
posso. Pergunto a Baldomero se ele sabe quantos somos no Lar Onze de Maio.
Ele não sabe.
Ninguém sabe. Talvez o gordo
diretor saiba. No meu andar são sessenta cubículos.
Alô Guilherme, digo enfiando a
cara no primeiro.
Guilherme ri para mim, mostrando
as gengivas cinzentas. Deitado na cama, vê televisão.
Tenho uma lista com os nomes dos
ocupantes de todos os cubículos da minha ala. Passei um dia inteiro fazendo a
lista. São sessenta cubículos. Ninguém sabe que tenho essa lista.
Vou em um por um. Alô Moura.
Mas não é o Moura que está lá,
sentado no penico, vendo televisão.
É um outro velho. Diz que o seu
nome é Aristides. Marco a data de entrada de Aristides. E a data da saída de
Moura.
Moura durou um mês. Mas antes de
desaparecer e dar o seu lugar a outro interno, Moura começou a se arrastar
pelos corredores, sem rumo. Não ouvia mais o que lhe diziam, não fazia a barba
e afinal não se levantava da cama alegando fraqueza e dor nas pernas.
O que vocês tanto conversam?,
pergunta o Irmão.
Eu e o Pharoux estamos sentados
no mesmo banco no pátio. Não sei por que, quando vi Pharoux sentei-me ao lado
dele.
Não estamos conversando, diz
Pharoux.
Por que vocês não estão vendo
televisão?, pergunta o Irmão gentilmente. Já passou da hora do recreio no
pátio.
Os Irmãos nunca perdem a
paciência. Não gosto de televisão, diz Pharoux.
Vamos, vamos, diz o Irmão
amavelmente, pegando meu braço e me conduzindo para o cubículo, está na hora de
descansar.
Estou deitado no cubículo. Não há
meio de desligar a maldita televisão. O aparelho é ligado e desligado por
controle remoto, do mesmo lugar de onde a imagem é transmitida.
O Irmão me trouxe para o quarto
como se eu fosse um velhinho. Como se fosse um velhinho, deixei-o fazer isso.
Ele não queria que eu conversasse com Pharoux. Com Pharoux ele não se meteu.
Medo do Pharoux? É bem verdade que se o Irmão não queria que nós conversássemos
e se eu já tinha sido afastado, era melhor para ele deixar o Pharoux em paz,
como deixou.
Pharoux disse que não estávamos
conversando, mas não era verdade. Nós estávamos conversando.
Eu só durmo de noite, havia dito
Pharoux.
Eu durmo de dia e de noite. Basta
deitar que logo durmo, respondi.
É isso que eles querem. Quanto
mais você dorme mais você vai querer dormir. Um dia não acorda mais.
O Pharoux tinha acabado de dizer
isso quando o Irmão chegou.
O Diretor me chama para ir vê-lo.
O escritório dele fica numa torre da altura da chaminé do forno do lixo, mas do
outro lado.
O Lar é um edifício de dois
andares, dividido em oito alas de sessenta cubículos cada. Isso é uma dedução,
tenho acesso apenas a uma das alas, a minha, no segundo andar. São quatro alas
no primeiro andar e quatro alas no segundo, possivelmente todas as alas com
sessenta cubículos, como a minha. Acho que é isso. Um quadrado. No meio fica o
pátio, de um lado a chaminé e do outro a torre do Diretor. Um edifício feio e
triste.
O Diretor é um homem gordo e
jovem. Com exceção dos internos, todos são jovens no Lar Onze de Maio.
Como vai o senhor?, pergunta o
Diretor.
Ele me chama de senhor para
fingir um respeito que na verdade não sente. Eles são todos muito
bem-treinados.
Vou bem.
Há alguma coisa que o senhor
queira dizer, alguma queixa? Não, nenhuma queixa.
O Diretor levanta-se, depois de
pegar um papel em cima da mesa. Não sei como ele cabe na sua cadeira, que tem
em cada lado dois ressaltos altos para apoio dos cotovelos. Sua bunda é muito
grande. Fico alerta esperando que ele se vire de costas para eu poder olhar a
sua bunda grande e mole. Minha bunda é seca e solta, como a de um gato velho.
Tenho aqui umas informações… Ele
finge ler o papel.
O senhor não tem seguido o
Regulamento do Lar. Veja bem, o Regulamento é feito para proteger os internos,
foi elaborado por médicos e psicólogos para o bem de todos, entendeu? E no
entanto noto aqui que o senhor, na hora do repouso vespertino, fica andando
pelos corredores, visitando outros internos nos seus quartos… Isso não é bom
para o senhor, não é bom para ninguém, entendeu? É contra o Regulamento.
Pensando bem tenho uma queixa,
digo.
Uma queixa? Ora, ora, por favor,
apresente-a, por favor. A comida. Não é boa e me parece pouco nutritiva.
É a mesma comida que se come nos
quartéis, nas fábricas, nas escolas, nas cooperativas, nos ministérios, em
todos os lugares. O país atravessa uma situação difícil. O senhor acha que os
aposentados devem comer melhor do que aqueles que produzem? Não acha, é claro.
Além do mais a comida servida aqui no Onze de Maio segue os requisitos
estabelecidos pelo dietista, tendo em vista as exigências orgânicas peculiares
dos internos.
O Diretor volta-se, vai para a
sua cadeira. Não sei como ele consegue se enfiar na cadeira. Também entrar na
roupa deve ser difícil.
Sopas ralas, digo.
Nem todos têm muitos dentes, como
o senhor… Uma comidinha macia é mais fácil de ingerir… Temos que colocar acima
de tudo o bem-estar da maioria. A maioria, entendeu, a maioria.
Falou uns dez minutos sobre as
necessidades da maioria: descanso e papinhas. Terminou com uma advertência. Ele
não precisa mostrar sua verdadeira face, sei algo sobre história, sei quando
estou sendo ameaçado. Não foi isso o que ele disse, quem disse, ou melhor,
pensou, fui eu. Para falar a verdade a frase não é minha, apenas estou citando,
mas não me lembro mais da fonte. Ecmnésia. O Diretor disse:
Não quero o senhor se metendo
mais no quarto dos outros, está bem? Do contrário, serei obrigado, infelizmente
e contra a minha vontade, a suspender o seu café da manhã. É o Regulamento.
Tenho muitos dentes, mas são
postiços, quase todos, e balançam na minha boca, precariamente. Mas é melhor
ter dentes postiços do que nada. Reconheço.
Outra coisa que conversei com
Pharoux:
Qual a coisa que você mais gosta
de fazer? Aquilo que mais lhe interessa, se é que você ainda tem algum
interesse, perguntei. E ri, mas ele não riu.
Comer, disse Pharoux.
Mas a comida aqui não é boa, eu
disse.
Não é, disse Pharoux. Mas eu como
tudo que me dão, pra ficar vivo. Se você não come, morre.
No Lar não há nenhum médico que
possa atender os internos quando eles estão doentes. Qualquer dos Irmãos nos
medica, sempre dando um analgésico, seja qual for a nossa mazela. Eu costumo
ter problemas intestinais, diarreias fortes que surgem inesperadamente. Quando
fui me queixar, o Irmão me deu uma aspirina.
Você não ficou bom, mas vai
ficar. Enquanto isso, use o vaso noturno.
Eu podia ter morrido sentado no
penico, se Cortines não me arranjasse um remédio. Cortines é cheio de truques.
Ele foi professor de educação física. Sempre que entro no seu cubículo ele está
fazendo ginástica. Não sei onde ele arranja os remédios e a comida extra. Ele é
engraçado.
Um jovem não precisa fazer
ginástica, ele disse, um dia em que o surpreendi fazendo flexões abdominais no
seu cubículo.
Mas um velho precisa. Quanto mais
velho, mais ginástica. Não é para viver mais, é para ficar de pé, enquanto
vivo.
Meu azar, continuou ele, foi ser
incapaz de lidar com os membros da hierarquia superior da administração
esportiva. Então me colocaram aqui, para ir apagando como uma lamparina. Mas
vou ficar muito tempo aceso.
Cortines dá uma gargalhada. Devem
ser os músculos que fazem ele rir tão alto.
Cortines é inteiramente careca.
Raspa cuidadosamente, todos os dias, os poucos cabelos que tem, na hora de
fazer a barba. Seus braços e seu pescoço são duros, secos, afiados.
Esta noite sonhei que era o
Malesherbes. Encaminhava-me tranquilamente para a guilhotina, depois de ter
tido o cuidado de dar corda no relógio. Queriam me matar porque insistia em
chamar Luís XVI de Majestade. Mas eu assim o chamava não porque o respeitasse
ou gostasse dele, mas porque sendo velho acreditava ser meu direito ir contra
os detentores do poder, que estavam com a faca e o queijo na mão. Melhor
dizendo, a guilhotina e o canhão na mão. No sonho.
Por que sonho com Malesherbes, e
não com Getúlio Vargas, ou dom Pedro I ou Tiradentes?
Pharoux carrega com ele um
estilete de aço. Que raios quererá esse maluco com tal arma? Pharoux tem sempre
um ar hostil, sua cara parece dizer: odiar é o mais longo e o melhor dos
prazeres.
Alguém já disse que o ser humano
ama às pressas, mas odeia devagar. Quem será que Pharoux odeia? Não devia ser
lá muito bom cair nas garras dele no seu tempo de policial.
A história da França é mais
interessante do que a história do Brasil, é isso?
A experiência (e a própria
história) ensinam que os povos e os governos nunca aprendem nada com a
história. Assim, também nós, os velhos, nada aprendemos com a nossa experiência.
É uma frase idiota essa: se a juventude soubesse e a velhice pudesse. Por que
será que nós os velhos não podemos? Porque não deixam, só por essa razão.
Digo isso para Baldomero. Mas ele
não presta atenção. Sua depressão está cada vez maior. Cortines e Pharoux são
mais atentos, mas são muito ignorantes. Conversar com eles não tem muita graça,
eles não entendem o que digo. Um dia Pharoux me perguntou o que era a história
e eu respondi, brincando e citando não me lembro mais quem (ecmnésia, minha memória
já não é mais a mesma), que a história é algo que nunca aconteceu, escrito por
alguém que não estava lá. Ele disse que não entendia. Se não aconteceu, como é
que é história?, perguntou. Pharoux é assim, sem imaginação. Mas quando falei
que o Diretor havia me chamado ele ficou muito interessado.
O que você falou para ele? Nada.
Não falei do seu estilete.
Se falar morre, velho idiota, ele
disse.
O interno que está há mais tempo
no Lar, na minha ala, é Cortines. Seis meses. Todos os outros que estavam há
mais tempo desapareceram. Morreram? Foram transferidos? Ninguém se incomoda com
a rotatividade dos internos, afinal aqui dentro não se fazem amigos. Apenas eu
acompanho secretamente, nos quatro meses que estou aqui, a entrada e saída dos
internos. Deformação profissional.
Perguntei a um dos Irmãos, não me
lembro o nome, eles são todos iguais e nunca ficam muito tempo na mesma ala, o
que faziam com o corpo dos que morriam. Ele ficou muito surpreendido com a
pergunta. E desconfiado. Como? O que você quer dizer com isso?
Muitos aqui não têm família ou se
têm os parentes não se interessam por eles, quase ninguém recebe visitas. Na
nossa ala só o Baldomero foi visitado pela filha, e assim mesmo uma vez só.
Quando morrem tenho a impressão que o desinteresse continua, e como disse,
muitos não têm parentes, e assim…
Assim o quê?
Quer dizer, estou pensando no meu
caso, eu não tenho ninguém, se morrer quem vai me enterrar?
O Irmão pareceu aliviado.
O Instituto, é claro. As despesas
correm por conta do Instituto, não se preocupe com essas coisas. Vamos, vamos,
veja a televisão, divirta-se, não fique aí imaginando coisas tristes,
preocupando–se à toa.
Entrou comigo no meu quarto e
ficou em pé assistindo a dez minutos da novela.
Antes de sair ficou me
observando, da entrada do cubículo. Fingi prestar atenção ao vídeo até ele ir
embora.
Os cubículos não têm porta. Os
velhos são surdos e as televisões são colocadas em volume muito alto. Como é um
programa único, o som é envolvente, brota de todos os cantos, mas isso não
impede que os internos durmam logo que entram no seu cubículo e olham a tela
por alguns minutos.
Estou carregando debaixo da minha
camiseta os papéis com os nomes e as datas de entrada e de saída dos internos
da minha ala. Não sei por que faço isso. De vez em quando eles fazem limpeza
nos cubículos e mandam o interno sair. Vão sempre dois Irmãos. Eles fuçam todos
os papéis, apreendem os livros, não é limpeza nenhuma, é uma fiscalização, uma
espécie de espionagem.
Todos os internos morrem à noite.
Lins tinha uma fratura na perna (nosso equilíbrio é precário e nossos ossos são
fracos), e se arrastava da cama, que é baixinha, para o penico, ou então
defecava e urinava na cama mesmo. Passei uma tarde na porta do seu cubículo e
lá de dentro saía um nauseante cheiro de merda e gangrena. Lins estava deitado
na cama vendo a televisão. Na manhã do dia seguinte o cubículo estava vazio e
cheirando a desinfetante.
Quando eu vejo alguém tossindo e
gemendo, ou então muito quieto na sua cama, já sei que de manhã seu cubículo
estará vazio. Não estou dizendo que foram mortos ou coisa parecida, o Instituto
não faria uma coisa dessas. Sou velho e sei que todo velho é ligeiramente
paranoico e assim não quero inventar perseguições e crimes inexistentes. Quem
foi que disse que a história é um relato mentiroso de crimes e tragédias? Já
estou me perdendo, deve ser a arteriosclerose, começo a pensar uma coisa e meu
pensamento divaga. E como anda ruim a minha memória! Ecmnésia. Ah, sim, os
papéis debaixo da minha camisa. Não, não é isso. É o fato de os velhos serem
internados pra morrer. Talvez sejam encaminhados para aqui os velhos que estão
caquéticos, com uma curta expectativa de vida. Isso explica por que todos morrem
em tão pouco tempo. Ou será outra coisa, um projeto mais amplo, uma política
para todos nós?
Enfim, tenho pouco tempo.
Esse pensamento faz o meu corpo
insensível, como se eu já não existisse mais. Não sinto dor nem sinto tristeza,
apenas uma espécie de apreensão de quem já não tem mais corpo e lhe falta essa
noção sólida de que habita uma forma, uma estrutura, um volume. Como se eu
perdesse a matéria e ficasse só espírito, ou mente. Isso é impossível. Mas foi
o que eu senti, quando sem dores ou outras agonias e anúncios do meu fim,
suspeitei pela primeira vez que talvez vivesse apenas mais alguns meses.
Agora faço a minha ronda com
cautela. Os Irmãos, apesar de jovens, são preguiçosos, e após o almoço gostam
de descansar, e mesmo aqueles que estão de serviço fazem isso. Eles também têm
televisão no quarto e assistem a outros programas que não são os transmitidos
para nós. Sei, por perguntas que faço inocentemente, que eles também dormem em
frente ao vídeo. Televisão é muito interessante, descontando o sono e o
esquecimento. Não consigo me lembrar das coisas que vejo.
Baldomero não está bem. Quando
entro no seu cubículo ele me recebe falando palavras incompreensíveis. Magnete
Magneticusque corporibus… Aepinus, Faraday, Volta, Ampère…
Você está bem, Baldomero?, pergunto.
Ohmmm… Ohmmm, ele responde,
zumbindo de boca fechada como se fosse um besouro velho. Não resisto e caio na
gargalhada. Quanto mais rio mais ele zumbe. Como o ser humano é cruel!
Baldomero endoidou e aqui estou eu rindo da sua loucura. Depois ele aponta para
a televisão e grita Jenkins, Jenkins!
Jenkins! Seus gritos acabam
chamando a atenção dos Irmãos. Querem levá-lo para a enfermaria mas ele
resiste. Seu corpo parece galvanizado (sem trocadilho, já não acho mais graça
no que está acontecendo) por uma força inesperada. São precisos três Irmãos
para o subjugar. Afinal ele é conduzido para a enfermaria.
Sei que serei punido por ter sido
encontrado no cubículo de Baldomero. Mas isso não me incomoda. O que me deprime
é eu ter feito pouco de Baldomero. Choro de arrependimento. Sei que meu choro
copioso é mais um sintoma da minha velhice; estou infeliz, tenho medo e sinto
uma insuportável vontade de comer um bombom de chocolate, que faz aguar minha
boca. Sem parar de chorar, salivo pelos cantos dos lábios. Olho meu rosto babão
e chorão, no espelho do cubículo: uma figura ao mesmo tempo ridícula e
repulsiva. Sou eu realmente? Foi para isso que vivi tantos anos?
O lanche é apenas uma xícara de
café com um pedaço de pão. É servido às dezessete horas. Se por qualquer motivo
eu demorar algum tempo a dormir (o que é raro) a fome fica insuportável e sonho
com o café da manhã que é servido às seis horas. Café puro com pão.
O Irmão com o carro do café passa
de manhã pela minha porta e não para. Tenho vontade de correr atrás dele e
pedir um pedaço de pão. Mas me contenho. Chega de migalhas, de degradação.
Estou sentindo raiva, quem sente raiva não precisa tomar café, não precisa de
pão.
O Diretor me chama ao gabinete.
Por fora continua a mesma pessoa paciente de sempre, é a sua máscara. Mas sei
que me detesta, é uma percepção sutil, que penetra o seu disfarce. Baldomero
faleceu. Um ataque cardíaco, diz o Diretor.
Sou obrigado a lhe dizer que
acreditamos que você tenha colaborado para a crise fatal, diz o Diretor.
Colaborado como?
Baldomero era uma pessoa
excitável. Sua ida ao quarto dele, em hora imprópria, deve ter-lhe feito mal, a
saúde dele era precária. Sou forçado a dizer-lhe que o seu comportamento
irregular está nos deixando preocupados.
Baldomero estava morrendo de fome
e tristeza como todos nós aqui, digo.
Fome? Fique sabendo que a nação
gasta uma parte substancial de seus recursos com inativos idosos. Se
quiséssemos manter todos os aposentados bem-alimentados e felizes, através de
custosos programas de medicina preventiva, de terapia ocupacional, de recreação
e de lazer, todos os recursos do país seriam consumidos nessa tarefa. O senhor
não sabe que o país atravessa uma crise econômica das mais graves em toda a sua
história? Já fomos um país de jovens e aos poucos estamos nos tornando um país
de velhos.
Os jovens envelhecem, eu digo. O
senhor vai envelhecer um dia.
O Diretor me olha algum tempo.
Seu interesse por mim parece ter acabado, como se eu fosse um caso perdido.
Comporte-se, diz ele, afável, mas
desinteressado, me dispensando com um gesto vago.
Avisaram a filha de Baldomero?,
pergunto ao sair. Filha? Oh sim, diz o Diretor, distraído.
No almoço tomei uma reles sopa.
Mesmo assim estou com diarreia. Peço remédio a um Irmão. Ele demora muito, mas
afinal traz uma cápsula e se retira após certificar-se de que eu a ingeri.
Agora você vai ficar bom, ele
disse.
A cápsula que me trouxe é diferente
das pílulas que costumo tomar. Por isso fingi que a tomei, deixando-a escondida
na mão.
Mostro a cápsula para Pharoux.
Pergunto se ele já havia visto uma igual, entre os remédios que nos dão.
Ele não responde. Diz que quer
ficar só. Nós, os velhos, temos tendência a misantropia. Além disso, Pharoux é
desconfiado, suspeita de mim.
Procuro Cortines. Como sempre,
ele está fazendo ginástica. Cortines abre cuidadosamente a cápsula. Dentro há
um pó branco. Cortines põe uma quantidade muito pequena na ponta da língua.
Pra mim, isso é veneno, diz
Cortines.
Como é que você sabe? Cortines
não sabe. Desconfia.
Sob a sua cama, Cortines tem pão
e queijo. Comemos os dois. Ele não quer me dizer onde arranja os suprimentos.
Deve furtá-los. Cortines, enquanto comemos, fica perto da porta, para vigiar os
Irmãos.
Cuidado, aí vem um deles.
Irmão: O que é que você está
fazendo aqui? Eu: Vendo televisão.
Irmão (muito afável): Ah, muito
bem, é assim que se faz. Televisão é uma coisa muito boa, distrai, educa, eu se
pudesse via televisão o dia inteiro, como vocês. Como é mesmo o seu nome?
Eu: José.
Irmão: Olha, José, você devia ver
televisão no seu próprio alojamento. Você está aqui há muito tempo?
Eu: Não.
Irmão: Mas eu o procurei há meia
hora atrás e não o encontrei. Eu: Estava no pátio vendo as árvores.
Irmão: Ótimo, ótimo, as árvores
são coisas para serem vistas e admiradas.
Temos mais de dez árvores em
nosso pátio, orgulhamo-nos disso. O tempo todo eu mantinha os restos da cápsula
na mão.
Irmão: E os seus intestinos?
Melhoraram? Eu: Já estou bom.
Irmão: Mas não deve interromper o
tratamento. Na sua ficha está escrito que você tem periodicamente essas crises
de diarreia.
O Irmão tira de uma caixinha uma
cápsula igual a que eu tinha escondida na mão. Coloca água na caneca de Cortines
e me dá a caneca e a cápsula. Já tenho uma cápsula na mão, isto me põe trêmulo,
não conseguirei enganá-lo. Ele me observa, atento.
Irmão: Vamos, vamos, não irá lhe
fazer mal.
Não me resta outra saída senão
tomar a pílula. Se for veneno deve ser de ação lenta e cumulativa, do contrário
eles não iriam me dar várias cápsulas para tomar. Uma só não me mataria.
Tomo a cápsula ante o olhar
apavorado de Cortines. O Irmão me leva para o meu cubículo.
Sei que vou perder o lanche. Mas
não vou morrer, por enquanto.
Foi um absurdo terem me
aposentado. Foi tudo tão de repente. Eu ainda poderia ter ensinado durante
muitos anos. Meus alunos adolescentes eram, na maioria, consumados imbecis, mas
sempre existiam uns dois, em cada classe, para quem valia a pena o esforço de
preparar e dar a aula. Nunca entendi por que eram tão poucos aqueles que se
interessavam por história. É verdade que a maioria não queria saber de coisa
alguma, meus colegas das outras disciplinas também se queixavam da mesma
apatia. Mas a culpa, é claro, não era apenas dos alunos, condicionados e
despersonalizados. Ontem sonhei que estava dando aula e no sonho discursava
sobre o que era Bom e o que era Ruim para a Humanidade. Eu dizia que o Bom era
o Poder e o Mau, o Ruim, era a Fraqueza, os fracos deviam ser ajudados a
perecer. Mas subitamente eu não estava mais numa sala de aula, havia uma
guerra, em que os velhos, os doentes, eram mortos e queimados num forno e a
chaminé do forno era igual à do Lar Onze de Maio. Um pesadelo nietzschiano.
Até agora a cápsula não me fez
mal. Também não curou a minha diarreia. Quero pensar com lógica e isenção. Sei
que depois de quase seis meses internado aqui, inerte, preguiçoso e entediado,
mal-alimentado, solitário e melancólico, tenho que tomar muito cuidado com os meus
pensamentos. O ser humano necessita de segurança, dignidade, bem-estar e
respeito, mas aqui só existe miséria e degradação. Sinto-me pior do que se
estivesse louco numa camisa de força e meus pensamentos devem sofrer com isso.
Deduzo que a cápsula não me fez mal porque não era veneno. Nesse caso ela seria
realmente um remédio para a diarreia e eu deveria ter melhorado, o que não
aconteceu. Neste instante estou sentado no penico, a terceira vez hoje, e
minhas fezes são uma água rala, com cheiro de maresia. Hei, hei, digo para o
meu penico, cuidado com a falsa lógica desse seu raciocínio. É tão mais correto
e simples concluir, com base nas evidências existentes, que eu não tenho
condições de dizer se a cápsula é, ou não, um veneno de efeito cumulativo, como
supus desde o início. Aguardo, preocupado, novos dados.
Tenho vontade de ver Pharoux e
Cortines. Mas receio sair do meu cubículo. Perdi o café da manhã, mas eles não
me tiraram o lanche. Por quê?
À noitinha o Irmão vem com o
café, o pão e o remédio. Eu já havia notado que o café da tarde tinha gosto de
café requentado. Os Irmãos haviam admitido que o café era feito apenas uma vez,
pela manhã. Mas aquele gosto seria mesmo de café velho? Por que faziam eles
questão de que eu o tomasse?
Quando o Irmão se afasta, cuspo o
café e a cápsula no penico, para onde vai também o resto da caneca.
Não vou deixar eles me
envenenarem.
Esta noite não sou dominado, como
sempre acontece, por um sono turbulento. Já estou deitado, olhando para a
maldita televisão há mais de duas horas, e o sono não veio. O gosto estranho do
café da noite é de algum entorpecente, concluo excitado. Há muito que eu não me
sentia tão bem. Estou derrotando os Irmãos!
Preciso falar com Pharoux, com
Cortines. Eles podem me ajudar. A vigilância à noite deve diminuir, eles
provavelmente supõem que estamos todos estuporados em nossas camas.
Esgueiro-me pelo corredor,
carregando o penico cheio. Se for apanhado direi que estou indo esvaziar o
penico na grande sentina que fica no fundo do corredor. Passo pelo cubículo que
antes era ocupado por Baldomero. Como os cubículos não têm porta, vejo,
imediatamente, iluminado pela fraca lâmpada de luz amarelada do teto e pelo
reflexo azul da tv, deitado na cama, um homem magro, de cabelos brancos longos
e ralos. Quando me vê, ele se levanta da cama, o corpo tremendo, e inicia uma
grotesca dança: bate com os pés no chão, sacode os braços e relincha como se
fosse um cavalo.
Tenho medo que o barulho desperte
a atenção dos Irmãos. Tapo a boca do velho com minhas mãos. Ele se aquieta
docilmente e fica coçando as gengivas nas minhas mãos, chupa os meus dedos. Sua
saliva é grossa e fedorenta. Sinto nojo, limpo as mãos na parede. Ele emite
pequenos sons fininhos como se fosse uma corneta em surdina, e continua a
sapatear, mas não tão espalhafatosamente.
Sofro de uma doença rara, ele
diz. Meu nome é Caio, mas pode me chamar de Sapateador, é assim que todos me
conheciam.
Minha mente senil me pregando
truques; quase havia esquecido Pharoux. Ponho o Sapateador na cama, digo a ele
que fique calado, soprando a sua cornetinha bem baixinho. Ele me dá a impressão
de estar chorando, mas estou acostumado a choro de velho e tenho o que fazer.
Os corredores estão vazios. Mesmo
assim caminho com toda a cautela até chegar ao cubículo de Pharoux.
Pharoux dorme de boca aberta. A
venda do seu olho vazado saiu do lugar e na órbita vazia há um tecido vermelho
escuro, como uma casca de ferida não de todo cicatrizada.
Toco no ombro de Pharoux delicadamente.
Pharoux, Pharoux, digo bem perto do seu ouvido cabeludo e fedorento. Sacudo-o
com força. Sem acordar, ele me dá um soco, que pega de raspão. Não adianta.
Está dopado, não há dúvida. O mesmo deve ocorrer com Cortines.
Volto para o meu cubículo. Nunca
me senti tão bem na minha vida. Acho mesmo que a minha diarreia acabou. Sou
mais inteligente do que eles. Já sei por que ninguém dura mais de seis meses
aqui. Se o interno não morrer das humilhações e privações, do desespero e da
solidão, eles o envenenam e matam. A chaminé! Aquele cheiro é de carne
queimada! Nós não valemos a comida que comemos, nem um enterro decente. Não
consigo sopitar a minha alegria. Não sinto medo, nem horror, dessas descobertas
atrozes. Estou vivo, escapei, com minhas próprias forças, do destino torpe que
eles armaram para mim, e isso me enche de euforia. Minha mente está cheia de
lembranças e reminiscências históricas dos grandes homens que lutaram contra a
opressão, a iniquidade e o obscurantismo.
Se nos unirmos, todos os velhos
do mundo, poderemos mudar essa situação. Podemos compensar nossa fraqueza
física com a astúcia. Sei como foram feitas todas as revoluções.
Passei a noite com esses doces
pensamentos.
Os internos que quiserem, e são
poucos, podem ficar no pátio uma hora por dia, para apanhar sol. No pátio somos
muito vigiados pelos Irmãos. Sempre que percebem que internos estão conversando
em algum banco eles se aproximam com algum pretexto, como saber da nossa saúde,
ou falar do tempo, mas o que objetivam é descobrir do que estamos falando.
Sabendo disso, sentei-me perto de Pharoux e fingi que cochilava, virando e
caindo o corpo para o lado, de forma que o Irmão que estava no pátio não visse
a minha boca.
Não olha pra mim, que o Irmão
está nos vigiando, digo para Pharoux.
Pharoux permanece impassível, mas
sei que ele tem uma audição quase perfeita. Ele não pode falar, seu rosto está
muito visível.
Para demonstrar que me ouve ele
abre e fecha a mão que tem sobre a perna, várias vezes, em intervalos
irregulares.
Conto a Pharoux todas as minhas
suspeitas. Falo da minha ida ao seu cubículo à noite e do seu estado de torpor,
da cápsula envenenada e do forno crematório. Peço que não tome o café da noite
e digo que irei visitá-lo. Eu queria falar mais, porém Pharoux levanta-se e sai
antes que eu acabe. Talvez fizesse isso para evitar suspeitas, eu já lhe falara
o essencial. Talvez fosse me denunciar, outra hipótese. Afinal ele havia sido
polícia, treinado a defender a autoridade constituída, como um cão de guarda.
Eu devia ter procurado Cortines e não Pharoux. Na verdade Pharoux me metia
medo, ele me dava a impressão de ser capaz de todas as traições e maldades.
Aguardo a chegada da noite num
estado de excitação e alegria que há muito não sentia.
Onde está o velho que eu era?
Minha pele continua um tecido seco despregado dos ossos, meu pênis uma tripa
árida e vazia, meus esfíncteres não funcionam, minha memória só recorda o que
ela quer, não tenho dentes, nem cabelos, nem fôlego, nem força. É assim o meu
corpo, mas eu não sou mais o chorão envergonhado, amedrontado e triste, cujo
maior desejo na vida era comer um bombom de chocolate. Aquele ser velho me foi
imposto por uma sociedade corrupta e feroz, por um sistema iníquo que força
milhões de seres humanos a uma vida parasitária, marginal e miserável. Recuso
esse suplício monstruoso. Esperarei a morte de maneira mais digna.
Pharoux está acordado no seu
cubículo, em pé, nervoso.
Você tem razão. Eles dopam a
gente todas as noites. Avisei o Cortines também para não tomar o café. Vamos ver
se ele também está acordado.
Aquele forno é para queimar os
mortos, não tenho dúvidas, diz Cortines.
E por que não os vivos? Os que
estão demorando muito a morrer?, diz Pharoux.
Discutimos irritados, por
instantes, se os Irmãos estariam cremando ou não os corpos ainda vivos dos
internos. Defendo a tese de que o forno é usado somente para cremar os mortos.
Na verdade não estou convicto disso. Pode ser que o forno seja também para os
vivos, ou só para o lixo.
Eu sei o que fazer, diz Pharoux.
Um motim. Nós aqui não passamos de prisioneiros, e os prisioneiros quando
querem melhorar as coisas para eles se amotinam, arranjam alguns reféns e botam
a boca no mundo.
A ideia me agrada. A história
ensina que todos os direitos foram conquistados pela força. A fraqueza gera a
opressão. Mas somos apenas três velhos. Não! Devo esquecer que sou velho. Já
estou eu, novamente, aceitando os condicionamentos que me foram impostos.
Somos três seres humanos!, grito.
Pharoux me manda falar mais
baixo. O plano dele é simples. Ele sabe onde fica o apartamento do Diretor. A
porta é fácil de abrir, é uma fechadura antiquada. O Diretor será nosso refém e
nosso trunfo na negociação.
Saímos, eu, Pharoux e Cortines,
pelos corredores escuros do Lar Onze de Maio. Pharoux leva na mão o estilete de
aço. Seu único olho brilha forte; ele está tenso, mas tem um ar profissional de
quem sabe o que fazer. Vamos para outra ala, subimos um andar. O Lar está
tranquilo, mas ouve-se o som das televisões funcionando. Subimos uma escadinha.
É a torre do Diretor. Chegamos a uma porta.
É aqui, diz Pharoux.
Pharoux tira um arame do bolso,
ajoelha-se. Durante um longo tempo enfia e tira o arame do buraco da fechadura.
Ouve-se o barulho da lingueta correndo no caixilho.
Pharoux sorri. Vamos entrar. Mas
a porta não abre. Deve estar trancada por dentro.
Num impulso bato na porta, com
força. Nada acontece.
Bato novamente.
Do lado de dentro ouvimos a voz
irritada do Diretor. O que é?
Senhor Diretor, digo com a voz
meio abafada, uma emergência.
O Diretor abre a porta. Pharoux
agarra-o, Cortines segura-o pelo pescoço, numa gravata. Pharoux pica com o
estilete o rosto do Diretor, fazendo brotar uma gota de sangue.
Quieto, porco gordo, diz Pharoux.
O Diretor olha Pharoux assustado.
Acho que é a primeira vez em que sente medo em sua vida.
Calma, por favor, calma, diz o
Diretor. Arrastamos o Diretor para dentro.
Com o cinto do roupão do Diretor,
Cortines amarra as suas mãos. Pharoux manda que ele deite no chão.
Estamos na sala do apartamento.
Quando chegamos ao quarto, temos uma surpresa. Na cama, larga, de casal, está
dormindo uma mulher. É uma jovem, de pernas e braços compridos, inteiramente
nua. Não consigo me lembrar quando foi a última vez que vi uma mulher nua.
A mulher acorda. Senta-se na
cama. Pergunta quem somos nós. Edmundo!, chama a mulher. Então é esse o nome do
Diretor.
Fique quieta e nada lhe
acontecerá, digo.
É melhor amarrá-la também, diz
Cortines.
Com tiras do lençol, Cortines
amarra os braços e as pernas da moça. Ela submete-se docilmente. Não são apenas
os velhos que se acovardam e ficam sem ação ante ameaças. Se aquela mulher
lutasse comigo e Cortines talvez até conseguisse fugir. Mas supõe que somos
dois velhos malucos e a melhor estratégia é não nos contrariar.
Deixamo-la na cama, amarrada.
Cortines leva tiras do lençol para amarrar o Diretor. Ele está deitado no chão
em decúbito ventral, e Pharoux tem o estilete encostado na sua pele. Se se
mexer, o estilete vara-lhe o pescoço.
O nome dele é Edmundo, eu digo
para Pharoux.
Edmundo, o imundo, diz Pharoux.
Sinto que a ação despertou em Pharoux instintos destrutivos reprimidos. Vejo
marcas de pequenas perfurações no pescoço do Diretor.
Amarramos os pés do Diretor e
fazemos novos laços, atando ainda mais as suas mãos.
O apartamento do Diretor tem uma
sala, quarto, cozinha e banheiro. Só há um acesso para ele, a porta por onde
entramos. É uma porta de madeira grossa, sua fechadura é velha, mas tem duas
trancas de aço embutidas. Estamos seguros.
Olha só a geladeira dele, diz
Pharoux.
Cerveja, ovos, presunto,
manteiga. A geladeira está cheia. Cortines e Pharoux foram para a cozinha
fritar ovos.
Agora comem ovos com presunto e
bebem cerveja. A coisa que os velhos mais gostam é comer. E Pharoux e Cortines
estão felizes e satisfeitos como se o objeto do nosso motim fosse comer ovos
com presunto. Talvez, stricto sensu, possa se dizer isso, que o objetivo final
de toda revolução é mais comida para todos. Mas estávamos naquele instante
apenas pilhando a geladeira do Diretor de um asilo de velhos, denominado de Lar
pela hipocrisia oficial.
Como apenas um pedaço de pão.
Gostaria de passar a mão no corpo da mulher, mas ela certamente sentiria
repugnância e isso acabaria com o meu prazer.
Começo a sentir um cansaço muito
grande. Deito-me no sofá da sala… Acho que posso dormir um pouco, as
negociações talvez se arrastem… Tenho que vigiar Pharoux para que ele não faça
nenhuma tolice, ele é muito violento…
Acho que estamos iniciando uma
revolução… mas é preciso que o nosso gesto saia desta torre e faça os outros
pensarem… Meu Deus! Como estou cansado… Antes de dormir tenho que falar com
Pharoux e Cortines. Eles estão na cozinha, comendo ruidosamente… temos que
traçar os nossos planos…
[1979]
(In: O cobrador. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. Coletânea originalmente publicada em 1979 pela
editora Nova Fronteira).
A tapera
Coelho Neto
Foi com tristeza e saudade que perdi de vista, desviando-me para o caminho das tropas, esse límpido riachão da Penitência, cujo murmúrio brando me trouxera, suavemente distraído, desde as férteis planícies do meu sítio onde as suas águas se derramam em rega perene e fecunda banhando as raízes dos cajueiros e balouçando os igarités de pesca.
Longo tempo a voz de elegia com que as águas rolavam por entre pedrouços, carreando lírios, encantou-me como se o riachão me acompanhasse amigamente por esses extensos campos, cantando como os vaqueanos que viajam léguas e léguas pelo sertão bravo adentro com um clavinote à bandoleira, o largo facão à cinta e uma triste canção guaiada.
Fosse impressão ou porque, em verdade, as águas corressem perto, só para o meio-dia, sol a pino, cessei de ouvir o murmúrio do riachão e, causticado pela soalheira abrasante, deixei-me levar ao passo desinsofrido do meu cavalo viageiro que trotava, arquejando, através da campina, até que uma alameda de árvores veneráveis pôs em meu caminho, como oásis remansoso, oportuna sombra afável. Era um carreirinho estreito, forrado de folhas, guizalhante de trilar dos grilos, cheio do aroma silvestre das resinas que escorriam em fios de âmbar pelos troncos robustos.
O animal, em suor, resfolegava, as narinas sofregamente dilatadas, sorvendo, com ânsia, a úmida frescura dos ramos, baixando, por vezes, a cabeça para apanhar a erva tenra que crescia, mimosa e abrigada, entre as fortes raízes das grandes árvores.
Curto, porém, foi esse aprazível caminho e logo o sol flamejante reapareceu sobre um campo silencioso e raso, de erva murcha que brotava dentre pedregulhos, onde um boi apenas vivia, com o focinho enterrado no pasto esturricado, fustigando a anca ossuda com a cauda pelada de gafeira. Sentindo-me, levantou a cabeça e seus grandes olhos, serenos e submissos, fitaram-me tranquilamente e, como para saudar-me, deu um passo moroso, alongou o pescoço e mugiu. Passei por ele e deixei-o a ruminar, com um fio de baba a escorrer-lhe do focinho escuro.
Não longe era a mata da Penitência, densa e virgem.
O ar abrasava e, apesar das nuvens que corriam em manada velando, por vezes, a claridade, o solo tinha a evaporação de um forno, e um vapor tênue, translúcido, fremia no ar como levíssima gaze diáfana agitada pelo vento.
Por vezes, acima da minha cabeça, retinia um grito d’ave, e alto, no céu fulgurante, corvos circulavam em halo negro dentro do qual o sol luzia, rútilo.
À curta distância da mata, quase ao chegar às primeiras árvores, vi surgir um lento animal de cargueiro, fulo, escaveirado, trôpego. Vinha a trote, balançando as orelhas bambas e, sobre o lombo, as pernas cruzadas, um tabaréu macambúzio, o pito nos beiços, trazia os olhos extasiados como um faquir penitente.
As patas do meu cavalo, ressoando nas pedras, despertaram o sertanejo. Levantou os olhos e, dando comigo, saudou-me à maneira religiosa dos serranos, tirando o seu largo chapeirão de couro acabanado:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
— Para sempre seja louvado! — E, sem mais, para acertar o itinerário, indaguei: — Aonde vai ter este caminho, patrício?
— Indo vosmecê por este carreiro fora vai ter direitinho na Tapera de Santa Luzia, onde vive o velho. À mão direita é o caminho do Missionário, onde há mocambos; é mato bravo, patrãozinho; vai dar na serra.
— Qual é o melhor caminho para o sítio dos Reis Magos?
— Beirando o rio. Mas por aqui também se vai lá, é até melhor por causa da sombra. O que tem é que se passa nas terras do mal-assombrado. Indo por aqui, no seu vagar, vosmecê vai chegar no sítio com a lua.
— E não há risco em atravessar as terras de Santa Luzia?
— Com Deus no coração eu vou caminhar no inferno, patrãozinho. Ainda se fosse sexta-feira... mas hoje é dia de Nossa Senhora. — E tocou na aba do chapeirão. — Tenha fé e deixe vosmecê andar quem anda. Eu viajo desde que me conheço e ainda não me aconteceu coisa de maior. Tenho o meu breve e não devo nada a ninguém. — Um risinho enrugou-lhe o rosto; cuspiu por entre dentes, num pincho, e continuou: — Nunca topei com o danado... e que topasse!
— E os caminhos?
— Que nem trilha d’onça: é samambaia que Deus manda. Ainda assim há outros piores por esse sertão velho. Dentro da mata é fresco e não tem que saber: o caminho é um só que vai num estirão até Santa Luzia.
— Deus lhe pague, camarada.
— Não há de quê, patrãozinho. E que a Virgem acompanhe vosmecê.
E apartamo-nos. O pangaré ganhou o seu trotinho lento. Cravei as esporas no meu cavalo e, em pouco, alcançava a orla da mata.
Era a grande, a inexplorada selva primitiva, a venerável floresta virgem das primeiras eras, templo augusto das tribos. A alma forte, selvagem e ingênua da raça banida parecia errar peregrina pelos meandros obscuros, fazendo com que a selva contasse a sua tradição gloriosa. A princípio, com uma leve aragem, era um sussurro de mistério como o canto profético do pajé e crescia — era já o coro guerreiro da tribo, tempos cruentos de peleja, antes da marcha heroica contra a taba inimiga, mas um vento forte passava, debatiam-se os galhos convulsivamente, e o estridor subia grande, ressoante, épico como o de um encontro válido de bravos ao estrupidar enfurecido das tangapemas, ao silvo agudo das flechas, através da algazarra, enquanto as tubas, sopradas com fúria, espalhavam, uivando soturnamente de palmar em palmar, o vozeirão tremendo do combate.
Selva augusta! de velhos troncos intactos, jamais feridos pelo gume dos ferros. Galhos caíam encanecidos de musgos; folhas acumulavam-se no solo macio e fofo, amarelecidas, encarquilhadas, sob a proteção da imensa abóbada dos ramos sempre verdes, e a vida continuava em renovamento perene, a podridão fecundava a primavera, a folha que se convertia em lama ressurgia em seiva — um fluido vital corria ininterrupto rejuvenescendo a floresta.
Brotavam flores em árvores centenárias, e pelos troncos vetustos, quase apodrecidos, apontavam renovos já abotoando. Lianas cruzavam-se duma árvore a outra em cordoalhas grossas, filandras caíam em chuva d’ouro franjando garridamente os galhos, e parasitas em flor recamavam jequitibás severos. À tona de uma lagoa, coalhada de mururu, insetos voavam em bando, subindo e descendo por um raio de sol como por uma teia lúcida, e nimbos de luz fulguravam n’água dormente como nelumbos de ouro. Aves penserosas, tristonhas, num pé só, miravam a lagoa imóvel. Nos altos ramos, araçaris chocarreiros taralhavam e, de quando em quando, em voo pesado, uma arara atravessava o labirinto da folhagem com um grito agudo que repercutia.
Longo e de enlevo foi todo o tempo da travessia. Vinha caindo suavemente o crepúsculo quando surgi em um campo de samambaias e de bertiogas, onde havia ruínas. Era a Tapera. Lá estavam os destroços da antiga casa, o indício dos currais, restos de senzalas sem teto: as paredes esburacadas, sem o adobe, mostrando as ripas, num desnudamento de arcabouço. Fornos de barro, entre moitas, altos como cupins; a olaria, a moenda primitiva e, tombado sobre um sulco, o carretão carunchoso com os fueiros hirtos cobertos de cogumelos bravos.
A urtiga imperava de extremo a extremo avassalando tudo, o capim grosso ondulava ao vento num flexuoso oceano de verdura. Ouvia-se o rumor escachoante do rio que rolava perto, saltando as pedras, num estuar perene, monótono e tristonho, molhando as terras melancólicas da solidão.
Livres, sem encontrarem o embargo humano, as árvores independentes iam, aos poucos, reconquistando a terra, em invasão lenta, dia a dia. Nos sulcos do arado antigo ressurgiam, para novos florescimentos, troncos de aroeiras abatidas outrora; nas ruínas nascia, com exuberância, a parietária, e as raízes dos jequitibás gigantescos, retorcendo-se à flor da terra, repeliam e trituravam as vigas carcomidas e tudo mais que ainda resistia ao tempo atestando a passagem de uma era de vida humana nesse desamparo que, em breve, cederia à compressão formidável dos vegetais invasores.
O farfalho das árvores era sonoro e grandioso como um hino de triunfo. Sentia-se o orgulho, a alegria da flora altiva e pujante que vinha tomando o sítio, palmo a palmo, coberta de flores e de ninhos, num delírio festival, como um povo que reconquista a pátria e entra por ela, em júbilo, agitando palmas, ao som dos velhos hinos épicos da raça. Os ramos moviam-se como braços combatentes e, quando uma lufada passava, com o espadanar frenético dos galhos, tinha-se a visão trágica de um grande movimento de pelotões compactos partindo, cerradamente, em arremetida guerreira.
Cada primavera que vinha trazia para as árvores nova provisão de seiva, as chuvas, que contribuíam para a destruição das paredes que ainda resistiam, davam mais vigor aos sitiantes, e a floresta marchava heroica para aquele descalabro com o fragor atordoante das ramarias convulsionadas pelos ventos. Os animais desciam do coração da selva para repousar nos velhos bancos de pedra que a hera ia brocando; cobras transidas dormiam enroscadas debaixo do antigo altar, que se conservava de pé na basílica florestal marcando o sítio da capela, e, à noite, as ciganas ribeirinhas vinham vaguear na varanda grasnando à lua.
Estaquei o animal e, à meia-luz amável da tarde cheirosa, cheia do canto dos pássaros e do chiar das cigarras, fiquei a olhar, com enternecida piedade, aquela ruinaria muda, Santa Luzia, famosa em todo o alto sertão, terras férteis de plantio e de gado, onde os marnéis verdejantes de arroz eram vastos como campinas, canaviais perdiam-se de vista e, no tempo do algodão, toda uma grande selva ficava como se a neve dos invernos a tivesse coberto de flocos.
Para os pastos ubérrimos caminhavam, no tempo da vaquejada, centenas de homens cobertos de couro, de aguilhada e laço, como uma horda de guerra, lança em riste, seguindo para conquistas, e manadas indômitas dormiam à luz dos astros, livremente, como bestas bravas, em torno dos casebres dos campeiros, erguidos sobre jiraus feitos de grossos troncos.
Às festas do Natal na capela destruída acudiam outrora romarias de toda a parte — o terreiro enchia-se de palhoças, redes balançavam-se entre duas árvores e era festivo o aspecto desse povoado de romeiros que, dia e noite, em mole quebranto, desferiam trovas em aos ponteados vivos nas violas enfeitadas, e até Reis, diariamente, um boi nédio era amarrado pelos cornos ao mourão e carneado para repasto dos serranos que vinham cantar em torno do presepe, louvando o Menino Deus.
Homens antigos falavam ainda, com saudade, das festas de Santa Luzia, gabando Honório Silveira, o moço proprietário das terras ricas, senhor da serra e da campina, que fizera, pela primeira vez, silvar nessas paragens o apito das máquinas, atraindo os tabaréus medrosos para o engenho onde os rústicos demoravam aterrados, maravilhados, acompanhando, com terror supersticioso, o movimento célere das rodas. Alguns procuravam descobrir os animais que punham em movimento o maquinismo e persignavam-se recuando diante do motor abrasado como se o próprio diabo ali estivesse cativo, trabalhando para o senhor famoso.
Mas uma calamidade caiu sobre Santa Luzia, devastando-a como uma peste. Honório Silveira, antes de um ano de casado, perdeu a mulher em circunstâncias tão misteriosas que logo correu que o diabo a arrebatara, à meia-noite de uma sexta-feira aziaga. Em verdade, a crendice tinha, até certo ponto, razão de ser. Logo que se deu pelo desaparecimento da senhora, Honório Silveira, ajuntando toda a sua gente, escravos e camaradas, despachou-a em procura da desaparecida, e serras e campos foram batidos. À noite, conhecedores das matas penetravam no denso arvoredo, com fachos, bradando, chamando a senhora; feras desalojadas corriam espavoridas e, rio abaixo, eram canoas que singravam com pescadores procurando nos remansos da água, entre o mururu florido, o corpo da sumida.
Não houve canto nem gruta que fosse esquecido e, como havia a promessa de uma gratificação farta ao que descobrisse, morta ou viva, a esposa amada, temerários, açulados pela ambição, penetravam em furnas com risco de morte; mas foi tudo baldado.
Quando tornaram ao sítio já Honório Silveira bramia desvairado, ameaçando com armas a quantos se lhe aproximavam. Para uns, enlouqueceu de amor, outros, porém, e em maior número, julgavam-no vítima do demônio. E, pouco a pouco, como um açude que escoa, a gente foi desertando o sítio, emigrando para fugir aos gritos lancinantes com que, à noite, pela escuridão, o senhor percorria o terreiro, perseguido pelos cães, que uivavam lamentosamente, fazendo com ele um coro sinistro. E Santa Luzia, deserta, foi emudecendo como um corpo que, lento e lento, esmorece e expira.
II
Vinham caindo do céu aveludado as primeiras névoas do crepúsculo quando avistei, humildemente sentado sobre a pedra negra que fora dantes o limiar da casa, um homem imóvel. Tão alvo era o seu corpo e a sua atitude penserosa tão tranquila que, ao primeiro olhar, ninguém, por certo, lhe daria uma alma, mal percebendo, pelo ondular moroso e fatigado do peito, que ainda, sob as ruínas da carne encarquilhada, um coração batia. Quase nu, tinha apenas sobre os ombros magros restos de panos podres; as pernas esguias, como se a carne houvesse mirrado, ressequida pelo sol, tremiam-lhe; tremiam-lhe os braços cruzados. Sobre o colo mal coberto rolavam-lhe os cabelos e a longa barba farta emaranhada d’ervas.
Parecia sonhar e, sem que ouvisse os passos do meu cavalo, mergulhado no êxtase, a fronte sempre derreada, continuou meditativo, absorvido e mudo.
Era o velho, o penitente taciturno da tapera, Honório Silveira, o temido dos sertanejos que, se o viam, persignavam-se invocando santos, beijando devotamente os breves.
De quando em quando, como se uma lufada gélida soprasse, tremia todo, tiritava, encolhendo-se, enterrando o queixo entre os joelhos de modo que os cabelos e a barba se lhe entornavam pelas pernas como uma fronde branca que lhe tivesse crescido durante essa vida inerte e vegetativa que levava.
Era Honório Silveira que fora, em moço, o luminar dos ermos, sabido em letras, prático e engenhoso, que trouxera d’além, das terras cultas da Europa, um título e os gostos nobres de vestir e de montear, não barbaramente, de azagaia em punho, mas levando por montes e descampados, ao som de trompas estridentes, cães ferozes seguindo cavalhadas numerosas que, desprendidos e açulados, dispersavam-se farejando rastos de onças e pegadas sutis de veados galheiros. Era o “serrano rei” das antigas trovas, o caapora de então quem eu ali tinha ante os olhos, sonhador e silente, tremendo, num regelo de todo o corpo, quando do ameno céu baixava, como um afago, a tépida viração da tarde que balançava as árvores em flor.
Descavalguei e, vagarosamente, com brandura, chamei-o. Trêmulo sempre, continuou no seu tremor de frio. Chamei-o de novo e lento, como se lhe pesasse a frondosa cabeça, ergueu-a e eu vi que o seu rosto era apenas uma caveira coberta por uma crosta fina, com dois olhos vivos como dois fogos sobre uma sepultura. Encarou-me e balançou com tristeza a cabeça, mas, curvando-se, falou com magoada palavra:
— A árvore!
Já o luar subia, alvo e santo como uma comunhão, e toda a selva vestia-se para as núpcias noturnas. Meu cavalo pastava tranquilamente e, duma lagoa próxima, como profundo coro bárbaro de cenobitas, vinha a plangência monótona dos cururus.
Que de pensamentos me acudiram nesse instante vendo-me, em hora tão triste e pávida, só, numa selva trágica, com esse corpo de múmia onde existia ainda um raio d’alma! A lua apareceu no céu imensa e alva, e eu saudei-o:
— Boa noite!
Ele, de novo, encarou-me e, estendendo o braço fino, disse, apontando a mata vitoriosa:
— É ali! É ali! As outras obedecem-lhe, caminham quando ela ordena; são como filhas, são como escravas. É ali! Ali onde o luar desliza. Eu vi todas nascerem, todas! Criei-as com o meu afago... todas! E não as temo, não fazem mal; pobres árvores! Dão flores e dão frutos, e ninhos procriariam entre os seus galhos. Pobres árvores inofensivas! Perigosa é a outra, a que floresce à meia-noite... essa... Ah! feliz de quem não vive à sombra dos seus ramos. As outras são mansas, não fazem mal. Não durma nunca à sombra da árvore que geme — é pior que a mancenilha: mata a alma.
A inflexão da sua voz era pausada e dolente. Fitou-me de novo o olhar e, levantando-se a tremer, acenou para que seguíssemos. Os farrapos cobriram-no e os cabelos fizeram como um manto curto em volta do seu busto magro:
— Venha! Venha! Quero que veja para que conte. Sou um louco! bem louco, em verdade, porque ainda me agarro à vida. Venha! Quero que veja a minha loucura e depois me há de dizer se louco é quem sofre ou quem dele escarnece. Venha!
Atraído, acompanhei-o. Lesto e ágil, ele seguia por entre as ervas como um deus silvano. O mato alto escondia-o, por vezes, mas a sua voz melancólica chamava-me:
— Venha! Venha!
E eu seguia, à luz da lua, por entre moitas bravas e cipoais enleados até que, saindo num trilho de macega espezinhada, descobri a alvura venerável do corpo do ancião junto à raiz de uma árvore frondosa.
Olhe! veja bem... cresceu assim. Aqui estão as grandes artérias que alimentam toda esta selva. Olhe! — E, agachado, mostrou-me as grossas raízes da árvore que alastravam à flor da terra perdendo-se no vassoural viçoso. — Esta árvore é o coração da floresta. Veja! daqui é que parte o fluido vital que alimenta as outras árvores.
Curvou-se mais e começou a beijar as raízes, com a contrição devota com que oscularia relicários. Ergueu-se e, com o braço hirto, mostrou-me a folhagem densa:
— Olhe! os cabelos, as tranças que se desnastraram, as tranças que ela costumava fazer à tardinha, sentada perto de mim, na varanda, escondendo entre os cabelos favas de baunilha para perfumar o travesseiro em que dormíamos. Veja! São as suas tranças desfeitas pelos vendavais.
E, tocando-me no ombro, perguntou:
— Conhece-a? Sabe o nome desta árvore?... — Sorriu com amargura e, extasiado, as mãos postas como para rezar, disse com voz sumida e lacrimosa: — Não pode conhecê-la... Esta árvore é Leonor; Leonor, meu amigo, que foi minha. — E demorou-se a contemplar o tronco forte, balançando com mágoa a cabeça alvadia. — Agora vamos — disse por fim. — Quero que ouça para que julgue e conte. Li muito, meu amigo, e jamais encontrei em páginas sonhadas tanto sofrimento como o que trago no coração. O sonho está muito aquém da verdade. A mais alucinada fantasia não vale, muitas vezes, uma pequena e triste realidade. Se os poetas sondassem profundamente as almas, a Poesia seria um treno doloroso. A Dor Humana é desconhecida e grande. Que se sabe da lágrima? que é um líquido, nada mais; que é uma secreção e só. Donde vem? por que nasce? Que misteriosa fonte instila essa água amarga? Ah! Meu amigo... a Dor Humana! Os poetas param no peristilo do coração, felizmente! Que penetrem! que sondem todos os meandros iluminados pelo espírito, que entrem pelos labirintos do Pensamento, secretos como os das colmeias, que percorram o cemitério da Saudade e hão de recuar como diante de horrores inconcebíveis! A Dor Humana, meu amigo... O próprio Cristo chorou pensando nela, e, da cruz, o seu último olhar foi de piedade.
Assim falando, lentamente voltamos por entre os matos enredados, alcançando a pedra negra que fora o limiar da antiga habitação.
De pé, a cabeça erguida como um profeta selvagem abençoando, ele estendeu o braço e, traçando no ar um meio círculo, disse com tristeza sombria:
— Tudo isto, até Leonissa, pertence-me. Vivo em terras minhas, ao menos ninguém dirá que ando a espalhar as minhas lágrimas, semeando agonia pelas propriedades alheias. Limito a minha peregrinação. Por maior que seja o meu desespero, o meu andar não ultrapassa as cercas dos sítios vizinhos, nem a minha lamentação assusta as gentes dos terrenos próximos. Neste meu paraíso ninguém penetra porque o guarda, sinistramente, um anjo negro: o Pavor. Mas, apesar de tudo, a minha selva exubera. Não existem, nessas paragens adjacentes, árvores como as que nos cercam: são as únicas assim frondosas... Poda-as o raio, regam-nas as lágrimas das chuvas, a primavera enfeita-as e o outono fecunda-as. Se tenho algum mal comigo, ninguém dele partilha: sofro-o calado e solitariamente. O remorso não me deixa o coração: encarcerado, atormenta-me.
— Que remorso? — indaguei.
— Ouça... ouça. É moço, os moços podem suportar as lágrimas alheias porque uma das vantagens dos corações de poucos anos é a volubilidade. Triste do coração que se apega a outro coração: absorve uma vida ou deixa-se absorver. E se tão dificilmente andamos com a nossa alma pesada por este mundo, imagine quanto custa transportar a alma de outrem dentro do pensamento. Um moço pode ouvir-me sem que eu contribua para a sua desgraça: a mocidade é um rio que corre sempre, a velhice é um açude de águas mortas. A um velho eu não falaria: o velho é um edifício em ruínas, qualquer vento o derruba, uma lágrima pode desmoroná-lo. Vá, feche o seu coração porque vai passar por ele a tempestade de uma alma. Não sorria nem chore — ouça como se lesse. A história que lhe vou contar pode levar-me à ventura de um cárcere, não ao suplício, porque esse eu tenho aqui sempre comigo. Não há prisão mais terrível para os criminosos do que a terra com a sua abóbada. O sol é um grande juiz; a noite é um grande carrasco. Veja: cobre-me a geleira da velhice — eu sou o polo da agonia. Dentro em mim habitam todos os pesares; não há Dor que me não tenha visitado. Ando como vê porque vivo nesta inocência — as árvores vestem-se de folhagem, as ruínas de urtigas, eu cubro-me com a hera dos meus cabelos brancos. Resta-me de humano a lágrima; meus olhos, como dois penitentes nas suas furnas, desfiam, dia e noite, o rosário do pranto.
Fui feliz; gozei a felicidade como se goza um dia; depressa a noite veio. Esta espessa mata, este campo inculto de espinhais, foram, outrora, terras de fertilidade. Este sítio de Santa Luzia era o mais rico e próspero do sertão. Falava-se das minhas colheitas com espanto. Nas minhas terras trabalhavam mais de trezentos homens. Todas as manhãs, ao nascer do sol, eu vinha debruçar-me à varanda para acompanhar o desfilar dos negros e a partida do gado. Berravam nos meus campos verdes centenas de touros bravios, nunca recolhidos a currais, nascidos e criados nas malhadas longínquas. À tarde, às vezes, eu era surpreendido pela chegada de um tímido e assustadiço rebanho de ovelhas, que os pastores diziam ter achado pastando ariscamente na aba da montanha.
Singravam o rio, abaixo e acima, as balsas que hoje apodrecem enterradas na areia, e os frutos caídos das minhas árvores eram semeadores, porque muita laranjeira cresceu sem que se pudesse descobrir o nome do plantador.
Invejavam todos a pródiga fertilidade das minhas terras e, como a capela sempre resplandecia acesa, atribuíam à santa padroeira a fortuna e a paz do meu sítio viçoso.
Mais tarde, com as primeiras máquinas, o terror gerou lendas que se dissiparam, pouco a pouco; mas quando a umidade começou a esverdear os muros abandonados, então as tropas abriram novos caminhos, através da floresta, evitando a passagem pelas estradas que o caapora, à noite, percorria silvando e bailando com almas penadas. O caapora! Mas voltemos ao fio do meu tormento. Em torno de mim chalravam as mucamas virgens e, quando se servia à minha mesa, muitos dos que nela se fartavam eram-me desconhecidos, mas a minha porta era franca aos que passavam como a porta de um templo.
Um dia, o estafeta sertanejo trouxe-me uma carta anunciando a próxima chegada da família de um amigo que já estava em viagem para o sítio. Sobressaltado e contente, pus em campo todos os meus escravos capinando as eiras, limpando os caminhos frescos do pomar, e a casa tomou um aspecto festivo. Caiadores, cantando, alvejavam as paredes, mucamas espanavam os tetos; o soalho, esfregado possantemente pelos negros, parecia renovado de tábuas frescas. E da capela ao engenho tudo foi escarolado e brunido.
No dia em que deviam chegar os hóspedes os caminhos foram esteirados de folhas, ramos em arco fizeram uma abóbada de verdura desde a beira do rio até os degraus de pedra da varanda e, balouçando-se n’água, uma canoa nova, feita dum grosso tronco de aroeira, desceu o rio remada por doze negros cantadores.
Quando a canoa aproou à margem estrondaram bacamartes e roqueiras e até horas altas da noite houve danças na eira ao som dos tambores d’África.
Vinha entre os pais uma linda e graciosa moça, loura e branca como as açucenas d’água, alta, de um porte régio de princesa e tão meiga que a sua voz lembrava o som de uma harpa brandamente ferida. Desde que meus olhos fitaram o seu rosto cândido, a tranquilidade desertou a minh’alma. Eu não vivia se a não ouvisse, se a não sentisse perto. À noite, o sono abandonava-me, ela sempre, sempre! vinha povoar as minhas vigílias.
Quando nos encontrávamos era uma suavíssima agonia para o meu coração; se nos falávamos todo eu vibrava em estremecimento de amor e assim vivemos embevecidos até que, uma manhã, o pai falou em partir.
Não sei como resisti ao sobressalto do meu coração. Levantei os olhos, com ânsia e... estavam os olhos dela procurando-me. Olhamo-nos e vi que se lhe molhavam as pálpebras mimosas.
Para que alongar o meu martírio com esta recapitulação? Na tarde desse mesmo dia, tarde azul de maio, pedia-a em casamento. Ainda existem velhos nesses arredores que se lembram da minha festa nupcial. Hoje ainda, nos serões dos ranchos, os sertanejos cantam uma longa xácara que tem por título O casamento do senhor do engenho.
A vida começou sorrindo. O meu amor crescia progressivamente. Ainda vive esse amor! Sacudam as cinzas tristes do passado que a chama ardente há de reluzir.
O velho levantou-se e, trêmulo, cambaleando como um bêbedo, pôs-se a andar de um lado para outro, mergulhando nos cabelos compridos os dedos aduncos, crispados à semelhança de garras. Amparei-o caridosamente.
— Venha, descanse um instante...
— Sim. É muito penosa esta viagem que faço ao passado. Atravessei corajosamente um oceano de lágrimas para ir buscar o começo desta história na outra margem da minha vida.
— Mas espere, deixe-me. Os homens chamam-me caapora, que faço eu? Olhe os meus cabelos: cresceram como a floresta, é ela que me invade a cabeça. Caapora! Caapora! Fitou os olhos no céu que o luar iluminava e, mais calmo, veio de novo sentar-se a meu lado.
III
Um ano correu sereno e feliz. E para que o hei de cansar com a descrição de ventura tão curta?!, disse-me o solitário. Éramos um só pensamento, um só desejo; refletíamo-nos em nossos corações, e os horizontes não iam além dos nossos rostos porque eu nada mais avistava que não fosse ela, e parecia-me que Leonor apenas me via a mim no mundo.
Sempre juntos, saíamos, às vezes, a cavalo ou em barco, pelos campos ou pelas águas, como dois namorados; e tudo era pretexto para sorrisos. Deus abençoava o nosso amor bafejando as minhas terras com o seu hálito divino, de sorte que já me não bastavam os negros das minhas senzalas, e as máquinas, muitas vezes, despertavam o doce silêncio das noites com a trepidação do trabalho para que pudéssemos vencer a exuberância dos arrozais e as safras abundantíssimas de cana; e o algodão que se despolpava enchia o ar de uma penugem tão densa que empanava o sol como uma névoa. Pelo Natal, tempo das flores, Leonor caiu em prostração doentia. As cores se lhe foram desmaiando, os olhos amortecendo, e lânguida, indolente, passava os dias estirada na rede, calada, o olhar disperso, em êxtase.
E tudo a entediava: uma criança que chorasse, uma ovelha que viesse balar perto da varanda, um campeiro que cantarolasse. Aprazia-lhe somente a solidão silenciosa e foi justamente por esse tempo que tive de me apartar, por dias breves, da minha amada, acudindo ao chamado extremo de um parente que agonizava a duas léguas daqui, no Riachão. Quantas lágrimas me custou o despedir-me dela e que sentidas promessas nos fizemos — ela a soluçar magoada, eu a conter soluços! Parti.
E para que hei de negar? Quando cheguei ao sítio do moribundo só havia um desejo dentro do meu coração — vê-lo morto; não que eu lhe desejasse a morte por cobiça de proventos, não! Queria-a para mais depressa tornar ao meu carinhoso e aconchegado lar e velei noites imensas junto ao corpo bruxuleante. Os olhos ardiam-me como duas feridas e eu tentava em vão o bálsamo do sono. O espírito preocupado forçava-me à vigília e foi com um sobressalto de contentamento que, uma tarde, já ao apontar da lua, corri com um círio ao leito para alumiar o desventurado que a treva eterna começava a envolver. E, na tarde seguinte, de volta do cemitério, longe de buscar repouso para o corpo estafado, chamei a minha gente e cavalgamos, através dos matos mal habitados de feras e de quilombolas, em rumo para Santa Luzia.
E não sei dizer que senti no coração quando alcancei as primeiras árvores do meu terreno, mas, desde que vi os negros que pastoreavam, um pressentimento estranho relampejou-me na alma, achando-os tristes, tocando o gado sem cantares, morosamente, silenciosamente, mas logo que me reconheceram, saudaram-me contentes e, amiudando os passos, vieram seguindo a marcha do meu cavalo árdego.
À beira do rio mucamas virgens, debruçadas sobre as pedras, batiam roupa e isso causou-me estranheza e mágoa, mas logo pensei em Leonor e meus olhos nada mais viram, nem as crianças que me seguiam, nem os velhos negros que se inclinavam pedindo a bênção.
Quando, porém, entrei em casa, Eva, minha mãe de criação, a velha negra que me acalentara nos braços, veio receber-me triste e, como eu lhe perguntasse pela senhora, disse apenas: “Saiu, nhô. Foi, mais o moço das máquinas, ver os arrozais”.
Amor! Amor! teu verdadeiro nome é ciúme, suspirou o velho. Ah! meu amigo, essas palavras da negra entraram-me no coração como dardos. A alma tremia-me no corpo como um guerreiro covarde dentro da armadura. Eu tinha ciúme, ciúme desse homem de trato grosseiro, mas forte como um gladiador, alto e musculoso, que abatia um touro com uma punhada. Era um gigante, o caboclo mais valente dentre quantos trilhavam estradas sertanejas e, apesar da sua feição maltratada de rústico, tinha uma beleza varonil que o tornava o preferido das cafuzas virgens que se lhe entregavam languidamente, batendo-se por ele como as onças amorosas que disputam o macho. E Leonor andava pelos campos com esse homem!
Caía a noite quando os cavalos vieram estacar, arquejantes, junto aos degraus da varanda e eu ouvi a voz de minha amada que subia contente por lhe terem anunciado a minha vinda. Rapidamente a nuvem que me toldava o espírito dissipou-se e precipitei-me, acolhendo-a em meus braços com muitos beijos no seu rosto abrasado e formoso.
E à noite, ao luar, depois que lhe contei as torturas da minha saudade longe, ao lado desse enfermo de tão lenta agonia, ela falou-me dos castigos que mandara infligir a cinco negros e às mucamas, fazendo açoitar os homens e mandando as raparigas, criadas carinhosamente em casa, para as pedras do rio, com as lavadeiras e, como razão, disse-me apenas: “Que haviam levantado a voz diante dela”. E foi nessa noite, bela como a de hoje, que ela me segredou, num beijo, que estava grávida, pedindo que lhe perdoasse muitos dos caprichos e das impertinências.
Ah! que festa em minh’alma! Foi tão grande o meu júbilo que o coração, como para não guardar uma só gota de tristeza, fez com que a minha felicidade tivesse um brando orvalho de lágrimas. E tudo perdoei! Tivesse ela incendiado as minhas plantações e abatido todo o meu gado com os seus pastores e trucidado todos os meus negros que eu ainda lhe perdoaria contente tantos crimes, tão bem compensados e resgatados por tamanho amor. E os dias corriam docemente.
Leonor, porém, recaiu em melancolia, voltaram-lhe as tristezas, as grandes e distraídas horas de êxtase, as impertinências, as iras. Já as negras evitavam-na com medo, e as mucamas, porque delas desconfiasse a minha amada, acusando-as de feitiços e de bruxarias, foram todas transferidas para um antigo paiol, onde ficaram reunidas como em um gineceu. Ela reforçava-se, ganhava cores e, para distrair-se, passava grande parte dos dias no engenho entre as máquinas, informando-se de tudo curiosamente, e Serapião, o caboclo, para contentá-la, ia, com paciência, mostrando-lhe tudo, fazia silvar o motor e ela ria satisfeita e feliz.
Eu começava a sentir-me amolentado e abatido, sem energia para andar sequer. Deixava-me ficar no leito até que me vinham chamar para o almoço — as faces cavavam-se-me, olheiras denegridas ourelavam-me as pálpebras. Deitava-me cedo e, mal tomava o meu leite, vinha-me logo um torpor suave e adormecia pesadamente, despertando, às vezes, já sol nado, com os beijos de Leonor. Passaram-se dias mais alegres, de ventura e de amor, mas, interrompendo abruptamente o derivar da felicidade, vinha de novo esse alquebramento que me entorpecia o espírito.
E a vida tornou-se-me enfadonha e pesada; a alegria abandonou-me. Prostrado, alquebrado, o meu gosto era ficar horas e horas estendido na rede dormitando preguiçosamente.
Uma tarde ela entrou-me pelo gabinete lavada em pranto pedindo-me, com soluços, que a levasse para a companhia dos pais, que não podia mais suportar a vida infeliz que arrastava entre negros que a maltratavam grosseiramente. E como eu lidasse com ela para que me dissesse a razão do seu sofrimento, ergueu-se com um olhar feroz, flamejante de cólera:
— Pois sim! Queres que te diga? Foi Eva, essa negra que te criou e a quem chamas de mãe. Insultou-me, ameaçou-me diante dos negros, aí tens!
Disse e rompeu a chorar inconsolavelmente.
— Eva! — exclamei pasmado, duvidando das palavras de Leonor, posto que ela as molhasse de lágrimas sinceras.
— Sim, Eva! Eu vinha pela ponte quando a encontrei bêbeda, cambaleando, em risco de cair n’água.
— Bêbeda! — e essa exclamação fugiu-me do peito como um grito de revolta.
— Bêbeda, sim! Pois bem; com pena, porque é uma velha e esfaimada, ofereci-lhe a mão para ampará-la. Repeliu-me, injuriou-me. Ainda assim, à vista do seu estado, não me zanguei. Mas já alcançando a margem, vacilou e teria caído n’água se eu a não segurasse. Pois aqui tens como correspondeu à minha caridade. — E arregaçou a manga do vestido para mostrar-me no braço branco os sinais dos dentes da escrava. — Mordeu-me como uma cadela, cuspiu-me, injuriou-me. Se entendes que a não deves castigar, leva-me para a companhia de meus pais, amanhã mesmo!
Mudo e consternado, saí à varanda. Fora, na eira, os negros esperavam em fila. Chamei o feitor, ordenando que procurasse a mãe preta. E Eva apareceu rota, com os cabelos brancos hirsutos, bamba, trôpega, arrastada pelo robusto negro. Era a primeira vez que eu via, nesse lastimável estado, a pobre velha. Estive a contemplá-la e, quando ela levantou os olhos baços para mim, contive dificilmente o pranto. Chamei-a. A negra sacudiu a cabeça babando-se e, de repente, rolou no chão e, a soluçar, prorrompeu em impropérios contra Leonor. Fiz um sinal e retirei-me. Para não lhe ouvir os gritos, corri ao meu gabinete e fechei-me, abrindo, ao acaso, um livro, mas as letras confundiam-se, páginas tornavam-se negras, e, se eu arredava os olhos, parecia-me ver, em todos os cantos, o rosto da cativa, sinistramente ameaçador, contraído na agonia da tortura, e lágrimas ardentes rolaram-me dos olhos.
Pobre velha que velara junto ao meu berço durante toda a minha infância, desalterando a minha sede nos seus peitos órfãos do filho que uma febre má levara! Pobre velha que vivia para mim, submissa, amorosa, dormindo à porta da minha câmara, o ouvido à escuta ao mínimo rumor, mãe humilde, mãe pela alma, capaz do sacrifício da própria vida para trazer-me uma hora de ventura! Pobre velha!
Levantei-me diversas vezes para ir em pessoa abrandar o seu suplício, mas Leonor passeava ao longo da sala implacável, feroz, com os olhos irradiantes de uma alegria cruel, e eu, mal a avistava, perdia de todo o ânimo e recolhia ao meu miserável e passivo silêncio. Afinal bateram à porta; abri; era o feitor.
— Está no tronco, senhor.
Não respondi. À vista do vergalho que ele trazia ainda ao ombro, estremeci de horror. Era o primeiro castigo que se aplicava em Santa Luzia, à minha ordem, porque dantes nunca os matos ouviram o gemido dum escravo nem o zunir do relho. Era a primeira vez que o sangue do negro pingava sobre o solo abençoado do meu sítio. Covardemente, calado e inerte, eu sofria o flagício desse remorso quando a voz suave de Leonor, voz de magia e de perfídia, chamou-me enternecida e meiga.
Abri a porta, e ela, risonha, pousou sobre a mesa, atulhada de papéis, o copo de leite, instando comigo para que o bebesse porque não havia tomado alimento algum e, beijando-me, perguntou:
— Estás triste?
— Ah! Leonor, é quase um crime o que se está passando aqui. Bem sabes que não conheci minha mãe, devo tudo a essa negra que me trouxe desveladamente até os dias de hoje com tanto carinho como teria a morta. É minha mãe...
— Tua mãe... uma bêbeda! Ora! nem digas isso! Então se tivesses sido criado por uma cabra do monte havias de aturar as suas imundícies? Pareces criança! Bebe o teu leite e vamos dar uma volta pela varanda; a noite está maravilhosa.
— Não, deixa-me ficar um instante aqui. Sinto-me mal. Deita-te se tens sono; eu vou repousar um pouco na rede.
— Mas toma o teu leite — insistiu, oferecendo-me o copo.
— Sim, tomo já.
Beijou-me de novo e partiu. Quando me vi só, o meu pensamento voltou-se de novo para a escrava. Pobre velha! Tomei o copo de leite, provei e, fosse amargor da minha boca, fosse por outro qualquer motivo, repugnou-me e atirei-o pela janela fora, enjoado, nervoso. Estirei-me, então na rede, insone e triste, sempre a ouvir, dentro da minha consciência, os gemidos dolorosos da desgraçada.
Quanto tempo ali estive em evocação do meu passado? Não sei. Devia ser tarde, bem tarde, quando à porta do meu quarto apareceu uma negra vagarosa, pé ante pé, como se me não quisesse acordar; aproximou-se da mesa, tomou o copo que eu esvaziara, lançou um rápido olhar à rede e, no mesmo passo sutil, desapareceu.
Deixei-a ir, sem falar, sem mover-me, fechando-me num silêncio de agonia, e veio-me um desejo intenso, um piedoso desejo de ver a escrava, de falar-lhe, a ela só, sem testemunhas, para ganhar-lhe o perdão. A casa dormia. Tomei uma capa e cuidadoso, manso e sorrateiro, atravessei as salas alcançando a varanda que o luar clareava.
A eira estava deserta, apenas ali — e o velho estendeu o braço nu para um canto da floresta — rente da terra, como uma lagarta, havia um rastilho de luz, na soleira duma porta: era a casa do tronco. Saí pela noite alva festejando os cães para que não ladrassem e enveredei pelo caminho que levava ao ergástulo dos negros. Parei algum tempo à porta para ouvir o gemido da escrava. A pobre velha, porém, sofria sem uma queixa; os grilos apenas trilavam e um caburé agourento rolava pios fúnebres.
Tirei a chave, abri a porta da prisão e entrei. A vítima, presa de pés e mãos à tábua do suplício, parecia morta, imóvel como estava. O seu dorso nu, recurvado e magro, mostrando as vértebras nodosas, reluzia à luz tíbia de uma candeia; os braços magros, esticados, tremiam-lhe, e as mamas criadoras, exauridas por mim, pendiam como duas línguas secas, tetanizadas. Ela olhava firme o muro fronteiro, arqueada como se quisesse puxar a si o instrumento de tortura e pelo seu rosto escaveirado corriam silenciosas lágrimas; de quando em quando entreabria-se-lhe a boca e um resto de soluço fugia. Comovido, mal contendo o pranto, aproximei-me e carinhoso, acocorando-me junto dela, chamei-a:
— Mãe Eva!
Rapidamente, voltando a cabeça, a negra fitou-me, e seus olhos feriram-me como ferros em brasa. O tronco estremeceu, sacudido pelo tremor do seu corpo, e a negra, sem ódio, baixou a cabeça soluçando apenas:
— Ah! nhô!... A sua Eva!
— Perdoa, mãezinha! — disse, abrindo com dedos incertos a tortura. — A culpa é dela. A culpa é dela...
— Sim, nhô... eu sei.
E a velha, já livre, guardava ainda a atitude do suplício. Levantei-a:
— Vamos, mãezinha. Vamos!
— Ah! Meu Deus! — exclamou a desgraçada num grande sofrimento e rompendo em choro forte: — Pobre nhô! Coitado de nhô! Tão bom e tão infeliz!
— Mas que é, mãezinha? — E minh’alma pressaga esvoaçou atordoada dentro do meu coração. — Que é, mãezinha?
— Ah! nhô, é ela, essa mulher malvada, essa Leonor que envenena vancê porque é bonita, nhô. É ela que nhô estima tanto a ponto de deixar que façam isto na sua pobre negra. — E, com os dedos crispados, rasgou a camisa ensanguentada para mostrar-me a chaga viva no peito. — É ela, nhô, que, a esta hora, enquanto eu sofro, está ali! ali! porque pensa que vancê está dormindo.
E a velha saltou como uma pantera para o meio do campo esticando o braço na direção do moinho:
— Está ali, nhô, mais Serapião. Eu vi, nhô, duas noites: ela mais o caboclo, quase nua, enroscando-se nele como uma cobra num tronco.
— Leonor?!
— Sim, nhô! — E, de novo, curvando-se, esticou o braço nu. — Ali, nhô, com Serapião. Vancê não vê a luz por baixo da porta? Estão lá, nhô; estão lá!
— Eu olhava tremendo. — Vancê não podia ver, vancê bebe o feitiço que faz dormir, é no leite que vancê bebe. E enquanto vancê dorme, ela estrebucha nos braços do maquinista. Eu vi, nhô. Eu vi! Negra velha não dorme, caminha de noite e vê o que se faz no escuro. Eles estão ali, nhô.
Travei dos pulsos da escrava, alucinado, tremendo:
— Mentes!
Eva, porém, fitando-me, com uma luz estranha nos olhos pequeninos, riu:
— Vancê venha comigo, nhô! Venha que vancê há de ver com os seus olhos. Venha, nhô.
E, apesar de todas as suas dores, a velha escrava foi aos saltos, como uma bruxa, guiando-me pelos caminhos quietos onde sapos pulavam assustadiços e bacuraus piando iam, de voo em voo, precedendo-nos.
As árvores, com a brisa noturna, ramalhavam e, longínqua, a cachoeira reboava com um estridor que parecia o ressonar da floresta. Ah! Meu amigo, as tempestades d’alma são mais fortes do que as da natureza. Eu sentia dentro em mim o frêmito do meu ódio, era um reboo soturno que me subia do coração à cabeça e a ira relampejava flamínea nos olhos ardidos. O furor é uma tormenta... Mas, apesar da evidência do crime, ainda eu tinha no coração um íris de esperança. Fragilidade! Fragilidade!
Fui por diante; a serpe não correria mais depressa por entre silvas, e Eva precedia-me regougando, saltando. Espinhos que me picavam, cipoais que me prendiam, pedras que me martirizavam os pés, nada detinha a minha desesperada carreira.
Quando cheguei ao moinho a minha primeira ideia foi arrombar a porta, apresentar-me de improviso aos dois amantes, agarrá-los num só abraço, triturá-los... mas quis certificar-me. Aproximei-me de manso, debrucei-me sobre um tronco e espiei por uma frincha. O velho calou-se, arquejando. Nuvens toldaram a lua; descia uma treva densa. A brisa sacudia as ramagens e vinha de longe, dos baunilhais silvestres, o aroma voluptuoso. Lentamente, como quem acorda de um sono, o velho levantou a cabeça alvadia e continuou com a sua voz melancólica:
— Vi, meu amigo! Vi! E vejo ainda porque nunca mais se desvaneceu essa visão tremenda. Os dois juntos: ele era como um tronco forte, ela, como uma parasita em flor. E, vendo-a, a miséria da minha carne fraca foi grande e iníqua. Já não sei mentir — amei-a no lodo, vendo-a de rojo, envilecida, infamada nesse conúbio. Amei-a porque lhe surpreendi a meia nudez descomposta; amei-a e, na minha brutalidade de homem, levantou-se, maior que o ódio, o perdão nascido da volúpia. Amei-a! Lágrimas covardes borbulharam-me nos olhos, e, tremendo, agarrado aos galhos da árvore que era o meu pelourinho — porque não pode haver maior suplício do que o de um homem olhar a sua desonra —, enfraquecia, tíbio e torpe, quando ouvi o grunhido sinistro da negra que vinha pela árvore acima agarrando-se, guindando-se, sem o mais brando bulício, como uma cascavel:
— Olhe, nhô! Olhe, nhô! Foi por isso que ela pediu a minha morte. Era para isso que ela enfeitiçava vancê. Agora espie, nhô... Espie.
Estremeci e o meu ódio despertou mais vivo. Deixei-me cair da árvore e, subindo os degraus que levavam ao moinho, atirei-me d’encontro à porta que foi dentro com estrépito.
Quando me vi no interior, que uma candeia pousada sobre a mó alumiava, em face da adúltera, não sei que estranho ardor queimou-me os olhos, um estremecimento nervoso sacudiu-me todo, e eu, que entrara impetuosamente, fiquei hirto, parado, a olhar embrutecido e mudo.
Serapião ergueu-se lesto encantoando-se, esgazeado; ela, com um grito, ficou de bruços, calada, imóvel, toda nua. E foi assim que os tive diante dos olhos um tempo incontável e talvez me tivesse humilhado até o perdão se Eva não rosnasse implacavelmente fora:
— Então, nhô! Então, nhô!
Meu amigo, não lhe sei contar o assalto do meu furor à covardia do meu coração, sei que investi com o homem. Ele, forte, apertou-me nos braços e parecia que me ia estalar, esmagar nos pulsos, quando escancarou a boca num rugido como de fera alanceada e logo me senti livre, apartando-me do caboclo que tombava agonizando, estrebuchando, d’olhos muito abertos. Fitei-o apavorado e vi que morria...
Mas outros gritos desesperados partiram; voltei-me e vi Leonor que se desprendia dos braços da negra, recuando, as mãos ambas na nuca, vacilante, trôpega, aterrada. Rolou por terra como morta e pude apenas ouvir a sua queixa final, já em voz que a morte enfraquecia: “Meu Deus!”. E se mais disse não lhe ouvi mais nada.
Arrepiado de pavor, voltei-me para a negra. Eva sorria, guardando na mão mirrada um comprido espinho fino e agudo como um estilete. Meu terror foi grande e não lho descreverei, mas o que se passou depois foi bem cruel, bem triste. Leonor, não sei se para morrer perto do amante, se para procurar melhor recanto de repouso extremo, arrastou-se d’olhos baixos para não ver-me e já ia perto de Serapião, sem que eu me animasse a embargar-lhe o caminho, petrificado como estava, na agonia e no assombro, quando a negra investiu cruel e vingativa:
— Nhô! Nhô! ela quer morrer com ele. Até morrendo, nhô!
Creio que me passou pelo espírito uma nuvem de loucura porque não me lembro do que então fiz. Só lhe digo que me achei fora, ao luar, com o corpo amado aos ombros. Saí para a noite seguindo os passos da negra, que sibilava à minha frente indicando-me os caminhos:
— Por aqui, nhô! Por aqui, nhô! — E, sem consciência, cheguei à galhada verde duma grande árvore; junto à raiz havia uma cova profunda, aberta pelas enxurradas. Eva silvava: — Aqui, nhô! Aqui! — E, de quando em quando, vinha com o espinho e espicaçava o corpo flácido que eu transportava, e senti sobre os ombros o último tremor das carnes de minha esposa.
Estremeci, os braços desfaleceram, a morta escorregou-me dos ombros e ouvi o baque no fundo da cova acamada de folhas secas.
A negra começou, assanhada e feroz, a atirar terra para a cova e, de cócoras, raspando o solo, cantava. Louco, horrorizado, deitei a correr sem rumo pela mata na escuridão e no silêncio da noite triste.
A pesada treva que eu varava parecia condensar-se em muralhas negras, os galhos das velhas árvores moviam-se como tentáculos procurando agarrar-me para um suplício, grande como o meu crime. A lúcida poeira dos pirilampos torvelinhava na escuridão como pupilas demoníacas que me espiassem, aves fúnebres grugrulhavam no escuro, e, às vezes, no murmulho da floresta, parecia-me ouvir a voz sumida de Leonor a fugir da terra como se ela me acompanhasse numa carreira subterrânea. Escondi-me em uma caverna escura para que a fera, que ali morava, acabasse com o suplício da minha vida... Mas a noite passou tremenda e solitária.
Encolhido na cafurna, acendeu-se na reminiscência da saudade todo o passado feliz do meu coração — senti o sabor dos beijos extintos, e vi levantar-se na ferrugínea sombra, pálida, nua, embrulhada na cabeleira farta, a morta, minha esposa morta, caminhando para mim a passos lentos, grave, a nuca atravessada pelo espinho terebrante.
Ergui-me trêmulo e trêmulo avancei para a visão, abracei-a, beijei-a e senti que, na sua impalpabilidade de espírito, intangível e sutil como a luz, entrava no meu hálito e, até hoje, vive em minh’alma passeando pela minha consciência. Ah! a vida que levei na selva espessa. À noite a treva fechava a porta da minha furna, durante o dia escondia-me no mais profundo desvão para que me não visse homem nem fera.
Uma manhã — já haviam corrido longos e penosos meses — devia ser dezembro, pelas flores que arrecamavam o arvoredo, eu tinha os cabelos híspidos, as unhas retorcidas, terrosas e aduncas como raízes, pouco me faltava para confundir-me com os vegetais; as palavras, ia-as esquecendo por não ouvir senão bramidos e pios. Uma manhã, dizia, estava eu sentado, com o meu remorso, à entrada da caverna, quando vi passar, fogoso e altivo, a longa crina ao vento, Mouro, o meu cavalo favorito. Chamei-o! Chamei-o! O animal, porém, fugia com mais fúria como se os meus gritos o apavorassem. As próprias bestas esqueciam-me. Era melhor morrer, pensei. Ah! minh’alma, como foste fraca! Mas vamos... Deixei o meu abrigo e atirei-me à floresta sem destino até que ouvi o confuso e troante chofrar das cachoeiras. Era a voz da Morte amiga. Avancei, a correr, para o benefício supremo.
Lindas águas, espumas alvas fervendo. Em torno árvores, pedras, roçados, arbustos, tudo instilava gotas, inclusive o penedo férreo por onde escorria o regato despenhando-se. Parecia que um grande pranto vivia ali, só meus olhos estéreis, queimados pelas vigílias, estavam enxutos. Talvez a lágrima subisse do coração à pupila, mas a ardência absorvia-a ato contínuo como a areia adusta do deserto bebe sôfrega e ávida a gota do orvalho frio. Entanto a pungente jeremiada das coisas foi, pouco a pouco, parecendo-me alegre — o que eu julgava pranto fez-se luz iriante, o que eu julgava soluço fez-se melodia, e um hino vitorioso subiu num concertante módulo em que entraram as vozes d’água, o canto dos passarinhos e o arpejo suavíssimo dos ramos.
Abeirei-me do abismo — as águas espumavam no fundo em cachões nitentes, torvelinhantes. A morte hiante avocava! E fui covarde! Voltei com a minha melancolia.
A vida é um vício. A vida, por mais dolorosa que seja, meu amigo, não é fácil deixá-la. Voltei a passos medidos e a vida sorria em tudo: na flor, no inseto, na ave, no broto do tronco, no rebento do arbusto; só eu trazia mágoas, eu só!
Por que não cresce entre as nossas árvores a mancenilha que mata? Ah! Se eu a tivesse achado com que ânsia feliz repousaria o corpo à sombra dos seus ramos, deixando-me enlaçar lentamente pelo perfume que vai, aos poucos, traindo a vida, adormecendo-a, adormecendo-a até o grande sono definitivo? Mas a selva pátria é leal como a luz: as flores são puras e quem aspira o aroma selvagem rejuvenesce.
Vagando como uma fera no tempo do amor segui vários caminhos. Às vezes, parecia-me ouvir um grito longe, um mugido, o balar de uma ovelha. Ficava-me a escutar e nada... Ilusão! Ilusão! A saudade, que reminiscência triste!, é como uma noite n’alma, sempre povoada de espectros.
Foi em um desses passeios torturantes que sofri o golpe decisivo. Seguia com os olhos na terra sem pegadas quando, não sei dizer por quê, parei diante do rio. À margem apodrecia uma piroga de pesca — era um arcabouço negro, espécie de anfíbio antediluviano. Mas, quando meus olhos baixaram à plácida corrente, recuei. Acabava de ver, pela primeira vez, a minha devastação. Chorei e fugi do espectro. Eu, que durante tanto tempo tomara nas mãos a água de um fio que derivava na minha furna, via-me, pela primeira vez, na grande abundância de um rio, um rio que, com a sua mudez, recordou todos os meus sofrimentos, mostrando-me no rosto os grandes sulcos da mágoa.
Fugi como um evadido foge da presença de um juiz, procurando a floresta, mas vim sair na eira onde estamos, aqui! e foi então que comparei as duas ruínas — a do meu corpo e a do meu sítio. Tudo demolido, tudo abandonado: nem uma voz nos escuros salões, nem um balido nos currais abertos. Santa Luzia era uma tapera... de humano o que encontrei foi um esqueleto dobrado no tronco; a morte em suplício. Quem seria? Quem teria castigado e esquecido em pena essa mísera vítima? Visitei as ruínas, visitei os queridos destroços. Tudo saqueado... Tudo! Mas quando saí para o campo, quando voltei os olhos para o lado do moinho... Mas ouça, ouça depressa. A lua vai alta, à meia-noite a sua luz recolherá todas as sombras e a essa hora eu pertenço à árvore. É a hora da morta! É a hora a morta!
IV
A noite subia silenciosa e diáfana. Sobre as nossas cabeças, no céu alto, recamado d’astros, a Via Láctea estendia-se como um velário de ouro. As vozes da natureza confundiam-se em murmulho trêmulo: eram cicios na erva rasa, arrulhos nas ramarias, crocitos, pios tristes d’acauãs, e perenes, em ritmo monótono, os sapos, nos brejos lôbregos, faziam ressoar o tam-tam merencório.
Soprava um vento gélido. Silvos passavam e ouviam-se leves frêmitos d’élitros d’insetos que esvoaçavam tontos, de ramo em ramo.
E o velho, os olhos desmesuradamente abertos, errando pelas devesas, num espreitar pávido e assombrado, continuou, tartamudeando:
— Quando olhei para o lado do moinho era quase meia-noite. Noite de lua, noite hipócrita, que não é bem treva, porque tem luz; que não é bem clara, porque mal se vê; promiscuidade medonha de sombra e de claridade. Noite de medo! Era bem meia-noite quando aquela árvore agitou-se. Ah! meu amigo, mais vale morrer fulminado pelo pânico do que ter medo. O pavor é um choque — a morte é pavorosa; o medo é a lentidão do pavor, é a consciência do pavor. O bruto não conhece essa fraqueza do espírito porque não discerne; a fera espanta-se, a fera assombra-se, mas não tem medo porque não medita.
Imagine a sensação de um homem que se vai afogando, consciente, pensando — é a sensação do medo: uma asfixia no assombro.
O pavor é rápido, é uma onda que nos atira à praia; o medo é contínuo, é um estado d’alma. Mas aonde vou eu? Falava da árvore... Agitou-se, dizia. Ah! meu amigo, não posso definir o que senti: foi um grande medo. Todo o meu sangue parou como as águas de um rio d’encontro a uma represa, e, frio, entrei a tremer, a tremer como agora tremo no limiar da grande hora trágica. A árvore agitou-se como num espreguiçamento, e sucessivos estalos e crepitações ríspidas fizeram com que meus olhos baixassem das ramas às raízes, e não sei que estranha força fez com que meu corpo arriasse sobre os joelhos. O colosso desprendia-se como um polvo enorme, abandonando a rocha, despegando, um a um, os tentáculos terríveis.
A primeira raiz levantou-se curva, nodosa e negra, e estirou-se pela terra dilatadamente. Outra estalou, arrancou-se, desenroscou-se zunindo como uma vara recurvada que se liberta e silva, ganhando a linha natural. De repente, em bando, todas as raízes deixaram o solo e a árvore grande, extraordinária, folhuda, sacudiu-se com um farfalho horríssono. As raízes foram-se curvando em garras, e o vegetal levantou-se sobre esses pés aduncos lançando derramadamente um tentáculo, outro, e veio lento, bambo, murmulhante, um monstro formidável coberto de folhas híspidas que o luar fazia de prata, em direção ao sítio onde eu me prostrara cativo, avassalando, sob a pata racinosa, arbustos, ervas e o arvoredo novo. O rumor grande que fazia era como o de uma cachoeira que se avizinhasse. Meu amigo, as forças faleceram-me: nem para um grito tive ânimo. Meu coração batia acelerado; copioso suor escorria-me do corpo frio e tiritante, e a árvore caminhava numa convulsão de galhos e de folhas.
Eu olhava e vi, já perto, tão perto que a sua sombra me cobria, a árvore andeja. Tremeu como num sopro violento de ventania, derreou-se, varreu o solo com a folhagem e, quando se levantou, a terra ficou encharcada de sangue.
As folhas perderam a cor viçosa, o verde tenro, ganhando o colorido sandicino — eram como pequenos corações pendurados dos galhos, os galhos vermelhos também, dum vermelho vivo de corais, as raízes, o tronco... e grandes gotas rubras pingavam sobre mim sem descontinuar.
Tentei fugir, mas uma das raízes prendeu-me, enlaçou-me, apertando-me aos poucos, triturando-me. Estive um momento em ânsias formidáveis como Laocoonte, ouvindo gemer essa monstruosa criatura que me molhava de sangue e, exausto, entrei pela morte e do que mais houve não sei, porque já voltavam as cores matutinas ao lívido céu quando abri os olhos, oprimido.
A árvore já se havia enterrado e, lá no seu posto, farfalhava grande, sombria, desgalhada, cheia de passarinhos. Tive dúvidas sobre a tragédia noturna, levando tudo à conta de minha imaginação exaltada, e, para convencer-me, fui até à raiz do colosso, examinei a cova nefanda. Cavei, cavei com as unhas a terra dura, cavei desde a primeira luz até a hora do sol forte
Já exausto, ia abrandando quando, subitamente, as minhas unhas arranharam um corpo liso. Cavei mais e meus dedos arrancaram fios de cabelos louros; cavei mais e o crânio de Leonor, terroso e tábido, apareceu. Tomei-o nas mãos: era a sua formosa cabeça despida pela Morte.
Nas câmaras dos olhos havia vermes moles coleando. Oh! luz das pupilas para o sempre extinta, luz amada! Os dentes subsistiam e, por entre eles, a vermina da Morte insinuava-se. Beijos! oh! beijos tão nojentamente transformados! Nada mais havia ali dentro: era um grande vácuo. E todos os ossos ali estavam amarelecidos e, sobre o crânio, como filandras, os cabelos emaranhados. Tomando-os, pareceu-me que ainda recendiam voluptuosamente. Beijei-os, chorei sobre eles e parti, levando-os para a minha cafurna onde, examinando com amorosa paciência o crânio, achei o espinho cravado entre os cabelos e fiquei-me como um anacoreta, entre as ruínas, ajuntando mais essa ruína dolorosa do meu amor ao descalabro da minha fortuna, ao desespero do meu coração. Leonor!
Pode ainda ver o oratório onde outrora resplandeceram os olhos negros, onde dantes cantaram os beijos mais ardentes que jamais têm despontado em lábios de mulher.
E o dia todo foi-se em contemplação. À noite, porém, quando a sombra baixou de novo envolvendo os meus domínios, o medo começou a cair dentro em mim como uma geada de inverno.
Os vaga-lumes erravam, luciluzindo como fagulhas d’astros, a cachoeira soturna ululava ao longe, o acauã tumular gemia nos ermos desamparados, todas as vozes misteriosas enchiam a noite quando beijei, ainda uma vez, o crânio solitário e, tendo-o perto do ouvido, afagando-o como dantes o afagava, o afagava d’encontro à minha face, quando dentro dele as ideias de perfídia e o luxurioso pensamento demoravam, ouvi um surdo reboo como o que existe no bojo das conchas marinhas. Ah! se o senhor o ouvisse! Era como um gemido sem fim, cavo, dolorido, eterno.
Fuja de ouvir o espectro do som nos crânios ermos — é o eco infindável das lutas íntimas, é o caos da palavra, o indistinto rumor do que foi expressão, do que foi harmonia.
Ouvia, quando um estridor formidando, como de trovões ao longe, arrancou-me à dolorosa audiência — levantei os olhos alucinados e vi: era a árvore que vinha, como na véspera, grande, vagarosa, tremenda... Como fugir, meu amigo? Deixei-me enlaçar e só ao clarear salvador da madrugada levantei-me do horrível sofrimento. Desde essa noite até hoje padeço, sem alívio, a tortura do trasgo que ali vê, coberto de ilusória folhagem. A árvore, que possui a alma da assassinada, vinga-se lentamente enquanto as outras farfalham na grande selva, enchendo as noites pavorosas de lamentos. E Eva? Que é feito dela? Nunca mais a vi! Quem sabe se já apodreceu na terra? talvez ainda viva. Nunca mais a vi... nunca mais! E acenou para o céu num grande desalento, derreando sobre o peito a venerável cabeça.
— Por que não deixa a Tapera?
— Deixá-la? Para quê?
— Para evitar o suplício.
Ah! se eu pudesse evitá-lo fugindo! Não posso, é impossível! A árvore segue-me a toda a parte. Tenho procurado cavernas e a árvore, à meia-noite, mesmo as cavernas invade: sobe aos montes, desce aos vales, corre os campos, penetra a selva cerrada, vadeia os rios ou vai sobre as águas, flutuando como um camalote. Aonde quer que eu vá, a árvore acompanha-me. Ainda no túmulo as suas raízes terebrantes irão macerar cruelmente o meu cadáver. Para que fugir?
— Então?
— Então?! Sofro: espero a meia-noite resignadamente. — Súbito, porém, levantando a cabeça, cravou os olhos na mata e, a tremer, agarrou-se-me aos braços. Os dentes batiam-lhe, as suas unhas cravavam-se nas carnes.
— Que tem?
— Fuja! Fuja! É o acauã! É o acauã! Fuja! é meia-noite. Ela aí vem! Ela aí vem! É a hora! Fuja!
Agarrou com as mãos ambas a cabeça e, gemendo, foi-se pelo mato dentro aos uivos, guaiando, e muito tempo ouvi os seus gemidos. Bradei por ele, mas a solidão devolvia-me os reclamos e longe, efetivamente, as agourentas corujas grazinavam. Tremi.
Toda a mata, num grande e estrupidante murmulho, parecia despertar estrondosamente. Os sons cresciam, as vozes, várias e dispersas, tornavam-se mais nítidas, mais longas, vibrando intensas. Bradei de novo e com desespero e de novo o meu brado veio em ricochete aos meus ouvidos. Senti-me só no assombro, e a lua, solitária no céu, aclarava funereamente a densa paisagem lúgubre.
Voltei os olhos em torno, tremendo, oprimido e avistei o meu cavalo à distância, imóvel como se dormisse. Precipitei-me e montava justamente quando ouvi um grito agudo, percuciente, um grito inexprimível de suprema agonia — e toda a mata tremeu comigo.
Estalos, trepidações, reboos, ventos frios, revoadas de folhas, sombras e claridades, águas correndo, águas escachoando, que mais sei?
Não me lembro de mais! Ora parecia-me seguir por montes íngremes, ora sentia a marcha suave do animal pelas planícies. Que mais sei? nada mais!
Foi com surpresa que, ao despertar, reconheci os muros do meu quarto e os meus em torno do leito em que eu jazia. A lua mal penetrava pelas taliscas porque as janelas tinham os ferrolhos corridos. Os que andavam iam e vinham suavemente, em pontas de pés, cochichando. Quis falar e minha mãe opôs-se carinhosamente.
Só mais tarde contaram-me o final da minha trágica aventura. Faziam-me no sítio dos Reis Magos já repousado, bailando entre a verde folhagem que enfestoava o presepe quando, ao romper da manhã, apareci no sítio.
Roto, alucinado, as mãos em sangue, o rosto lanhado pelos espinhais, eu bradava, em fúria, acossando o animal com estabanados gestos, com palavras loucas. Falava insanamente, aterrado, os olhos grandes e cheios de pavor, o peito em ânsia, ardendo em febre.
Recolheram-me e, no leito, três dias longos passaram sobre mim sem que eu deles me apercebesse, sempre a bradar, assombrado, contra a árvore que vinha esgalhada, estortegada, sinistra, beirando-me para supliciar-me.
Três longos dias de febre! Teria morrido se não fosse o animal conhecedor dos trilhos, que me trouxera, guiado pelo instinto, ao sítio paterno, subindo cerros, atravessando campos.
Ainda hoje, quando me falam do meu assombro e quando eu repito tristemente as palavras do velho, dizem-me, com sorriso incrédulo: “Foi uma visão que tiveste. Sonhaste, deliraste... Honório Silveira é morto, Leonor Silveira é morta, foram ambos vítimas dos escravos revoltados. Todo o sertão conhece a história do levante dos negros de Santa Luzia. Não há duendes nas terras nem vivalma ali passa. Os sertanejos falam desse velho como falam do curupira e da iara das águas correntes. Foi uma visão que tiveste. Sonhaste, deliraste”.
Sonho! Delírio!... Às vezes eu mesmo creio no que dizem. Mas não, não! não foi sonho: eu vi e ouvi!
Tenho de memória o sítio e as palavras desse tristíssimo romance ficaram-me gravadas no espírito como um epitáfio numa lápide.
Sonho! Delírio! Não, a verdade é esta. Tais palavras transcritas são as verdadeiras, caíram da boca gemedora do desvairado penitente. Nem delírio, nem sonho: uma pungente verdade.
Hoje, sim, talvez não mais exista esse protagonista lúgubre! Hoje, sim, talvez sejam na selva vitoriosa absoluto o silêncio e absoluta a solidão, mas que eu o vi e ouvi...
Enfim sonho, delírio ou dolorosa verdade... orai por ele!
(In: Sertão. 3. ed. Porto: Lello & Irmão, [1912]. p. 89-147)
***
Gringuinho
Samuel
Rawet
Chorava.
Não propriamente o medo da surra em perspectiva, apesar de roto o uniforme. Nem
para isso teria tempo a mãe. Quando muito uns berros em meio à rotina. Tiraria
a roupa; a outra, suja, encontraria no fundo do armário, para a vadiagem. Ao
dobrar a esquina tinha a certeza de que nada faria hoje. Os pés, como facas
alternadas, cortavam o barro de pós-chuva. A mangueira do terreno baldio onde
caçavam gafanhotos, ou jogavam bola, tinha pendente a corda do balanço
improvisado.
Reconheceu-a.
Fora sua e restara da forte embalagem que os seus trouxeram. Ninguém na rua. Os
outros decerto não voltaram da escola ou já almoçavam. Ninguém percebeu-lhe o
choro. A vizinha sorriu ao espantar o gato enlameado da poltrona da varanda.
Conteve
o soluço ao empurrar o portão. Com a manga esfregava o rosto marcando faixas de
lama na face. Brilhavam ainda da chuva as folhas do fícus. Olhou a trepadeira.
Novinha, mas já quase passando a janela. Na sala hesitou entre a cozinha e o
quarto. A mãe, de lenço à cabeça, estaria descascando batatas ou moendo carne.
Despertara-lhe a atenção ao lançar os livros sobre a cômoda. Que trocasse a
roupa e fosse buscar cebolas no armazém. Nada mais. Nem o rosto enfiara para
ver-lhe o ar de pranto e a roupa em desalinho. À entrada do quarto surpreendeu
o blá-blá do caçula que, olhos no teto, tocava uma harpa invisível. Era-lhe
estranha a sala, quase estranhos, apesar dos meses, os companheiros. Os olhos
no quadro-negro espremiam-se como se auxiliassem a audição perturbada pela
língua. Autômato, copiava nomes e algarismos (a estes compreendia), procurando
intuir as frases da professora. As vezes perdia-se em fitá-la.
Dentes
incisivos salientes, os cabelos lembrando chapéus de velhas múmias, os lábios
grossos. Outras, rodeava os olhos pelas paredes carregadas de mapas e figurões.
A janela lembrava-lhe a rua, onde se sentia melhor. Podia falar pouco. Ouvir.
Nem provas nem arguições. O apelido. Amolava-o a insistência dos moleques.
Esfregou ante o espelho os olhos empapuçados. Ontem rolara na vala com Caetano
após discussão.
Atrapalhou
o jogo. O negrinho cresceu em sua frente no ímpeto de derrubá-lo.
Gringuinho
burro!
Ajeitou
sobre a cama o uniforme. A lição não a faria. Voltar à mesma escola, sabia
impossível também. Por vontade, a nenhuma. Antigamente, antes do navio, tinha
seu grupo. Verão, encontravam-se na praça e atravessando o campo alcançavam o
riacho, onde nus podiam mergulhar sem medo. À chatura das lições do velho
barbudo (de mão farta e pesada nos tapas e beliscões) havia o bosque como
recompensa. Castanheiros de frutos espinhentos e larga sombra, colinas onde o
corpo podia rolar até a beira do caminho. Framboesas que se colhiam à farta.
Cenoura roubada da plantação vizinha. A voz da mãe repetia o pedido de cebolas.
Coçar de cabeça sem vontade. No inverno havia o trenó que se carregava para
montante, o rio gelado onde a botina ferrada deslizava qual patim. Em casa a
sopa quente de beterrabas, ou o fumegar de repolhos. Sentava-se no colo do avô
recém-chegado das orações e repetia com entusiasmo o que aprendera. Onde o avô?
Gostava do roçar da barba na nuca que lhe fazia cócegas, e dos contos que lhe
contava ao dormir. Sempre milagres de homens santos. Sonhava satisfeito com a
eternidade. A voz do avô era rouca, mas boa de se ouvir. Mais quando cantava.
Os olhos no teto de tábuas, ou acompanhando a chaminé do fogão, a melodia
atravessava-lhe o sono. Hoje entrara tarde na sala. Não gostava de chamar a
atenção sobre si, mas teve que ir à mesa explicar o atraso. Cinquenta pares de
olhos fixos em seus pés que tremiam. O pedido de cebolas veio mais forte.
Gargalhada maciça em contraponto aos titubeios da boca, olhos e mãos. A custo
conteve as lágrimas quando tomou o lugar. Chorara assim quando no primeiro
sábado saiu de boné com o pai em direção à sinagoga. Caetano, Raul, Zé Paulo,
Betinho fizeram coro ao fim da rua repetindo em estribilho o gringuinho. Suspenso o chocalho deparou
com os olhos do irmão nos seus. Blá-blá. Sorriso mole. Sentara-se. Abrira o
livro na página indicada, tenteando como um cego, para entrar no compasso da
leitura. Nem às figuras se acostumara, nem às histórias estranhas para ele, que
lia aos saltos. Fala gringuinho.
Viera de trás a voz, grossa, de alguém mais velho. Fala gringuinho. Insistia. Ao girar o pescoço na descoberta da
fonte fora surpreendido pela ordem de leitura. Olhou os dentes aguçados
insinuando-se no lábio inferior como para escapar. Explicar-lhe? Como? Mudo
curvou a cabeça como gato envergonhado por diabrura. Era-lhe fácil a lágrima.
Lembrou um domingo. Enfiou-se pelo pátio com Raul que o chamara à sua casa. No
fundo do quintal cimentado, sob coberta, dispusera os dois times de botões. Da
copa o barulho, ainda, de talheres, fim do ajantarado. Chamaram. A mãe cortou o
melão e separou duas fatias. Raul agradeceu pelos dois. “Ah! é o gringuinho!”
Expelida pelo nariz a fumaça do cigarro, o pai soltara a exclamação. Quase o
sufoca a fruta na boca. Os tios concentraram nele a atenção. Parecia um bicho
encolhido, jururu, paralisado, as duas mãos prendendo nos lábios a fatia. “Fala gringuinho!” Coro. Fala gringuinho. Novamente as vozes
atrás da carteira. Da outra vez correra como acuado em meio a risos. Recolhido
no quarto desabafou no regaço da mãe. Blá-blá. Agitar do chocalho. Um cheiro de
urina despertara-o da modorra. Um fio escorria da fralda no lençol de borracha.
Fala gringuinho. Sentiu-se crescer e
tombar para trás a cadeira. Em meio à gritaria a garra da velha suspendeu-o
amarrotando a camisa. Cercado, alguns de pé sobre as mesas, recolheu-se à mudez
expressiva. Da vingança intentada restara a frustração que se não explica por
sabê-la impossível. Blá-blá! A poça de urina principiava a irritá-lo e após
esperneios o irmão arrematou em choro arrastado. Agitou o chocalho novamente,
com indiferença, olho na rua. O matraqueado aumentara o choro. Não percebeu a
entrada da mãe. Sem olhá-lo recolheu o irmão no embalo. Tirou da gaveta a
fralda seca, e entre o ninar e o gesto de troca passou-lhe a descompostura.
Insistiu no pedido do armazém. Ele tentou surpreender-lhe o olhar, conquistar a
inocência a que tinha direito. Depois gostaria de cair-lhe ao colo, beijá-la e
contar tudo, na certeza de que lhe seria dada a razão. Mas nada disso.
Recolhendo os níqueis procurou a porta. Traria as cebolas. E não contaria que,
ao ser repreendido na escola, na impotência de dar razões, quando a velha
principiou a amassar-lhe a palma da mão com a régua negra e elástica, não se
conteve e esmurrou-lhe o peito rasgando o vestido. Quando atravessou o portão
acelerou a marcha impelido pelo desejo de ser homem já. Julgava que correndo
apressaria o tempo. Seus pés saltitavam no cimento molhado, como outrora
deslizavam, com as botinas ferradas, pelo rio gelado no inverno.
(In: O conto brasileiro
contemporâneo. Org. Alfredo Bosi. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1975, p.
253-255).
***
Clarice Lispector
Pois
é.
Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da mulher do
médico que tratava da filha, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam, e a
mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o
amante podia entrar. Ou era toalha de cor e ele não entrava.
Mas estou me confundindo toda ou é o caso que é tão enrolado que se eu
puder vou desenrolar. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque
além de contar os fatos também adivinho e o que adivinho aqui escrevo, escrivã
que sou por fatalidade. Eu adivinho a realidade. Mas esta história não é de
minha seara. É de safra de quem pode mais que eu, humilde que sou. Pois a filha
teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa Jandira, de dezessete
anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava noiva. Mal o noivo
viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não percebeu que era
patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente desmanchar sem remorso
o noivado, que aleijada ele não queria. Todos, inclusive a mãe sofrida da moça,
imploraram ao noivo que fingisse ainda amá-la, o que – diziam-lhe – não era tão
penoso porque seria a curto prazo: é que a noiva tinha vida a curto prazo.
E daí a três meses – como se cumprisse promessa de não pesar nas débeis ideias do noivo – daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos, inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer.
O noivo, que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com esta continuou, pouco ligando.
Bem. Essa mulher ardente lá um dia teve ciúmes. E era requintada. Não posso negligenciar detalhes cruéis.
Mas onde estava eu, que me perdi? Só começando tudo de novo, e em outra
linha e outro parágrafo para melhor começar.
Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto Bastos dormia despejou água fervendo
do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar um urro
antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar que era o pior grito que
tinha, grito de bicho. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre a vida e
a morte, esta em luta feroz com aquela.
A virago, chamada Leontina, pegou um ano e pouco de cadeia.
De onde saiu para encontrar-se – adivinhem com quem? pois foi encontrar-se
com o Bastos. A essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para
sempre, logo ele que não perdoara defeito físico.
O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.
Enquanto isto a menina de dezessete anos morta há muito tempo, só deixando
vestígios na mãe desgraçada.
E se me lembrei fora de hora da mocinha é pelo amor que sinto por Jandira.
Aí é que entra o pai dela, como quem não quer nada. Continuou sendo amante
da mulher do médico que tratara de sua filha com devoção. Filha, quero dizer,
do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva morta. Acho que me
perdi de novo, está tudo um pouco confuso, mas que posso fazer?
O médico, mesmo sabendo ser o pai da mocinha amante de sua mulher, cuidara
muito da noivinha espaventada demais com o escuro de que falei. A mulher do pai
– portanto mãe da ex-noivinha – sabia das elegâncias adulterinas do marido que
usava relógio de ouro no colete e anel que era joia, alfinete de gravata de
brilhante. Negociante abastado, como se diz, pois as gentes respeitam e
cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, não é mesmo? Ele, o pai da
moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas. Como é que
sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a adivinhação imaginadora.
Eu sei, e pronto.
Não posso esquecer um detalhe. É o seguinte: o amante tinha na frente um
dentinho de ouro, por puro luxo. E cheirava a alho. Toda a sua aura era alho
puro, e a amante nem ligava, queria era ter amante, com ou sem cheiro de
comida. Como é que eu sei? Sabendo.
Não sei que fim levaram essas pessoas, não soube mais notícias.
Desagregaram-se? pois é história antiga e talvez já tenha havido mortes entre
elas, as pessoas. A escura, escura morte. Eu não quero morrer.
Acrescento um dado importante e que, não sei por quê, explica o nascedouro
maldito da história toda: esta se passou em Niterói, com as tábuas do cais
sempre úmidas e enegrecidas, e suas barcas de vaivém. Niterói é lugar
misterioso e tem casas velhas, escuras. E lá pode acontecer água fervendo no
ouvido de amante? Não sei.
O que fazer dessa história que se passou quando a ponte Rio-Niterói não
passava de um sonho? Também não sei, dou-a de presente a quem quiser, pois
estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjoo de gente. Depois passa e
fico de novo toda curiosa e atenta.
E é só.
[1974]
(In: A via
crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998).
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