Os cem contos que amei ler I (20 contos disponibilizados nesta postagem) *Atualizados com a ortografia vigente
- A terceira margem do rio (Guimarães Rosa)
- Venha ver o pôr do sol (Lygia Fagundes Telles)
- Uma vela para Dario (Dalton Trevisan)
- O enfermeiro (Machado de Assis)
- A boneca no poço (Tania Jamardo Faillace)
- O crime do professor de matemática (Clarice Lispector)
- Centauro (José Saramago)
- O homem sozinho numa estação ferroviária (Sérgio Sant'Anna)
- O coração delator (Edgar Allan Poe)
- Cemitério de elefantes (Dalton Trevisan)
- Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon (José Cândido de Carvalho)
- Biruta (Lygia Fagundes Telles)
- Sem tirar as botas (Klas Östergren)
- A procura de uma dignidade (Clarice Lispector)
- Pierre Menard, autor do Quixote (Jorge Luis Borges)
- A velhinha contrabandista (Stanislaw Ponte Preta)
- O museu Darbot (Victor Giudice)
- A quinta história (Clarice Lispector)
- O retrato oval (Edgar Allan Poe)
- Colher de chá (Orígenes Lessa)
A terceira margem do rio
Nosso pai era homem cumpridor,
ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as
diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me
alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros,
conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário
com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas deu que, certo dia, nosso pai
mandou fazer para si uma canoa.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiçou e bramou: — “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — “Pai, o senhor me leva junto nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura: por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa: ou que nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente.
Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e ele, ou desembarcava e viajava s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpriria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase: mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca mais falou palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupa que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca poderia querer me casar. Eu permaneci com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio, no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em toroma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou de pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei
que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não
foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida,
nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em
mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de
longas beiras: e eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
Venha ver o pôr do sol
Lygia Fagundes Telles
Ela subiu sem
pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando,
modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio
da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças
brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude
da tarde.
— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hein?!
— Ah, Raquel... – e ele tomou-a pelo braço, rindo. – Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
— Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz. – E que é
isso aí? Um cemitério?
— É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi u cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. – Vamos embora, Ricardo, chega.
— Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
— Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
— É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
— Ele é tão rico assim?
— Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
— Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine, um ano.
— É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
— Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – À minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo. – Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
— Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda – o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
— Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega, Ricardo, quero ir embora.
— Mais alguns passos...
— Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
— A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a para a frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelhinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
— Sua prima também?
— Vocês se amaram?
— Ela me amou. Foi a única criatura que ... – Fez um gesto. – Enfim, não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.
— Eu gostei de você, Ricardo.
— E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um gemido. Ela estremeceu.
— Esfriou, não? Vamos embora.
— Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ela a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
— Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos,
velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste
cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro
mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
— Todas essas gavetas estão cheias?
— Cheias?... Sorriu. – Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe – prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
— Vamos, Ricardo, vamos.
— Você está com medo.
— Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.
— A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... – Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. – Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante com tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
— Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
— Pegue, dá para ver muito bem... – Afastou-se para o lado. – Repare nos olhos.
— Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... – Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. – Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... – Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha se sorriso meio inocente, meio malicioso.
— Isto nunca foi o jazigo de sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
— Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. – Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
— Uma réstia de sol vai entra pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
— Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! – Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
— Boa noite, Raquel.
— Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. – Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! – exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. – Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
— Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
— Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
— NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.
(In: Antes
do baile verde, 2ª ed. rev. e aum. RJ, Ed. José Olympio, 1971, p. 103-111).
Uma vela para Dario
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse e o deixasse respirar. E abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.
Cada pessoa que chegava se punha na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao lado dele.
Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo transportou-o na direção do táxi estacionado na esquina. Haviam introduzido no carro a metade do corpo, quando o motorista protestou: se ele se finasse na viagem? Concordaram em chamar a ambulância. Dario foi conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos e o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informou que na outra rua existia uma farmácia. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia era no fim do quarteirão e, além do mais, ele estava muito pesado. Foi largado ali na porta de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse o menor gesto para espantá-las.
As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham vindo apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os documentos. Vários objetos foram retirados dos seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do seu nome, idade, cor dos olhos, sinais de nascença, mas o endereço na carteira era de outra cidade.
Registrou-se tumulto na massa de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupava toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra a multidão e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.
O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo - os bolsos vazios. Restava apenas a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio - quando vivo - não podia retirar do dedo senão umedecendo-o com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.
A última boca repetiu - "Ele morreu, ele morreu", e então a gente começou a se dispersar. Dario havia levado quase duas horas para morrer e ninguém acreditara que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-lo, viam que tinha todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde as bolhas de espuma haviam desaparecido. Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as mesas do café voltaram a ficar vazias. Demoravam-se na janela alguns moradores, que haviam trazido almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva que voltava a cair.
(In Antologia escolar de contos brasileiros. 5ª ed.. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1973, p. 243-245).
***
O
Enfermeiro
Machado
de Assis
Parece-lhe então que o
que se deu comigo em 1860 pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a
condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não
esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu poderia mesmo
contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras coisas interessantes, mas
para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é
frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do
outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor,
leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate
muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo
aqui. Não peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus;
peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.
Já sabe que foi em
1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos,
fiz-me teólogo, - quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de
Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa,
cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário
de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e
paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, mediante
um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já
enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte
despedir-me de um irmão, e segui para a vila.
Chegando à vila, tive
más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o
aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dois
deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de
doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias
recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do
coronel.
Achei-o na varanda da
casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não
dizer nada; pôs em mim dois olhos de gato que observa; depois, uma espécie de
riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que
nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram
respondões e andavam ao faro das escravas; dois eram até gatunos!
͟ Você é gatuno?
—
Não, senhor.
Em seguida,
perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não,
senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? Achou que não era nome de gente,
e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que
fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece
pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor ideia ao
coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais
simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de
sete dias.
No oitavo dia, entrei
na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais
nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e
conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinência da
moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de
aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de
sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só
rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação
dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir
embora; só esperei ocasião.
Não tardou a ocasião. Um
dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me
dois ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui
aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não
valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.
— Estou na
dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou
aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por
nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou
rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de
outro mundo, Procópio?
— Qual o quê!
— E por que é que
não há de crer, seu burro? redarguiu
vivamente, arregalando os olhos.
Eram assim as pazes;
imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas,
se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era
burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia
mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um
sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de junho, em Minas.
Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez
minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais
de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.
Não só as relações
foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por retornar à Corte. Aos
quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao
pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber
que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao
coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a
Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é
dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado
integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.
Era provável que a ocasião
aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião quase
tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura
faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade
que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento
de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o
vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo
mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o
estado do doente. O vigário tratou de procurar-me um substituto.
Vai ver o que
aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de
raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou
atirando-me um prato de mingau, que achou frio; o prato foi cair na parede,
onde se fez em pedaços.
— Hás de pagá-lo,
ladrão! bradou ele.
Resmungou ainda muito
tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do
bolso, um velho romance de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a
lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à
meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse do cansaço, ou do livro, antes de
chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel,
e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos
gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive
tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que
não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e
esganei-o.
Quando percebi que o
doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei
à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde, arrebentara o aneurisma, e o
coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar
ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um
atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham
vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e
durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer
que me voltasse, parecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo
imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me
bradavam: assassino! assassino!
Tudo o mais estava
calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a
solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma
palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse
a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte,
cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa, na sala, sentava-me,
punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. “Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!” exclamava. E
descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um
lugar, e os que pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade
dos outros homens.
Como o silêncio
acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se
ventasse. Não ventava. A noite ia tranquila, as estrelas fulguravam, com a
indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a
falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite,
deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor
presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com
um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti
que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de
pessoas, no terreiro, espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos
esvaíram-se no ar; era uma alucinação.
Antes do alvorecer
curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes,
mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as
pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o
crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a
cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando
passar a eterna palavra dos séculos: “Caim, que fizeste de teu irmão?”. Vi no
pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei-lhe alto a camisa e cheguei ao queixo
a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel
amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.
A primeira ideia foi
retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e na verdade,
recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas
adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu
mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da
sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma coisa. Queria ver no
rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava
impaciência: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as
cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos
trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com
piedade:
— Coitado do
Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.
Pareceu-me ironia;
estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia-escuridão
da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então
impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo
acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência e
as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso
dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe
do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...
— Deixa lá o outro
que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.
E eu aproveitava a
ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura,
impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E, elogiando, convencia-me
também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que
talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa
pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não
disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo,
persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à
porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que
fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel,
que não dissesse: “Deus lhe fale n’alma!”. E contava dele algumas anedotas
alegres, rompantes engraçados...
Sete dias depois de
chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei,
dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro
universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui
aos amigos; todos leram a mesma coisa. Estava escrito; era eu o herdeiro
universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo
que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais,
eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria ser instrumento. Reli a
carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.
— Quanto tinha ele?, perguntava-me meu irmão.
— Não sei, mas era
rico.
— Realmente,
provou que era teu amigo.
— Era... Era...
Assim, por uma ironia
da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a
herança. Parecia-me odioso receber um vintém de tal espólio; era pior do que
fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na
consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma coisa. No fim de
três dias, assentei num meio-termo: receberia a herança e dá-la-ia toda, aos
bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o
crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.
Preparei-me e segui
para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste
sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do
coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as
palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...
Crime ou luta? Realmente,
foi uma luta em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta
desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa ideia. E balanceava os agravos,
punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o
sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu
perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei
também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o
sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já
não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer
contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram
apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra coisa. Fixei-me
também nessa ideia...
Perto da vila
apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e fui. Receberam-me com
parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e
de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira o coronel,
que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.
— Sem dúvida,
dizia eu, olhando para outra parte.
Estava atordoado. Toda a
gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do
inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as coisas
correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me
coisas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas
virtudes, era austero...
— Qual austero! Já
morreu, acabou; mas era o diabo.
E referiam-me casos
duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a
princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um
singular prazer, que eu, sinceramente, buscava expelir. E defendia o coronel,
explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que
era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o
barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma
coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos
lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado,
insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a
arrancasse aos pedaços, recompunha-se logo e ia ficando.
As obrigações do
inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária
ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa
que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em
títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a ideia de distribuí-la
toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei
mesmo que era uma afetação. Restringi o plano primitivo: distribuí alguma coisa
aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa
Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dois contos. Mandei também
levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui
esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.
Os anos foram andando,
a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os
terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele,
foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido
tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que
então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse
aquela fatalidade...
Adeus, meu caro senhor.
Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um
túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao
divino sermão da montanha: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão
consolados”.
[Publicado originalmente em 1986 no livro Várias Histórias]
(In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, vol. II.
***
A boneca no poço
Tania
Jamardo Faillace
Um dia, enterrei uma boneca no quintal. Era
minha, e deram-na a Antônia. Cavaram o chão, remexeram as alfaces da horta e
nunca mais a encontraram.
Riram de mim:
— Mentira tua!
Nunca que
tu ias fazer uma coisa dessas...
Mas eu sei. Não será ela que arredonda
suavemente a raiz do cinamomo? Ou que levanta a base do muro, lá nos fundos?
E apraz-me hesitar, perder-me no longo
devaneio de uma lembrança muito velha.
Enrolávamos fitas... Sim, era isso. Enrolávamos
fitas para a caixinha da avó. Rosas, azuis, uma verde muito curta para dar três
voltas ao dedo, e metros e metros de fita amarela.
Pois aí, meu irmão levantou a cabeça e
disse:
— Sabe?... Se
eu casava, gostava de casar contigo.
Na quinzena
seguinte, morreu.
Fora espiar o
sapo-gigante que diziam estar morando bem no fundo do poço.
Às quatro, não
aparecera para a merenda. E era guloso. E havia pasteis de creme naquela tarde.
Gritamos o seu
nome no patamar da escada, sob a parreira, junto ao galinheiro. O som ia e não
voltava. Como saber que era a água do poço que o absorvia?
Reto e rijo,
se afirmava como se passasse por uma fresta muito pequena e, de repente,
cessava. Nem o vento podia com ele.
E quis que a
noite caísse depressa, para ir ao quintal.
Adormeci contra
o armário da rouparia. E acordei erguida por braços nervosos.
— Mãe...
— Lela! Isso é
coisa que se se faça? Dormir no chão!... – mas olhava por cima de mim.
— Não souberam
nada? – era para as crianças, agrupadas junto à porta.
— Nos vizinhos
aqui perto, não está – respondeu Antônia.
A porta também
era alta, o trinco batia-me na face, e no teto esmaltado do corredor, duas
aranhas jogavam carreira.
— Mãe... olha!
Quem olhará
para o alto, quando de dentro do chão vem um rumor surdo de água?
Era noite, já.
Via-se nas lâmpadas oscilantes, agora visíveis, luminosas... nas sombras
espessas do assoalho às paredes, no fogão da cozinha... fogão da cozinha... ah,
como se houvesse outro... E riso desafinado, molhado de lágrimas, me inclinava
sobre a mesa.
Ninguém sentado
– só nós quatro: Luiz, Antônia, Lela e Carminha.
Os grandes
caminhavam. E estremeciam tábuas de assoalho, e estremecia a mesa, e
estremeciam bancos, e escorregavam e tilintavam louça e talheres como se
estivéssemos num bote.
Soava a
campainha... portas batiam... vozes conversavam ligeiro, mas cheias de
hesitação.
Mãe
inquiridora diante da mesa:
— Ele não
disse nada para vocês?
Disse. Lela...
Mas o que
queria sair obstinadamente de minha boca era: “Um sapo...” Sapo-gigante igual à
história da bola de ouro. Fora a criada que falara nele? fora Antônia? fora a
avó?
— Fernando
está escondido, dizia eu. Vai esperar a lua para ver o sapo. Tenho um pastel
para ele.
Ninguém ouvia.
Ou era eu que não falava?
À meia-noite
surgiu a lua. Porque é preciso que todas as luas surjam à meia-noite.
As crianças
dormiram dizendo:
— Será que
Fernando fugiu?
Os grandes não
dormiram.
Não me lembro
da porta do quarto, nem do corredor, nem da cozinha. Estava no patamar e já
descia a escada dos fundos, segurando alto uma vassoura. Persistia vaga
lembrança de lixo emborcado, lata caída sobre os degraus.
Oh, essa areia
tão macia... tão cinzenta debaixo da lua...
A parreira...
O galinheiro... e a tela era um véu dentro da noite... A horta... e as alfaces
estavam molhadas sob os meus pés... O portão... e trinco resistiu ao meu peso,
quando o cavalguei...
Essa areia...
tão macia... Furando-se a terra, chegava-se ao poço?
O poço... E
havia luar de seus dois lados.
— Fernando...
— ...
— Guardei um
pastel para ti.
— ...
— Já viste o
sapo?
E esperava a
resposta. Batia com a cabeça, dizia sim, e sabia que estava mentindo.
A beira do
poço... a corda do poço... a tampa do poço! Fechada. Frestas entre as tábuas. Mas
as paredes... tijolos ligados.
Orelha
encostada contra a tampa, ouvia subir um rumor de mar... de concha... um rumor
de mar... mar secreto... mar estrangulado num buraco fundo...
— Fernando...
Irmãozinho...
Enrolávamos fitas,
sim. E dentes miúdos, separados, luziram entre risadinhas:
— Se eu
casava, casava contigo.
Aí eu soube:
era meu! Comigo... não com mamãe! E pequeno, à minha medida, cabia em cheio no
meu regaço, e dava cabeçadinhas doces como um bebê.
Mas a mãe o
levava. Sempre! E era meu!
— Fernando,
tem um sapo enorme bem lá no fundo do poço...
Fora eu quem
dissera?
E tinira o
balde contra os tijolos, quando a corda se despencara...
Agora
levantava a tampa devagar. A boca do poço se abria. De dentro, um hálito de
treva.
— Fernando...
pega...
Enfiei a
vassoura no vácuo. Tateei à procura da água. Muito longe, a água se rompeu como
a pele de um tambor. Espreitei. E vi negror, e contemplei detidamente a
escuridão.
Deixei cair o
pastel:
— Toma!
Não era nada. Mas
me ajudava.
Sentei sobre a
borda.
— Estou
aqui... contigo...
Comigo. Não com
mamãe.
A água
balançava suavemente, eu tinha certeza e, de olhos fechados, ninguém tem medo
do escuro.
Ao amanhecer,
os grandes me acharam.
Boiava o
menino lá embaixo. E girava lentamente na água... para um lado... para outro...
Ninguém acreditou
no que eu contei.
— Sensível...
muito sensível... – disseram.
Mas se assim
fosse, como lembro de maneira tão perfeita a descida pela corda do balde... a
queda na água... a tampa corrida depressa sobre a boca do poço?
Um dia,
enterrei uma boneca no quintal. E por mais que a procurassem, nunca mais a
encontraram.
(In: Vinde a mim os pequeninos. São Paulo: Lume Editora, 1977, p. 22-27).
***
O
crime do professor de matemática
Clarice
Lispector
Quando o homem atingiu a colina mais alto, os sinos
tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto
dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado
na mão.
Olhou para baixo com olhos
míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir
as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da
manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia
imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas
secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal
pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor
porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas
lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros,
quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de
meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou.
Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir
algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu
por um instante a altura — sim, ele estava bem só.
O ar fresco era inóspito, ele que
morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos.
Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia por que esperar mais.
E no entanto aguardava.
Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e
guardou-os no bolso.
Abriu então o saco, espiou um
pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele
se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente
fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os
sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição. O
cachorro desconhecido estava à luz.
Então ele se pôs metodicamente a
trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno.
Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e
começou a observar a paisagem. Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a
chapada deserta.
Mas observou com precisão que
estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo.
Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo
da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão.
Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele
próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da
chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido
substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse
precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do
homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto. Em breve,
por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar
rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia
num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto.
Diante da dificuldade o homem concedeu: “não era necessário enterrar no centro,
eu também enterraria o outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo
instante em pé”. Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do
acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente — no mesmo plano das
crianças, na praça e dos católicos entrando na igreja — tratava-se de tornar o
fato ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor-se
e de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um
pensamento.
À ideia de enterrar o cão onde
estivesse nesse mesmo momento em pé — o homem recuou com uma agilidade que seu
corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob
os pés se desenhara o esboço da cova do cão.
Então ele começou a cavar ali
mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os
óculos. Suava penosamente. Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu
cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: “se fosse para o verdadeiro cão,
eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície
da terra não perderia a sensibilidade.
Afinal largou a pá, pegou com
delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova. Que cara estranha o cão
tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a ideia de
enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer
tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e
objetivo.
O cão era um pouco mais alto que
o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas
sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com
terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas
palmas como se o alisasse várias vezes. O cão era agora apenas uma aparência do
terreno.
Então o homem se levantou,
sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo
gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de
libertação. Sim, fizera tudo.
Seu crime fora punido e ele
estava livre.
E agora ele podia pensar
livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro
cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar
perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não
tinha mais dono. Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como
se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro
estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o
aproximasse da lembrança.
“Enquanto eu te fazia à minha
imagem, tu me fazias à tua”, pensou então com auxílio da saudade. “Dei-te o
nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu —
como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”,
refletiu curioso. “Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te
dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar
insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à
vontade.
“Lembro-me de ti quando eras
pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo,
me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas,
desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia
abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta
compreensão”, lembrou-se o homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e
rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que
já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se
podia abandonar.”
“E como cheiravas as ruas!”,
pensou o homem rindo um pouco, “na verdade não deixaste pedra por cheirar… Este
era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o
resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranquilo
o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras
irredutível: eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz, mas
pulaste um dia sobre a mesa e, entre os gritos felizes das crianças, agarraste
a carne e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e
irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um
pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender
que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso
começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas
naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não
deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era
isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias
demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um
homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes, sentado sobre as patas diante
de mim, como me espiavas!
Eu então olhava o teto, tossia,
dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias
contar? Finge — dizia-me eu —, finge depressa que és outro, dá a falsa
entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso — mas nada te distraía: tu me
espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o inocente: que
eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e eriçado,
atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos os dias
um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante, abanavas o
rabo.”
“Às vezes, tocado pela tua
acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser
cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo
tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e
vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como
se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de
que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”
“Mas possuíste uma pessoa tão
poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com
alívio sim, pois exigias — com a incompreensão serena e simples de quem é um
cão heroico — que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em
casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem
e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova
cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma, disse Marta
prática. ‘Que incomodará os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que
previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para
elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a
possibilidade constante do crime que eu nunca tinha cometido. A possibilidade
de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei
logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não
teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez mais lúcido.
“Há tantas formas de ser culpado
e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de
ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e
que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem.
Porque eu sabia que esse crime não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça
matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda
sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre.
Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e
para as profundas traições.
Um homem ainda conseguia ser mais
esperto que o Juízo Final. Este crime ninguém lhe condenava. Nem a Igreja.
“Todos são meus cúmplices, José.” Eu teria que bater de porta em porta e
mendigar que me acusassem e me punissem: todos me bateriam a porta com uma cara
de repente endurecida. Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me
condenarias. Pois bastaria, esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar
— e, do teu abandono nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e
perdão. Eu te daria a outra face a beijar.” O homem tirou os óculos, respirou,
botou-os de novo.
Olhou a cova coberta. Onde ele
enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim
pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se
com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola
para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão
abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira; como se exigisse que ele,
num último arranco, fosse um homem — e como homem assumisse o seu crime — ele
olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.
E agora, mais matemático ainda,
procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava
friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se
então, e, solene, calmo, com movimentos simples — desenterrou o cão. O cão
escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos
abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime
para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha
para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas
em direção ao seio de sua família.
(In Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960).
***
Centauro
José Saramago
O cavalo parou. Os cascos sem ferraduras firmaram-se nas pedras redondas
e resvaladiças que cobriam o fundo quase seco do rio. O homem afastou com as
mãos, cautelosamente, os ramos espinhosos que lhe tapavam a visão para o lado
da planície. Amanhecia já. Ao longe, onde as terras subiam, primeiro em suave
encosta, como tinha lembrança se eram ali iguais à passagem por onde descera
muito ao norte, depois abruptamente rasgadas por um espinhaço basáltico que se
erguia em muralha vertical, havia umas casas àquela distância baixíssimas,
rasteiras, e umas luzes que pareciam estrelas. Sobre a montanha, que barrava
todo o horizonte daquele lado, via-se uma linha luminosa, como se uma pincelada
subtil tivesse percorrido os cimos, e, húmida, aos poucos se derramasse pela
vertente. Dali viria o sol. O homem largou os ramos com um movimento descuidado
e arranhou-se: soltou um ronco inarticulado e levou o dedo à boca para chupar o
sangue. O cavalo recuou batendo as patas, varreu com a cauda as ervas altas que
absorviam os restos da humidade ainda conservada na margem do rio pelo abrigo
que os ramos pendentes faziam, cortina àquela hora negra. O rio estava reduzido
ao fio de água que corria na parte mais funda do leito, entre pedras, de longe
em longe aberta em charcos onde sobreviviam e ansiavam peixes. Havia no ar uma
humidade que prenunciava chuva, tempestade, decerto não nesse dia, mas no
outro, ou passados três sóis, ou na próxima lua. Muito lentamente, o céu
aclarava. Era tempo de procurar um esconderijo, para descansar e dormir.
O cavalo teve sede. Aproximou-se da corrente de água, que estava como
parada sob a chapa da noite, e quando as patas da frente sentiram a frescura
líquida, deitou-se no chão, de lado. O homem, com o ombro assente na areia
áspera, bebeu longamente, embora não tivesse sede. Por cima do homem e do
cavalo, a parte ainda escura do céu rodava devagar, arrastando atrás de si uma
luz pálida, apenas por enquanto amarelada, primeiro e, se não conhecido,
enganador anúncio do carmim e do vermelho que depois explodiriam por cima da
montanha, como em tantas outras montanhas de tão diferentes lugares vira
acontecer ou ao rés das planícies. O cavalo e o homem levantaram-se. Em frente
estava a espessa barreira das árvores, com defesas de silvados entre os troncos.
No alto dos ramos já piavam pássaros. O cavalo atravessou o leito do rio num
trote inseguro e quis romper a direito pelo emaranhado vegetal, mas o homem
preferia uma passagem mais fácil. Com o tempo, e tivera muito e muito tempo
para isso, aprendera os modos de moderar a impaciência animal, algumas vezes
opondo-se a ela com uma violência que eclodia e prosseguia toda no seu cérebro,
ou porventura num ponto qualquer do corpo onde se entrechocavam as ordens que
do mesmo cérebro partiam e os instintos obscuros alimentados talvez entre os
flancos, onde a pele era negra; outras vezes cedia, desatento, a pensar noutras
coisas, coisas que eram sim deste mundo físico em que estava, mas não deste
tempo. O cansaço tornara o cavalo nervoso: a pele estremecia como se quisesse
sacudir um tavão frenético e sequioso de sangue, e os movimentos das patas
multiplicavam-se desnecessários e ainda mais fatigantes. Seria uma imprudência
tentar abrir caminho através do entrelaçado das silvas. Havia demasiadas
cicatrizes no pêlo branco do cavalo. Uma delas, muito antiga, traçava na garupa
um rasto largo, oblíquo. Quando o sol batia forte, de chapa, ou quando, pelo
contrário, o frio arrepanhava e eriçava o pêlo, era como se ali, faixa sensível
e desprotegida, assentasse incandescente um fio de espada. Apesar de muito bem
saber que nada iria encontrar a não ser uma cicatriz maior do que as outras, o
homem, nessas ocasiões, torcia o tronco e olhava para trás, como para o fim do
mundo.
A pequena distância, para jusante, a margem do rio recolhia-se para o
interior do campo: havia decerto ali uma albufeira, ou seria um afluente, tão
seco ou mais ainda. O fundo era lodoso, tinha poucas pedras. Ao redor desta
espécie de bolsa, afinal simples braço do rio que enchia e vazava com ele,
havia árvores altas, negras sob a escuridão que só lentamente se ia levantando
da terra. Se a cortina dos troncos e dos ramos derrubados fosse suficientemente
densa, poderia passar ali o dia, bem escondido, até que fosse outra vez noite e
pudesse continuar o seu caminho. Afastou com as mãos as folhas frescas e,
impelido pela força dos jarretes, venceu a ribanceira na escuridão quase total
que as copas fartas das árvores defendiam naquele lugar. Logo a seguir, o
terreno tornava a descer para uma vala que, mais adiante, provavelmente,
atravessaria o campo a descoberto. Encontrara um bom esconderijo para descansar
e dormir. Entre o rio e a montanha havia campos de cultivo, terras amanhadas,
mas aquela vala, profunda e estreita, não mostrava sinais de ser lugar de passagem.
Deu mais alguns passos, agora em completo silêncio. Os pássaros assustados
observavam. Olhou para cima: viu iluminadas as pontas altas dos ramos. A luz
rasante que vinha da montanha roçava agora a alta franja vegetal. Os pássaros
recomeçaram a chilrear. A luz descia pouco a pouco, poeira esverdeada que se
mudava em róseo e branco, neblina subtil e instável do amanhecer. Os troncos
negríssimos das árvores, contra a luz, pareciam ter apenas duas dimensões, como
se tivessem sido recortados do que restava da noite e colados sobre a
transparência luminosa que mergulhava na vala. O chão estava coberto de
espadanas. Um bom sítio para passar o dia dormindo, um refúgio tranquilo.
Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se.
Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre uma operação
difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também
assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem
se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco,
tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer
voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de
pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado
estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era
um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar
os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou
a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para
ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas
patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais
para trás: então, sim, via melhor a grande campanula nocturna das estrelas, o
prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último
vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as
crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo.
O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala,
arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o
frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e
adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não
aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na
posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente
em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e,
de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na
mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem
cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um
pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca
sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas
horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação
não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do
centauro.
Era o último sobrevivente da grande e antiga espécie dos homens-cavalos.
Estivera na guerra contra os Lápitas, sua primeira e dos seus grande derrota.
Com eles, vencidos, se refugiara em montanhas de cujo nome já se esquecera. Até
que acontecera o dia fatal em que, com a parcial protecção dos deuses, Héracles
dizimara os seus irmãos, e ele só escapara porque a demorada batalha de
Héracles e Nesso lhe dera tempo para se refugiar na floresta. Tinham acabado
então os centauros. Porém, contra o que afirmavam os historiadores e os
mitólogos, um ficara ainda, este mesmo que vira Héracles esmagar num abraço
terrível o tronco de Nesso e depois arrastar o seu cadáver pelo chão, como a
Heitor viria a fazer Aquiles, enquanto se ia louvando aos deuses por ter
vencido e exterminado a prodigiosa raça dos Centauros. Talvez repesos, os
mesmos deuses favoreceram então o centauro escondido, cegando os olhos e o
entendimento de Héracles por não se sabia então que desígnios.
Todos os dias, em sonho, lutava com Héracles e vencia-o. No centro do
círculo dos deuses, de cada vez e sempre reunidos às ordens do seu sonho,
lutava braço a braço, furtava a garupa escorregadia ao salto astuto que o
inimigo tentava, esquivava-se à corda que lhe assobiava entre as patas, e
obrigava-o a lutar de frente. O seu rosto, os braços, o tronco, suavam como
pode suar um homem. O corpo do cavalo cobria-se de espuma. Este sonho
repetia-se há milhares de anos, e sempre nele o desenlace se repetia: pagava em
Héracles a morte de Nesso, chamava aos braços e aos músculos do torso toda a
sua força de homem e de cavalo: assente nas quatro patas como se fossem estacas
enterradas no chão, erguia Héracles ao ar e apertava, apertava, até que ouvia a
primeira costela estalar, depois outra, e finalmente a espinha que se partia.
Héracles, morto, escorregava para o chão como um trapo e os deuses aplaudiam.
Não havia nenhum prémio para o vencedor. Os deuses levantavam-se das suas
cadeiras de ouro e afastavam-se, alargando cada vez mais o círculo até
desaparecerem no horizonte. Da porta por onde Afrodite entrava no céu, saía
sempre e brilhava uma grande estrela.
Há milhares de anos que percorria a terra. Durante muito tempo, enquanto
o mundo se conservou também ele misterioso, pôde andar à luz do Sol. Quando
passava, as pessoas vinham ao caminho e lançavam-lhe flores entrançadas por
cima do seu lombo de cavalo, ou faziam com elas coroas que ele punha na cabeça.
Havia mães que lhe davam os filhos para que os levantasse no ar e assim
perdessem o medo das alturas. E em todos os lugares havia uma cerimónia
secreta: no meio de um círculo de árvores que representavam os deuses, os
homens impotentes e as mulheres estéreis passavam por baixo do ventre do
cavalo: era crença de toda a gente que assim floria a fertilidade e se renovava
a virilidade. Em certas épocas, levavam uma égua ao centauro e retiravam-se
para o interior das casas: mas um dia, alguém que por esse sacrilégio veio a cegar,
viu que o centauro cobria a égua como um cavalo e que depois chorava como um
homem. Dessas uniões nunca houve fruto.
Então chegou o tempo da recusa. O mundo transformado perseguiu o centauro,
obrigou-o a esconder-se. E outros seres tiveram de fazer o mesmo: foi o caso do
unicórnio, das quimeras, dos lobisomens, dos homens de pés de cabra, daquelas
formigas que eram maiores que raposas, embora mais pequenas que cães. Durante
dez gerações humanas, este povo diverso viveu reunido em regiões desertas. Mas,
com o passar do tempo, também ali a vida se tornou impossível para eles, e
todos dispersaram. Uns como o unicórnio, morreram; as quimeras acasalaram com
os musaranhos, e assim apareceram os morcegos; os lobisomens introduziram-se
nas cidades e nas aldeias e só em noites marcadas correm o seu fado; os homens
de pés de cabra extinguiram-se também, e as formigas foram perdendo tamanho e
hoje ninguém é capaz de as distinguir entre aquelas suas irmãs que sempre foram
pequenas. O centauro acabou por ficar sozinho. Durante milhares de anos, até
onde o mar consentiu, percorreu toda a terra possível. Mas em todos os seus
itinerários passava de largo sempre que pressentia as fronteiras do seu
primeiro país. O tempo foi passando. Por fim, já lhe não sobrava terra para
viver com segurança. Passou a dormir durante o dia e a caminhar de noite.
Caminhar e dormir. Dormir e caminhar. Sem nenhuma razão que conhecesse, apenas
porque tinha patas e sono. Comer, não precisava. E o sono só era necessário
para que pudesse sonhar. E a água, apenas porque era a água.
Milhares de anos tinham de ser milhares de aventuras. Milhares de
aventuras, porém, são demasiadas para valerem uma só verdadeira e inesquecível
aventura. Por isso, todas juntas não valeram mais do que aquela, já neste milénio
último, quando no meio de um descampado árido viu um homem de lança e armadura,
em cima de um mirrado cavalo, investir contra um exército de moinhos de vento.
Viu o cavaleiro ser atirado ao ar e depois um outro homem baixo e gordo
acorrer, aos gritos, montado num burro. Ouviu que falavam numa língua que não
entendia, e depois viu-os afastarem-se, o homem magro maltratado, e o homem
gordo carpindo-se, o cavalo magro coxeando, e o burro indiferente. Pensou
sair-lhes ao caminho para os ajudar, mas, tornando a olhar os moinhos, foi para
eles a galope, e, postado diante do primeiro, decidiu vingar o homem que fora
atirado do cavalo abaixo. Na sua língua natal, gritou: «Mesmo que tivesses mais
braços do que o gigante Briareu, a mim haverias de o pagar.» Todos os moinhos
ficaram com as asas despedaçadas e o centauro foi perseguido até à fronteira de
um outro país. Atravessou campos desolados e chegou ao mar. Depois voltou para
trás.
Todo o centauro dorme. Dorme todo o seu corpo. Já o sonho veio e passou,
e agora o cavalo galopa por dentro de um dia antiquíssimo para que o homem
possa ver desfilarem as montanhas como se por seu pé andassem, ou por veredas
delas subir ao alto e dali olhar o mar sonoro e as ilhas espalhadas e negras,
rebentando a espuma em redor delas como se da profundidade acabassem de nascer
e de lá surgissem deslumbradas. Não é isto um sonho. Vem do largo um cheiro
salino. As narinas do homem dilatam-se sôfregas, e os braços estendem-se para o
alto, enquanto o cavalo, excitado, bate com os cascos em pedras que são mármore
e afloram. As folhas que cobriam a cara do homem escorregaram, já emurchecidas.
O sol, alto, cobre o centauro de manchas de luz. Não é um rosto velho, o do
homem. Novo, também não, porque não o poderia ser, porque os anos se contam por
milhares. Mas pode comparar-se com o duma estátua antiga: o tempo gastou-o, não
tanto que apagasse as feições, o bastante apenas para as mostrar ameaçadas. Uma
pequena lagoa luminosa cintila sobre a pele, desliza muito lentamente para a
boca, aquece-a. O homem abre os olhos de repente, como o faria a estátua. Pelo
meio das ervas, afasta-se ondulando uma cobra. O homem leva a mão à boca e
sente o sol. Nesse mesmo instante, a cauda do cavalo agita-se, varre a garupa e
sacode um moscardo que sondava a pele fina da grande cicatriz. Rapidamente, o
cavalo põe-se de pé e o homem acompanha-o. O dia vai por metade, outro tanto
falta para que chegue a primeira sombra da noite, mas não há mais dormir. O
mar, que não foi sonho, ainda ressoa nos ouvidos do homem, ou não o real ruído
do mar, talvez o bater visto das ondas que os olhos transformam em ondas
sonoras que vêm sobre as águas, sobem pelas gargantas rochosas até ao alto, até
ao sol e ao céu azul de outra vez água.
Está perto. A vala por onde segue é apenas um acidente, leva a qualquer
lado, é obra de homens e caminho para chegar aos homens. Porém, aponta na
direcção do sul, e é isso que conta. Avançará por ali até onde lhe for possível,
mesmo sendo dia, mesmo com o sol cobrindo toda a planície e denunciando tudo,
homem ou cavalo. Uma vez mais vencera Héracles no sonho, diante de todos os
deuses imortais, mas, acabado o combate, Zeus retirara-se para o sul, e foi
depois que desfilaram as montanhas e do ponto mais alto delas, onde havia umas
colunas brancas, viam-se as ilhas e a espuma em redor. Está perto a fronteira e
Zeus afastou-se para o sul.
Caminhando ao longo da vala estreita e funda, o homem pode ver o campo
de um lado e do outro. As terras parecem agora abandonadas. Já não sabe onde
ficou a povoação que vira na hora do amanhecer. O grande espinhaço rochoso
cresceu de altura, ou está talvez mais próximo. As patas do cavalo afundam-se
no chão mole que aos poucos vai subindo. Todo o tronco do homem está já fora da
vala, as árvores tornam-se mais espaçadas, e de súbito, quando o campo ficou
todo aberto, a vala acaba. O cavalo vence com um simples movimento o último
declive, e o centauro aparece todo no claro do dia. O sol está à mão direita e
bate com força na cicatriz, que, ferida, arde. O homem olha para trás, segundo
o seu costume. A atmosfera está abafada e húmida. Não é porém que o mar esteja
tão perto. Esta humidade promete chuva e este brusco sopro de vento também. Ao
norte, juntam-se nuvens.
O homem hesita. Há muitos anos que não ousa caminhar a descoberto, sem a
protecção da noite. Mas hoje sente-se tão excitado como o cavalo. Avança pelo
terreno coberto de mato donde se desprendem cheiros fortes de flores bravas. A
planicie terminou, e agora o chão ergue-se em corcovas e limita o horizonte ou
alarga-o cada vez mais, porque as elevações já são colinas e adiante levanta-se
uma cortina de montes. Começam a surgir arbustos e o centauro sente-se mais
protegido. Tem sede, muita sede, mas ali não há sinal de água. O homem olha
para trás e vê que metade do céu está já coberto de nuvens. O sol ilumina o
bordo nítido de um grande nimbo cinzento que avança.
É neste momento que se ouve ladrar um cão. O cavalo estremece de
nervosismo. O centauro lança-se a galope entre duas colinas, mas o homem não
perde o sentido: seguir na direcção do sul. O ladrar está mais perto, e ouve-se
também um tilintar de campainhas e depois uma voz falando a gado. O centauro
parou para se orientar, porém os ecos enganaram-no e, de súbito, num terreno
baixo e húmido inesperado, aparece-lhe um rebanho de cabras e à frente dele um
grande cão. O centauro estacou. Algumas das cicatrizes que Ihe riscavam o
corpo, devia-as aos cães. O pastor deu um grito espavorido e largou a fugir,
como louco. Chamava em altos berros: devia haver uma povoação ali perto. O
homem dominou o cavalo e avançou. Arrancou um ramo forte de um arbusto para
afastar o cão, que se estrangulava a ladrar, de fúria e medo. Mas foi a fúria
que prevaleceu: o cão ladeou rapidamente umas pedras e tentou apanhar o
centauro de flanco, pelo ventre. O homem quis olhar para trás, ver donde vinha
o perigo, mas o cavalo antecipou-se, e rodando veloz sobre as patas da frente,
desferiu um violento coice que apanhou o cão no ar. O animal foi bater contra
as pedras, morto. Não era a primeira vez que o centauro se defendia assim, mas
de todas as vezes o homem se sentia humilhado. No seu próprio corpo batia a
ressaca da vibração geral dos músculos, a vaga de energia que deflagrava, ouvia
o bater surdo dos cascos, mas estava de costas voltadas para a batalha, não era
parte nela, espectador quando muito.
O sol escondera-se. O calor desapareceu subitamente do ar e a humidade
tornou-se palpável. O centauro correu entre as colinas, sempre para o sul. Ao
atravessar um pequeno regato viu terrenos cultivados, e quando procurava
orientar-se esbarrou com um muro. Para um lado, havia algumas casas. Foi então
que se ouviu um tiro. Como de um enxame, sentiu o corpo do cavalo crispar-se
sob as picadas. Havia gente que gritava e depois deram outro tiro. A esquerda
estralejaram ramos dilacerados, mas nenhum bago de chumbo o atingiu desta vez.
Recuou para ganhar balanço, e num impulso venceu o muro. Passou sobre ele,
voando, homem e cavalo, centauro, quatro patas estendidas ou dobradas, dois
braços abertos para o céu ainda para além azul. Soaram mais tiros, e depois foi
o tropel dos homens que o perseguiam pelos campos, dando gritos, e o ladrar dos
cães.
Tinha o corpo coberto de espuma e de suor. Houve um momento em que parou
para procurar caminho. O campo em redor tornou-se também expectante, como se
estivesse de ouvido à escuta. E então caíram as primeiras e pesadas gotas de
chuva. Mas a perseguição continuava. Os cães seguiam um rasto para eles
estranho, mas de mortal inimigo: um misto de homem e de cavalo, umas patas
assassinas. O centauro correu mais, correu muito, até que percebeu que os
gritos se tinham tornado diferentes e o ladrar dos cães era já de frustração.
Olhou para trás. A uma boa distância, viu os homens parados, ouviu-lhes as
ameaças. E os cães que tinham avançado voltavam para os donos. Mas ninguém se
adiantava. O centauro vivera tempo bastante para saber que isto era uma
fronteira, um limite. Os homens, segurando os cães, não ousavam atirar-lhe
tiros: apenas um foi disparado, mas de tão longe que não ouviu sequer cair o
chumbo. Estava salvo, sob a chuva que desabava em torrente e abria regos
rápidos entre as pedras, sobre esta terra onde nascera. Continuou a caminhar
para o sul. A água ensopava-lhe o pêlo branco, lavava a espuma, o sangue e o
suor e toda a sujidade acumulada. Regressava muito velho, coberto de
cicatrizes, mas imaculado.
De repente, a chuva parou. No momento seguinte, o céu ficou todo varrido
de novens, e o sol caiu de chapa sobre a terra molhada donde, ardendo, fez
levantar nuvens de vapor. O centauro caminhava a passo, como se viajasse sobre
uma neve imponderável e tépida. Não sabia onde estava o mar, mas ali era a
montanha. Sentia-se forte. Matara a sede com a água da chuva, levantando o
rosto para o céu, de boca aberta, bebendo em longos haustos, com a torrente a
deslizar-lhe pelo pescoço, pelo tronco abaixo, lustralmente. E agora descia
para o lado sul da montanha, devagar, rodeando os enormes pedregulhos que se
amontoavam e escoravam uns aos outros. O homem apoiava as mãos nos penedos mais
altos, sentindo debaixo dos dedos os musgos macios, os líquenes ásperos, ou a
rugosidade estreme da pedra. Em baixo havia, de largo a largo, um vale que
àquela distância parecia estreito, enganadoramente. Ao longo dele, com grandes
intervalos, via três povoações, ao meio a maior, e o sul para além dela.
Cortando o vale a direito, teria de passar perto da povoação. Passaria?
Lembrava-se da perseguição, dos gritos, dos tiros, dos outros homens do lado de
lá da fronteira. Do incompreensível ódio. Esta terra era a sua, mas quem eram
os homens que nela viviam? O centauro continuava a descer. O dia ainda estava
longe de acabar. O cavalo, exausto, pousava os cascos com cuidado, e o homem
pensou que lhe conviria descansar antes de se aventurar na travessia do vale.
E, sempre pensando, decidiu que esperaria pela noite, que antes dormiria em
qualquer refúgio que encontrasse, para ganhar as forças necessárias à longa
caminhada que lhe restava fazer até ao mar.
Continuou a descer, cada vez mais lentamente. E quando enfim se dispunha
a ficar entre duas pedras, viu a entrada negra duma caverna, alta bastante para
que todo ele pudesse entrar, homem e cavalo. Ajudando-se com os braços,
assentando ao de leve os cascos rapados pelas pedras duríssimas, introduziu-se
na gruta. Não era muito funda, nenhuma caverna se prolongava pela montanha
dentro, mas havia espaço bastante para mover-se nela à vontade. O homem apoiou
os antebraços na parede rochosa e deixou pender a cabeça sobre eles. Respirava
fundo, procurando resistir, não acompanhar o ofegar ansioso do cavalo. O suor
escorria-lhe pela cara. Depois o cavalo dobrou as patas da frente e deixou-se
cair no chão coberto de areia. Deitado, ou soerguido como era hábito, o homem
nada podia ver do vale. A boca da gruta abria apenas para o céu azul. Em
qualquer ponto, lá no fundo, gotejava água, a longos intervalos regulares,
produzindo um eco de cisterna. Uma paz profunda enchia a gruta. Estendendo um
braço para trás, o homem passou a mão sobre o pêlo do cavalo, sua própria pele
transformada ou pele que em si transformara. O cavalo estremeceu de satisfação,
todos os seus músculos se distenderam e o sono ocupou o grande corpo. O homem
deixou cair a mão, que escorregou e foi repousar na areia seca.
O sol, descendo no céu, começou a iluminar a gruta. O centauro não
sonhou com Héracles nem com os deuses sentados em círculo. Também não se
repetiu a grande visão das montanhas viradas para o mar, as ilhas espumejantes,
a infinita extensão líquida e sonora. Apenas uma parede escura, ou apenas sem
cor, baça, intransponível. Entretanto, o sol entrou até ao fundo da caverna,
fez cintilar todos os cristais da pedra, transformou cada gota de água numa
pérola vermelha que se desprendia do tecto, mas antes inchava até ao inverossímil,
e depois riscava três metros de fogo vivo, para se afundar num pequeno poço já
escuro. O centauro dormia. O azul do céu foi desmaiando, inundou-se o espaço de
mil cores de forja, e o entardecer arrastou devagar a noite como um corpo
cansado que por sua vez vai adormecer. A gruta, em trevas, tornara-se imensa, e
as gotas de água caíam como pedras redondas na aba de um sino. Era já noite
escura e a Lua nasceu.
O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela primeira vez em
milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em que regressara à
terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria? O cavalo, mais
longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando agitava as patas
traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não tinha cérebro, ou
somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram. Deitando a mão a uma
pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o tronco, e, como se
estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem esforço, num
movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu para a noite.
Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era que não podia
ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa e fantasmal,
mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites onde outros
sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O centauro
respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se passasse pelo
filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi molhada e
agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que seguram o
mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso, jogando
harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus dois
braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma aresta
viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como se a
viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante havia um
rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação maior,
aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto, seguido
pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente pelos
campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas. Entre a
faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O cavalo,
sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para o rio.
Entrou cautelosamente na água, tenteando com os cascos. A profundidade foi aumentando,
até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que era outro rio
correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os braços erguidos,
braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas. Pelo interior da
água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar, nadavam em redor dele
e mordiscavam-lhe as pernas.
Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o cavalo, e o
centauro subiu para a margem. Passou por baixo dumas árvores e no limiar da
planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham perseguido do
outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos homens aos gritos,
e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria preferido caminhar
debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse recolher os cães e
afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a gente naqueles
arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto a notícia tinha
passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia atravessar o campo em
linha recta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao longo do rio, sob a
protecção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno lhe fosse mais
favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre duas altas
colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os olhos e
revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul.
Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à escuta. O rumor
repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva rasteira, os passos
do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre a múltipla e tépida
crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e olhou para o rio. Na
margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os ramos. E viu uma
mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o luar, branca.
Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim, neste rio, com
esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas ao andar, o
ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos caindo para as
costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas a parte que lhe
cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que satisfaria o cavalo,
talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou, que viu a mulher
aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos, correu para ela
no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela gritava, a levantou nos
braços.
Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de anos. Acto
inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si a loucura,
se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira mulher que
nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia que mais
adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela, mulher
inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as árvores, e
adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas soluçava e
tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva, o centauro
foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores escondiam.
Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher contra o
peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo de homem
se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram, outras
atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com
espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para
as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro
para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro
ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os
movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a
galope pelo campo fora, na direcção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos.
Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir
com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O
homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então,
segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o
luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de
mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas:
— Não me queiras mal.
Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu. Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender:
— Tu és um centauro. Tu existes. Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As
patas do cavalo tremiam. Então a mulher deitou-se e disse:
— Cobre-me.
O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente. Durante um
momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o centauro
afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava, cerrando
os punhos na direcção do céu e da lua. Quando os perseguidores se aproximaram
enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada numa manta,
os homens que a transportavam ouviram-na chorar.
Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que
primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira com
intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher
que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía
gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo,
mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se
pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros
levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava os caminhos
mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou, mesmo, sob o
luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os montes. Toda a noite
o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol nasceu estava no alto
duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar apenas, nenhuma ilha, e o
som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater da onda, não o perfume
angustioso do sal. O mundo parecia um deserto suspenso da palavra povoadora.
Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então, num arco de
círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande alarido, mas sem
poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e laços e varas. O
cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e voltou-se,
frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos, atrás, em
frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se ansiosas à
procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou, caiu no
vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo
necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva,
de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele
preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda
acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se
tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que
eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra
vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria.
Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de
morrer.
(In Objecto quase. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994)
***
O homem sozinho numa estação ferroviária
Sérgio Sant’Anna
O homem ali sentado no banco, a maleta no colo, apoiando nas mãos o
rosto com uma expressão fatigada. Uma das probabilidades é que haja perdido o
trem e terá de aguardar outro por muitas horas ou mesmo todo um dia, pois
percebe-se, pela modéstia da estação, que este é um ramal de província e
secundário. E talvez existam poucas coisas que tornam um ser humano mais
impotente e derrotado que a simples e longa espera. Pois nada se realiza que
possa fazer existir o tempo e flui-lo e qualquer um que ali esteja, sozinho,
num banco de estação ferroviária, parecerá um retirante, ainda que sua
aparência denote cuidados até um tempo recente.
E este homem, vê-se por sua fisionomia e seu porte, como quem ainda não
habituou-se a alquebrar-se, é algo mais complexo que um retirante. Carrega
todos os indícios de uma civilização que a Europa largou nos trópicos,
desamparada. Um homem colonial e conservador, embora o negue até para si mesmo.
Mas não se sentiria muito mal se ainda fosse servido por escravos, que trataria
até com doçura. Como à amante negra em cujos mistérios teria se afogado,
clandestino e silencioso.
E é de tal mundo – que o homem tem agora às suas costas – que ainda se
veem os vestígios, mal terminada a plataforma, onde os trilhos se bifurcam num
desvio de manobras, cortado subitamente pelo mato, a paisagem... Uma plantação
sobre a qual se curvam uns poucos colonos, brancos e pretos, junto à presença
crucificada de um espantalho, em cuja cabeça pousou indiferentemente um pássaro.
Tudo com a placidez estática dos momentos aprisionados nas gravuras de
folhinhas ou nos quadros. A placidez dos bois e das vacas, que se avistam mais
ao longe, nos pastos em declive, terminando num regato. E, por fim, costurando
com um fio invisível este universo ao passado, as edificações da fazenda: a
casa-grande e aquilo que foi um dia a senzala. Mas é somente em torno da casa
que se ensombreceram as tintas, fazendo com que sobre ela pairasse como que um
auréola negra.
O mais terrível, porém, neste quadro, é o que não vemos nele.
Pois o homem fixa um vazio que necessariamente povoa de recordações ou
presságios. Como se este olhar penetrasse também no interior da casa, onde
estarão bailando morcegos e as assombrações que o homem abriga em sua alma,
delineando por vezes seus contornos fugidios: um riso de mulher, uma taça de
champagne, uma veste branca esvoaçante numa valsa.
Lá fora o vento uiva, enquanto na sala o gramofone arranha essa valsa
muito bela, como se emitida de salões longínquos, tornando indecifrável se tal
cena pertence ao território do que foi perdido ou se do desejo que não chegou a
realizar-se.
Porque antes – ou depois – que isso acontecesse, sobreveio a Peste,
ainda que através do esgotamento de um ciclo agrícola, quando uma volúvel forma
feminina se dissolveu numa carruagem durante a madrugada como a sombra de uma
gata. Fazendo com que sobre a mesa senhorial, então, a chama dos castiçais não
mais refletisse o vinho nos cálices cintilantes, mas a palidez de um cadáver
para sempre embalsamado na memória. Enquanto os relógios nas molduras torneadas
interromperam-se na metade do bater de alguma hora.
E é na perseguição desse tempo, possivelmente, que o olhar do homem
perde-se, dentro de si mesmo e fora. Como se o seu espírito vagasse pelos
trilhos, percorrendo curvas e serras, até aportar numa nova civilização da qual
o homem já se sabe excluído, mas onde se instala neste instante o seu desejo. E
ao tocar neste desejo pode refazer todo o percurso de volta, conduzindo num
vagão o seu perfume, até ali onde se encontra ele próprio, o homem sentado
sozinho numa estação ferroviária.
E, como se a uma caixinha de música, agora, se desse corda, abrem-se no
casarão as janelas, afugentando morcegos enlouquecidos. Ergue então o espectro
de mulher a sua taça, beija o homem com a boca espumante de champagne, depois
sorri e baila.
Porém não se encerra aí a expressão do olhar do homem, emoldurado:
talvez subsista nele o medo quase indizível de que, chegando o trem à estação,
os passageiros que ali desembarcarem, procedentes de um outro tempo, não
encontrarão nele, o homem, mais do que o figurante estático de um quadro.
O homem sozinho
numa estação ferroviária é o quadro sem título de um pintor anônimo,
presumivelmente da segunda metade do século passado. Os compradores de uma
fazenda abandonada, ao demolirem o casarão, doaram o quadro à municipalidade. E
foi ele parar ali, na biblioteca pública de uma cidade do interior paulista,
onde alguns raros frequentadores às vezes o contemplam, buscando
desesperadamente sentir orgulho de um passado e de seu retratista desconhecido.
Um dia, tanto o quadro quanto a paisagem, já bastante modificada, foram
visitados por dois forasteiros ilustres: Oswald e Mário de Andrade. Vieram para
a inauguração da biblioteca pública e, naturalmente, chegaram de trem, como se
de repente a visão do homem de branco da
estação ferroviária fosse invadida pelo futuro.
— O futuro muitas vezes se encontra no passado, ou pelo menos é
limítrofe dele – disse Mário, que gostou do quadro e não muito da cidade, que
achou desfigurada.
— Locomotivas. Estão faltando locomotivas naquele quadro – retrucou Oswald.
E ia cochichar qualquer outra coisa no ouvido de Mário, quando foi abafado pela
banda de música.
Depois o prefeito fez um discurso em que exaltou o arrojo dos dois
jovens e ilustres literatos. Oswald, que odiava esta última palavra, resmungou:
“Que imbecil”, enquanto Mário sentiu-se apenas constrangido. E não se recusou a
pronunciar, em nome dos dois, um breve discurso, ele que não era de negar-se a
gentilezas. E Oswald, a essa altura, já flertava com a professora recém-chegada
na cidade.
Mário de Andrade disse aos presentes que a inauguração de uma biblioteca
era sempre motivo de júbilo. Pois ali, naqueles pequenos quadriláteros
impressos e encadernados, achava-se inscrita boa parte da aventura humana, da
qual todos participávamos. E que uma biblioteca situava uma cidade, por menor
que fosse, na fronteira de todo o Universo.
O escritor foi demoradamente aplaudido, embora, na verdade, quase todos
houvessem prestado mais atenção no ritual do que no significado das palavras.
Houve, porém, um jovem que se aproximou de Mário e disse que suas
palavras o tinham reconfortado de viver num lugar tão provinciano.
Foi a esse jovem que Mário perguntou, mais tarde, quem era o autor do
quadro. O rapaz respondeu que ninguém sabia ao certo, mas que sobre o pintor
corriam algumas histórias desencontradas. Mário disse que gostaria de ouvir
algumas delas.
Estavam a esta altura num restaurante, participando de um jantar seleto
oferecido pela intelectualidade local e as autoridades.
O rapaz contou que uma dessas histórias era que não se tratava de um
pintor, mas de uma pintora. Uma linda mulher apaixonada que retratara a partida
do noivo para um sanatório de tuberculosos.
Foi aí que Oswald, sentado um pouco mais adiante, passou a prestar
atenção na conversa. Mário estava dizendo ao jovem que parecia o contrário:
— Pelo jeito do modelo, meu palpite é que ele foi o abandonado.
— Nesse caso, talvez fosse a mulher pintora a tuberculosa – ponderou o
jovem. – E teria pintado o quadro de memória lá no sanatório.
Mário olhou bem para o rapaz e percebeu que ele era muito magro e pálido.
— É poeta? – disse.
O jovem enrubesceu e já ia dizer que apenas rabiscava alguns versos,
quando foi interrompido pela voz possante de Oswald:
— Na Europa um jovem belga está pintando estações ferroviárias com
vagões, locomotivas, bondes e mulheres nuas.
Era sobre tais mulheres nuas que Oswald ia cochichar com Mário, na
biblioteca, quando foi interrompido pela banda de música. E agora, mesmo
olhando para o colega e o poeta de província, suas palavras tinham outro
destinatário: a professora à sua frente. E os pés de ambos se encontraram
debaixo da mesa, como se fosse uma casualidade.
— Mulheres nuas sob um fundo noturno e onírico. Templos, túneis,
vestíbulos, escadarias que não levam a nenhuma parte – acrescentou Oswald,
fixando seus olhos nos da moça. Os joelhos se tocavam, mas ela não desviou o
olhar e, pensando no prefeito e sua mulher, ali bem perto, julgou de bom tom
retificar o rumo da conversa:
— Já pensaram que pode ser um autorretrato?
— Através de nenhum espelho... – disse Mário, pensativo, interessando-se
pela jovem, que o ganhou definitivamente com o próximo lance:
— Os espelhos são interiores e projetam para o pintor um reflexo que
contém simultaneamente a figura dele próprio e da paisagem onde se acha encerrado
pelas recordações.
Mário ia dizer mais. Ia dizer que talvez um nome adequado para a obra
seria: Autorretrato do suicida momentos
antes de atirar-se sob as rodas da composição. E que soube que, na Europa,
outro jovem artista afirmava que os títulos eram um elemento tão essencial na
pintura quanto a cor e o desenho. Pensando, porém, na mórbida palidez do jovem
ao seu lado, acabou não dizendo nada. E Oswald, ligeiramente embriagado,
bradava:
— Abaixo a melancolia e a subjetividade. A arte de hoje exige
locomotivas, movimento, velocidade. E mulheres nuas – acrescentou com
gargalhada.
O prefeito e seu séquito, alegando compromissos na manhã seguinte,
começaram a levantar-se. Imitou-os a professora, pois não seria prudente para a
sua reputação permanecer ali, única mulher em mesa de homens.
A Mário pareceu que ela demorou sua mão muito mais do que o apropriado
na mão de Oswald, quando se despediram. Quando deu por si, Mário sentia-se
amargurado com o amigo.
No entanto, procurava ser gentil com os jovens literatos de província,
que agora estavam todos tristes e bêbados. Mariposas voavam enlouquecidas ao
redor das lâmpadas e, de vez em quando, um besouro se arremessava contra a
vidraça. Numa mesa de fundo, sozinho, um homem de chapéu pitava um cigarro de
palha.
— Isso aqui também daria um quadro – disse Mário, pensando neles
próprios, àquela mesa perdida no mundo, imobilizados pelo mesmo pintor anônimo
neste momento único e irrepetível na história geral que seguia seu curso. Mas sentiu
que sem a presença da professora a pintura aprisionaria também a melancolia a
que se referia Oswald. Este, como se adivinhando o pensamento do amigo,
arrematou:
— É preciso acabar não só com o latifúndio, mas com a sua arte.
O garçom passu por eles e não reprimiu um bocejo.
Na rua caminhavam os dois lado a lado, com as mãos nos bolsos e
silenciosos. Vindo dali de perto, o barulho de uma charrete e seus cavalos. Fazia
frio, mas o hotel ficava próximo. Tinham recusado o convite dos jovens
literatos para terminarem a noitada na zona. E Oswald divertia-se em criar uma
pequena auréola de neblina com a própria respiração. Mário achou graça.
No hotel, cada um pegou a sua chave e despediram-se com um boa-noite,
sem animosidade, subindo as escadas.
À meia-noite, seguro com o bilhetinho que a professora deixara em sua
mão, Oswald aproximou-se silenciosamente do quarto da moça. E ali, por um
instante, hesitou, como se estivesse cansado de representar a si próprio,
Oswald de Andrade. Até que se decidiu e bateu de leve na porta.
Mário, já deitado em seu quarto, sentia dentro de si a ausência de
alguém ou alguma coisa, quase inexprimíveis. No seu pensamento, sobrepuseram-se
o jovem poeta da cidade, a moça inteligente, a pintora possível e o homem sentado sozinho na estação
ferroviária.
Mário de Andrade levantou-se, abriu a janela e deixou que entrassem o ar
frio, o barulhinho dos grilos, a escuridão amenizada pela lua em quarto
crescente e, por um momaento, julgou ter ouvido muito ao longe o apito de um
trem, o que não era impossível.
(In: A
Senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79)
***
O coração delator
Edgar
Allan Poe
Sim! Sou muito nervoso,
terrivelmente nervoso, mesmo ― e sempre o fui; mas por que me supõem louco? A
doença tornou mais aguçados os meus sentidos ― não os destruiu, não os embotou.
Mais do que os outros, tenho uma audição aguçadíssima. Ouço admiravelmente bem
todos os sons produzidos no céu e na terra. Tenho ouvido até muitas coisas do
inferno. Como posso, pois, ser um louco? Atenção! Reparem bem com que perfeita
lucidez, com que tranquilidade de espírito eu vou contar-lhes toda a história.
Ser-me-ia completamente impossível
dizer-lhes como primitivamente a ideia entrou no meu cérebro; mas, uma vez
concebida, nunca mais me abandonou, noite e dia. Fim, não tinha algum. A paixão
foi estranha ao caso, por completo. Eu estimava deveras o pobre velho, que
nunca me fizera o menor mal, que nunca me insultara. Nem mesmo invejava o seu
dinheiro. Creio que foi o seu olho! Sim foi isso, decerto! Um dos olhos dele
parecia os dum abutre ― um olho azul claro, recoberto por uma película
nevoenta. Cada vez que esse olho me fitava, sentia gelar-me o sangue; e assim,
lentamente ― por graus ― muito gradualmente ―, introduziu-se na minha mente a
ideia de arrancar a vida do velho, para, dessa forma, me livrar para sempre
daquele olho.
Agora, este é o ponto. Os senhores
supõem-me louco. Os loucos não sabem de nada. Se me vissem! Se vissem com que
inteligência eu procedia! Com que precaução, com que prudência, com quanta
dissimulação eu meti as mãos à obra! Eu nunca fora mais solícito para o velho
do que durante a semana inteira que precedeu o crime. E todas as noites, pela
meia-noite, levantava o trinco da porta do quarto dele, e abria-a ― oh, tão
devagarinho! E então, depois de suficientemente a entreabrir, introduzia no
quarto uma lanterna de furta-fogo, fechada, hermeticamente fechada, que não
deixava passar um mínimo raio de luz; em seguida metia a cabeça pela abertura!
Oh, se vissem teriam rido da destreza com que eu metia a cabeça! Movia-se
lentamente ― muito, muito lentamente ―, de maneira a não perturbar o sono do
velho. Levei seguramente mais de uma hora para meter a cabeça pela abertura,
muito antes de poder vê-lo deitado no leito! Ah! Um louco seria, porventura,
tão prudente? Depois, quando tinha a cabeça dentro do quarto, abria a lanterna
com precaução ― oh, com que precaução! ― porque o gonzo rangia. Abria então a
lanterna de tal modo que o raio de luz fosse justamente incidir no olho de
abutre. E fiz isto durante sete longas noites ― cada noite, à meia-noite ―, mas
encontrei sempre o olho fechado, de molde a não poder, portanto, concluir o meu
trabalho; foi por isso que disse não odiar eu o velho; o que eu odiava era o
seu Olho Maldito! E todas as manhãs, logo que o dia nascia, entrava ousadamente
em seu quarto, falava-lhe corajosamente, tratando-o pelo seu nome num tom
cordialíssimo, e informando-me de como passara a noite. Bem veem que ele seria
possuidor de uma dissimulação rara se desconfiasse que, a cada noite, à
meia-noite em ponto, eu o examinava enquanto dormia.
Na oitava noite fui ainda mais
prudente: abri a porta com mais precaução. A minha mão não fazia mover a porta
com mais rapidez do que se move um ponteiro dum relógio. Nunca, como nessa
noite, senti tão perfeitamente o poder das minhas faculdades, da minha
sagacidade. A custo continha as sensações que o triunfo produzia em mim. Pensar
que eu estava ali, abrindo a porta pouco a pouco, sem que ele pudesse sonhar as
minhas ações ou meus pensamentos secretos! Ao ter esta ideia não pude deixar de
rir um pouco, abafadamente; ele ouviu-me, talvez porque se voltou pesadamente
no leito, como se tivesse acordando. Pensam por acaso que eu me retirei por
isso? Não! O quarto, de tão profundas que eram as trevas, estava negro como
pez, porque as janelas tinham sido fechadas cuidadosamente, por medo dos
ladrões; e, sabendo que ele não podia ver a porta entreaberta, continuei a
empurrá-la cada vez mais. Eu já passara a cabeça pela abertura, e estava
prestes a abrir a lanterna, quando o meu polegar resvalou pelo fecho de ferro,
e o velho sentou-se no leito, gritando:
― Quem está aí?
Eu fiquei completamente imóvel e
não disse nada. Durante uma hora inteira não movi um só músculo, mas, também,
durante esse tempo, não ouvi o velho deitar-se. Continuava, decerto, sentado na
cama, de ouvido à escuta, justamente como eu fizera durante sete noites
inteiras, escutando o barulho que fazia o pêndulo do relógio de parede.
Mas, de repente, ouvi um gemido
fraco, que reconheci como o gemido resultante de um horror mortal. Não era o
gemido de dor ou de pesar. Oh, não! Era o ruído surdo e sufocado que se
desprende do fundo de uma alma apavorada. Conhecia bem aquele grito. Muitas
noites, à meia-noite exata, quando todo mundo dormia, soltara-se de meu próprio
peito um gemido igual àquele, excitando com o seu terrível eco os terrores que
me atormentavam. Repito que conhecia aquele ruído. Calculava o que o pobre
velho sentia, e eu tinha piedade dele, ainda que interiormente eu sorrisse
comigo mesmo. Sabia que ele continuava acordado desde que se voltara no leito ao
primeiro ruído que eu fizera. Desde então o seu pavor aumentara sempre de
intensidade. Ele tentara persuadir-se de que não tinha razão para assustar-se,
mas não pudera consegui-lo. Dissera a si mesmo: “Não foi nada, apenas o ruído
do vento entrando pela chaminé, ou algum rato que atravessou o quarto”, ou
então: “Talvez um grilo que começou a cantar”. Sim, sim, ele se esforçara por
encorajar-se com estas hipóteses; mas tudo fora em vão. Tudo fora em vão porque
a Morte, que se aproximava, passava diante dele com a sua grande sombra negra,
envolvendo, assim, aquela vítima. Era a influência fúnebre da sombra que ele
não percebera, que lhe fazia sentir ― apesar de nada ver nem ouvir ―, que lhe
fazia sentir a minha cabeça no seu quarto.
Depois de esperar por muito tempo,
impacientemente, que ele se deitasse de novo, resolvi entreabrir um pouco a
lanterna, mas muito pouco, um quase nada. Entreabri-a com tanta cautela como
dificilmente podem imaginar, até que por fim um pálido raio de luz, como um fio
de teia de aranha, subiu da abertura, incidindo sobre o olho de abutre.
O Olho Maldito estava aberto, muito
aberto, o que me fez enfurecer logo que o fitei. Vi-o com uma perfeita nitidez
― o azul claro coberto com o hediondo véu que me gelava o sangue nas veias; mas
eu nada podia ver do rosto ou do corpo do velho, porque dirigia o raio de luz,
como por instinto, sobre o ponto maldito.
Em seguida ― eu não lhes disse que
o que os senhores tomavam por loucura era uma grande penetração dos meus
sentidos? ―, em seguida ouvi um outro ruído surdo, sufocado, contínuo,
semelhante a um ruído que pode fazer o pêndulo dum relógio envolvido em
algodão. Eu reconheci esse som. Era o bater do coração do velho. Esse som
aumentou o meu furor como o rufar do tambor aumenta a coragem de um soldado.
Mas contive-me ainda, e continuei
ali, sem me mexer. Somente respirava, conservando a lanterna imóvel para que o
raio de luz saído dela continuasse a iluminar o olho maldito. Entretanto, o
infernal bater do coração era cada vez mais forte, a cada instante mais
precipitado. O terror do velho devia ser extremo! O bater o coração, eu disse,
era cada vez mais forte, de instante para instante! Repararam bem em tudo o que
lhes disse? Então devem lembrar-se que lhes declarei ser excessivamente
nervoso, e, com efeito, eu o sou. Portanto, em plena noite, no meio do silêncio
terrível daquela casa, um tão estranho ruído fez com que se apossasse de mim um
irremissível terror. Durante alguns minutos ainda, contive-me e continuei
calmo. Mas o ruído era cada vez mais forte, sempre mais forte! Cheguei a supor,
até, que o coração ia rebentar. E então apoderou-se de mim uma nova angústia: o
ruído poderia ser ouvido por algum vizinho! A hora do velho chegara, pois!
Saltando um grande grito, abri bruscamente a lanterna, e entrei no quarto. O
velho deu apenas um grito, um só, porque eu o lancei no assoalho, virando-o e
jogando-lhe sobre o corpo o pesado leito em que antes dormia tranquilamente.
Sorri, então, por ver a minha obra tão adiantada. Mas, durante alguns instantes
ainda, o coração batia, produzindo um som abafado, que não me incomodou, porque
não podia ser ouvido através duma parede. Por fim, cessou. O velho estava
morto. Levantei o leito e examinei o corpo. Sim, estava morto, morto e rígido.
Coloquei-lhe a mão sobre o coração, conservando-a ali durante alguns minutos.
Nem uma pulsação. Ele estava morto e rígido. O seu olho, portanto, não me
atormentaria mais!
Se persistirem ainda em supor-me
louco, essa suposição evaporar-se-á ao descrever-lhes as inteligentíssimas
precauções que tomei para ocultar o cadáver. A noite avançava; comecei, pois, a
trabalhar apressadamente, mas em silêncio. Cortei-lhe a cabeça, depois os
braços, depois as pernas. Em seguida, despreguei três tábuas do assoalho e meti
todas as partes do cadáver pelos buracos que elas tinham deixado. Depois
preguei de novo as tábuas tão habilmente, tão desveladamente, que nenhum olho
humano ― nem mesmo o dele ― poderia descobrir no assoalho o mínimo sinal de que
tinham sido levantadas. Não havia o que limpar ― nem uma mancha, nem um pingo
de sangue. Procedera muito prudentemente para deixar qualquer vestígio. A tina
em que cortara o cadáver absorvera todo o sangue, ha! ha!
Quando acabei a minha obra, pelas
quatro horas da madrugada, a escuridão era tão profunda como à meia-noite. No
momento exato em que o relógio dava uma hora da tarde, bateram à porta da rua.
Desci para abrir alegremente, porque nada tinha a temer dali em diante.
Entraram três homens que com toda delicadeza apresentaram-se como agentes de polícia.
Um vizinho ouvira um grito, na noite anterior, o que levantara a suspeitar de
que um crime teria sido praticado; como fizera a respectiva denúncia no
comissariado de polícia, tinham ordenado àqueles senhores que revistassem a
casa.
Ao saber qual o fim dos policiais,
sorri ― pois o que eu tinha a temer? Declarei-lhes que sentia um verdadeiro
prazer em lhes falar, e disse-lhes que o grito ouvido pelo tal vizinho fora eu
que o soltara durante um sonho. O meu velho patrão, acrescentei, partira para
uma viagem.
Depois desta explicação, mostrei
toda a casa aos policiais, convidando-os a procurarem bem. Por último, eu os
conduzi ao quarto dele, e mostrei-lhes todos os tesouros do velho,
perfeitamente intactos.
No entusiasmo de minha confiança,
instei os policiais para que sentassem, para que descansassem um instante; e,
com a louca audácia dum triunfo completo, puxei uma cadeira e sentei-me, depois
de tê-la colocado exatamente sobre as tábuas que cobriam o corpo da vítima.
Os agentes de polícia estavam satisfeitíssimos.
A forma clara e precisa com que eu fizera as declarações convencera-os.
Sentia-me singularmente à vontade. Sentaram-se e começaram a falar coisas
triviais, às quais que eu respondia alegremente.
Pouco depois, senti que
empalidecia, e só pensei em me livrar deles.
Sentia insuportáveis dores de
cabeça, e grandes badaladas nos ouvidos; mas os policiais continuavam sentados,
sempre falando. As badaladas não acabavam e, pelo contrário, eram cada vez mais
distintas. Comecei a falar mais alto para me livrar daquela sensação; mas as
badaladas persistiam, tomando um caráter tão puramente definido que, por fim,
percebi não se produzir sem os meus ouvidos.
Eu estava muito pálido, sem dúvida
― mas falava sempre, levantando a voz cada vez mais.
O som aumentava sempre ― o que eu
podia fazer? Era um ruído surdo, sufocado, frequente, semelhante ao ruído que
pode fazer o pêndulo de um relógio envolvido em algodão. Eu respirava a custo.
Os policiais nada tinham ouvido.
Conversei com mais verbosidade ―
com mais veemência ―, mas o ruído aumentava incessantemente. Levantei-me e
comecei a questionar sobre ninharias, num diapasão elevadíssimo e com uma
violenta gesticulação; mas o ruído aumentava, aumentava sempre. Por que eles
não queriam ir embora? Eu passeava desesperadamente pelo quarto, a grandes
passadas, batendo surdamente com os pés no chão, como que exasperado pelas
observações de meus contraditores; mas o ruído crescia regularmente. Oh, Deus!
O que podia eu fazer? Enraivecia-me, espumava, praguejava. Movia em todos os
sentidos a cadeira em que de novo me sentara, fazendo-a ranger sobre o tabuado;
mas o ruído aumentava sempre, crescia indefinidamente, tornava-se de instante
para instante mais forte ― mais forte! ―, sempre mais forte. E os policiais,
sorrindo e palestrando, sempre prazenteiramente!
Seria possível, porventura, que
eles nada ouvissem? Deus onipotente! Não, não! Eles ouviam! Eles suspeitavam!
Eles sabiam! Eles divertiam-se com o meu terror! Foi isto que supus, então. É
isto que ainda hoje suponho.
Nada mais intolerável para mim que
aquela descarada zombaria! Não podia mais suportar aqueles sorrisos hipócritas!
Senti que, para não morrer, precisava gritar! E agora ainda, não ouvem? ―
Escutem! Mais alto! Sempre mais alto!
― Sempre mais alto, miseráveis! ―
gritei para os policiais. ― Não dissimulem por mais tempo! Confesso o crime!
Arranquem essas tábuas! É aí que ele está! É aí! E esse som que ouvem é o bater
do seu execrável coração.
(The Tell-Tale Heart. Original publicado em
janeiro de 1843. Traduzido por S. de M. e publicado na Gazeta da Tarde, Rio de
Janeiro, edição de 24 de abril de 1890).
***
Cemitério de elefantes
Dalton Trevisan
À margem do rio, nos fundos do mercado de peixes, ergue-se o velho
ingazeiro – ali os bêbados são felizes. A população considera-os animais
sagrados, provê às suas necessidades de cachaça e peixe com pirão de farinha. No
trivial contentam-se com as sobras do mercado.
Quando ronca a barriga, ao ponto de perturbar a sesta, saem do abrigo e,
arrastando os pesados pés, atiram-se à luta pela vida. Enterram-se no mangue
até os joelhos na caça ao caranguejo ou, tromba vermelha no ar, espiam a queda
dos ingás maduros.
Elefantes mal feridos coçam as perebas, sem nenhuma queixa,
escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira, a beber e
beliscar pedacinho de peixe. Cada um tem o seu lugar, gentilmente avisam:
— Não use a raiz do Pedro.
— Foi embora, sabia não?
— Aqui há pouco...
— Sentiu que ia se apagar e caiu fora. Eu gritei: Vai na frente, Pedro, deixa a porta aberta.
À flor do lodo borbulha o mangue – os passos de um gigante perdido? João
dispõe no braseiro o peixe embrulhado em folha de bananeira.
— O Cai Nágua trouxe as minhocas?
— Sabia não?
— Agora mesmo ele...
— Entregou a lata e disse: Jonas,
vai dar pescadinha da boa.
Chega de outras margens um elefante moribundo.
— Amigo, venha com a gente.
Uma raiz no ingazeiro, o rabo de peixe, a caneca de pinga.
No silêncio o bzzz dos pernilongos assinala o posto de cada um,
assombrados com o mistério da noite, o farol piscando no alto do morro.
Distrai-se um deles a enterrar o dedo no tornozelo inchado e, puxando os
pés de paquiderme, afasta-se entre adeuses em voz baixa – ninguém perturbe os
dorminhocos. Esses, quando acordam, não perguntam aonde foi o ausente. E, se
indagassem, para levar-lhe margaridas no banhado, quem saberia responder? A você
o caminho se revela na hora da morte.
A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés
disformes, as folhas do ingazeiro reluzem como lambaris prateados – ao eco da
queda dos frutos os bêbados erguem-se com dificuldade e os disputam rolando no
pó. O vencedor descasca o ingá, chupa de olho guloso a faca adocicada. Jamais correu
sangue no cemitério, a faquinha na cinta é para descamar peixe. E, aos brigões,
incapazes de se moverem, basta xingarem-se à distância.
Eles que suportam o delírio, a peste, o fel na língua, o mormaço, as
câimbras de sangue, berram de ódio obtuso contra os pardais, que se aninham
entre as folhas e, antes de dormir, lhes cospem na cabeça – o seu pipiar
irrequieto envenena a modorra.
Da margem comtemplam os pescadores mergulhando os remos.
— Um peixinho aí, compadre?
O pescador atira o peixe desprezado no fundo da canoa.
— Por que você bebe, Papa-Isca?
— Maldição de mãe, uai.
— O Chico não quer peixe?
— Tadinho, a barriga d’água.
Sem pressa, aparta-se dos companheiros, cochilando à margem, esquecidos
de enfiar a minhoca no anzol.
Cuspindo na água o caroço preto do ingá, os outros não o interrogam: as
presas de marfim que indicam o caminho são garrafas vazias. Chico perde-se no
cemitério sagrado, as carcaças de pés grotescos surgindo ao luar.
(In: Cemitério de elefantes. São Paulo: José Olympio, 1964).
***
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon
José Cândido de Carvalho
Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:
— Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!
E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:
— Ou vai ou racha!
E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:
— Agora a gente vai fazer serviço de tatu!
O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
— Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já
remeti telegrama avisativo de minha chegada.
Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
— Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon!
Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim.
(In: Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon. São Paulo: José Olympio, 1971)
***
Biruta
Lygia
Fagundes Telles
Alonso foi para o quintal
carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava com dificuldade, tentando
equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
— Biruta, eh, Biruta! – chamou sem
se voltar.
O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino
e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.
— Sente-se aí, Biruta, que vamos
ter uma conversinha – disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque.
Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.
Biruta sentou-se muito atento, inclinando
interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se
quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um
pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois
vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.
— Leduína disse que você entrou no
quarto dela – começou o menino num tom brando –. E subiu em cima da cama e
focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A
carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova,
Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer
nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra?
Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de
inocente!...
Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patas e
baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as
pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:
“Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de
nada...”
— Lembra sim senhor! E não adianta
ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! –
repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou
as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de
espuma. Tinha as mãos de velho.
— Alonso, anda ligeiro com essa
louça! – gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. – Já
está escurecendo, tenho que sair!
— Já vou indo – respondeu o menino
enquanto removia a água da bacia. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido
se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que
razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava
impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...
Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na
geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para
o jantar, precisava encher os pastéis, “Alonso, você não viu onde deixei a
carne?”. Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do
quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de
parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de
carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne,
escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir
Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora
do jantar e o açougue já estava fechado, “o que é que eu faço, dona Zulu?”.
Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a
escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa,
ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão.
— Está aqui Leduína.
— Mas falta um pedaço!
— Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu
estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
— Mas por que você escondeu o
resto? – perguntou a patroa, aproximando-se.
— Por que fiquei com medo.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal
que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas
saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava
batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo,
batendo, como se não pudesse parar mais.
— Atrevido! Ainda te devolvo pro
asilo, seu ladrãozinho!
Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá,
as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os
olhinhos ternos. “Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal”.
Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as
lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora
Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?
— Hem, Biruta?! E se fosse a
carteira de dona Zulu?
Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
— Por que você não arrebenta
minhas coisas? – prosseguiu o menino elevando a voz. – Você sabe que tem todas
as minhas coisas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal,
está acabado. Você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...
Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao
cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida,
calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação
tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança.
Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por
que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças.
Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?
Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do
menino. “Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca
se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína
tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende
que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de
Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pelo e as duas
orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!”.
— Alonso! – Era a voz de Leduína. –
Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.
Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a
bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.
— Chega de dormir, seu vagabundo!
Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e
levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.
O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça.
Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os
dentes na barra do seu avental.
— Aproveita, seu bandidinho! – riu-se
Alonso. – Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!
Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se
para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o
corpo sacudido pelo riso.
— Aí, Leduína que o Biruta judiou
de mim!...
A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe
uma caçarola com batatas:
— Olhaí para o seu jantar. Tem
ainda arroz e carne no forno.
— Mas só eu vou jantar? –
surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
— Hoje é dia de Natal, menino. Eles
vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.
Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para
debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso
suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia.
Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A trégua. Voltou-se
para Leduína.
— O que o seu filho vai ganhar?
— Um cavalinho – disse a mulher. A
voz suavizou. – Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do
sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um
cavalinho...
Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda.
Fechou-a nas mãos arroxeadas.
— Lá no asilo, no Natal, apareciam
umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia,
me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu
sapato, um casaquinho de malha e uma camisa.
— Por que ela não ficou com você?
— Ela disse uma vez que ia me
levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno da vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas “a madrinha”. Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
“... O bom jesus é quem nos traz
A mensagem de amor e alegria”...
— Também é
muita responsabilidade tirar crianças para criar! – disse Leduína desamarrando
o avental. – Já chega os que a gente tem...
Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia
iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:
— Eh, Biruta! Está com fome,
Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um
presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele
dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma
beleza de bola! Agora ele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a
bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nada, sabe, Ledeuína?
— Hoje cedo ele não esteve no
quarto da dona Zulu?
O menino empalideceu.
— Só se foi na hora em que fui
lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
Ela hesitou. E encolheu os ombros.
— Nada. Perguntei à toa.
A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu.
Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava
sorridente. O menino sorriu também.
— Ainda não foi pra sua
festa, Leduína? – perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do
vestido de renda. – Pensei que você já estivesse saído... – E antes que a
empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: – Então? Preparando seu jantarzinho?
O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava
assim mansamente, ele não sabia o que dizer.
— O Biruta está limpo, não está? –
Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do
cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do
fogão.
Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
— Biruta, Biruta! Cachorro mais
bobo, deu agora de se esconder... – Voltou-se para a patroa. E sorriu
desculpando-se: –Até de mim ele se esconde.
A mulher passou a mão no ombro do menino:
— Vou a uma festa onde tem um
menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o
Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante,
o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não empresta? O automóvel já
está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas
então era isso?!... Dona Zulu pedindo o Biruta emprestado, precisando do
Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e
que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente
com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da
cozinha.
— Viu, Biruta? Você vai numa festa!
– exclamou Alonso, beijando repetidas vezes o focinho do cachorro. –Você vai
numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. Com tudo! Mas
pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã
cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu
sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do
cachorro. Apertou-lhe a pata. – Te espero acordado, Biru ... Mas não demore
muito!
O patrão já estava na direção do carro. Alonso
aproximou-se.
— O Biruta, doutor...
O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
— Está bem, está bem. Pode
deixá-lo aí atrás.
Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do
cachorro. Em seguida, fez-lhe uma última carícia, colocou-o no assento do
automóvel e afastou-se correndo.
— Biruta vai adorar a festa! –
exclamou assim que entrou na cozinha. – E lá tem doces, tem crianças, ele não
quer outra coisa! – Fez uma pausa. Sentou-se. – Hoje tem festa em toda parte,
não, Leduína?
A mulher já se preparava para sair.
— Decerto.
Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
— Foi hoje que Nossa Senhora fugiu
no burrinho?
— Não, menino. Foi hoje que Jesus
nasceu. Depois então é que aquele rei manda prender os três.
Alonso concentrou-se, apreensivo:
— Sabe, Leduína, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... – Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruído do carro que já saía. – Dona Zulu estava linda, não?
— Estava.
— E tão boazinha também. Você não
achou que hoje ela estava boazinha?
— Estava, estava muito boazinha, sim... – concordou a empregada. E riu-se.
— Por que você está rindo?
— Nada – respondeu ela
pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer
coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a
preocupava.
— Sabe, Leduína, você não precisa
dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já
surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.
A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez
encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:
— Olha aqui, se eles gostam de
enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai
mais voltar.
— Não vai o quê? – perguntou
Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de
batata que ainda tinha na boca e levantou-se. – Não vai o quê, Leduína?
— Não vai mais voltar. Hoje cedo
ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou
daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava
a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse
vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais
aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia
sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe
daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu
da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros,
não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu
a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
— Não? ..
Ela perturbou-se.
— Que gente também! – explodiu.
Bateu desajeitadamente no ombro do menino. – Não se importe, não, filho. Vai,
vai jantar...
Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E
arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu-se à
garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria,
chegava até a borda do colchão desmantelado.
Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num
pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-se. E
estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
— Biruta – chamou baixinho. –
Biruta... – repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel,
segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.
(In: Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora, 1961.)
***
Sem tirar as botas
Klas Östergren
Cheirava à couve recheada, até lá embaixo, na portaria. O edifício tinha
passado por uma reforma e as marcas que nós, crianças, deixáramos nas paredes
haviam sido apagadas. Mas a iluminação era a mesma; essa luz amarela, mortiça,
que confere a todas as cores uma membrana que parece gordura ou nicotina.
O portão bateu com uma forte pancada. Fiquei totalmente imóvel, até que
o eco parou de soar. Os perigos que alguma vez espreitaram na portaria tinham
me ensinado de uma vez por todas a aguardar, a observar a mais estrita
vigilância, tão logo eu entrava numa portaria; a gente para um momento e fareja
o odor de tíner, presta atenção, no caso de haver alguém na passagem estreita,
espreitando.
Entretanto a portaria estava silenciosa. Não se ouvia ninguém brigar,
bater portas, jogar sacos de lixo cheios de garrafas, que se quebravam na
queda; também não havia ninguém jogando bola e usando como gol a porta do
elevador; ninguém chorava e ninguém gritava.
Mesmo assim, pude perceber o ruído de um casaco de couro. Um daqueles
casacos de couro grosso, de porco, que nunca param de ranger.
Logo que eu me dirige ao elevador, sob a luz fraca, ele saiu da sombra
como um fantasma. Fez-se presente, e apenas ficou ali, olhando, mudo e sem
gestos. Sabia que isso costumava bastar. Mas desta vez se enganou.
— Sinto muito, Hakan – disse eu.
Hakan tinha feito uma de suas famosas aparições. A
única coisa que desejava era ver o medo brilhar em um par de olhos, mesmo que
por um instante. Sua audácia podia despertar o horror em qualquer pessoa que
nunca o tivesse visto antes. Se eu estivesse em melhor forma, também lhe teria
feito o favor de parecer aterrorizado, gritar e subir correndo a escada,
somente para contentá-lo. Era tudo o que precisava para sentir-se satisfeito.
— Da próxima vez, Hakan – disse eu –. Da próxima
vez.
Ele reconheceu sua vítima e sacudiu a cabeça.
— Cumprimento e agradeço – disse. Pelo menos me
pareceu assim: “Cumprimento e agradeço”.
— Meu pai está morto – disse eu.
O homem diante de mim mostrou uma expressão de
espanto em seu rosto estranho.
— Você sabe... Ele está morto há vinte anos.
O homem sacudiu a cabeça e murmurou alguma coisa. Tristonho,
retirou-se de volta para a sombra, na passagem ao lado do cubículo da lixeira.
Entrei no elevador e subi.
Jovem, esse homem tinha sido bonito, sóbrio e bem
cuidado. Terrivelmente perigoso, pois era bombeiro. As mulheres, jovens e
velhas, jogavam toneladas de borra de café na pia, usavam todos os expedientes
para ter de limpar os canos. Meu pai apelidou-o de “Bombeiro-Rubirosa”. Ele era
um playboy que cheirava a esgoto.
Mas um acidente de gás deformou o seu rosto. A
mandíbula inteira foi arrancada. Desapareceu durante mais ou menos uma semana.
Sem queixo, qualquer pessoa parece um monstro. E as
mulheres, que antes adoraram seu bombeiro, agora usavam seu nome para
amedrontar os filhos desobedientes.
As águas rolaram e Hakan tornou-se um aposentado
por invalidez. A única coisa à qual ele se dedicava era aparecer de surpresa
quando menos era esperado, de preferência na semiobscuridade ou nas portarias
mal iluminadas. Logo que alguém dava um grito na vizinhança, deduzíamos que
Hakan estava solto novamente. Casais de namorados eram aterrorizados nos portões
e nos parques. Talvez as lembranças do primeiro beijo de muitas moças estejam
para sempre ligadas a um homem que tinha somente metade da boca. “Ele sabe
realmente como lidar com as pessoas”, diziam de Hakan. Mas, para quem antes
costumava se aproveitar de sua beleza, era fácil aproveitar-se do contrário.
A mim, ele nunca amedrontou, porque meu pai uma vez
resolveu convidá-lo para tomar café. Lembro bem: o bombeiro bebia no pires e
com o torrão de açúcar na boca, para adoçar o café à medida em que bebia. Nós
ficamos de queixo caído, contemplando admirados, para ver como aquilo ia ser.
Como também me lembro que minha mãe parecia zangada e enfurecida. Quando o
homem foi embora, ela disse:
— Você tem sempre...
— O quê? – perguntou meu pai.
— Que se mostrar!
Meu pai queria sempre se mostrar e isso era um
traço de família. Ele tinha muitos irmãos que também costumavam se mostrar, mas
ele andava mais com o irmão com o qual podia nadar. A água era o elemento
deles. Também gostavam de fazer festas juntos, especialmente no Natal.
Em sua mocidade, tinham feito muitas coisas em
companhia um do outro. Nasceram operários, mas não pensavam em morrer como
operários. Então faziam negócios, fundavam firmas em seu tempo livre e, quando
tiveram uma folga de verdade, construíram casas de veraneio nas proximidades de
uma corrente de água. Quando atualmente se ouve falar deles, todos riem, exceto
suas mulheres.
Meu pai e seu irmão, com os anos, fizeram cada vez
menos coisas juntos e, no fim, era quase que só a natação. Não sobrou nada do
resto. As casas de veraneio há muito tempo foram atingidas por uma podridão
incurável. Os vagabundos ocuparam as casas. As portas abriam para o lado
errado. Foi tudo mal planejado, pois eles estavam sempre com pressa. Um deles
fazia o trabalho de marcenaria e o outro pintava aquilo que tinha sido pregado.
Frequentemente havia uma festa à noite, por isso nada podia tomar muito tempo. As
medidas eram tomadas ao acaso. “Mais ou menos dez...” era uma expressão comum
para a medida mais exata. Tudo ficava, dessa forma, provisório.
Assim, depois de tanto tempo, pode parecer que eles
faziam a maioria das coisas por brincadeira. Nada restou de todas aquelas
folhas de compensado, as firmas foram fechadas e as pessoas faziam comentários
em voz baixa sobre os produtos que eles vendiam.
Talvez sentissem que nada duraria muito tempo e por
isso era melhor fazer tudo relaxado de uma vez.
Nem mesmo banho eles podiam tomar como pessoas
normais. Banhavam-se pela manhã, mesmo no inverno. Duas vezes por semana,
levantavam-se de madrugada e se encontravam numa cabana de praia. A temporada
durava do degelo até o Natal. Na metade fria do ano, eles ficavam onde havia
gelo. Cavavam buracos e pulavam para cima e para baixo, entre os blocos de
gelo.
Era principalmente nessas ocasiões que a gente se
lembrava que eles eram finlandeses. Eles tentavam fazer com que nós, os mais
novos, adotássemos aquele costume, pelo menos os meninos, mas nenhum de nós
concordava. A força do sangue já tinha diminuído. Suas esposas eram suecas,
tomavam a defesa das crianças, e aqueles finlandeses tinham que tomar banho
sozinhos, no meio dos seus blocos de gelo.
Os festejos de Natal, ao contrário, diziam respeito
a todos, também porque meu pai ficava com um humor insuportável já pela manhã.
Tudo estava errado e a família inteira ficava em alerta ou tinha que andar na
ponta dos pés, e todos eram igualmente feios e imbecis até que meu pai tomava
assento no banco da frente, ao lado do motorista de táxi. Os motoristas usavam
aqueles casacos grossos de couro, que rangiam. Meu pai acendia um charuto e o
calhambeque partia reclamando para Östermalm, onde meu tio morava. Meu pai
mostrava, então, um humor radiante e nós passávamos por cima de muitas pontes.
Lá embaixo, havia pedaços de gelo magníficos, nos quais teria sido um regozijo
cavar buracos. Todos riam e cheiravam bem e estavam famintos.
Meu tio morava num imenso apartamento exatamente em
cima do Estábulo. A gente podia trepar em largos nichos das janelas e ficar ali
sentado para olhar de camarote para fora, sobre o famoso covil, e esperar a
hora de ser testemunha de algum assassinato. O Estábulo era cheio de gangsters estranhos , pois eles
costumavam ficar do lado de fora de uma fábrica e inalar vapores venenosos de
uma válvula de ar. Ficavam ainda mais estranhos do que meu pai e seu irmão.
Tarde da noite, eu costumava ficar sentado à
janela, ano após ano, sem conseguir ver nada mais excitante do que um velho
gorro de carneiro que uma vez caiu na ladeira quando seu trenó agarrou numa
passagem onde havia areia.
As mães se dedicavam ao trabalho manual e a uma
conversa em voz baixa, enquanto os pais ficavam sentados na cozinha, roendo pés
de porco.
— Não fique na corrente de ar! – diziam as mães.
— Deixe que ele aprenda por sim mesmo – diziam os
pais.
Essas festas acabaram com o tempo e, numa das
últimas vezes em que eu estava sentado à janela esperando pelo assassinato no
Estábulo, meu tio se aproximou. Ele cheirava a charuto e vodka, um cheiro
maravilhoso.
Havia vapor numa janela, tanto que ele pôde desenhar
um enigma visual. Consistia mais em uma porção de traços em forma de ondas.
Perguntou se eu sabia o que era. Vi claramente o que era. Uma grande onda no
meio representava uma bunda nua que saía da água.
— Sally Bauer – disse –, que está atravessando a
nado o Canal da Mancha.
— Que ano? – perguntou meu tio.
— Cinquenta e um – tentei adivinhar.
— Errado – disse ele –. Menino endiabrado, não vê
que é 1939?
Sally Bauer era uma mulher ao gosto deles. Tinha
atravessado o Canal da Mancha antes e depois da Guerra.
Meu tio se parecia com papai, mas era mais novo e
viveu mais tempo. Lembro-me dele muito bem. Mas nenhum dos dois durou muito.
Suas viúvas atribuíam isso aos inúmeros banhos de inverno, mas isso nunca soou
muito plausível. Meu pai e seus irmãos eram pessoas incomuns e as pessoas assim
não duram muito. A não ser que se modifiquem e se tornem um pouco mais comuns.
As coisas comuns estavam mais de acordo com minha
mãe. Ela era viúva havia muito tempo e agora tinha preparado couve recheada
para seguramente dez pessoas. Sua cozinha estava cheia de vapor de comida,
vasilhas para legumes, formas de porcelana com as beiradas lascadas, aparelhos
elétricos antigos, feitos de baquelite e aço legítimo, inoxidável.
Sempre houve alguma coisa de sensato e de seguro em
sua natureza. Como se um fio corresse para fora de sua roupa de faxina, um fio
velho, forrado de tecido, muito gasto e condenado.
Agora ela havia preparado couve recheada para dez.
Nós seríamos, no melhor dos casos, dois. Ela provavelmente sentia angústia por
alguma coisa. Se eu lhe perguntasse por que, ela nunca reconheceria. Talvez
pudesse admitir que estava ansiosa por alguma coisa. Ansiosa, porém nada além
disso. Qualquer outra coisa seria muito pretensiosa. Não queria se mostrar.
— Hakan está lá embaixo – disse eu.
— Ah, sim, aquele... – disse minha mãe.
— Pensei que ele tivesse sumido há muito tempo.
Minha mãe não comentou mais o assunto. Espetou a
batata, levantou uma tampa, virou um botão do fogão que ela resolvera chamar de
verde-abacate. Seguindo a mesma tendência, o banheiro tinha sido modernizado e
equipado com uma ducha.
Certa vez, eu tinha tentando consertar tudo, por
algum tipo de cuidado, presumo. Mas agora não tinha mais sentido.
Minha mãe era lacônica e um pouco altiva quando
falava. Havia alguma coisa que a perturbava, mas eu não sabia o quê. Levou
algum tempo até que eu percebesse.
Queria me ver comer, e eu queria sentar-me à sua
frente e comer, mas não tinha apetite.
— Você tem algum uísque em casa?
— Veja você mesmo – respondeu ela, secamente.
Sua despensa estava cheia de picles com etiquetas
apagadas, vidros de geleia que colavam no papel da prateleira.
— Pode haver algum que sobrou do aniversário –
acrescentou.
— Que aniversário?
— O meu.
— Eu estive aqui?
Ela não respondeu.
Havia uma garrafa de uísque pela metade, em cima,
na despensa.
— Aparentemente não...
— Você parece cansado. Talvez precise de ajuda para
tirar as botas.
Eu estava sentado à mesa da cozinha e minha mãe me
observava e olhava para minhas botas como se olhasse para uma nova embalagem de
leite, alguma coisa que nunca tinha visto antes, que dava para abrir com um
pouco de teimosia.
As botas eram bem novas. Eram espanholas e tinham
custado uma fortuna. Minha mãe viu que eram novas e deduziu que eram caras.
Tinham custado seguramente uma aposentadoria inteira. Não se tratava de botas
comuns.
Enchi um copo, bebi um pouco e fiquei calado, para
não dizer nada desnecessário. Era a única coisa que podia fazer.
Absolutamente sem intenção, sem que estivesse
preparado, tinha que manter viva aquela animosidade até que me desse por
vencido e tirasse as botas. Por algum motivo, não o fiz imediatamente. Não
queria parecer um encrenqueiro e tentava enfrentar minha mãe com o mesmo
respeito com que um gangster clássico
enfrenta a sua. Mas agora ela acreditava que eu queria atormentar por não tirar
as botas.
Ninguém poderia invejar-me por causa daquele
uísque.
A inimizade que se baseia na ignorância, na
insegurança diante do desconhecido, não é tão devastadora como aquela inimizade
bem fundamentada entre duas pessoas que se conhecem desde o começo, que estão familiarizadas
com os defeitos e qualidades uma da outra, e acham os seus pontos fracos sem
vacilar um instante. É uma história trágica que se volta contra si mesma, pois compreende
e pressupõe um pedaço do passado comum de ambas; as duas são obrigadas a se
rechaçar, tomar distância de si mesmas e daquilo que elas, ao contrário, deviam
defender e de que deviam cuidar; só há perdedores ali, aquele que parece ser o
vencedor sente um gosto amargo na boca, porque alguma coisa interior e
incondicionalmente cheia de vida tem que morrer com o inimigo.
Eu, agora, era um adversário, um traidor, até que
me recompusesse e tirasse as botas e as colocasse no hall de entrada.
— Hakan – disse eu –, fico pensando se ele não é o
pai de Kinkel-Arne.
Minha mãe fingiu não escutar.
— Você acha? – perguntei.
— Quem? – disse minha mãe.
— Kinkel-Arne – disse eu. – O que morreu.
— Por que ele seria?
— Por que não? – disse eu. – Ele anda solto por aí.
— E o que tem isso?
— Todos os outros – disse eu –, já morreram.
Ele era uma dessas exceções maravilhosas que nunca
se consegue entender. Será que despertava tantas doces recordações que nenhuma
das esposas e viúvas tinha coragem de exigir a sua eliminação? Ele talvez fosse
pai de muitas crianças naquele bairro, naquele pequeno mundo, onde os cidadãos
provavelmente surpreenderam a ordem pública com sua maneira efetiva de limparem
e isolarem, eles mesmos, os discrepantes, os que não queriam adaptar-se, onde
as virtudes não eram a honestidade e a pureza, mas sobretudo a normalidade. Era
permitido ser criminoso ou bêbado, apenas não se podia ufanar-se, usar um
chapéu que provocasse escândalo. Ninguém podia ser demasiadamente bonito,
chamar a atenção pela sua beleza. Mas se podia ser demasiadamente feio.
Kinkel-Arne podia seguramente ter sido tão belo
quanto o bombeiro. Kinkel-Arne passava por irmão de Ole-Dole. Eles eram
completamente diferentes, mas tinham a mesma mãe.
Ole-Dole era o maior campeão de cusparadas. Sabia
cuspir a qualquer distância, sempre no alvo. Uma vez, quebrou com uma cusparada
a vitrine de uma loja de artigos de costura. Ninguém acreditou, no início. Acharam
que ele pusera uma pedra na boca. A coisa tinha que ser provada, mas Ole-Dole
se recusou, pois sua mãe tinha dito que havia alguma coisa errada com o seguro
dele.
Em vez disso, ele experimentaria com um gato.
Ole-Dole se concentrou, fez pontaria e cuspiu num gato que estava mijando na
areia. Era por isso que Kinkel-Arne tinha eczema. Havia mijo de gato na areia
em que brincávamos.
Ole-Dole acertou o gato no meio da testa. O gato
teve comoção cerebral e ficou esquisito. Desapareceu por uma semana. Essa foi a
semana em que aconteceu o acidente com o gás, quando o belo bombeiro perdeu a
sua mandíbula.
Quando o gato apareceu, uma semana mais tarde, veio
arrastando o queixo do bombeiro. Vinha cheio de formigas entre os dentes.
— É tarde demais! – a mãe de Kinkel-Arne uivou de
tristeza, abertamente.
Kinkel-Arne se coçava e não podia nunca brincar de
morto. Era uma arte importante em nossas brincadeiras. Assim que ficava deitado
e tinha de ficar imóvel, ele começava a coçar suas feridas. Os que desejam
ganhar não queriam nunca tê-lo ao seu lado.
Nós éramos muito ativos para a nossa idade.
Fazíamos a ronda dos bêbados conhecidos, juntávamos garrafas vazias e, todos os
sábados, saía um comboio de carrinhos de bebês carregados com as garrafas em
direção à loja de bebidas. As garrafas eram vendidas e juntávamos o dinheiro
num bolo.
A soma era depositada e aos poucos daria para
comprar bicicletas usadas para todos que participavam. O dinheiro deu para uma.
Depois nós cansamos. Com o sentido de justiça, tiramos a sorte para saber quem
ganharia a bicicleta.
Kinkel-Arne teve sorte, com seu jeito infeliz.
Ninguém lhe invejou a bicicleta, ele tinha azar em tantas outras coisas.
Nós costumávamos ir para a casa uns dos outros e
ficar imaginando coisas sobre a cidade de Boras. Queríamos nos mudar para lá,
trabalhar e viver na cidade. Com base nos catálogos que vinham de lá.
Kinkel-Arne não quis nunca ser engenheiro. Todos os
outros rapazes queriam ser engenheiros, nessa época. Chamava-se engenheiro de
araque, porque pressupunha um tipo de formação simplificada. Tinha que ser
refinado, mas não refinado demais.
Apesar disso, nós não queríamos. Os pais que
chegavam do trabalho vinham possessos e xingavam seus chefes. Especialmente se
tinham vindo pelo caminho do bar e estavam meio altos. Então o capataz era um
traidor da pátria, um lacaio, um capanga, e muito mais que era difícil de
entender, mas que soava muito mal.
Entretanto, quando o assunto era o nosso futuro,
todos os pais diziam que seríamos engenheiros, como o capataz no trabalho. Teríamos
a mesma profissão que um idiota desgraçado.
Assim, nós pensávamos em outros caminhos. Por um
tempo, Kinkel-Arne quis ser cafetão. A prostituta morava no andar térreo, sua
janela dava para um pequeno parque onde havia um salgueiro. Se a gente subia
escondido na árvore, podia ficar ali sentado, protegido pela folhagem, e ver
dentro do seu apartamento, de um quarto. Ela andava só de sutiã em casa e, de
quando em quando, vinham senhores visitá-la. Primeiro eles tomavam café. Depois
as persianas eram corridas. E então a fantasia se soltava. Era sempre o mesmo
procedimento. Mesmo quando o pai de Kinkel-Arne vinha de visita.
Não é difícil espionar as pessoas. Mas aquilo que
se vem a saber é às vezes insuportável.
Nós decidimos calar sobre o assunto. Guardaríamos nosso
segredo como homens.
Kinkel-Arne coçava-se mais do que nunca. Seu eczema
só piorava. Ele agora tinha dificuldade até de andar de bicicleta, de manter as
duas mãos no guidão. Tinha o tempo todo que esfolar as axilas, onde coçava
mais. Começou a vacilar. A última vez que o vi, a coceira em todo caso tinha
desaparecido. Finalmente ele conseguiu deitar-se e ficar completamente imóvel e
parecer um homem baleado.
Nós ficamos ali, olhando boquiabertos, nós que
ainda não tínhamos bicicletas. Quando tudo terminou e a polícia tinha ido
embora, e a ambulância tinha ido embora, e o motorista foi conduzido dali,
chorando, e as pessoas se dispersaram e a livre circulação foi restabelecida – então
uma menina se adiantou para o asfalto com um giz que ela tinha roubado na
escola, e desenhou um coração no contorno vazio. A silhueta de Kinkel-Arne era
muito maior do que ele havia sido na realidade. Era apenas um contorno vazio
que a chuva fina logo apagou.
Somente alguns dias mais tarde houve briga para ver
quem ficava com a bicicleta escangalhada. Ole-Dole deu a bicicleta, jogou para
os lobos. Eu não participei da disputa. Talvez isso tenha salvado alguma coisa.
— Meu menino – disse minha mãe –, você está triste.
— Sim – disse eu.
— Não beba mais.
Eu já tinha dado cabo do que restara do uísque. A batata
cozinhara demais. Minha mãe tinha chorado. Ela não disse nada, mas eu percebi.
— Vocês vão se separar novamente... – disse ela.
— Como você sabe?
— Você não teria vindo aqui.
— Percebe-se tão bem?
Mas foi tão idiota que ela não respondeu.
— Você deveria arranjar alguém do nosso tipo –
disse ela.
— O que é isso?
— Uma moça comum – disse ela.
Eu ainda não havia tirado as botas. Se eu as
tirasse agora, nunca mais poderia calçá-las de novo.
(In: Ficções, Ano VI, nº 12, dez/2003).
***
A procura de uma dignidade
Clarice Lispector
A Srª Jorge B.
Xavier simplesmente não saberia dizer como entrara. Por algum portão principal
não fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado por uma espécie de
estreita abertura em meio a escombros de construção, como se tivesse entrado de
esguelha por um buraco feito só para ela. O fato é que quando viu já estava
dentro.
E quando viu
percebeu que estava muito, muito dentro. Andava interminavelmente pelos
subterrâneos do Estádio de Futebol do Maracanã, ou, pelo menos, pareceram-lhe
cavernas estreitas que davam para salas fechadas, e quando se abriam as salas
só havia janelas que davam para o estádio. Este, àquela hora torradamente
deserto, reverberava ao extremo sol dum calor inusitado que estava acontecendo
naquele dia de pleno inverno.
Então a
senhora seguiu por um corredor sombrio. Este a levou igualmente a outro mais
sombrio. Pareceu-lhe que o teto dos subterrâneos era baixo.
E aí este
corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outros.
Dobrou o
corredor deserto. E aí em outra esquina.
Então continuou
automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros
corredores. Onde seria a sala da aula inaugural? Pois junto desta encontraria
as pessoas com quem marcara o encontro. A conferência era capaz de já ter
começado. Ia perdê-la, ela que se forçava a não perder nada de cultural porque
assim se mantinha jovem por dentro, já que até por fora ninguém adivinhava que
tinha quase setenta anos, todos lhe davam uns cinquenta e sete.
Mas agora,
perdida nos meandros internos e escuros do Maracanã, a senhora já arrastava pés
pesados de velha.
Foi então que
subitamente encontrou num corredor um homem surgido do nada, e perguntou-lhe
pela conferência que o homem que também surgira repentinamente ao dobrar o
corredor.
Então este
segundo homem informou que havia visto perto da arquibancada da direita, em
pleno estádio aberto, “duas damas e um cavalheiro, uma de vermelho”. A Srª
Xavier tinha dúvida de que essas pessoas fossem o grupo com quem devia se
encontrar antes da conferência, e na verdade já perdera de vista o motivo pelo
qual caminhava sem nunca mais parar. De qualquer modo seguiu o homem para o
estádio, onde parou ofuscada pelo espaço oco de luz escancarada e de mudez
aberta, o estádio nu desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão.
Havia uma multidão que existia pelo vazio de sua ausência absoluta.
As duas damas
e o cavalheiro já haviam sumido por algum corredor?
Então o homem
disse com desafio exagerado: “Pois vou procurar para a senhora e vou encontrar
de qualquer jeito essa gente, eles não podem ter sumido no ar”.
E de fato de
muito longe ambos os viram. Mas um segundo depois tornaram a desaparecer.
Parecia um jogo infantil onde gargalhadas amordaçadas riam da Srª Jorge B.
Xavier.
Então entrou
com o homem por outros corredores. Aí este homem também sumiu numa esquina.
A senhora já
desistira da conferência, que no fundo pouco lhe importava. Contanto que saísse
daquele emaranhado de caminhos sem fim. Não haveria porta de saída? Então
sentiu como se estivesse dentro dum elevador enguiçado entre um andar e outro.
Não haveria porta de saída?
E eis que
subitamente lembrou-se das palavras de informação da amiga pelo telefone: “Fica
mais ou menos perto do Estádio do Maracanã”. Diante dessa lembrança estendeu o
seu engano de pessoa avoada e distraída que só ouvia as coisas pela metade, a
outra ficando submersa. A Srª Xavier era muito desatenta. Então, pois, não era
no Maracanã o encontro, era apenas perto dali. No entanto o seu pequeno destino
quisera-a perdida no labirinto.
Sim, então a
luta recomeçou pior ainda: queria por força sair de lá e não sabia como nem por
onde. E de novo apareceu no corredor aquele homem que procurava as pessoas e
que de novo lhe garantiu que as acharia porque não podiam ter sumido no ar. Ele
disse assim mesmo:
– As pessoas
não podem ter sumido no ar!
A senhora
informou:
– Não precisa
mais se incomodar de procurar, sim? muito obrigado, sim? porque o lugar onde
preciso encontrar as pessoas não é no Maracanã.
O homem parou
imediatamente de andar para olhá-la perplexo:
– Então que é
que a senhora está fazendo aqui?
Ela quis
explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer
com o “assim mesmo” nem com “sua vida”, por isso nada respondeu. O homem
insistiu na pergunta, entre desconfiado e cauteloso: “Que é que ela estava
fazendo ali?” Nada, respondeu apenas em pensamento a senhora, já então
pressentes a cair de cansaço. Mas não lhe respondeu, deixou-o pensar que era
louca. Além do mais ela nunca se explicava. Sabia que o homem a julgava louca –
e quem dissera que não? Se bem que soubesse ter a chamada saúde mental tão boa
que só podia se comparar com sua saúde física. Saúde física já agora rebentada,
pois rastejava os pés de muitos anos de caminho pelo labirinto. Sua via-crucis.
Estava vestida de lã muito grossa e sufocava suada ao inesperado calor dum auge
de verão, esse dia de verão que era um aleijão do inverno. As pernas lhe doíam,
doíam ao peso da velha cruz. Já se resignara dalgum modo a nunca mais sair do
Maracanã e a morrer ali de coração exangue.
Então, e como
sempre, era só depois de desistir das coisas desejadas que elas aconteciam. O
que lhe ocorreu de repente foi uma ideia: “Mas que velha maluca eu sou”. Em vez
de continuar a perguntar pelas pessoas que não estavam lá, porque não procurava
o homem e indagava como se saía dos corredores? Pois o que queria era apenas
sair e não encontrar-se com ninguém.
Achou
finalmente o homem, ao dobrar duma esquina. E falou-lhe com voz um pouco
trêmula e rouca, por cansaço e medo de ter vã esperança. O homem desconfiado
concordou mais do que depressa que era melhor mesmo que ela fosse embora para
casa e disse-lhe com cuidado: “A senhora parece que não está muito bem da
cabeça, talvez seja este calor esquisito”.
Dito isto,
entrou com ela no primeiro corredor e na esquina avistavam-se os dois largos
portões abertos. Apenas assim? Tão fácil assim? Apenas assim.
Então a
senhora pensou sem nada concluir que só para ela é que se havia tornado
impossível achar a saída. A Srª Xavier estava apenas um pouco espantada e ao
mesmo tempo habituada. Na certa, cada um tinha o próprio caminho a percorrer
interminavelmente, fazendo isto parte do destino, no qual ela não sabia se
acreditava ou não.
E havia o táxi
passando. Mandou-o parar e disse-lhe, controlando a voz que estava cada vez
mais velha e cansada:
– Moço, não
sei bem o endereço, esqueci. Mas o que sei é que a casa fica numa
rua-não-me-lembro-mais-o-quê mas que fala em “Gusmão” e faz esquina com uma rua
se não me engano chamada Coronel-não-sei-quê.
O chofer foi
paciente como com uma criança: “Pois então não se afobe, vamos procurar
calmamente uma rua que tenha Gusmão no meio e Coronel no fim”, disse virando-se
para trás num sorriso, e aí piscou-lhe um olho de conivência que parecia
indecente. Partiram aos solavancos que lhe sacudiam as entranhas.
Então de
repente reconheceu as pessoas que procurava e que se achavam na calçada
defronte duma casa grande. Era porém como se a finalidade fosse chegar e não a
de ouvir a palestra que a essa hora estava totalmente esquecida, pois a Srª
Xavier se perdera do seu objetivo. E não sabia em nome de que caminhara tanto.
Então viu que se cansara para além das próprias forças e quis ir embora, a
conferência era um pesadelo. Pediu a uma senhora importante e vagamente conhecida
e que tinha carro com chofer para levá-la para casa, porque não estava se
sentindo bem com o calor estranho. O chofer só viria daí a uma hora. Então a
Srª Xavier sentou-se numa cadeira que tinham posto para ela no corredor,
sentou-se empertigada na sua cinta apertada, fora da cultura que se processava
defronte na sala fechada. Donde não se ouvia som algum. Pouco lhe importava a
cultura. E ali estava nos labirintos de sessenta segundos e de sessenta minutos
que a encaminhariam a uma hora.
Então a
senhora importante veio e disse assim: que a condução estava à porta mas que
lhe afirmava que, como o motorista avisara que ia demorar muito, em vista de a
senhora não estar passando bem, mandara parar o primeiro táxi que vira. Porque
a Srª Xavier não tivera ela própria a idéia de chamar um táxi, se submetera aos
meandros do tempo de espera. Então agradeceu ao motorista com extrema
delicadeza. A senhora era sempre muito delicada e educada. Entrou no táxi e
disse:
– Leblon, por
obséquio.
Tinha o
cérebro oco, parecia-lhe que sua cabeça estava em jejum.
Daí a pouco
notou que rodavam e rodavam mas que de novo ter minavam por voltar a uma mesma
praça. Porque não saíam de lá? Não havia de novo caminho de saída? O motorista
acabou confessando que não conhecia a Zona Sul, que só trabalhava na Zona
Norte. Ela não sabia como ensinar-lhe o caminho. Cada vez mais a cruz dos anos
pesava-lhe e a nova falta de saída apenas renovava a magia negra dos corredores
do Maracanã. Não havia meio de se livrarem da praça? Então o motorista disse-lhe
que tomasse outro táxi, e chegou mesmo a fazer sinal para que passara ao lado.
Ela agradeceu comedidamente, fazia cerimônia com as pessoas, mesmo com as
conhecidas. Além do que era muito gentil. No novo táxi disse a medo:
– Se o senhor não se incomodar, vamos para o Leblon.
E simplesmente
saíram logo da praça e entraram por novas ruas.
Foi ao abrir
com a chave a porta do apartamento que teve vontade apenas mental e fantasiada
de soluçar bem alto. Mas ela não era de soluçar nem de reclamar. De passagem
avisou à empregada que não atenderia telefonemas. Foi direto ao quarto, tirou
toda a roupa, engoliu sem água uma pílula e esperou que esta desse resultado.
Enquanto isso,
fumava. Lembrou-se de que era mês de agosto, dava azar. Mas setembro viria um
dia como porta de saída. E setembro era por algum motivo o mês de maio: um mês
mais leve e mais transparente. Foi vagamente pensando nisso que a sonolência
finalmente veio e ela adormeceu. Quando acordou, horas depois, viu que chovia
uma chuva fina e gelada, fazia um frio de lâmina de faca. Nua na cama, ela
enregelava. Então achou muito curioso ser uma velha nua. Lembrou-se de que
planejara comprar uma écharpe de lã. Olhou o relógio: ainda encontraria o
comércio aberto. Tomou um táxi e disse:
– Ipanema, por
obséquio.
O homem disse:
– Como é que
é? É para o Jardim Botânico?
– Ipanema, por
favor – repetiu a senhora, bastante surpreendida. Era o absurdo do desencontro
total: pois que havia em comum entre as palavras Ipanema e Jardim Botânico? Mas
de novo pensou vagamente que “era assim mesmo a sua vida”.
Fez
rapidamente a compra e viu-se na rua já escurecida sem ter que fazer. Pois o
Sr. Jorge B. Xavier viajara para São Paulo no dia anterior e só voltaria no dia
seguinte.
Então, de novo
em casa, entre tomar nova pílula para dormir ou fazer alguma outra coisa, optou
pela segunda hipótese, pois lembrou-se de que agora poderia voltar a procurar a
letra de câmbio perdida. O pouco que entendia era que aquele papel representava
dinheiro. Há dois dias procurara minuciosamente pela casa toda, e até pela
cozinha, mas em vão. Agora lhe ocorria: e por que não debaixo da cama? Talvez.
Ajoelhou-se no chão. Mas logo cansou-se de só estar apoiada nos joelhos e
apoiou-se também nas duas mãos.
Então percebeu
que estava de quatro.
Assim ficou um
tempo, talvez meditativa, talvez não. Quem sabe, a Srª estivesse cansada de ser
um ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma. Perdida
a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. Mas debaixo da cama só havia
poeira.
Levantou-se
com bastante esforço das juntas desarticuladas e viu que nada mais havia a
fazer senão considerar com realismo – e era com um esforço penoso que via a
realidade – considerar com realismo que a letra estava perdida e que continuar
a procurá-la seria nunca sair do Maracanã.
E, como
sempre, já que desistira de procurar, ao abrir a gavetinha de lenços para tirar
um – lá estava a letra de câmbio.
Então a
senhora, cansada pelo esforço de ter ficado de quatro, sentou-se na cama e
começou muito à toa a chorar de manso. Parecia mais uma lengalenga árabe. Há
trinta anos não chorava, mas agora estava tão cansada. Se é que aquilo era
choro. Não era. Era alguma coisa. Finalmente, assoou o nariz. Então pensou o
seguinte: que ela forçaria o “destino” e teria um destino maior. Com força de
vontade se consegue tudo, pensou sem a menor convicção. E isso de estar presa a
um destino ocorrera-lhe porque já começara sem querer a pensar em “aquilo”.
Aconteceu
então que a senhora também pensou o seguinte: era tarde demais para ter um
destino. Pensou que bem faria qualquer tipo de permuta com outro ser. Mas lhe
ocorreu que não havia com quem se permutar: quem quer que fosse, ela era ela e
não podia se transformar em outra única. Cada um era único. A Srª Jorge B.
Xavier também era.
Mas tudo o que
lhe acontecera ainda era preferível a sentir “aquilo”. E eis que de repente
“aquilo” veio com seus longos corredores sem saída. E sem o menor pudor,
“aquilo” era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída pelo
inalcançável ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele. Então, já que
não pudera se impedir de pensar nele, o jeito era deixar-se pensar e relembrar
o rosto de menina-moça do cantor Roberto Carlos, meu amor.
Foi lavar as
mãos sujas de poeira e viu-se no espelho da pia. Então a Srª Xavier pensou
assim: “Se eu quiser muito, mas muito mesmo, ele será meu por ao menos uma
noite”. Acreditava vagamente na força de vontade. De novo se emaranhou no
desejo, que era retorcido e estrangulado.
Mas, quem sabe?,
se desistisse de Roberto Carlos, então é que as coisas entre ele e ela
aconteceriam. A Srª Xavier meditou um pouco sobre o assunto. Então espertamente
fingiu que desistia de Roberto Carlos. Mas bem sabia que a desistência mágica
só dava resultados positivos quando era real, e não apenas um truque como modo
de conseguir. A realidade exigira muito da senhora. Examinou-se ao espelho para
ver se o rosto se tornara bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era
um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu
rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era apenas a máscara duma
mulher de setenta anos. Sua cara levemente maquilhada pareceu-lhe e dum
palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não
melhorou.
Por fora – viu
no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era
estorricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim
como gengiva desdentada.
Então procurou
um pensamento que a espiritualizasse ou que a estorricasse de vez. Mas nunca
fora espiritual. E por causa de Roberto Carlos a senhora estava envolta nas
trevas da matéria, onde ela era profundamente anônima.
De pé no
banheiro era tão anônima quanto uma galinha.
Numa fração de
fugitivo segundo quase inconsciente, vislumbrou quase todas as pessoas
anônimas. Porque ninguém é o outro e outro não conhecia o outro. Então – então
a pessoa é anônima. E agora estava emaranhada naquele poço fundo e mortal, na
revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que ra a escuridão das trevas
malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos. E tudo fora de época,
fruto fora de estação? Por que nunca lhe tinham avisado as outras velhas que
até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos.
Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela
que não era ninguém.
A Srª Jorge B.
Xavier era ninguém.
Então quis ter
sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto
Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor
escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria
comer a boca de Roberto Carlos. Não era romântica, ela era grosseira em matéria
de amor. Ali no banheiro, defronte do espelho da pia.
Com sua idade
indelevelmente maculada. Sem ao menos um pensamento sublime que lhe servisse de
leme e que enobrecesse a sua existência.
Começou a
desmanchar o coque dos cabelos e a penteá-los devagar. Estavam precisando de
nova pintura, as raízes brancas já apareciam. A senhora pensou o seguinte: na
minha vida nunca houve um clímax como nas histórias que se leem. O clímax era
Roberto Carlos. Mas também sabia que toda morte é secreta. Meditativa, concluiu
que iria morrer secretamente assim como secretamente vivera.
No fundo de
sua futura morte imaginou ver no espelho a figura cobiçada de Roberto Carlos,
com aqueles macios cabelos encaracolados que ele tinha. Ali estava, presa ao
desejo fora de estação assim como o dia de verão em pleno inverno. Presa no
emaranhado dos corredores do Maracanã. Presa ao segredo mortal das velhas. Só
que ela não estava habituada a ter quase setenta anos, faltava-lhe prática e
não tinha a menor experiência.
Então disse
algo e bem sozinha:
– Robertinho
Carlinhos.
E acrescentou
ainda: meu amor. Ouviu sua voz com estranheza, como se estivesse pela primeira
vez fazendo, sem nenhum pudor ou sentimento de culpa, a confissão que no
entanto deveria ser vergonhosa. A senhora devaneou que era capaz de Robertinho
não querer aceitar o seu amor porque tinha ela própria a consciência de que
este amor era muito piegas, melosamente voluptuoso e guloso. E Roberto Carlos
parecia tão casto, tão assexuado.
Seus lábios
levemente pintados ainda seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca
de velha? Examinou bem de perto e inexpressivamente os próprios lábios. E ainda
inexpressivamente cantou o estribilho da canção mais famosa de Roberto Carlos:
“Quero eu você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”.
Foi então que
a Srª Jorge B. Xavier bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar
as vísceras e interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! que!
haver! uma! porta! de saííííííída!
(In: Onde
estiveste de noite. Rio
de Janeiro: Rocco, 1974).
***
Pierre Menard, autor do Quixote
Jorge
Luis Borges
A
Silvina Ocampo
A obra visível que este romancista deixou é de
fácil e breve enumeração. São, portanto, imperdoáveis as omissões e adições
perpetradas por Madame Henri Bachelier em um catálogo falacioso que certo
jornal, cuja tendência protestante não é segredo, tem tido a
desconsideração de infligir a seus deploráveis leitores – se bem que estes são
poucos e calvinistas, quando não maçons e circuncidados. Os verdadeiros amigos
de Menard têm visto com alarme esse catálogo e também com certa tristeza.
Dir-se-ia que ainda ontem nos reunimos diante do mármore final e entre os
agourentos ciprestes, e já o Erro trata de empanar sua Memória.. Decididamente,
uma breve retificação é inevitável.
Consta que é muito fácil recusar a minha pobre
autoridade. Espero, porém, que não me proíbam de mencionar dois valiosos
testemunhos. A baronesa de Bacourt (em cujos inesquecíveis vendredis tive
a honra de conhecer o pranteado poeta) houve por bem aprovar as linhas que
seguem. A condessa de Bagnoregio, um dos espíritos mais agudos do principado de
Mônaco (e agora de Pittsburgh, Pensilvânia, depois de sua recente boda com o
filantropo internacional Simon Kautzch, tão caluniado, ai!, pelas vítimas
de suas desinteressadas manobras), tem sacrificado “à verdade e à morte” (tais
são suas palavras) a altiva discrição que a distingue, e em uma carta aberta,
publicada na revista Luxe, também concede-me sua aprovação. Essas
credenciais, creio, não são insuficientes.
Tenho dito que a obra visível de
Menard é facilmente enumerável. Examinado com esmero seu arquivo particular,
verifiquei que consta das peças que seguem:
a) Um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com
variações) na revista La Conque (números de março e outubro de
1899).
b) Uma monografia sobre a possibilidade de se
construir um vocabulário poético de conceitos que não sejam sinônimos ou
perífrases daqueles que conformam a linguagem comum, “mas objetos ideais
criados por uma convenção e essencialmente destinados às necessidades poéticas”
(Nîmes, 1901).
c) Uma monografia sobre “certas conexões ou
afinidades” do pensamento de Descartes, Leibniz e John Wilkins (Nîmes, 1903).
d) Uma
monografia sobre a Characteristica Universalis de Leibniz
(Nîmes, 1904).
e)
Um artigo técnico sobre a possibilidade de se enriquecer o xadrez, eliminando
um dos peões de torre. Menard propõe, recomenda, discute e acaba por rechaçar
essa inovação.
f)
Uma monografia sobre a Ars Magna Generalis de Ramón Llull
(Nîmes, 1906).
g)
Uma tradução com prólogo e notas do Livro da invenção liberal e arte do
jogo do xadrez de Ruy Lópes de Segura (Paris, 1907).
h)
Os esboços de uma monografia sobre a lógica simbólica de George Boole.
i)
Um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos
de Saint-Simon (Revue des Langues Romanes, Montpellier, outubro de
1909).
j)
Uma réplica a Luc Durtain (que havia negado a existência de tais leis),
ilustrada com exemplos de Luc Durtain (Revue des Langues Romanes,
Montpellier, dezembro de 1909).
k)
Uma tradução manuscrita da Aguja de navegar
cultos, de Quevedo, intitulada La Boussole dês précieux.
l)
Um prefácio ao catálogo da exposição de litografias de Carolus Hourcade (Nîmes,
1914).
m)
A obra Les Problèmes d’un probléme (Paris, 1917), que discute
em ordem cronológica as soluções do ilustre problema de Aquiles e a
tartaruga. Duas edições deste livro têm aparecido até hoje; a segunda traz como
epígrafe o conselho de Leibniz Ne craignez point, monsieur, la tortue,
e revisa os capítulos dedicados a Russell e a Descartes.
n)
Uma obstinada análise dos “costumes sintáticos” de Toulet (N.R.F., março
de 1921). Menard, recordo, declarava que censurar e louvar são operações
sentimentais que nada têm a ver com a crítica.
o)
Uma transposição em alexandrinos do Cimetière Marin, de Paul Valéry
(N.R.F., janeiro de 1928).
p)
Uma invectiva contra Paul Valéry, nas Folhas para a supressão da
realidade, de Jacques Reboul. (Essa invectiva, diga-se entre parêntesis, é
o reverso exato de sua verdadeira opinião sobre Valéry. Este assim o entendeu,
e a amizade antiga dos dois não correu perigo).
q)
Uma “definição” da condessa de Bagnoregio, no “vitorioso volume” – a expressão
é de outro colaborador, Gabriele d'Annunzio, que anualmente publica esta dama
para retificar os inevitáveis falseamentos do jornalismo e apresentar “ao mundo
e à Itália” uma autêntica efígie de sua persona, tão exposta (em razão mesma de
sua beleza e de sua atuação) a interpretações errôneas ou apressadas.
r)
Um ciclo de admiráveis sonetos para a baronesa Bacourt (1934).
s)
Uma lista manuscrita de versos que devem sua eficácia à pontuação.1
Até
aqui (sem outra omissão que uns vagos sonetos circunstanciais para o
hospitaleiro, ou ávido, álbum de Madame Henri Bachelier), a obra visível de
Menard, em sua ordem cronológica. Passo agora à outra: a subterrânea, a
interminavelmente heroica, a ímpar. Também, ai das possibilidades do homem!, a
inconclusa. Essa obra, talvez a mais significativa de nosso tempo, consta dos
capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e
de um fragmento do capítulo vinte e dois. Sei que tal afirmação parece um
absurdo; justificar esse “absurdo” é o objeto primordial desta nota.2
Dois
textos de valor desigual inspiraram a empreitada. Um deles é o fragmento
filológico de Novalis – o de número 2005, na edição de Dresden –, que
esboça o tema de total identificação com um determinado autor.
O outro é um desses livros parasitários, que situam Cristo num bulevar, Hamlet
na Cannebiére ou Dom Quixote em Wall Street. Como todo homem de bom gosto,
Menard abominava esses carnavais inúteis, próprios, dizia, para causar somente
o plebeu prazer do anacronismo, ou (o que é pior) para nos encantar com a ideia
primária de que todas as épocas são iguais, ou de que são distintas. Mais
interessante, ainda que de execução contraditória e superficial, lhe parecia o
famoso propósito de Daudet: conjugar em uma figura, a de Tartarín, o
Engenhoso Fidalgo e seu escudeiro... Aqueles que insinuam que Menard dedicou
sua vida a escrever um Quixote contemporâneo caluniam sua brilhante memória.
Não queria compor outro Quixote – o que é fácil –, mas o Quixote.
Inútil acrescentar que nunca tentou uma transcrição mecânica do original; não
se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir umas páginas que
coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de
Cervantes.
“O
meu propósito é simplesmente assombroso”, escreveu-me ele, de Bayonne, a 30 de
setembro de 1934. “O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica –
o mundo exterior, Deus, a causalidade, as formas universais – não é menos
anterior e comum que meu famoso romance. A diferença é que os filósofos
publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias de seu trabalho, e eu
resolvi perdê-las”. Com efeito, não resta um só rascunho que ateste esse
trabalho de anos.
O
método inicial que imaginou era relativamente simples. Conhecer bem o espanhol,
recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra o turco, esquecer
a História da Europa entre os anos de 1602 e 1918, ser Miguel
de Cervantes. Pierre Menard estudou esse procedimento (sei que logrou um manejo
bastante fiel do espanhol do século XVII), mas o descartou, por ser fácil
demais. Antes, por impossível!, dirá o leitor. De acordo, mas a empreitada era
de antemão impossível e de todos os meios impossíveis para levá-la a termo,
este era o menos interessante. Ser, no século XX, um escritor popular do século
XVII pareceu-lhe uma diminuição. Ser, de alguma maneira, Cervantes, e chegar ao
Quixote, lhe pareceu menos árduo – por conseguinte, menos interessante – que
seguir sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote, através das experiências de
Pierre Menard. (Essa convicção, diga-se de passagem, fê-lo excluir o prólogo
autobiográfico da segunda parte do Dom Quixote. Incluir esse prólogo seria
criar outro personagem – Cervantes –, mas também significaria apresentar o
Quixote em função desse personagem, e não de Menard. Este, naturalmente, se
negou a essa facilidade.) “Essencialmente, minha empresa não é difícil”, leio
em outro lugar da carta. “Bastar-me-ia ser imortal para levá-la a cabo”.
Confessarei que costumo imaginar que ele a concluiu, e que leio o Quixote –
todo o Quixote – como se o houvesse pensado Menard? Noites atrás, ao folhear o
capítulo XXVI – nunca tentado por ele –, reconheci o estilo de nosso amigo e
como que a sua voz, nesta frase excepcional: as ninfas dos rios, a
dolorosa e úmida Eco. Essa conjunção eficiente de um adjetivo moral e outro
físico me trouxe à memória um verso de Shakespeare, que discutimos uma tarde:
Where a malignante and a turbanede Turk...
Por
que precisamente o Quixote?, dirá nosso leitor. Essa preferência, em um
espanhol, não seria inexplicável; mas, sem dúvida, o é, num simbolista de
Nîmes, devoto essencialmente de Poe, que gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé,
que gerou Valéry, que gerou Edmond Teste. A carta supracitada ilumina o ponto.
“O Quixote”, esclarece Menard, “interessa-me profundamente, mas não me parece,
como direi?, inevitável. Não posso imaginar o universo sem a interjeição de
Edgar Allan Poe:
Ah,
bear in mind this garden was enchanted!
Ou sem o Bateau ivre ou o Ancient
Mariner, mas me sei capaz de imaginá-lo sem o Quixote. (Falo, naturalmente,
da minha capacidade pessoal, não da ressonância histórica das obras.) O Quixote
é um livro contingente, o Quixote é desnecessário. Posso premeditar sua
escritura, posso escrevê-lo, sem incorrer em tautologia. Aos doze ou treze anos
o li, talvez integralmente. Depois, reli com atenção alguns capítulos, aqueles
que não tentarei por agora. Estudei igualmente os entremeses, as comédias,
a Galatea, as Novelas exemplares, os trabalhos sem
dúvida laboriosos de Persiles y Segismunda e a Viagem
do Parnaso... Minha recordação geral do Quixote, simplificada pelo
esquecimento e pela indiferença, pode muito bem equivaler à imprecisa imagem
anterior de um livro não escrito. Postulada essa imagem (que ninguém de boa-fé
me pode negar), é indiscutível que o meu problema é bem mais difícil que o de
Cervantes. O meu complacente precursor não recusou a colaboração do acaso: ia
compondo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias
da linguagem e da invenção. Eu contraí o misterioso dever de reconstruir
literalmente sua obra espontânea. Meu solitário jogo é governado por duas leis
polares. A primeira me permite ensaiar variantes de tipo formal ou psicológico;
a segunda me obriga a sacrificá-las ao texto ‘original’ e a afirmar de um modo
irrefutável essa aniquilação... A esses entraves artificiais, há que se somar
outro, congênito. Compor o Quixote em princípios do século XVII era uma empresa
razoável, necessária, talvez fatal; em princípios do século XX, é quase
impossível. Não em vão, transcorreram 300 anos, carregados de complexíssimos
fatos. Entre eles, para mencionar apenas um: o próprio Quixote”.
Apesar
destes três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais sutil que o de
Cervantes. Este, de um modo grosseiro, opõe às novelas de cavalaria a pobre
realidade provinciana de seu país; Menard elege como “realidade” a terra de
Carmen durante o século de Lepanto e de Lope. Que espanholadas não haveria
aconselhado essa escolha a Maurice Barres ou ao doutor Rodriguez Larreta!
Menard, com toda naturalidade, as evita. Em sua obra não existem ciganos, nem
conquistadores, nem místicos, nem Felipe II, nem autos de fé. Desatende ou
proscreve a cor local. Esse desdém indica um sentido novo da novela histórica.
Esse desdém condena a Salammbô, inapelavelmente.
Não menos assombroso é considerar capítulos
isolados. Por exemplo, examinemos o XXXVIII da primeira parte, “que trata do
curioso discurso que fez Dom Quixote das armas e das letras”. Sabe-se que Dom
Quixote (como Quevedo, em passagem análoga, e posterior, d’A hora de todos)
desfavorece as letras, dirigindo o pleito a favor das armas. Cervantes era um
velho militar: sua falha se explica. Mas que o Dom Quixote de Pierre Menard –
homem contemporâneo de La trahison dês clercs e de Bertrand
Russell – reincida nesses nebulosos sofismas! Madame Bachelier considera-os uma
admirável e típica subordinação do autor à psicologia do herói; outros (nada
perspicazmente), uma transcrição do Quixote; a baronesa de
Bacourt, a influência de Nietzsche. A essa terceira interpretação (que julgo
irrefutável), não sei se me atreverei a acrescentar uma quarta, que condiz
muito bem com a quase divina modéstia de Pierre Menard: seu hábito resignado ou
irônico de propagar ideias que são o exato reverso das preferidas por ele.
(Rememoremos outra vez sua investida contra Paul Valery na efêmera folha hiper-realista
de Jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos,
mas o segundo é quase infinitamente mais rico. (Mais ambíguo, dirão seus
detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza.)
É uma revelação cotejar o Dom Quixote de
Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote,
primeira parte, nono capítulo):
... a
verdade, cuja mãe é a História, rival do tempo, depósito das ações, testemunha
do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do porvir.
Redigida no século XVII, redigida pelo “engenho
leigo” Cervantes, essa enumeração é um mero elogio retórico da História.
Menard, em contrapartida, escreve:
... a
verdade, cuja mãe é a História, rival do tempo, depósito das ações, testemunha
do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do porvir.
A História, mãe da verdade; a
ideia é assombrosa. Menard, contemporâneo de William James, não define a
História como uma indagação da realidade, mas como sua origem. A verdade
histórica, para ele, não é o que sucedeu; é o que julgamos que sucedeu. As
cláusulas finais – exemplo e aviso do presente, advertência do porvir –
são flagrantemente pragmáticas.
Também é vívido o contraste dos estilos. O estilo
arcaizante de Menard – estrangeiro, por fim – padece de alguma afetação. Não,
porém, o do precursor, que maneja com desenvoltura o espanhol corrente de sua
época.
Não há exercício intelectual que não seja
finalmente inútil. Uma doutrina é, no princípio, uma descrição verossímil do
universo; passam-se os anos e é um mero capítulo – quando não um parágrafo ou
um nome – da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade é ainda mais
notória. O Quixote – disse-me Menard – foi sobretudo um livro agradável; agora
é uma ocasião de brindes patrióticos, de soberba gramatical, de obscenas
edições de luxo. A glória é uma incompreensão, e quiçá a pior.
Nada têm de novo essas comprovações niilistas; o
extraordinário é a decisão que delas derivou Pierre Menard. Resolveu
adiantar-se à vanidade que aguarda todas as fadigas do homem; cometeu uma
tarefa complexíssima e de antemão fútil. Dedicou seus escrúpulos e vigílias a
repetir em um idioma alheio um livro já existente. Multiplicou os rascunhos;
corrigiu tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas.3 Não permitiu que ninguém as
examinasse e cuidou para que não lhe sobrevivessem. Em vão procurei
reconstruí-las.
Tenho refletido que é lícito ver no Quixote “final”
uma espécie de palimpsesto, no qual devem transparecer os rastros – tênues, mas
não indecifráveis – da “prévia” escritura de nosso amigo. Desgraçadamente,
somente um segundo Pierre Menard, invertendo o trabalho do anterior, poderia
exumar e ressuscitar essas Troias...
“Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também)
não são atos anômalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o
ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos,
recordar com incrédulo estupor que o doctor universalis pensou,
é confessar nossa preguiça ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de
todas a ideias e entendo que no porvir o será”.
Menard (embora sem o querer) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte detida e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação infinita nos insta a percorrer a Odisseia como se fosse posterior à Eneida, e o livro Le jardin du Centaure, de Madame Henri Bachelier, como se fosse de Madame Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os mais tediosos livros. Atribuir a Louis Ferdinand Celine ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é uma suficiente renovação desses tênues avisos espirituais?
Nîmes, 1939
(Publicado em El jardin de senderos que se bifurcam, 1941, e em Ficciones, 1944. Traduzido do espanhol por Isabel Pires para este blog)
______________________
NOTAS DO AUTOR:
1 Madame Henri Bachelier
enumera também uma versão literal da versão literal que fez Quevedo da Introdução
à vida devota de São Francisco de Sales. Na biblioteca de Pierre
Menard não há vestígios de tal obra. Deve tratar-se de uma piada, mal
interpretada, de nosso amigo.
2 Tive também o propósito secundário de esboçar a imagem de Pierre Menard. Mas como atrever-me a competir com as páginas áureas que, me dizem, prepara a baronesa de Bacourt, ou com o lápis delicado e preciso de Carolus Hourcade?
3 Recordo-me de
seus cadernos quadriculados, seus negros borrões, seus peculiares símbolos
tipográficos e sua letra de inseto. Ao entardecer, gostava de caminhar pelos
arredores de Nîmes; costumava levar consigo um caderno e fazer uma alegre
fogueira.
A velhinha
contrabandista
Stanislaw
Ponte Preta
Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela
passava na fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta.
O pessoal da alfândega – tudo malandro velho – começou a desconfiar da
velhinha.
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da
alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim
pra ela:
Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco
aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os
outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu: – É areia!
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha
saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o
saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha fosse em
frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.
Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia
com areia e no outro com moamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte,
quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra
vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia,
uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou
a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de
serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça
que a senhora é contrabandista.
Mas no saco só tem areia! – insistiu a velhinha. E já ia tocar a
lambreta, quando o fiscal propôs:
Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não
apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o
contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?
O senhor promete que não “espaia”? – quis saber a velhinha.
Juro – respondeu o fiscal.
É lambreta.
***
O museu
Darbot
Victor
Giudice
"Eles dizem que eu pinto o nada. Mas juro que pintar o nada é um poder concedido por Deus".
(Jean-Baptiste Darbot)
Jean-Baptiste Darbot nasceu
em dezembro de 1872, no sul da França, num vilarejo de dois mil habitantes,
entre Arles e Avignon. Filho natural de camponeses, foi criado pelo pároco do
local, Padre François Dominic Darbeaux. Na certidão de nascimento, datada de 5
de julho de 1873, o sobrenome aparecia modificado para Darbot. Mas é certo que
o religioso quis dar seu nome ao filho de criação. Dos sete aos quatorze anos,
Jean-Baptiste estudou em Arles, numa congregação católica que abrigava meninos
órfãos. A partir dali, nunca mais freqüentaria outra instituição de ensino.
Segundo ele, era vontade do pai adotivo enviá-lo a um seminário para que se
iniciasse na vida eclesiástica. Mas o Padre Dominic morreu durante o incêndio
que destruiu sua paróquia. Numa pesquisa realizada em 1957, foi encontrado nos
arquivos de uma igreja de Arles o registro de um certo Jean-Baptiste Darbeux,
numa caligrafia quase ilegível. Tudo indica ser o mesmo Jean-Baptiste Darbot,
diante do qual o mundo artístico se curvaria. Ainda em Arles, Jean-Baptiste teve
a sorte de ver Gauguin e Van Gogh em plena atividade criadora. Foi assim que
lhe surgiu o desejo de se tornar pintor. Depois de algumas experiências
reprovadas pelos mestres tradicionais e, até mesmo por Berthe Morisot, uma das
fundadoras do Impressionismo, o jovem Darbot desiludiu-se com a pintura e se
engajou como auxiliar de imediato num navio cargueiro que viajava de seis em
seis meses para o Brasil.
Ele costumava dizer que o
Rio de Janeiro de 1896 logo lhe pareceu um milagre em óleo sobre tela. Apaixonado
pela cidade, tratou de obter o desligamento e fixar moradia no novo país. No
Rio, empregou-se como servente numa indústria de tecidos recém-inaugurada em
Vila Isabel, indo morar num quarto alugado no bairro de São Cristóvão. Darbot
estava com vinte e quatro anos. No fim de três anos, trocou de emprego,
passando a auxiliar de laboratório numa farmácia da Rua São Januário. Nessa
época, mudou-se para um porão na Rua Escobar, a poucos metros do Campo de São
Cristóvão e da Quinta da Boa Vista. Foi justamente na Quinta que Darbot viu
renascer sua vocação de pintor. Um dia comprou uma tela, alguns tubos de tinta,
meia dúzia de pincéis e foi para lá no primeiro domingo de folga. Depois de
várias tentativas, não conseguiu pintar uma única árvore. Sua visão se prendia
a detalhes do céu, nos espaços permitidos pela folhagem. Logo abandonou os
pincéis, comprou uma espátula e, aos poucos, foi modelando sua técnica
definitiva. Quando apresentou os novos trabalhos ao Museu Nacional de Belas
Artes, Edmundo Novaes, um dos grandes pintores da época, lhe disse que sua
pintura representava o nada. Essa crítica se tornou tão frequente, que ele
escreveu a lápis, já em português, no verso da contracapa de um missal:
"Eles dizem que eu pinto o nada. Mas juro que pintar o nada é um poder
concedido por Deus." Quando Jean-Baptiste Darbot morreu tuberculoso,
solitário e desconhecido, em 11 de agosto de 1921, o porão da Rua Escobar, onde
sempre morou, estava abarrotado de telas. Ao todo, trezentas e oitenta e
quatro. Trezentas e oitenta e três representavam o nada, como lhe declararam os
grandes mestres, mas uma delas, de quarenta centímetros por sessenta, era o
célebre autorretrato. É nele que se observa a expressão alinhavada pela
tristeza e marcada pelo misticismo católico desse gênio, cuja arte tentou
representar a abstração divina."
Tirando as atualizações, esse foi o resumo biográfico mimeografado no folheto
da primeira exposição Darbot, em 1958, numa galeria da Tijuca e, tal como está,
é o que ilustra agora, em 1994, com versões em inglês, alemão, francês,
italiano e espanhol, o catálogo de cento e setenta páginas da grande
Retrospectiva Darbot, inaugurada há um mês, no Museu Guggenheim, de Nova York.
Meu nome aparece como curador da obra de Jean-Baptiste. A retrospectiva apresenta
cento e vinte e nove trabalhos e mais as quarenta e duas telas, incluindo o
autorretrato, que formam minha coleção particular, em exposição permanente no
Museu Darbot do Rio de Janeiro, desde sua fundação em 1987.
Acho que não preciso declarar que artisticamente e, sobretudo, financeiramente
sou um homem realizado. Se houvesse um Prix Nobel destinado a descobridores de
obras de arte, eu certamente estaria entre os mais sérios candidatos. Mas
ganhei outros galardões equivalentes.
No sábado que antecedeu a inauguração
da retrospectiva, desembarquei às sete da madrugada no John Kennedy, tomei um
banho de banheira em minha suíte no Plaza, arrisquei um olhar ao Central Park
submerso em neve, enfrentei um café da manhã sem gemas cozidas, para afugentar
o colesterol, e caminhei até o Lincoln Center, para assustar os triglicerídeos.
Em nenhum passo senti o peso dos sessenta anos. Retirei meu ingresso para
o Parsifal daquela noite, já reservado na bilheteria do
Metropolitan, e peguei um táxi até o Guggenheim, no outro lado do parque: não
seria elegante aparecer por lá a pé, como um condenado.
Às dez e meia em ponto, como
estava combinado há dezenove telegramas e oito faxes, um alto funcionário me
recebeu sorridente, acompanhado de uma assessora de cabelos, sobrancelhas,
pestanas, sardas, lábios, casaco e sapatos vermelhos. De longe ela se confundia
com uma das primeiras abstrações de Darbot. O funcionário era Philip D'Amico,
autor das sessenta e quatro cartas que resultaram na retrospectiva. A abstração
preferia ser chamada pelo apelido: Lonie. Depois de quatro ou cinco
apresentações, D'Amico, Lonie e três encarregados da instalação das telas me
conduziram ao elevador. Saltamos no último andar e descemos a pé a famosa rampa
espiralada, onde se concentra mais da metade das exposições do Guggenheim. Foi
uma peregrinação emocional: até onde a vista alcançava só se viam Darbots.
Reconheço que seria problemático estabelecer uma ordem para os trabalhos de
Jean-Baptiste. A impressão que se tem é de que os artistas atuais produzem com
a preocupação de deixar bem claras as fases de sua obra. A finalidade seria
facilitar o trabalho dos organizadores, caso algum dia se realizasse uma
retrospectiva. Quem sabe? Em se tratando de arte e de século XX, tudo é
possível. Achei bastante oportuna a ideia de se instalarem as telas maiores nos
salões laterais. Na verdade, trata-se de treze telões de um metro e oitenta por
um e vinte, às vezes, um e quarenta, não mais. Aliás, como eu conto na
biografia que estou terminando para uma editora de São Paulo, em sociedade com
outra de Nova York, o que faltou a Darbot foi espaço físico para trabalhar. Na
grande maioria, seus quadros vão de oitenta por cinqüenta até um e meio por
noventa. No final, o que impressiona é a quantidade de telas, associada à
qualidade do trabalho. Isso, para não falarmos na variedade: não há dois quadros
em que se notem as mesmas intenções cromáticas.
Para quem nunca viu Darbot,
nem em gravuras impressas, o que é difícil, é necessário esclarecer que o
figurativismo não aparece em nenhuma de suas obras, a não ser no autorretrato.
O estilo é marcado por uma crescente intensidade do escuro ao claro, muitas
vezes de baixo para cima, como se a luz só atingisse maior pujança nas partes
mais elevadas da tela. Um crítico paulista e outro holandês viram nessa
característica uma intenção religiosa. De acordo com o holandês, luz sugere
sublimação divina. O conceito é dele. Seu nome era Willem Koonnen ou Kronnen,
não me lembro bem. Na época dei total aprovação às tendências que tentavam
sujeitar a religiosidade de Darbot a uma intensificação ascendente dos tons
mais claros a partir dos mais escuros. Hoje em dia, depois de tantas tentativas
de exegese, até eu, que sou o responsável pela trajetória de Darbot, não sei
para que lado me virar. O único traço comum a toda a obra é a técnica da
espátula. De um modo geral, Darbot emprega a tinta pura, como sai do tubo, sem
se preocupar em diluí-la em diferentes óleos. Quase sempre percebe-se que ele
começou o quadro pela parte inferior. Os golpes da espátula, obedientes a
impulsos meramente gestuais, insistem numa tonalidade inicial sem nenhum sinal
de mistura. A título de exemplo, uma de suas telas mais citadas, que eu batizei
de Abstração 49, compõe-se quase que inteiramente de espessas
volutas na cor terra de siena. A partir do centro o marrom vai sendo invadido
pelo amarelo, até ser atingido por duas espátulas brancas, sublinhadas por uma
pequena cicatriz num verde diáfano. A luminosidade, numa explosão mágica,
atinge o clímax na região correspondente a uma divisão áurea no sentido
vertical do quadro. O próprio Darbot deve ter compreendido o milagre obtido a
partir de composição tão simples: sua assinatura, o célebre monograma
quadrangular formado por DAR sobre BOT, surge quase invisível no canto superior
direito, em tonalidade discreta, como se a própria assinatura pudesse perturbar
o resultado final da obra. Há quatro anos, a Abstração 49 foi
vendida por quatrocentos e trinta mil dólares, num leilão da Sotheby's de
Londres. O comprador, um milionário dinamarquês, ofereceu o quadro à amante, um
soprano wagneriano cujo nome prefiro não revelar. Seis meses depois consegui
recuperá-lo. Se alguém se interessar em vê-lo, é fácil. Está exposto, a título
de empréstimo, na ala do século XX do Metropolitan Museum, a poucas quadras do
Guggenheim. Vale a pena.
Como se vê, a história da ascensão de Jean-Baptiste Darbot é absolutamente sem
graça pelo simples fato de ser uma história de final feliz. O escritor Leon
Tolstoi começa o romance Ana Karenina afirmando que as
famílias felizes são sempre parecidas; só as infelizes são infelizes cada uma a
seu modo. A história de Darbot é igual a milhares de histórias felizes. É claro
que a felicidade dele é póstuma, enquanto que a minha é tão presente quanto a
vida que vivi desde aquela tarde de 1945, véspera de Natal, na casa de Tia
Zuzu.
Logo no início da tal
biografia encomendada por São Paulo e Nova York, eu digo que já em criança,
ouvia falar do pintor que havia morado no sobrado de meu avô, na Rua Escobar,
em São Cristóvão. Na verdade, meu avô foi o farmacêutico que empregou
Jean-Baptiste em 1899, como auxiliar de laboratório. Jean-Baptiste, sem ter
onde cair morto, ficou morando de graça no porão da Rua Escobar. Meu avô era
tão liberal, que morreu do coração em 12 de novembro de 1937, desgostoso com o
Estado Novo da ditadura Vargas, decretado dois dias antes. Hoje as calamidades
políticas não matam nem moscas. Tia Zuzu, a filha mais velha, irmã de meu pai,
ficou morando no sobrado depois que meu avô morreu. Meu pai, minha mãe e eu,
com três anos, ficamos na Rua São Januário. Nesse ponto, eu descrevo a festa do
Natal de 1945, logo depois da Segunda Guerra, na casa de Tia Zuzu. Eu e um
primo descemos ao porão e vimos as telas, amontoadas num salão escuro. Meu
primo não deu a mínima importância, mas eu fui dominado por uma impressão tão
intensa quanto solitária. Sete dias depois, no 31 de dezembro, fomos festejar o
Ano Novo com Tia Zuzu. Assim que chegamos, desci ao porão munido de um
candelabro de duas velas e examinei os quadros com uma atenção inesperada numa
criança de onze anos. Foi a primeira vez que vi a assinatura DAR sobre BOT
formando um quadrado. Mas o que chamou minha atenção foi a quantidade de telas
enfileiradas entre as quatro paredes. Naquele dia me pareceram mais de mil. Não
havia uma única emoldurada. Afastei a primeira, limpei superficialmente a
poeira com um trapo mais empoeirado do que a tela e admirei a pintura. A
luminosidade insuficiente não me permitia uma visão nítida. Arrastei-a para
fora e, sob um sol de verão às quatro da tarde, fiquei deslumbrado. Para mim, a
pintura não representava coisíssima nenhuma. No entanto, as cores me feriam os
olhos, como se estivessem acesas, concorrendo com o sol que as iluminava. Era
uma luz por baixo de outra. Levei um susto. Recoloquei a tela no mesmo lugar e
voltei para a sala de visitas. Durante a conversa perguntei a minha tia quem
era Darbot. Apesar das interrupções de minha mãe, que só queria saber do
namorado da prima Dedé, Tia Zuzu me contou que Darbot era um marinheiro francês
sem eira nem beira, que deu com os costados no Rio de Janeiro, pra morrer
tuberculoso naquele porão que de habitável só tinha o nome, sufocado pelo
cheiro do óleo e pela falta de recursos. Meu avô, por amizade ao francês, nunca
se deu ao trabalho de jogar aqueles quadros no lixo, uma porcariada que ninguém
entendia, tubos e mais tubos de tinta importados da França, uma fortuna atirada
pela janela. Enfim, cada louco com sua mania. E Tia Zuzu me ditou em
pouquíssimas palavras a biografia que atualmente já está com quatrocentas e
dezenove páginas.
A partir daquela época,
Darbot se tornou uma paixão. Quando comecei a frequentar o curso ginasial no
Colégio Brasileiro, um pouco adiante do Campo de São Cristóvão, passei a
almoçar quase todos os dias na casa de Tia Zuzu, só para apreciar os quadros.
Se eu dissesse que o primeiro museu Darbot foi o porão da Rua Escobar, não
estaria mentindo. Um museu que só contava com um visitante, mas era. Uma vez,
resolvi inventariar as telas, para saber quantas havia. No fim de uma semana,
depois de contar e recontar, cheguei à conclusão de que eram quatrocentas e
quarenta e nove. Infelizmente, na parte dos fundos do porão, o chão apresentava
um desnivelamento fatal para a pintura a óleo. Quando chovia a água entrava por
algumas falhas da parede e formava uma poça. Achei que oitenta e duas telas
estivessem perdidas. Depois, consegui salvar dezessete e o prejuízo baixou para
sessenta e cinco. Assim mesmo, eu ainda as mantenho no depósito: ninguém sabe o
dia de amanhã. Em todo caso, a lei da compensação é infalível. Para
contrabalançar as falhas de baixo, por onde entrava a chuva, havia as frestas
de cima, por onde o sol enfiava alguns raios, com a sublime finalidade de
impedir a destruição do acervo, causada pela umidade. Sem sombra de dúvida, o
porão se mantinha seco. Assim que descobri as fendas inferiores, comprei
cimento e vedei tudo. A certeza de que a chuva não entraria mais consolidou
minha decisão de recuperar toda a obra de Jean-Baptiste Darbot.
Aos dezesseis anos, quando
resolvi estudar Belas Artes, pensei que meu pai e minha mãe ficariam contra,
mas aconteceu justamente o contrário. Eu passava as tardes copiando gravuras
francesas que meu pai comprava para mim. Todos achavam que eu tinha jeito para
desenho. Aos dezessete, entrei para a Escola Nacional de Belas Artes. No
segundo ano, fiz um curso especializado em restauração de pintura a óleo e
comecei a aplicar meus conhecimentos nos Darbots. O dia em que apareci em casa
com uma tela de trinta por quarenta debaixo do braço foi um acontecimento.
Trabalhei quase duas semanas e o resultado me pareceu esplendoroso. Meus pais
trocaram um olhar de aprovação, mas eu senti que o gesto se devia mais ao
orgulho pelas habilidades do filho único, do que pela revelação da maestria de
Darbot. Para encurtar a história: não houve empatia. Tia Zuzu, ao contrário,
ficou tão entusiasmada que acabou me pedindo para limpar um quadrinho para ela,
que não fosse muito grande ou, pelo menos, que não fosse muito maior do que a
reprodução da Santa Ceia, pendurada bem no centro da parede principal da sala
de jantar. Cinco dias depois, o quadrinho estava pronto, emoldurado e
pendurado. Minha mãe quando viu, quis um também. E assim, de quadrinho em
quadrinho, formou-se o novo museu Darbot, dividido em dois endereços: a seção
São Januário e a seção Escobar.
Quatro anos depois, quando terminei o curso de Belas Artes, já havia na seção
São Januário, entulhando meu quarto e o sótão, sessenta e cinco Darbots em
perfeito estado de recuperação. Só não havia molduras. Eu acho que a ideia
do vernissage já bailava em minha cabeça.
Um dia, fui convidado para a
inauguração de uma pequena galeria na Tijuca, a um quarteirão da Praça Saens
Peña. A galeria nada mais era do que um espaço de oitenta metros quadrados na
frente de uma vidraçaria, onde se emolduravam fotografias, gravuras, posters e
quadros a óleo. O vidraceiro era um português que atendia pelo apelido de
Geninho e que nada entendia de pintura. Para a inauguração da galeria, que
inexplicavelmente se chamava Glacial Arte, Geninho escolheu o que havia de pior
na safra dos pintores da vizinhança. Havia pretos velhos fumando cachimbos, ao
lado de patos ensanguentados e nus femininos envoltos em véus pudicos
produzidos à custa de aerógrafos rudimentares. Assim mesmo ou talvez devido a
isso, Geninho vendeu seis quadros. Para ele, foi uma noite memorável. No dia
seguinte, antes que seu entusiasmo esfriasse, procurei-o, apresentei-me como
especialista em restauração de telas a óleo e falei a respeito de Darbot. Em
quinze minutos, Geninho se convenceu da necessidade de ir até São Cristóvão, a
fim de examinar os quadros. No sábado, às três e meia, entre um café e uma
fatia de bolo de chocolate, Geninho ajustou comigo uma exposição de quatorze
peças de Darbot, emolduradas por ele. Na segunda-feira, contratei uma
caminhonete e levei as telas para a vidraçaria. Escolhemos as molduras, ao som
das risadas estridentes de Geninho, e marcamos a data definitiva do vernissage para
vinte e oito dias depois, uma sexta-feira, 18 de julho de 1958, data importante
na biografia.
Foram quatro semanas de revelações.
Eu nada sabia da profissão de marchand. Meus conhecimentos
universitários não passavam de frágeis informações sobre história da pintura,
noções de perspectiva, uso das cores primárias na obtenção das secundárias,
volumes, sombras, modelos vivos etc. Como vender um quadro não fazia parte do
currículo universitário e em vinte e oito dias este seria meu único problema.
Um ex-professor conversou comigo sobre os efeitos miraculosos da divulgação em
jornais, estações de rádio e de televisão e, para mostrar conhecimento, falou
em press release. Embarquei no assunto: escrevi releases,
enviei fotos a cores de cinco Darbots, redigi o resumo biográfico depois de
pesquisas estafantes, descobri no porão da seção Escobar um caixote dentro do
qual, sob decênios de poeira, repousava o missal que pertenceu a Jean-Baptiste,
mimeografei o pensamento sobre pintar o nada junto à biografia e esperei os
resultados. Dois dias antes do evento, o Jornal do Brasil deu
uma nota de seis linhas, O Globo, de cinco, e eu tratei de lamber
os beiços porque entendi que daquele mato não saía coelho, como
disse Tia Zuzu, enquanto preparava os salgadinhos para o vernissage.
Meu pai colaborou com as bebidas, minha mãe com a propaganda boca a boca e,
como principal reforço, enviamos duzentos e noventa e três convites.
Na noite fatal, apareceram
dezenove pessoas, contando com dois colegas de trabalho de meu pai e com quatro
amigas de Tia Zuzu, ou seja, um fracasso impublicável. O único sucesso coube a
titia, que recebeu duas encomendas de salgadinhos. Quanto a Darbot, nem prós
nem contras. Os quadros expostos eram todos de pequenas dimensões e os preços
menores ainda: nenhuma tela ultrapassava cem dólares. No final de três dias sem
visitantes, sentimos que o projeto estava pulverizado. Geninho não se deu por
satisfeito e quis cobrar as molduras. Irritado, propus assinar quatro
promissórias, apesar da dificuldade que o pagamento representava para mim, sem
emprego, recebendo uma ou outra encomenda de restauração. Mas Geninho aceitou e
eu aprendi que não é só a fé que remove montanhas. A necessidade também. Em
casa, meu pai, minha mãe e Tia Zuzu tentaram me consolar, reafirmando a escassa
qualidade da pintura de Darbot e olhando para mim como se eu fosse vítima de
devaneios estéticos. Depois, sozinho no quarto, quase chorei. Mas minha
confiança permanecia inabalável. Se eu tivesse um missal, teria escrito na
contracapa: "Eles dizem que eu vendo o nada. Mas juro que vender o nada é
um poder concedido pelo Demônio." E era mesmo. Foi vendendo o nada na
noite do vernissage que vi despontar a primeira prova do valor
de Darbot. Se as seis pessoas, que tiveram o descaramento de comprar pretos
velhos, patos ensanguentados e nus aerografados, agora não compravam nada, quem
saiu ganhando foi Darbot. Quem gasta em preto velho não arrisca em abstrações
luminosas. Decididamente, minha seara não era ali. Mas onde seria? Na Zona Sul?
Na semana seguinte fiz um
estágio nas galerias da Zona Sul: Point l'Evêque, Bottesini, Papillons, Blue
Canvas, Rougevert, Yellow Brick Road e por fim a maior de todas, a Bogardus,
dirigida por uma austríaca de cabelos oxigenados, lábios desenhados e
inteligência diabólica: Marianne Bogardus. Depois de conversarmos uma tarde
inteira, tentei convencê-la a examinar uma tela de Darbot. Uma única que fosse.
Ela aceitou.
Corri para casa, fiz uma inspeção no sótão e descobri a obra que minutos depois
se chamaria Abstração 49. Nunca atinei com a causa da numeração. Só
sei que o número, com relação à minha existência, ganhou o dom da ubiquidade. Seria
cansativo descrever todos os fatos onde o quarenta e nove aparece. O pior é que
ao completar quarenta e oito anos, encasquetei que ia morrer com quarenta e
nove. E não houve santo que me livrasse da ideia. Só fiquei tranquilo no dia em
que atingi o cinquentenário. Mas tirando isso, o quarenta e nove foi um
mensageiro de felicidade. Principalmente a Abstração. Naquela noite, apesar da
iluminação precária de duas lâmpadas de cem velas, reconheci o brilho da tela.
As primeiras luzes da manhã me convenceram: Marianne Bogardus entregaria os
pontos diante da Abstração 49. E não deu outra. Além disso, eu tive
o trabalho de encontrar uma das molduras de Geninho que fosse do mesmo tamanho.
Marianne pousou a Abstração num cavalete, jogou a luz de um
refletor sobre a tela e deu sete passos para trás. Foi um minuto de tensão, o
que equivale a um milênio de espera. Numa elegância vienense, ela apoiou o
cotovelo na palma da mão esquerda, mantendo a direita erguida, numa afetação de
fumante inveterada que necessita da postura, não só para sustentar o cigarro
Dunnhill de ponta dourada entre o indicador e o médio, mas também para mostrar
ao mundo que Marianne Bogardus está entrando em transe diante do fenômeno
estético.
Passada a crise, pediu a um
funcionário que retirasse a moldura. Enquanto o rapaz executava a ordem, ouvi
duas palavras aterradoras:
— Está péssimo.
Senti um calafrio:
— O quadro?
O alívio chegou pela metade:
— Non, a moldurra.
Em seguida, Marianne e o
funcionário desapareceram por uma porta nos fundos da galeria. Ficamos sós, eu
e minha esperança. Em dez minutos os dois reapareceram: a Abstração 49 se
encaixava agora numa moldura digna do Louvre. O funcionário recolocou o quadro
no cavalete e ligou o refletor. Marianne acendeu outro Dunnhill, armou a mesma
pose e se imobilizou por mais um minuto. Depois, deu uma longa tragada,
virou-se para mim e, com uma única frase, concluiu a primeira parte da
biografia de Darbot e iniciou a segunda:
— Em todo minha vida, eu nunca vi uma luz tão forte e
tão belo.
Os erros de concordância e o sotaque de Marianne Bogardus tinham o poder de
sublinhar a verdade contida em suas palavras. Concluído o veredicto, ela se
aproximou do quadro e esquadrinhou-o de norte a sul, de leste a oeste. Não
satisfeita, foi até uma escrivaninha e apanhou uma lupa. Repetiu o exame,
demorando-se na cicatriz diáfana, sorriu e olhou para mim com o mesmo olhar que
Aladim dirigiu ao Gênio da Lâmpada:
— Quanto quer por esse Abstrraçon quarrenta nove?
Depois que Marianne Bogardus
deu sua bênção ao meu Darbot, me vi na obrigação de abrir o jogo:
— Eu acho que a senhora não me entendeu. Eu não estou
querendo nada por esse Darbot. O que eu quero é muito mais.
E fiz um discurso a respeito
de minhas intenções de revelar ao mundo a obra de um gênio desconhecido.
Durante a audição de meu projeto, de minha loucura meio profética, Marianne
acendeu outro Dunnhill para que a fumaça disfarçasse um brilho meio alucinado
nos olhos azuis. Quando acabei, ela tornou a incorporar o espírito do marchand:
— Quantos Darbots você tem?
Nesse ponto não houve meios
de encarar a verdade. Com toda a razão, eu senti que o número trezentos e
oitenta e quatro seria assustador, além de inconvincente. Um mecanismo em meu
cérebro me aconselhou a contabilizar a exposição da Tijuca, acrescentando
a Abstração 49:
— Quinze.
Marianne anotou meu endereço
e pediu que eu não saísse de casa na manhã seguinte. Acordei às sete. Às nove e
meia chegou o caminhão da transportadora. Ao meio-dia eu estava almoçando uma
truta amanteigada com arroz de amêndoas em companhia de Marianne Bogardus. Às
duas e quinze, ela abriu o segundo maço de Dunnhill do dia, enquanto me exibia
o contrato para outro vernissage Darbot dali a dois meses.
Seria tolice traçar comparações entre Geninho e Marianne. Um jamais compreenderia
o que perdeu, enquanto a outra se armava com unhas e dentes para arquitetar o
grande acontecimento da pintura do século XX.
Descrever o trabalho
subterrâneo de Marianne equivaleria a redigir um compêndio sobre a arte de
vender a Arte. De um certo modo, senti-me um pouco arrasado, uma vez que
Marianne Bogardus me parecia capaz de vender qualquer óleo sobre tela, fosse
qual fosse a qualidade. Mas com o tempo, ela me provou que não era assim. Em
poucos dias tornamo-nos íntimos. Marianne me contou as aventuras do avô e do
pai, vendedores de material de pintura em Viena, e sua convivência com Gustav
Klimt, com Oskar Kokoschka, com o compositor Schoenberg, que também pintava, e
com outros mestres da escola vienense. Uma vez, em seu apartamento na Vieira
Souto, Marianne me mostrou um pequeno desenho de Klimt com uma dedicatória para
o avô, Joseph Bogardus. Num canto da sala, havia um retrato meio amarelado da
loja de artigos para pintores em Viena. Marianne aparecia na calçada em frente,
toda de branco, no colo da mãe. Dentro da loja, distinguiam-se duas silhuetas
escuras. Marianne me garantiu que uma delas era o próprio Arnold Schoenberg.
Entre as mudanças
introduzidas por Marianne para a segunda exposição Darbot destacavam-se os
preços. Quando eu lhe contei que os preços iniciais não passavam de cem
dólares, ela se engasgou com a fumaça. Logo em seguida pegou um papel e
organizou outra tabela. Agora o Darbot mais barato, uma tela nas mesmas medidas
do quadrinho de Tia Zuzu, custava mil e seiscentos dólares, ao passo que o mais
caro, a Abstração 49, chegava a três mil e quatrocentos.
Esforcei-me para fingir o máximo de naturalidade.
O tratamento da imprensa com
relação à Galeria Bogardus foi outra história que nada tinha a ver com a
vidraçaria de Geninho. Na manhã do vernissage, um jornal dedicou
quase uma página do segundo caderno a Jean-Baptiste Darbot. Foi a primeira vez
que vi minha foto num jornal. É desnecessário dizer que nas seções São Januário
e Escobar houve ameaças de festa. Pelo menos, a travessa de salgadinhos não
faltou. Às nove horas, as equipes da TV Tupi e da TV Rio invadiram a Bogardus,
levando a legitimação em cada câmera, em cada refletor, em cada tomada. Nesse
momento, a maestria de Marianne se mostrou irretocável. Sempre com o Dunnhill
entre os dedos, ela se colocou de costas para uma das câmeras, lançou mão de
todo o sotaque e sentenciou:
— Non, non, non. Esse refletorres, non. A pinturra non
resiste. Non se pode filmar nada. Vocês eston querrendo estrragar tudo? Depois,
quem é que paga?
Uma jornalista, já armada de
microfone, enfrentou a Bogardus:
— E aí? Como é que fica?
— Non fica. Se você quer saber mais, faz entrrevista com
ele.
E apontou para mim, mas a
jornalista insistiu:
— E os quadros?
A resposta de Marianne me
deu toda a medida de sua imaginação:
— Os quadrros só se for com meus refletorres. Com esses
aí, non. A luz de vocês não é filtrrado.
O impedimento encenado por
Marianne serviu para exacerbar os efeitos da televisão sobre as dezenas de
convidados. Discretamente, ela piscou um olho para mim, enquanto dava ordem a
um dos garçons para iniciar o coquetel. Foi um festival de luzes, vestidos,
cores, gravatas, sorrisos, bandejas, copos quebrados, risadas, sucessos.
Mas a magia ocorreu às dez horas, quando uma limusine de aluguel estacionou na
entrada principal da Bogardus. O motorista saltou, abriu a porta traseira e nos
revelou um sujeito moreno, cuja idade poderia variar entre quarenta e cinquenta
anos, vestido com um costume de linho irlandês e acompanhado por uma criatura
mais baixa, deselegante e exageradamente carioca. O mais alto parou na entrada
com a mão esquerda no bolso do paletó, enquanto o mais baixo se dirigia a
Marianne. Ao vê-la, desmanchou-se em amabilidades, entregando-lhe um cartão e
apontando para o companheiro, estatelado no hall. Marianne ajustou os óculos
meia taça, leu o cartão, examinou o sujeito parado na porta, localizou-me e fez
um gesto me mandando segui-la. O homem se chamava Tarik Benzayad e parecia
tratar-se de um magnata árabe, interessado nos quadros de Darbot. A notícia na
página do segundo caderno atraiu-o. Benzayad deu duas voltas pela galeria, mas
não chegou a examinar os quadros com muita atenção. Antes de iniciar a terceira
rodada, aproximou-se do companheiro, que funcionava como intérprete, e segredou
alguma coisa. O segredo foi passado a Marianne Bogardus e as cores do rosto
dela foram passadas até hoje não sei para onde. Havia uma tela de mil e
seiscentos dólares, oito de dois mil e trezentos, cinco de dois mil e
quinhentos e a última, a Abstração 49, de três mil e quatrocentos,
num total de trinta e cinco mil e novecentos dólares. Tarik Benzayad acabava de
oferecer trinta mil redondos pelas quinze telas. Apesar da palidez, Marianne se
aproximou de mim e sussurrou com o máximo de firmeza:
— Non fica nervoso. Quando eu acabar de contar o
prroposta do árrabe, mexe cabeça prra lá e prra cá, prra ele ver que você non
concorda.
E revelou a proposta. Senti
como seria um prenúncio de parada cardíaca, mas consegui manter a imobilidade
corporal. Apenas a cabeça girou para a direita, para a esquerda, para a direita
e para a frente. Marianne sorriu e recuperou a cor. Caminhou até o intérprete e
comunicou minha negativa. O intérprete foi a Tarik, ouviu nova proposta, a
proposta chegou a Marianne e ela foi pessoalmente apertar a mão do árabe. A
venda dos quinze Darbots se realizou por trinta e dois mil dólares.
Ainda naquela noite, os jornais
de TV mais tardios soltaram a notícia, com flashes generosos sobre Tarik
Benzayad, sobre Marianne Bogardus, sobre os Darbots, sobre mim e sobre o cheque
do Chase Manhattan Bank. Tarik declarou que os quadros iriam decorar a galeria
de seu iate, ancorado na Côte d'Azur. Vinte e quatro horas depois, a notícia
estendeu os tentáculos sobre o Brasil, mas deixou dois deles livres: um pegou a
Europa e o outro os Estados Unidos. A base do noticiário nacional e
internacional era a mesma: "Pintor francês descoberto em subúrbio
carioca". Ou: "Impressionista esquecido renasce no Brasil". Ou:
"Abstrações pré-modernas em galeria de Ipanema" etc.
Minha primeira atitude ao receber os dezoito mil dólares, que Marianne havia
estabelecido como minha parte, foi pagar orgulhosamente as promissórias de
Geninho, em dólares, para ele sentir o cheiro da insensatez. Acontece que
depois de comprar geladeira nova para Tia Zuzu, aparelho conjugado de TV e
eletrola para minha mãe e um Volkswagen para meu pai, caí no vazio e reconheci
minha própria insensatez: não contar a verdade a Marianne, a respeito dos
trezentos e oitenta e quatro Darbots. Com que cara ela receberia a verdade
agora? Dia seguinte, fui num antiquário, comprei um cinzeiro de porcelana
Limoges por trezentos e oitenta dólares, mandei embrulhar para presente e fui à
Bogardus com o sorriso mais inocente do mundo. Marianne ficou mais deslumbrada
com minha visita do que com o cinzeiro, embora começasse a usá-lo no minuto
seguinte. Depois, jogou três envelopes em cima de mim: três cartas de galerias
paulistas interessadas em exposições Darbot. Quando acabei de ler, olhei para
ela. Marianne ergueu a mão direita com o Dunnhill amarelando os dedos e franziu
o nariz:
— Serrá que você
não me arranja nem um darbotzinho deste tamaninho?
Peguei um cigarro,
coloquei-o entre os lábios e tomei coragem:
— Marianne Bogardus, nós temos trezentos e sessenta e
nove Darbots. Quantos você quer?
A requisição de Marianne me
exigiu dois meses de trabalho ininterrupto. Para início de conversa, aluguei um
apartamento de três quartos num edifício recém-construído, a um quarteirão da
casa onde morávamos, e instalei um ateliê de restauração com todos os efes e
erres. Agora eu podia trabalhar sobre uma das telas de um metro e vinte por um
e oitenta, com absoluta tranquilidade. Batizei-a simplesmente de Luz.
Marianne aprovou o nome antes de ver o quadro. Além do Luz,
restaurei mais vinte seis telas de tamanhos variados. Os preços estabelecidos
por Marianne também eram variados: iam de três mil e quatrocentos a quatro mil
dólares, com exceção do Luz, avaliado por ela em seis mil e cem.
Quando Tia Zuzu tomou conhecimento da nova tabela, deu uma espanada num de seus
quadrinhos:
— Daqui a pouco ele vai valer um apartamento em Copa, de
frente pro mar.
Ela só errou de endereço:
vinte e cinco anos depois, com um quadrinho igual àquele, nós compraríamos um
apartamento a dois passos da Avenida Foch, em Paris.
Em São Paulo, a Galeria Piratini repetiu o esplendor da Bogardus, sem a
presença do árabe milionário, condignamente substituído pelos representantes da
Federação das Indústrias. Logo de saída, em sistema de cotas, eles arremataram
o Luz para doá-lo ao MASP. Um crítico da Folha de São
Paulo definiu a doação como exagero publicitário, mas não passou
disso. Além do mais, no dia seguinte ao vernissage, um
norte-americano de Chicago adquiriu cinco Darbots para expor numa galeria que
ele acabara de inaugurar, um funcionário da Ménilmontant, de Bruxelas, comprou
dois, um bibliófilo milionário levou outro e três japoneses pagaram a sobra,
sem regatear. Total: cem mil e quinhentos dólares. Trinta mil para a Piratini,
vinte para Marianne Bogardus, cinqüenta para mim e quinhentos para Tia Zuzu
fazer uma reforma no banheiro da seção Escobar.
Afinal, as coisas começavam a funcionar. Terminado o festival paulistano, a
Folha de São Paulo lavou nossa alma com a publicação de um ensaio na
primeira página do suplemento dominical, assinada por Viriato Guazzoni, um dos
curadores da Bienal. Foi a primeira notícia crítica sobre a obra de
Jean-Baptiste Darbot. Faço questão de transcrever dois trechos. Um deles:
"Sem dúvida, trata-se
de um artista singular (refere-se a Darbot) na medida em que realiza um futuro
que não existiu: o futuro de seu compatriota Georges Seurat, falecido aos 32
anos. Seurat, em seus últimos esboços a crayon, indica o percurso
fascinante da luminosidade, que seria conquistada anos depois por este
Jean-Baptiste Darbot."
E como conclusão do ensaio:
"Seria esta a semente
da arte visual do século XXI? A exemplo da chamada música erudita que,
timidamente, vem reencontrando o público através de harmonias mais humanizadas,
é possível que também a Pintura, por meio das soluções encantatórias
preconizadas pela espátula darbotiana, venha devolver a saúde a uma gestalt por
demais doentia neste final de milênio, aviltado por niilismos inconseqüentes e
inacabadismos inacabados."
O termo inacabadismo era uma referência a um certo Ladislau de
Monchique, pintor carioca de algum talento, que expôs no Ibirapuera um painel
de doze metros de comprimento por dois de largura, pintado de branco de cabo a
rabo. Assim como Darbot, Monchique também se valeu unicamente da espátula,
tentando dar às volutas significados extraídos do Apocalipse. Uma idiotice sem
pé nem cabeça[1].
Mas o que me tirou o sono
nas seis noites que se seguiram à publicação do ensaio foi a espátula
darbotiana. Conceituar a obra de Jean-Baptiste, recuperada de um porão
empoeirado de São Cristóvão, como espátula darbotiana era o
que se pode chamar de glória terrena.
No domingo seguinte, foi a
vez d'O Estado de São Paulo. O crítico Raul de Loreto, em página e meia
de um tabloide, não só fez a exegese do abstracionismo darbotiano,
como foi um dos primeiros a associar as intenções de Darbot ao pensamento
religioso. Para Loreto, a luminosidade das telas tinha o mesmo sentido de uma
prece. Os dois ensaios me levaram à certeza do nascimento de um novo adjetivo:
darbotiano. Até ali, era o suficiente para me enlevar. No Rio, o Jornal
do Brasil e O Globo, embora não publicassem ensaios,
apresentaram matérias de destaque, com uma foto da Abstração 49.
Mas Tia Zuzu, que sempre
queria o impossível, deu a palavra final:
— Santo de casa só faz milagre quando está bêbado.
Em 1959, houve exposições em
Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Recife. No final do ano,
contabilizamos quase duzentos mil dólares. Em 1960, Marianne me aconselhou um
recesso até 1961: daquele jeito nós acabaríamos inflacionando o mercado. A ideia
foi excelente porque, apesar dos vinte e sete anos, eu já me sentia cansado.
Mas em 1962, aconteceu o que
sempre esperamos que acontecesse, embora não confessássemos: Marianne Bogardus
recebeu uma carta de Gérard Laffont, o funcionário da Ménilmontant, que havia
comprado dois Darbots em São Paulo. A correspondência era endereçada a mim. A
Galeria Ménilmontant estava interessada em promover uma mostra individual de
Jean-Baptiste no verão de 1964.
No dia 16 de junho daquele
ano, uma sexta-feira darbotiana, eu fiz minha estreia internacional, apesar das
dificuldades impostas pela reviravolta de primeiro de abril, que via com maus
olhos qualquer mistério traduzido em arte. No final tudo deu certo e o próprio
Laffont me recebeu no aeroporto, surpreendido com a ausência de Marianne. Aqui
se iniciam as ramificações não muito felizes dessa história de felicidade.
Marianne foi obrigada a passar duas semanas hospitalizada com uma crise de
enfisema pulmonar. Os sessenta Dunnhills diários começavam a mostrar as unhas.
Quando a vi no balão de oxigênio, percebi que ela havia começado a morrer. Mas
antes ainda haveria muita água a rolar.
Hoje, quando rememoro todos
os episódios da trajetória Darbot, sinto vontade de erguer uma estátua de
Gérard Laffont em praça pública. Não tenho a menor dúvida de que a mostra na
Ménilmontant foi o passaporte de Jean-Baptiste Darbot para a imortalidade e,
sobretudo, para o nicho mais elevado que um gênio pode ocupar. Em Bruxelas, o
sucesso se caracterizou pelo silêncio compenetrado do apreciador intelectual.
Na inauguração notei a formação de pequenos grupos, estacionados horas diante
de um quadro, entre taças de vinho, cigarros sem filtro e conjecturas a meia
voz.
Perto dos preços da
Ménilmontant, a Piratini e a Bogardus não passavam de feiras livres.
Quando viajei para Londres,
em atendimento ao convite de outra galeria, minha conta bancária fora ampliada
em trezentos e sete mil dólares. De Londres mesmo, fiz uma ordem de pagamento
de cem mil para Marianne Bogardus e duas de trinta mil para meu pai e Tia Zuzu,
meus asseclas.
A Inglaterra foi
decepcionante. As vendas renderam cento e vinte mil, quando muito. A crítica
não se pronunciou. Um dos secretários da National Gallery me ofereceu uma
proposta indecente para fotografar seis Darbots, com a finalidade de ilustrarem
cartões postais. Não aceitei, mas depois me arrependi. De volta ao Brasil,
Marianne, já recuperada, achou que fiz bem em recusar. Segundo ela, o
importante é que Darbot agora era internacional. Comentei o paradoxo de um
pintor francês tornar-se internacional à custa dos esforços de um brasileiro.
Ela riu, pensou e rosnou:
— Você ainda non viu nada.
Uma das coisas que eu ainda
não tinha visto era Darbot na França. Durante minha passagem por Bruxelas, eu
percebi que o silêncio francês sobre Jean-Baptiste era proposital. Em 1967,
quando inaugurei a primeira mostra de Darbot em Paris, minhas dúvidas se
transformaram em certeza. Depois de um sucesso absurdo, com vendas acima de um
milhão de dólares e com a assinatura de dois contratos para edições de volumes
ilustrados sobre a obra de Jean-Baptiste, fui convidado pela televisão francesa
para uma entrevista. Durante a sessão de perguntas, um jornalista me desafiou,
garantindo que as pesquisas realizadas em Arles não mostravam nenhuma prova da existência
de um Darbot, a não ser Darbeux. Eu assegurei que o Jean-Baptiste Darbeux
registrado em Arles era o mesmo Jean-Baptiste Darbot que viajara para o Brasil –
e acrescentei – vítima da incompreensão de seus compatriotas. Isto significava
que durante o silêncio, a arqueologia francesa escavava a cidade de Arles e
adjacências para descobrir a prova da existência do deus Darbot. Depois de
minhas observações, o jornalista riu e argumentou que se levássemos em
consideração todas as trocas de letras, talvez descobríssemos que Jean-Baptiste
Darbot era tio-avô da atriz Brigitte Bardot. Até eu achei graça, mas o rapaz
encerrou a entrevista perguntando que fim levara Tarik Benzayad.
A resposta só viria dezenove
anos mais tarde. Em 1986 recebi uma carta de Benzayad me propondo a venda dos
quinze quadros adquiridos em 1958, no vernissage da Bogardus,
mais o iate onde se encontravam expostos, pela bagatela de dois milhões de
dólares. Benzayad estava na rua da amargura. A conselho de tia Zuzu, ofereci um
milhão e oitocentos e ele aceitou. No dia seguinte senti remorso: afinal
Benzayad foi o grande responsável pela sorte inicial de Darbot. Um mês depois o
iate foi rebocado até o Rio de Janeiro. Mandei reformá-lo, procurando manter as
características originais, ancorei-o definitivamente no Flamengo, atrás do
Museu de Arte Moderna, transformei o convés num restaurante popular e, por fim,
inaugurei no salão principal o Museu Darbot, com as quinze telas da Bogardus e
mais vinte e sete de minha coleção particular. O autorretrato fica numa vitrine
semelhante à da Mona Lisa, no Louvre. O título da biografia,
escolhido de comum acordo pelos editores de São Paulo e Nova York, ficou
sendo Museu Darbot.
Nesses dezenove anos rolaram as águas a que me referi. Em 1972, houve a comemoração
do centenário de nascimento de Darbot. Em outubro de 1980, perdi meu pai. Em
dezembro, foi a vez de Marianne Bogardus, depois de uma agonia impiedosa.
Marianne já não saía de casa desde 1978. No começo da doença, Tia Zuzu passava
noites inteiras ao seu lado. Mas logo chegou de Recife uma velha amiga, Odete,
que não saía de perto dela, a não ser para conferir os negócios da Bogardus.
Quando Marianne ficou definitivamente presa à cama, eu lhe dei um Darbot dos
mais luminosos, batizado de Mariana, em sua homenagem. Ela mandou pendurar o
quadro em frente ao leito e me segredou:
— Prra iluminar minha morte.
Odete se tornou amiga de
todos nós: uma amizade com o perfume da eternidade. Depois da morte de
Marianne, Odete fechou a galeria por um mês e me acompanhou à Alemanha, para
uma série de exposições e palestras, em Hamburgo, Frankfurt, Hanover e Berlim.
Em 1982, eu fiquei na galeria e ela foi à Índia com Tia Zuzu e minha mãe, que
depois da morte do marido, tornou-se mística, alimentando uma ideia fixa:
visitar o Taj Mahal. Em 1983, foi Odete que ajudou Tia Zuzu a comprar um
apartamento em Paris, com o dinheiro de um dos quadrinhos restaurados por mim.
Em 1984, Tia Zuzu, com setenta e três anos, se mudou para lá, em companhia da
filha única, a prima Dedé, que acabou solteirona. Um dos quartos do apartamento
é meu. Nunca me acostumei com hotéis.
Foi Odete que me deu a ideia
de criar uma fundação utilizando os recursos obtidos com a obra de Darbot. Foi
Odete que organizou os arquivos da Fundação Darbot, criada em 1985, com sede em
Santa Tereza. Os arquivos ocupam uma sala equipada com três computadores. Foi
Odete que conseguiu catalogar pelo menos noventa por cento do que se disse, do
que se escreveu, do que se fotografou, do que se publicou, do que se filmou
sobre o tema Darbot. Foi Odete que classificou os arquivos em ensaios, artigos,
críticas, observações, anedotas, caricaturas baseadas no autorretrato, livros,
filmes, vídeos, minhas entrevistas, correspondência, selos comemorativos,
cartões postais, posters, enfim, a fama. Foi Odete que, em 1986, na inauguração
do Museu Darbot, me aconselhou a colocar um retrato de Tarik Benzayad na
entrada, como homenagem póstuma. Foi Odete que, em 1989, sugeriu não vender
mais Darbots, pois nossos lucros naquele ano ultrapassavam vinte e três milhões
de dólares, entre vendas em leilões e direitos autorais. Foi Odete que, em 1990,
cuidou da reforma da seção Escobar e fez do sobrado um depósito com ares de
fortaleza, para abrigar os Darbots remanescentes. Foi Odete que me convenceu a
construir um orfanato-escola para meninos de rua. Foi Odete que me obrigou a
responder a todos os convites de Porto Alegre, Niterói, Ouro Preto, Belo
Horizonte, Campinas, Recife, Cataguases, Roma, Lisboa, Madri, Oslo, Estocolmo,
Boston, Filadélfia, Budapeste e Istambul, para exposições, debates e
solenidades darbotianas.
E foi Odete que, uma noite, depois de três doses de uísque, confessou que
Marianne Bogardus não era austríaca. A história é simples: Marianne nasceu no
Brasil, mais precisamente, no Ceará, filha de pai e mãe brasileiros. O avô
paterno, pintor de botequins, era alemão. Daí os olhos azuis, o conhecimento
razoável da língua alemã e o amor pela pintura. Seu nome de batismo era Mariana
da Veneração dos Santos Borgerth. Quando veio para o Rio e tentou
estabelecer-se como marchand, resolveu simular uma nacionalidade austríaca. Nas
primeiras férias que passou no Ceará, ela disse que carioca não acreditava em
cearense. Dali em diante, Mariana ficou sendo Marianne, enquanto Borgerth
virava Bogardus, igual ao personagem de um filme de Bing Crosby e Ingrid
Bergman. No fim de um ano, o sotaque se incorporou definitivamente à sua
personalidade. O desenho de Klimt e a fotografia da loja vienense eram
falsificações inofensivas. Odete dos Santos era sua prima, filha do irmão da
mãe de Marianne. Depois da verdade, Odete chorou em silêncio, sem me olhar, acariciando
a borda do copo com o indicador:
– Quando você deu aquele
quadro a ela, e disse que o nome era Mariana, nós duas pensamos que você
tivesse descoberto tudo. Mesmo assim ela se emocionou.
Naquela noite, eu comecei a pensar na irrelevância de certas verdades. Em que
momento, uma pessoa importante, com quem privamos durante anos, deixa de ser
austríaca, deixa de se chamar Marianne Bogardus e se transforma numa cearense
desconhecida, registrada com o nome de Mariana da Veneração dos Santos
Borgerth? Para mim, muito mais do que para qualquer outro, Mariana da Veneração
nunca existiu. O sucesso de Darbot estava intimamente ligado à austríaca
Marianne Bogardus, e sempre seria assim porque minha verdade era essa. No dia
seguinte, pedi a Odete que não tocasse mais no assunto e ela compreendeu. Só
ali eu a vi com mais atenção: Odete se parecia com Marianne, apesar dos olhos
castanhos.
Em 1990, Tia Zuzu passou o
carnaval no novo apartamento de minha mãe, em São Cristóvão, com um varandão
debruçado sobre a Quinta da Boa Vista. Ela sempre detestou a Zona Sul. A viagem
de Tia Zuzu se devia ao enredo da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, no
desfile principal: Darbot, Epopéia de Luz. Ela não podia perder. O
samba pouco acrescentava, mas valia pela homenagem. Volta e meia o estribilho
me vem à cabeça: "França e Brasil, lado a lado, paz e amor, /
Villegaignon, Santos Dumont, viva Darbot".
Aos poucos a falta de graça das histórias felizes foi contaminando minha vida.
A fortuna tem seus inconvenientes. Um deles é eliminar a vontade de fazer
coisas. Na pobreza, deseja-se viajar pelo mundo, conhecer lugares, visitar
museus etc. Numa riqueza já no meio do trajeto, como a minha, não há mais nada
que se possa realizar, não há museus a conhecer, não há comidas a saborear, não
há mais mundo a viajar. Só para dar uma ideia, em 1992 a Bienal de São Paulo
reservou um espaço para Darbot e eu não tive coragem de me deslocar até lá.
Odete me substituiu.
Ultimamente descobri a
música. É outra forma de riqueza. Tia Zuzu e minha mãe não dão importância a
minhas filosofias e estão sempre me aconselhando a casar. Isto
ainda vai acontecer. É uma das poucas opções que me restam. Todas as outras não
passam de repetições enfadonhas, quase sempre representadas por convites com
tudo pago: passagens de primeira classe, hotéis cinco estrelas e limusines na
porta à minha disposição. Muito sabiamente, essas reflexões não fazem parte da
biografia. Para mim, que já fui pobre, é assustador descobrir que quanto mais
se enriquece mais se economiza. Dificilmente eu pago o prato que como. E pagar
me dá prazer. Foi por isso que naquele sábado, em Nova York, despachei a
limusine e fui a pé até o Lincoln Center. Senti uma imensa alegria quando
retirei a entrada para o Parsifal, que eu havia pago por fax, com meu cartão de
crédito. Pagar o táxi, na porta do Guggenheim, foi outra forma de felicidade
que eu raramente experimento.
Mas um dos maiores prazeres
de todos esses anos de prazeres foi entrar no Met às quinze para as seis, tomar
um capuccino e ver, a poucos centímetros, a abstração
darbotiana que eu havia conhecido de manhã: Lonie. Agora, só os cabelos, as
pálpebras e os lábios permaneciam vermelhos. Um vestido de veludo negro,
arrematado numa gola redonda, realçada por um fino debrum em seda branca, fazia
de Lonie a única espectadora digna de assistir ao Parsifal.
Aproximei-me e fui surpreendido por uma troca de alegrias: a satisfação que ela
demonstrou ao me ver no teatro e a satisfação que eu demonstrei ao vê-la
sozinha. Lonie fez tudo para me coroar o rei da noite. Para cúmulo dos cúmulos
ela estava sentada na fila H e eu na F. Durante o espetáculo, com um simples
girar da cabeça à esquerda eu conseguia atingi-la. Todas as vezes em que
executei o gesto, seu olhar estava a postos, à espera do meu. Foi uma noite
romântica em todos os sentidos e principalmente nos nossos. No primeiro
intervalo, tentamos jantar no restaurante do Grand Tier e não conseguimos. A
solução romântica foi comer um sanduíche de legumes no bar da plateia. Não sei
se eu estava ficando louco, o que também é romântico, mas Lonie estava linda.
Cada fio de cabelo, cada pupila, cada sarda ganhavam status de beleza,
inteligência e sensualidade. No segundo intervalo, conversamos sobre o Parsifal.
Em dado momento, eu fiz alguma observação sobre Wagner e ela abriu meus
horizontes:
-- Eu acho que agora, mais de cem anos depois, pouco interessa o que Wagner foi
ou deixou de ser. O que vale é o Parsifal.
Assisti ao último ato
impregnado dessa ideia. Nos minutos finais, quando o jovem Parsifal descobre o
Graal e caminha no palco lentamente, exibindo-o aos Cavaleiros de Montsalvat, a
música de Wagner me reconstruiu, como se eu até ali fosse um universo em
decomposição. Todas as minhas sensações passadas se ordenaram, em obediência
àquela sensação presente, e fizeram do meu espírito uma estrutura viva, lógica
e sensível a tudo que aconteceu e aconteceria comigo. Se minha vida atingira as
proporções de um sonho, era necessário que eu não despertasse, que eu
mantivesse minha verdade somente minha e impenetrável, a não ser que o invasor
galgasse o mesmo estágio de perfeição. Enquanto a música de Wagner se lançava
nos derradeiros compassos, eu revi o porão da Rua Escobar repleto de telas
empoeiradas, revi meu pai, minha mãe e Tia Zuzu rindo de mim, revi a galeria da
Tijuca, revi a austríaca Marianne Bogardus, revi as exposições de São Paulo,
Bruxelas, Londres, Paris, Buenos Aires, Tel Aviv, Milão, Tóquio, Veneza, Roma,
revi Odete nos computadores, revi Marianne morta, meu pai morto, e vi Lonie,
feliz, de carne e osso, ao meu lado, aplaudindo o espetáculo. Senti vontade de
beijá-la. Mas ainda não seria ali. Gostaria de ter ficado a noite toda
conversando com ela sobre os mistérios sagrados do Parsifal, mas a
limusine não deu trégua. De qualquer maneira, levei-a até a porta de casa: um
edifício de apartamentos no Queens, num bairro de judeus conhecido como Rego
Park. Lonie era uma espécie de pseudônimo de Sarah Gedalowitz. Seu irmão,
Israel Gedalowitz, era rabino. Naquela noite, Lonie se referiu a ele pelo
apelido familiar: Izzy. Em 1995, seríamos cunhados.
Os dias que antecederam a
inauguração da Retrospectiva Darbot foram insuficientes para o entrelaçamento
da teia amorosa que nos envolveu. Almoços originais, presentes imaginosos,
pequenas fugas ao Central Park, apesar da neve, passeios de mãos dadas e,
enfim, o beijo. Aconteceu justamente no dia da inauguração, à tarde, a dois
quarteirões do Guggenheim. Depois, caminhamos silenciosos, degustando a
felicidade. Quando olhei o museu, fui pego por outra armadilha romântica: a
emoção que me inundou ao ver o gigantesco estandarte afixado no prédio. É todo
confeccionado em marrom, começando numa tonalidade mais escura que se ilumina
de baixo para cima. Mais ou menos na altura de uma suposta divisão áurea, uma
réplica da assinatura de Darbot em amarelo, o célebre quadrado formado pelo DAR
sobre o BOT, domina o terço esquerdo do estandarte. A referência à Abstração
49 é evidente. E um pouco abaixo, em letras impressas num verde
diáfano e em inglês, as palavras iniciais do pensamento de Darbot, rabiscado na
contracapa do missal: "Eles dizem que eu pinto o nada..."
Quando percebeu minha
emoção, Lonie me garantiu que o estandarte já estava ali há três dias. Mas eu
só o vi naquele momento. Confesso que tive de me segurar para não fazer
vergonha.
Assim que me avistou, Philip
D'Amico partiu em minha direção, pegou-me pelo braço e me arrastou para o bar.
Ele tinha dado ordem de não deixarem ninguém entrar, além de nós três. Logo que
nos sentamos, D'Amico pediu um chá de maçã. A temperatura da calefação lembrava
o verão carioca. Tirei o sobretudo e joguei-o de qualquer maneira na cadeira
mais próxima. Lonie pegou-o com uma delicadeza de namorada ginasiana e
pendurou-o num dos ganchos que havia na parede, com essa finalidade. As
olheiras de D'Amico eram um prêmio a seus esforços em prol da retrospectiva.
Quando viu a fumaça desprender-se da xícara, bebeu um gole de chá e suspirou.
Depois, puxou um cigarro Dunnhill e acendeu-o. O cheiro do fumo era o aviso de
que Marianne devia estar por perto. Com o intuito de aliviar a tensão, eu
soltei uma bobagem qualquer:
— Você deve estar dormindo em pé.
Só aí ele fixou os olhos em
mim:
— No fim de quinze anos, a gente se acostuma.
Segunda-feira eu já começo a tratar da próxima exposição. Isso aqui não para.
— E qual vai ser
a próxima?
D'Amico comprimiu os lábios
e os empurrou para baixo juntamente com o queixo. A seguir, exalou o
indefectível well, que não quer dizer nada e significa tudo, e me contou que a
mostra seguinte seria uma exceção dentro dos padrões do Guggenheim. Há três ou
quatro anos, tinha aparecido em Nova York um dos livros mais originais dos
últimos tempos: uma enciclopédia de coisas que nunca existiram. A próxima
exposição apresentaria obras de arte que representassem essas coisas
inexistentes. Diante de minha incompreensão, D'Amico passou a enumerar diversos
exemplos: Alcyone, filha de Éolo, senhor dos ventos; Kor, a cidade maldita; as
Harpias; Grendel, o monstro de um lago dinamarquês; o retrato de Dorian Gray; o
Minotauro; o Basilisco; a Távola Redonda; o deus Wotan; Tristão e Isolda; o
Homem Verde, espírito maligno da Inglaterra; o Inferno; a Rainha Mab, citada
por Shakespeare; o gnomo Barbegazi; os licantropos; o gigante Gogmagog etc.
Tomado por uma vontade que também nunca existiu, acrescentei com certa dose de
cinismo:
— E Darbot.
O riso repentino de D'Amico
e de Lonie me encorajou e eu continuei:
— É isso mesmo. Eu acho que vocês vão inaugurar daqui a
pouco a primeira exposição de coisas que nunca existiram. Darbot é uma coisa
que nunca existiu.
Lonie apertou os olhos azuis e entreabriu os lábios, mas eu fui mais rápido:
— Você se lembra do Parsifal? O que que
adianta ficarmos discutindo a respeito do que Wagner foi ou deixou de ser? Está
lembrada? Com Darbot é a mesmíssima coisa.
Lonie pegou minha mão e a
inspiração atingiu a estratosfera:
— Um dia, quando eu estava com onze anos, descobri
centenas de telas empoeiradas no porão de minha Tia Zuzu. Sabem de que tipo
eram todas elas, sem exceção? Marinhas, marinhas e mais marinhas. Os mares, os
portos e os barcos, na maioria veleiros, só apareciam na parte de baixo das
telas, numa faixa horizontal. O resto eram nuvens, sol poente, sol nascente,
cores. Os elementos figurativos eram retratados a pincel. Os céus, não. Para
representar os céus o pintor, cuja assinatura, DARBOT, só aparecia num dos
cantos superiores em forma quadrangular, usava espátulas. Examinei duas telas,
dez, vinte, cinquenta: marinhas. Na época em que foram pintadas, havia em São
Cristóvão, a dois quilômetros do sobrado de Tia Zuzu, uma praia imunda, cheia
de barcos de pesca. Alguma coisa me dizia que aqueles quadros tinham sido
pintados lá. Mas outra coisa, intangível, me segredava que em todos eles havia
um erro a ser corrigido. Qual? Foram necessários sete anos para que o acaso me
mostrasse a falha de Darbot. Uma tarde, quando eu já estava na Escola Nacional
de Belas Artes, ao examinar uma das telas dei de cara com outra, encostada na
parede, com a parte inferior, a faixa dos mares, portos e barcos, encoberta por
um travessão de madeira. Por uma coincidência definitiva, um raio do sol poente
atingiu o quadro. As nuvens, a luz dos astros e todos esses efeitos puramente
objetivos desapareceram, só dando espaço à intensa luminosidade sugerida pela
pintura, sem a parte de baixo, é claro. O erro era a faixa inferior. Foi o
momento mais secreto e mais emocionante de toda a existência. Procurei um
alicate, um serrote e uma tesoura, desprendi a tela e cortei uma fatia de mais
ou menos quinze centímetros, o necessário para dar sumiço ao mar, ao porto e
aos barcos. Depois serrei o caixilho já meio apodrecido e refiz o quadro. A
última luz da tarde me revelou a grande maravilha: o Darbot sem mar, sem porto
e sem barcos era uma obra-prima. A verdade estética de Jean-Baptiste Darbot
começou com aquela tesoura. Durante muito tempo eu me perguntei se aquilo não
passava de uma falsificação criminosa. Meu pai e minha mãe achavam que sim.
Principalmente depois da venda explosiva a Tarik Benzayad. Minha força e
sobretudo minha confiança brotavam de Tia Zuzu. Foi ela que me deu ânimo para
ir em frente. Tia Zuzu tinha certeza de que minhas tesouradas eram apenas
correções necessárias. Uma vez, ela me mostrou um artigo sobre contrafações de
pintura, no qual se dizia que raras eram as obras que nunca foram retocadas
depois de dez, vinte anos. E como sempre, ela sentenciava:
— Até a Mona Lisa foi retocada. Quando
você recorta e parte de baixo de uma dessas telas, você só está dando um
retoquezinho, e pronto.
Talvez meu único pecado
fosse a invenção do pensamento, escrito a lápis na contracapa do missal. Mas
vocês devem reconhecer que foi um toque de gênio. Nesse ponto, encerrei o
desabafo com uma observação absolutamente dispensável:
— Foi assim que, de retoque em retoque, eu construí a
lenda de Darbot.
Lonie continuava a me
encarar num misto de assombro e ternura. Mas Philip D'Amico repuxou um dos
cantos da boca:
— Nunca pensei que você fosse tão espirituoso. Se eu
soubesse...
E não foi além porque a
porta do bar se abriu bruscamente, dando passagem a um funcionário em alto grau
de excitação:
— O pessoal da imprensa chegou.
D'Amico deu um salto da
cadeira e olhou o relógio: eram seis e quarenta e cinco. Ajeitou o nó da
gravata, passou a mão pelos cabelos e se virou para mim:
— Vamos lá. Se eles derem tempo suficiente pra você
falar, conta essa história de sua tia, como é, mesmo? Zuzu?
E saiu às gargalhadas. Lonie
e eu fomos atrás dele. O saguão estava intransitável: câmeras, flashes,
repórteres, carregadores, pessoas mal vestidas, garçons com bandejas vazias,
mulheres com casacos de pele, homens de sobretudo com golas de arminho,
intelectuais de cabeça raspada e brincos de platina, gays de
todas as raças e facções, ruídos, risadas, gritos, campainhas e a minha
estupefação diante dos efeitos de Darbot. No meio de tudo, restava Lonie. E no
meio de tudo, ela me levou a um canto isolado, puxou minha orelha para bem
próximo de sua boca e sentenciou, como Tia Zuzu:
— Agora eu sei que Darbot é igual ao Parsifal.
Naquele segundo, eu tive certeza
de que me casaria com ela nos próximos meses.
Para coroar as surpresas da noite, em nenhum momento os repórteres me
procuraram. O negócio deles era com Philip D'Amico e com Darbot. De repente, já
no primeiro andar, eu vi o autorretrato, preso numa vitrine idêntica à do Museu
Darbot. Cheguei bem perto para poder admirar todos os traços daquele rosto
iluminado. Sobre as imagens do vidro, eu tornei a ver Tia Zuzu naquela véspera
do Natal de 1945. Ela estava atarefada na eterna cozinha, às voltas com uma
frigideira de pastéis. Quando eu lhe perguntei quem era Darbot, ela não se deu
ao trabalho de olhar minha curiosidade:
— O Darbot
daquelas maluquices do porão? Aquilo era um caboclinho muito do serelepe, que
seu avô empregou na farmácia.
E, refletida no cristal da
vitrine, Tia Zuzu me contou pela segunda vez, quarenta e nove anos depois, a
história do rapaz que chegou de Salvador, ou de Arles, tanto faz, para gastar o
pouco tempo de vida que lhe restava, pintando quatrocentas e quarenta e nove
marinhas. A paixão pela França fez o caboclinho serelepe inventar aquela
assinatura, DAR sobre BOT, um anagrama afrancesado para substituir o nome de
batismo: Darcy Botelho. Talvez ele tivesse a mesma sabedoria de Marianne
Bogardus e pensasse: carioca não acredita em pintor baiano.
Aos poucos, a imagem de Tia
Zuzu se desfez e eu fiquei só com o autorretrato de Darbot. Na verdade, o rosto
de meu avô, numa foto da juventude, que o caboclinho Darbot tentara reproduzir,
como agradecimento ao homem que lhe dera casa e comida em troca de nada. Ou de
tudo, sabe-se lá?
Minha memória se recuperou
do passado quando Lonie me mostrou um sujeito gordo, com dois metros de altura:
Fabian Winograd, crítico de arte do New York Times. Fabian parecia hipnotizado
por tantos Darbots. Passou por mim e não me deu a mínima.
Até a retrospectiva do Guggenheim, eu tinha a pretensão de achar que eu era
Darbot. Dali em diante, senti que eu era apenas eu e que, para o futuro, Darbot
era Darbot.
[1] Ladislau de Monchique é um dos personagens
marcantes do romance Bolero, de Victor Giudice. Pintor
desconhecido, cria a Escola Inacabadista, na qual todas as obras devem ser
incompletas.
(In: O museu Darbot e outros mistérios. Rio de Janeiro: Leviatã, 1994, p. 117 a 151)
***
A quinta história
Clarice Lispector
Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra.
Embora
uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.
A
primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma
senhora ouviu-me a queixa.
Deu-me a
receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e
gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro
delas. Assim fiz. Morreram.
A outra
história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim:
queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra
o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que
nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício
até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas
também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa
concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de
ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto
que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de
dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu
aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me
guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que
existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a
receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei
habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha
cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área
de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas
depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No
chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em
nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A
terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu
me queixara de baratas.
Depois
vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda
sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua
perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia
tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham
rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de
barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na
boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer
em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas
o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com
movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias
da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em
espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras –
subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição
de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim
como a palavra é cortada da boca: eu te… Elas que, usando o nome de amor em
vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja
de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não
ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais
para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de…” – de minha fria altura
de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata
morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
A quarta
narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas.
Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho
para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e
viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como
quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria
sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha
noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de
feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que
rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos
que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do
sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração
uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada.”
A quinta
história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa
assim: queixei-me de baratas.
(In: Felicidade
clandestina: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981)
***
O Retrato Oval
Edgar Allan Poe
O castelo em que meu criado se aventurara a forçar a entrada, em lugar de deixar-me passar uma noite ao relento, gravemente ferido como eu estava, era um daqueles edifícios mesclados de soturnidade e grandeza que por muito tempo carranquearam entre os Apeninos, tanto na realidade quanto na imaginação da Sra. Radcliffe. Ao que tudo indicava, fora abandonado havia pouco e temporariamente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados, que ficava num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém esfarrapada e antiga. As paredes estavam forradas com tapeçarias e ornadas com diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com um número inusual de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Por essas pinturas, que pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a arquitetura bizarra do castelo fez necessários, por essas pinturas meu delírio incipiente, talvez, fizera-me tomar interesse profundo; de modo que ordenei a Pedro fechar os pesados postigos do quarto – visto que já era noite –, acender um alto candelabro que se encontrava à cabeceira de minha cama e abrir amplamente as cortinas franjadas de veludo negro que a envolviam. Desejei que tudo isso fosse feito para que pudesse abandonar-me, ao menos alternativamente, se não adormecesse, à contemplação das pinturas e à leitura atenta de um pequeno volume encontrado sobre o travesseiro que se propunha a criticá-las e a descrevê-las.
Por longo, longo tempo li, e com devoção e dedicação contemplei-as. Rápidas e gloriosas, as horas voavam e a meia-noite profunda veio. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade, em vez de perturbar meu criado adormecido, ajeitei-o a fim de lançar seus raios de luz mais em cheio sobre o livro.
Mas a
ação produziu um efeito completamente imprevisto. Os raios das numerosas velas
(pois eram muitas) agora caíam num nicho do quarto que até o momento estivera
mergulhado em profunda sombra por uma das colunas da cama. Assim, vi sob a luz
vívida um quadro não notado antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher
feita. Olhei a pintura apressadamente e
fechei os olhos. Não foi a princípio claro para minha própria percepção por que
fiz isso. Todavia, enquanto minhas pálpebras permaneciam dessa forma fechadas,
revi na mente a reação de fechá-las. Foi um movimento impulsivo para ganhar
tempo para pensar – para certificar-me de que minha vista não me enganara –,
para acalmar e dominar minha fantasia para uma observação mais calma e segura.
Em poucos momentos, novamente olhei fixamente a pintura.
O que agora via, certamente não podia e não queria duvidar, pois o primeiro clarão das velas sobre a tela dissipara o estupor de sonho que me roubava os sentidos, despertando-me imediatamente à realidade.
O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Uma mera cabeça e ombros, feitos à maneira denominada tecnicamente de vinheta, muito ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos dissolviam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como objeto artístico, nada poderia ser mais admirável do que aquela pintura em si. Mas não seria a elaboração da obra nem a beleza imortal daquela face o que tão repentinamente e com veemência comovera-me. Tampouco teria minha fantasia, sacudida de seu meio-sono, tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi logo que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado instantaneamente tal ideia – e até mesmo evitado sua cogitação momentânea. Pensando seriamente acerca desses pontos, permaneci, talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, com minha vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro numa absoluta naturalidade de expressão, a qual primeiro espantou-me e por fim confundiu-me, dominou-me e aterrorizou-me. Com profundo e reverente temor, recoloquei o candelabro em sua posição anterior. Sendo a causa de minha profunda agitação colocada assim fora de vista, busquei avidamente o volume que tratava das pinturas e suas histórias. Dirigindo-me ao número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:
“Era uma donzela de raríssima
beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria. Má foi a hora em que viu,
amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já na
sua Arte uma esposa; ela, uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora
do que cheia de alegria; toda luz e sorrisos, e travessa como uma corça nova;
amando e acarinhando todas as coisas; odiando apenas a Arte, sua rival; temendo
só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam do
rosto de seu amado. Era, portanto, uma coisa terrível para essa dama ouvir o
pintor falar de seu desejo de retratar justo sua jovem esposa. No entanto, ela
era humilde e obediente, e posou submissa por muitas semanas na escura e alta
câmara do torreão, onde a luz caía somente do teto sobre a pálida tela. Mas
ele, o pintor, glorificava-se com sua obra, que continuava de hora a hora, dia
a dia. E era um homem apaixonado, impetuoso e taciturno, que se perdia em devaneios;
de maneira que não queria ver que a luz
espectral que caía naquele torreão isolado debilitava a saúde e a
vivacidade de sua esposa, que definhava visivelmente para todos, exceto para
ele. Contudo, ela continuava a sorrir imóvel, docilmente, porque viu que o
pintor (que tinha grande renome) adquiriu um fervoroso e ardente prazer em sua
tarefa, e trabalhava dia e noite para pintar a que tanto o amava, aquela que a
cada dia ficava mais desalentada e fraca. E, em verdade, alguns que viam o
retrato falavam, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa
maravilha, e uma prova não só da força do pintor como de seu profundo amor pela
qual ele pintava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho
aproximava-se de sua conclusão, ninguém mais foi admitido no torreão, pois o
pintor enlouquecera com o ardor de sua obra, raramente desviando os olhos da
tela, mesmo para olhar o rosto de sua esposa. Não queria ver que as tintas que
espalhava na tela eram tiradas das faces da que posava junto a ele. E quando
muitas semanas nocivas passaram e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na
boca e um tom nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou como a chama de
uma lanterna. Então, a pincelada foi dada e o tom aplicado, e, por um momento,
o pintor deteve-se extasiado diante da obra em que trabalhara. Porém, em
seguida, enquanto ainda contemplava-a, ficou trêmulo, muito pálido e espantado,
exclamando em voz alta: ‘Isto é de fato a própria Vida!’ Voltou-se
repentinamente para olhar sua amada: estava morta!
(Publicado em Graham’s Lady’s and Gentleman’s Magazine, Abril de 1842 sob o título de Life in Death).
***
Colher de chá
Orígenes Lessa
— Ô xente! Se é pros bichinhos passarem
fome lá embaixo – dissera Eufrosina – o melhor é não descer... Então não é?
Dona Filó (Filomena, trinta anos
antes, quando os cabras do morro se esfaqueavam pela posse do seu corpo) não
estava sendo legal. Do trato era não somente dez cruzeiros diários por garoto,
ajuda quase ridícula com o feijão a sessenta, mas comida também.
Os moleques se queixavam. Estava
na cara. Tinham emagrecido nos últimos tempos.
— É do trabalho. Eles não estavam
acostumados – afirmou Filó.
— É da fome – revidou Eufrosina.
– Então eu não sei?
E lá consigo lamentava que Deus
tivesse chamado a velha Rita. Aquela, sim, tinha consciência. Trabalhara dois
anos com os garotos, bem mais novinhos, sem dar razão de queixa. Os meninos
voltavam cansados, mas a gente via: tinham comido, com a graça de Deus. A velha
Rita não dava galho, não enquizilava os infelizes. Deixava-os brincar na
calçada (até os passantes ficavam com pena de tanta inocência), pagava a diária
direitinho, e dava comida, de fato. Unha-de-fome não era. Até peixe frito
pagava nos botecos, quando os via de olho comprido, com o cheiro bom de encher
a rua. “Não quero lombriga na barriga de ninguém”, dizia a velha. Mas tinha
havido aquela desgraça, o atropelamento, que Minguito e Delarme (nome de um tio
deixado em Petrolina) ainda recordavam de olho arregalado. Deus tinha desses
mistérios: chamava os melhores. A velha Rita não merecia fim tão cedo nem tão
mau. Só houvera um consolo: Minguito, em meio à confusão, vendo a velha morta,
achara jeito de esconder a féria. E só aí Eufrosina vira como os garotos
rendiam... Dera até a tentação de descer também o morro e mendigar ela mesma,
usando os filhos... Tinha a sua dignidade, porém. E sabia-se forte, rija, dura
demais, apesar de fome tanta, para inspirar compaixão. Ouviria apenas o “vá
trabalhar, vagabunda”, que devolvera Emerenciana à dura peleja de lavar
montanhas de roupa. Não tinha estômago nem cara para estender a mão à caridade.
Durante algum tempo se aguentara
com os salvados da última féria de Rita (tinha uma úlcera boa, de inspirar
compaixão e repulsa, podia até dispensar o chamariz das crianças). Não queria
cedê-los de novo. Injusto botar no batente um menino de sete, um bichinho de
cinco. Mesmo no tempo de Rita humana, tão boa, não gostava daquilo. Criança é
cabrito de morro, com direito a correr e saltar, o anjo da guarda a evitar
escorregões e quedas nos despenhadeiros. “Eles brincam lá embaixo”, dizia Rita.
Mesma coisa não era. E havia riscos de polícia intervir, Juizado de Menores,
implicância do povo, automóveis na rua. A filhinha da Maroca, trabalhando com
Savina, fora morta por um lotação. Espeto brincar em rua de gente com pressa.
Bem mais seguro o velho morro... Mas aquela cabrocha da Mangueira enfeitiçara
Sebastião. De cabeça tomada, Sebastião esquecera tudo: a construção civil, o
barraco, a mulher, os filhos. Começara a beber, armara confusão, acabara em
cana, metido com maconheiros acampanado num botequim com a maldita no bolso. Não
voltaria tão logo. E voltaria para o seu barraco ou para o chatô da cabrocha
viradora de cabeça de homem? Miséria negra renascia. Perder um dia recolhendo
trouxas fedorentas em apartamentos de luxo (roupa suja de rico só o morro
conhece...), perder outro devolvendo a roupa já limpa, ouvindo reclamação,
madama deixando o pagamento para o fim do mês, atrasando semanas... e
“não-me-use-água-sanitária!” Como se tanta sujeira saísse com reza... Dois dias
perdidos em levar e trazer. Três dias perdidos no buscar água e lavar roupa.
Sem tempo mesmo de ver os garotos, um terceiro na barriga, deixado pelo Sebastião...
E a sogra, de corpo largado na esteira. E o dinheiro não chegando, ziquizira
danada...
— Quer me ceder os meninos? –
perguntou Filó, numa noite de angústia.
— Não quero filho meu pedindo
esmola.
— Quem pede sou eu – argumentou
Filó. – Eles é só para mexer no coração dos caras...
— Não quero filho meu crescendo
vadio...
— Pedir esmola não é vadiação, é
sina... – disse Dona Filó, com uma ponta de cinismo. – A gente tem que
respeitar a vontade de Deus... Antes pedir esmola que pegar tudo quanto é
vício. Lá, pelo menos, eu tou vigiando...
Assumiu um ar de educadora. E de
comerciante. Em vez de deixar a criançada se perdendo no morro, com más
companhias (o Lalau não tinha virado mariquinha?), bem melhor botá-los no
trabalho ajudando a mãe cansada, se virando sozinha. E olhava com fingida pena
a velha Engrácia, mãe de Sebastião, entrevada a um canto sobre três tábuas,
coberta de trapos.
Querendo se convencer, Eufrosina
objetou:
— Mas eles têm que ir pra
escola...
— Onde? – riu a velha Filó.
Eufrosina pensou.
— Eu ganho quanto?
— Dez cruzeiros.
— Pelos dois? – rugiu. (Era o
preço de Rita, mas a vida subira.) Filó cedeu. Dez por cabeça.
— E comida?
— Claro.
— Feijão com arroz?
“Tá muito exigente”, pensou a
velha. Eles comiam arroz com feijão todo dia? Gostaria de ver... Mas não
custava concordar. Prometeu. E os bichinhos desceram de novo...
As semanas passavam. Os moleques
emagreciam. Eufrosina desconfiada. Perguntava. Comiam, sim. Pão velho. Restos
de cozinha. Filó tinha ponto certo, numa porta de igreja. Mas para não gastar
dinheiro em comida, saía na hora do almoço arrastando os garotos, de casa em
casa, entrando em algum prédio grande, se o porteiro longe. “Chora de fome”,
dizia aos meninos, quando batia a alguma porta. Além de tudo, iam crescendo
sem-vergonhas. E cada vez mais secos.
— Se é pra filho meu morrer de
fome, ele morre aqui mesmo, sem passar vexame – esbravejou.
Filó explicou. Magreza? De fome,
não, do crescimento. Menino quando espicha, afina.
— Não vê como estão crescidos?
Delarme parece um galalau...
Que não fizesse mau juízo. Ela,
Filó, era mão aberta.
— Eu não te ontem dinheiro pra
comprar um pirulito? – perguntou a Delarme assustado.
O menino confirmou.
— E pra tu, não dei também? –
perguntou a Minguito.
Dera.
— Taí. Fominha eu não sou...
Realmente, não chegava a
mesquinha. Sorvete, pirulito, bala, pagava, sempre que pensava no filho morto
vinte anos antes, de doença macaca. Só exigia que se escondessem na hora de
tomar o sorvete, de chupar o pirulito. Quem dá esmola não gosta de pobre se
regalando... Mas de fato, embora não o confessasse, evitava larguezas de arroz
e feijão. Magreza é preciso, para a esmola vir... A disenteria de Delarme,
semanas antes, fora um chuá... Ele ficava na calçada, olho redondo, olheira
funda, mulher parava, até barbado, perguntava o porquê. E ela falando na doença
de “meus netos”, na filha tuberculosa, cujo marido saíra pra fazer um biscate e
nunca mais dera notícias, no outro neto morrendo de febre no barraco sujo...
Eufrosina bem que tentara reter Delarme se acabando. Mas Dona Filó não iria
perde-lo justamente quando mais lucrativo. E prometendo levá-lo à Policlínica,
descia apressada, beliscando os garotos.
— Caminha, senão a gente perde o
bonde, cabra da peste!
Chegando ao ponto, a velha se
transformava. Tudo Eufrosina sabia. Pegava Delarme, punha-lhe a cabeça no colo,
começava a acariciá-lo com a mão livre, a outra ocupada nas esmolas que
pingavam.
— Deus lhe aumente... Nossa
Senhora que lhe dê em dobro...
Delarme – a natureza ajuda –
tinha melhorado. Continuava magrinho – Deus era grande – e as esmolas choviam.
Filó sabia do valor da fome em olhos infantis para quem vai almoçar em casa ou
vem da feira. Mas não estava satisfeita. Cinco, sete anos, não comovem tanto. Bom
mesmo é bebê. Do outro lado da igreja, ficava Porfíria, do morro do Querosene.
Bebê de oito meses, com jeito de três, no peito seco. Dinheiro caindo. Pelegas
de cinco. Pelegas de dez. Conselhos. Gente interessada. Filó com inveja. A
colega nem pagava aluguel. Criança própria, sem pai conhecido, que a Porfíria
pertencia a quem chegasse. Apenas mudara de vida quando viu no filho fonte de
renda. Ela, Filó, estava muito velha para ter cria própria. Bem que tentava...
Precisaria alugar. Sina triste... Deus só lhe dera um filho, que a doença
levara. Aliás, naquele tempo, nem precisava. Era moça, boa demais, os homens se
esfaqueavam pelo dom do seu corpo.
Nesse dia, voltou mais cedo.
Surpresa no barraco.
— Alguma desgraça, Dona Filó?
— Deixe de atentar, Dona
Eufrosina. Olha que os anjos dizem amém...
E Eufrosina, ainda assustada:
— A senhora chegando tão cedo...
Não houve nada com os bichinhos?
—Deixa de agourar, criatura. Eu
vim, porque tava com uma dormência nas pernas...
Eufrosina olhava inquieta. Alguma
coisa a velha tramava. Ficou esperando. Veio logo.
— Eu vim lhe propor um negócio.
— Qual é? – perguntou
desconfiada.
Já no mês anterior Filó lhe
trouxera a oferta de uma senhora da rua Domingos Ferreira que estava disposta a
adotar o Delarme.
Filó olhou-lhe a barriga redonda.
— Você espera pra quando?
— Pra outubro – disse Eufrosina,
em guarda.
— Nossa Senhora do Bom Parto que
lhe ajude.
— Deus lhe ouça.
As duas mulheres se olharam.
— Está melhor? – perguntou Filó à
entrevada, fugindo ao exame de Eufrosina, tomando coragem. A enferma respondeu
com um grunhido.
— Tenha fé em Deus – disse Filó.
A senhora ainda vai levantar.
E voltando-se, afinal, decidida:
— Não leva a mal, Dona Eufrosina.
Mas você tá em dificuldade, não tá?
— Dificuldade? De quê?
— De grana.
— Ué. Sempre estive.
— Eu podia lhe ajudar.
— Como.
— Eu só lhe peço uma coisa: a
preferência.
Demorou o olhar no ventre
redondo.
— Ia ser uma colher de chá nesse
Natal... Pra nós duas... tá?
Sebastião em cana. A mãe de
Sebastião, peso morto no barraco. Freguesia de roupa, no momento, só duas. Uma
atrasando nos pagamentos. Outra dando quase nada. Por economia a cozinheira
lavava em casa as peças menores. Dinheiro não chegava. Salvação ainda era o
dinheiro dos garotos. Eufrosina rolava na esteira, lua entrando pelas frestas,
quase claro o barraco. No ventre, pontapés, criança ajeitando o corpo, querendo
sair. Teria leite? Como alimentar, depois, o filho? E como se arrumaria para
descer à cidade, buscar roupa, criança no colo, chorando no bonde, só dois
braços? Contaria com quem? Com os vizinhos? Com os parentes que não tinha? Com
a sogra inútil, chorando de fome? Com Felismino, sempre com medo da velha, a
perguntar se a velha falava, se a velha não falaria quando Sebastião voltasse?
Com Felismino, que não trabalhava? Com Felismino, que só aparecia quando estava
a nenhum?
Delarme tossiu. Eufrosina se
ergueu, ajustou-lhe sobre o corpo nu o cobertor rasgado, herança de Rita.
— Amanhã – pensou – eu vou pedir
perdão a Dona Filó. Eu não devia ter xingado a mãe dela.
E se encolheu com frio no seu
canto de chão.
(In Seleta. Org. Gilberto M. Telles. Rio de
Janeiro: J. Olympio; Brasília, INL, 1973, p. 61-66)
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