Friday, March 31, 2006

Diálogo remoto

Isabel Pires

— Que queres tu?
— Vim te ver.
— Sabes muito bem que este aqui não sou eu.
— Calma. Precisamos conversar.
— Não temos nada para falar.
— Pareces insatisfeito? Não era isso o que querias?
— Sim, era isso. Estou apenas cansado.
— Ora, muitos dariam bem mais que um simples quadro para estarem em teu lugar.
— Um simples quadro... Que viestes ver, afinal?
— Cansei-me também. Cansei de contemplar tua dura realidade.
— Tudo cansa.
— Vim ver a aparência. Gosto de iludir-me, também.
— Maldito!
— Não impreques contra teu protetor. Que te aborrece, afinal?
— Já não vejo mais graça. Vá-te embora.
— Não disse que vim para conversarmos?
— Que queres mais?
— Te trarei uma companhia.
— Uma companhia?
— Uma companheira, melhor dizendo.
— Muitas vieram e se foram. Verdadeiras beldades, lindas! Mas o tempo tragou a todas, deixou-as enrugadas, reumáticas, desdentadas. Por fim, a morte as levou, uma por uma.
— Mas esta é diferente. Esta se parece contigo.
— Que dizes?
— Uma companheira eterna. Uma doce, bela, jovem companheira.
— E o que há de errado com ela?
— Como assim? Pensas que te faço tal oferta só porque há problemas?
— A mim você não engana, seu velhaco. O que vais querer em troca?
— Nada.
— Nada?
— Absolutamente nada.
— E a tal beldade? Qual foi o trato, ou retrato, sei lá, com ela?
— Vais conhecê-la. Então me dirás se ela não é mesmo uma maravilha.
— Ela também tem um quadro?
— Não. Mas tem uma escultura.
— Sei, uma escultura grega, naturalmente.
— E literalmente. Ela serviu de modelo a uma das estátuas de Afrodite.
— Então é bem velha. Deve ser muito antiga.
— Não na aparência.
— Estou farto. É melhor não me trazeres essa Afrodite de araque.
— O nome dela é...
— Para que quero saber? Já disse. Não me tragas ninguém.
— Que tens aí? Um controle?! Espera, vamos conversar.
— Agora é tarde.
— Miserável! Você me desli

Thursday, March 30, 2006

Guimarães Rosa

Isabel Pires
É curioso notar como, na maioria dos estudos atuais sobre a obra de Guimarães Rosa, quase que inexiste a abordagem do contexto histórico em que tal obra foi produzida. Enquanto estudiosos como John Gledson e Roberto Schwartz se empenham em associar os contos e romances de Machado de Assis ao contexto histórico brasileiro de fins do século XIX, conferindo à obra machadiana, muitas vezes, o caráter de “alegoria de uma época”, os que se debruçam sobre a produção “roseana” longe estão de assim proceder. Surge então a questão: isso se deveria à proximidade, no tempo, de uma obra “contemporânea”, tornando “desnecessária” a vinculação a um contexto por demais conhecido? Por outro lado, verifica-se em tais estudos uma preocupação excessiva com a contextualização geográfica – as infinitas tentativas de delimitar o “sertão roseano” na paisagem empírica do interior das Minas Gerais – ou, o que é mais problemático, a insistência em “decifrar os enigmas” da obra, seja à luz do “nome dos personagens”, da “função” que estes desempenham na narrativa ou, ainda, apresentando os personagens “reais” que inspiraram o escritor. Estas drásticas delimitações, no entanto, acabam por negar a tão propalada – muitas vezes, de modo contraditório, por estes mesmos estudos – “universalidade” da obra de Guimarães Rosa.
Para uma melhor compreensão de uma obra literária, porém, é sempre importante atentar para o contexto histórico e social de sua produção. No caso de Guimarães Rosa, por exemplo, a sua obra, que tem início em 1937, com a coletânea de contos intitulada Contos, publicada em 1946 sob o título de Sagarana, se origina no contexto da II Guerra Mundial e tem continuidade no pós-guerra – fatos que não podem ser ignorados; ao contrário, nos espreitam de muito perto através das páginas roseanas.
A sensação do pós-guerra, experimentada na Europa, é a sensação de que tudo é absurdo, gratuito, sem sentido: a destruição das vidas e das cidades, a desolação dos sobreviventes, o mutismo dos soldados – incapazes de articularem qualquer palavra sobre o horror que vivenciaram, como já observou Walter Benjamin, vítima deste mesmo horror. Desse “sentimento de absurdo” reinante resultaram algumas conseqüências na esfera da cultura européia: a reflexão de Albert Camus sobre a condição humana em O mito de Sísifo – o herói grego que absurdamente rola uma pedra penhasco acima, penhasco abaixo, atualizado pelo filósofo para o contexto europeu do pós-guerra; o teatro de Samuel Beckett, com suas figuras fantasmagóricas e, no entanto, tão palpáveis, com seus dilaceramentos físicos; a desconstrução do conceito de indivíduo, agora fragmentado ou mesmo despedaçado; o existencialismo de Jean-Paul Sartre. O mundo torna-se cético: diante de tamanha banalização da morte, da violência e da barbárie, a dúvida se instaura nas consciências.
Não seria de admirar, pois, que o médico, diplomata e poliglota João Guimarães Rosa, vivendo entre o Brasil e a Europa de 1938 a 1951, fosse atingido em cheio por este “espírito da época”, este Zeitgeist específico, que, de várias formas, ressurge das páginas cuidadosa e pacientemente construídas pelo escritor. O resultado dessa elaboração artística é uma literatura que concilia o “específico” brasileiro e o “universal” europeu, recriando ficcionalmente, em trajes jagunços, as mesmas questões que atormentam os melhores filósofos e escritores contemporâneos de além-mar.
Em Grande sertão: veredas, de 1956, único romance de Guimarães Rosa, o absurdo transborda na extensa fala de Riobaldo. Trabalhando com a memória individual, instrumento essencialmente falível, e, por isso, extremamente precário, o relato confessional de Riobaldo – o ex-jagunço Riobaldo Tatarana, de pontaria certeira, mas que “nunca tinha certeza de coisa nenhuma” (G. S. V., p. 329) – se revela incerto, cheio de dúvidas e perplexidades: “mesmo eu não acerto no descrever o que se passou (...) nanje os dias e as noites não recordo (...). Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso” (G. S. V., p. 301). Ou ainda: “Pelejei para recordar as feições dele [Hermógenes] e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara” (G. S. V., p. 508).A guerra, feroz, do “sistema jagunço” era um “combate sem cabimento” (G. S. V., p. 185), ao qual Riobaldo aderira sem qualquer objetivo definido, guiado apenas pelos “olhos e tanto de Diadorim [nos quais] o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados” (G. S. V., p. 252). Em tal combate, inimigos e aliados – zébebelos, hermógenes e riobaldos – mudavam constantemente de lado, “feito se” atravessassem a toda hora, sem se importar com o perigo, o soberano Rio-do-Chico do sertão, “acidente físico e realidade mágica, curso d’água e deus fluvial, eixo do Sertão”, na emblemática definição de Antônio Cândido (1983, p. 297):
“Revés – que, por resgate da morte de Joca Ramiro, a terrível que fosse, agora se ia gastar o tempo inteiro em guerras e guerras, morrendo se matando, aos cinco, aos seis, aos dez, os homens todos mais valentes do sertão? Uma poeira dessa dúvida empoou minha idéia – como a areia que a mais fininha há: que é a que o rio Urucuia rola dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno”. (G. S. V., p. 317)
A batalha travada na Casa dos Tucanos parece ser o absurdo levado ao extremo: enquanto se empilham os corpos dos companheiros mortos num dos quartos, os cavalos zurram desesperados nos estábulos dias a fio, atingidos impiedosamente pelos tiros dos inimigos. A luta sertaneja descrita por Riobaldo, feroz, infinita e sem sentido, e cujo ódio, já diluído, “forjava as formas do falso” (G. S. V., p. 318), poderia mesmo ser tomada como metáfora do próprio “absurdo-existir” humano: “Aí mesmo, no momento, fui ecogitando: que a função de jagunço não tem seu que, nem p’ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não” (G. S. V., p. 373).
A marca de um absurdo à maneira “camuseana-becketteana” em Guimarães Rosa também faria parte do conto “A terceira margem do rio”, do livro Primeiras estórias, de 1962, no qual o personagem encerrado na canoa navega despropositada e infinitamente num rio que também parece não ter fim nem propósito:
“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia”. (ROSA, 1975, p. 33)
Porém, é no conto “O cavalo que bebia cerveja”, também de Primeiras estórias, que o horror e o absurdo da II Guerra Mundial parecem ressoar de modo mais nítido. Este conto narra a história de um ex-combatente italiano, “estrangeiro às náuseas”, que mantinha um cavalo branco empalhado em um dos quartos de sua chácara, “meio ocultada” no sertão brasileiro. Refugiado por entre as árvores cerradas, plantadas à volta da casa, à maneira de fortaleza que cerceia até mesmo o falar,
“Seu Giovânio conversava mais comigo, banzativo: – “Irivalíni, eco, a vida é bruta, os homens são cativos...”. Eu não queria perguntar a respeito do cavalo branco, frioleiras, devia de ter sido o dele, na guerra, de sua estimação. – “Mas, Irivalíni, nós gostamos demais da vida...” Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e ele fedia a charuto, por todo lado. Coisa terrível, assistir aquele homem, no não dizer suas lástimas.” (ROSA, 1975, p. 95).

Assim se apresenta o absurdo, repassado de ceticismo, impregnado de dúvida e solidão, na obra de Guimarães Rosa. Seria este “absurdo” um modo de suspender a perplexidade diante dos “gerais planos de areia, cheios de nada” (G. S. V., p. 461), nos quais “a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça” (G. S. V., p. 212)?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂNDIDO, Antônio. “O homem dos avessos”. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / Brasília: INL, 1983, p. 294-309. (Coleção Fortuna Crítica)
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. [1956]
______. Primeiras estórias. 8. ed. Prefácio de Paulo Rónai à 3. ed. e biografia de Renard Perez. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. [1962]

Friday, March 10, 2006

Furacão Isabel (mansinho mansinho)