Friday, September 24, 2010

O Estrangeiro

Isabel Pires
Cena banal: um homem e seu cachorro. É noite. O homem traz o pequeno cão pela coleira e a toda hora o puxa para perto de si, mas o animal, atiçado pelo odor invisível da calçada, segue uma trilha que só a ele é dada a perceber. O homem, no entanto, o traz à rédea curta, frustrando os seus intentos. Passo por eles com certa margem de cautela. O homem (voz rouca): “Bono diê mei-ni-na”. “Como?”. Ele olha em direção ao céu escuro e fumacento, enquanto a luz pálida do poste cai sem piedade sobre a cabeça do estrangeiro. É uma cabeça esquisita, em cujo olhar lampejam coisas de remotos lugares. E dentro dela talvez passem filmes ruins, terríveis, dos quais ele não possa se libertar. O estrangeiro move a cabeça, sacolejando todo o seu conteúdo, mas, como o cão a seus pés, não pode fugir, condenado para sempre às mesmas cenas. “No, no”, corrige-se ele, “bona notche, senhô-rra”. E lamento que desta vez ele tenha tão bem acertado.

Friday, September 17, 2010

Domingo, Maio

Isabel Pires

O marido acordou esquisito. A mulher também, mas quis fazer tudo como de costume. Errou, porém, a quantidade do pó, e o café ficou perdido, o que aumentou o constrangimento do homem, a xícara quase intacta esfriando sobre a mesa da cozinha, enquanto ele desdobrava o jornal à cata de alguma notícia alarmante, alguma catástrofe natural de grandes proporções, um escândalo público, um crime hediondo. Algo que pudesse abafar o grito dentro do peito. Sem mágoa, silenciosamente a mulher retirou a xícara cheia de café bem preto da mesa. Lá fora, os pardais rejubilavam-se ao sol claro da manhã de domingo (era domingo), e o homem lembrou-se de ir para a frente da casa, para aquecer-se um pouco ao sol branco do outono (era maio). Largou o jornal sobre a bancada de alvenaria que contornava o pequeno jardim e sentiu a necessidade que as plantas tinham de serem regadas, o frio seco crestando as folhas das roseiras cultivadas com tanto esmero pela mulher.
Na cozinha, ela lavava a louça do café, enquanto pensava no que fazer para o almoço. Almoço de domingo. Há quanto tempo não sabia mais o que era isto? Ela e o marido eternamente de dieta. A filha caçula, a única que ainda morava com eles, tinha ido dormir na casa do noivo, não iria aparecer antes das sete da noite.
Na frente da casa, empunhando o velho regador de plástico azul cheio d’água, o marido molhava as plantas, sentindo-se meio deslocado nesta tarefa. O carro verde-escuro descansando na garagem, num domingo verde-claro como aquele. Até que ele se cansou e entrou. Desajeitado, sentou-se novamente à mesa da cozinha, observando a mulher abrir e fechar as portas dos armários e da geladeira, fazendo limpezas desnecessárias. A mulher olhou para ele. E viu-lhe as olheiras, que denunciavam as noites mal dormidas, as idas e vindas constantes ao hospital, a espera infindável do desfecho que parecia não querer vir nunca. Viu os olhos muito azuis dele, herança da mãe, marejarem um instante, desamparados, e sabia que tudo que dissesse não poderia servir, em absoluto, de consolo. Aproximou-se dele e apenas pousou a mão em seu ombro.
O telefone tocou. Era a Zélia, avisando que iria render a Carmem junto ao leito da mãe. Não, não havia nenhuma novidade. A não ser aquela espera desesperançada que Antônio, o filho mais velho de Dona Clotilde, sessentão já, não sabia mais como suportar. Ele voltou ao jardim e, enquanto observava as gotículas que escorregavam mansamente pela pele das rosas recém-aguadas, reviu, nítido, todos os domingos passados na casa da mãe, que, agora, agonizava no hospital. Reviu o dia em que levara, orgulhoso, seu primeiro neto para a mãe conhecer. O segundo neto. E o terceiro. As irmãs, mais novas que ele, também levavam aos poucos os seus próprios netos. E os bisnetos da Dona Clotilde se multiplicavam. As comidas sobre o fogão também. Enormes panelas onde a velha depositava suor e amor, no sagrado almoço do domingo na “casa da vovó”.
— Meu filho, cadê a Tereza?
— Ela não vem, mãe. Foi para a casa do pai dela, não lembra?
Dona Clotilde se inquietava um instante, os olhos extremamente azuis piscando muito, perturbada. Depois, a ausência de Tereza ia se diluindo pela tarde cheirando a biscoito de polvilho assado com açúcar e canela e café fresquinho, a criançada desafiando o cachorro preso no fundo do quintal.
À beira do jardim bem cuidado, Antônio revia a mãe se enrugando lentamente, os olhos azuis perdendo o viço, o cabelo virando um chumaço de algodão. Era como um espelho para ele, que também se ia encolhendo, a calva cada vez mais calva, os músculos flácidos, problemas de saúde de toda sorte, colesterol, diabetes, pressão alta. O diabo. O tempo infiltrava-se em sua arquitetura e provocava vazamentos por todos os lados. O edifício ruía. Via a mãe se desfazendo lentamente. “Meu filho, meu filho. Meu filho!”. E o mundo à sua frente também se desfazia numa mancha colorida em que as rosas vermelhas, amarelas e brancas do jardim subitamente se fundiam contra o fundo verde. Antônio chorava.


Monday, September 13, 2010

Inventário dos utensílios: a manteigueira, as chávenas, o açucareiro.


I

"O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananas-maçãs. Todos os domingos punha-se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia; mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez-lhe compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora, cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração. Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo, para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga.
No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes.
— Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez.
— Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma ninhada.
— É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina de chocar ovos...
— Já sei; para tirar os pintos sem galinha.
— Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é coisa mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos, galinhas e frangos.
— Grandes?
— Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira. Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não acabar!
A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é sem dúvida o melhor adubo."
(José de Alencar, 1872, Sonhos d’Ouro, cap. IV)

II

"Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada, em julho contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto de um cavalo de aluguel, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos de um rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministério, em comissão. Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!"
(Eça de Queirós, 1878, O primo Basílio)

III

"As negras serviam as infindáveis sobremesas. Ester propôs que tomassem o café na sala. Virgílio levantou-se rapidamente, tomou da cadeira da qual ela se levantava, puxou-a para trás fazendo espaço para ela sair. Horácio olhava com certa longínqua inveja. Maneca Dantas admirava os modos do advogado. Considerava que a educação era uma grande coisa. E pensou nos filhos e os imaginou, no futuro, iguais ao Dr. Virgílio. Ester saía da sala, os homem a seguiram.
Chuviscava no campo, um chuvisco miúdo, atravessado pela claridade da lua. As estrelas eram muitas, nenhuma outra luz empanava sua luz celeste. Virgílio chegou até a porta, andou um passo na varanda. Felícia entrava com a bandeja de café, Ester servia o açúcar. Virgílio voltou, fez a consideração como se declamasse um poema:
- Só na mata se vê uma noite tão bela...
- Está bonita, sim... - apoiou Maneca Dantas que mexia sua xícara de café. Voltou-se para Ester: - Mais uma colherzinha, comadre. Gosto de café bem doce...Mais uma vez atendeu ao advogado. - Muito bonita a noite e essa chuvinha ainda dá mais graça... - fazia força para acompanhar o ritmo que Virgílio e Ester emprestavam à conversa. Ficou contente porque teve a impressão de que dissera uma frase parecida com as deles.
- E o doutor? Pouco ou muito açúcar?
- Pouco, dona Ester... Basta... Muito obrigado... A senhora também não acha que o progresso mata a beleza?
- Ela entregou o açucareiro a Felícia, tardou um minuto a responder. Estava pensativa e séria.
- Acho que o progresso também tem tanta beleza...
- Mas é que nas grandes cidades, com a iluminação, nem se vêem as estrelas... E um poeta ama as estrelas, dona Ester... As do céu e as da terra...
- Mas há outras noites que não são de estrelas...agora a voz de Ester era profunda, vinha do coração. - Nas noites de tempestade é horroroso...
- Deve ser terrivelmente belo... - a frase subia pela sala, dançava diante de todos. Completou: - É o belo horrendo...
- Talvez... - disse Ester. - Mas eu tenho medo nessas noites - e o olhava com um olhar súplice, como a um amigo de largos anos.
Virgílio viu que ela já não representava e teve pena, imensa pena. Foi nesse momento que pousou os olhos nela com doçura e com verdadeiro interesse. E os pensamentos risonhos e astuciosos de antes desapareceram substituídos por algo mais sério e mais profundo."
(Jorge Amado, 1943, Terras do Sem Fim, cap. 7 de “A Mata”)