Pequeno tratado de literatura – Parte I: A Poesia
Isabel Pires
1 – Insumo poético
O lixo não seria somente “aquilo que se varre das casas e das ruas”, como informa o Aurélio. A definição de lixo pode ser muito mais abrangente, como por exemplo a que se encontra na área que trata do meio ambiente: “restos domésticos ou industriais, despejos; resíduos, entulhos, dejetos”. O lixo é, pois, um “excedente” – um resíduo do qual a sociedade não mais necessita e, por isso, pretende dele se livrar. (A noção de “lixo reciclável”, que propõe uma reutilização dos resíduos, parece ainda não ter sido inteiramente assimilada pela sociedade, de forma que permanece a concepção arcaica – isto é, aquela que considera lixo, “lixo”.)
Donaldo Schuller, tradutor, no Brasil, do Finnegans Wake, de James Joyce, tenta definir a literatura como “lixeratura” – ou seja, algo que, absolutamente, não serve para nada, mas que, não obstante, segue sendo produzida pela humanidade em suas diversas línguas e culturas, desde os mitos indígenas aos gregos, dos romances, contos e poemas mais sofisticados aos folhetins melodramáticos. Como diria Cortázar, cabe de tudo nessa “valise de Cronópio”.
Adélia Prado parece se aproximar dessa noção de “lixeratura”, quando fala, em Cacos para um vitral, que “a poesia precisa incomodar como cocô de criança na sala de visitas”. Vem a visita, finge que não repara. Mas algo sempre permanece. Algo impossível de se varrer, de se apagar, de se lavar. Algo assim como uma espécie de insumo poético, de que o poeta necessita.
2 – Ágio poético
Por outro lado, a noção de luxo, em aparência diametralmente oposta à de lixo, aproxima-se paradoxalmente deste último. O luxo, na sua qualidade intrínseca de “supérfluo”, também é um “excedente”, algo de que a sociedade absolutamente não necessita, embora não pense em jogar fora jamais.
Parafraseando o tradutor do Finnegans Wake, surge a noção de “luxeratura”, algo que, assim como a lixeratura “schulleriana” (desculpe, Donaldo), também não serve para nada. É perfeitamente prescindível, mas autor algum tem coragem de dispensar. A luxeratura é o ágio poético.
3 – O bardo
O poeta trabalha com esses dois excedentes – o lixo e o luxo da palavra. O seu trabalho é interminável como o dos heróis e bandidos mitológicos, porque interminável é a produção excedente de lixo e luxo poéticos. O poeta é o bardo – que, em português, lembra “pardo”, “parvo”, “bando”. O poeta não está sozinho. Assim como são precisos muitos galos para, com seu canto, tecer uma manhã, também são necessários muitos poetas – um bando pardo de poetas parvos, ou, ainda, um parvo bando de poetas pardos – para se tecer um fiozinho, um fiapo de poesia. As antologias são necessárias.
4 – A expulsão
Platão condenava a poesia. Ele devia ter um bom motivo para isso. (Possível que os poetas – sobretudo os sofistas – tenham descoberto algo de muito sórdido na República platônica.) As ontologias não são necessárias.
5 – Os poetas-samambaias
Os sofistas, que, muito antes dos surrealistas, já colocavam em dúvida a noção de “realidade” das coisas, foram os primeiros a praticarem a enumeração caótica na poesia. Pagaram caro por isso. Foram por Aristóteles reduzidos à condição de “plantas que falam”. Por isso, a voz do poeta é rouca. Ela vem dos confins da humanidade.
6 – A torre
A arte pela arte, como um fim em si mesma, não existe. A poesia, como meio de sobrevivência, é condição de todo artista. O poeta não tem queixas, gueixas ou deixas e nem está numa torre de marfim. Ele é a torre de marfim.
1 Comments:
Olá Isabel!
Tenho visitado Blogs relacionados à poesia, pois iniciei o meu há alguns dias e gostaria de conhecer os trabalhos apresentados e também apresentar os meus.
Gostaria de te convidar a visitar meu blog.
Por favor, fique à vontade em remover este comentário caso você o julgue fora do propósito.
Obrigado e abraço,
Rafael
Post a Comment
<< Home