Thursday, August 18, 2005

Crônica de um sábado de verão

Isabel Pires

            Não pode um cristão dormir um pouco mais numa manhã de sábado?, era o que me vinha à mente, ainda entorpecida, enquanto olhava os números do relógio-despertador, que exibiam, na penumbra do quarto, seis horas e dois minutos extravagantemente vermelhos. Contudo, não era o despertador que tocava. A seu lado, o telefone berrava estridente. E a segunda coisa que me veio à cabeça foi uma ideia funesta. Algo de terrível tinha por força de ter acontecido, para justificar a insistência daquela campainha àquela hora da madrugada. Atendia ou não? Como aquele troço não parasse, resolvi ver afinal do que se tratava. “Alô? Querido? Já está pronto?”. A voz meiga de Lina era um balde de água fria nos meus ouvidos. Como poderia ter esquecido? Eu era mesmo um animal. Um monstro. “Cla claro querida. Daqui a dez minutos? Tudo bem”.
            Como eu ia disfarçar o gosto de sola-de-sapato-cabo-de-guarda-chuva na boca, eu não fazia a mínima ideia. Como aquilo acontecera comigo, eu conseguia explicar. Só um asno poderia sair para um happy-hour com a turma do trabalho – a mesma com a qual eu passava oito horas por dia, quarenta por semana – e chegar em casa às... Bem, isso não importava agora, mas apenas chegar na casa da Lina em... Cinco minutos?
          Sentei desolado na beira da cama, tentando lembrar onde foram parar as chaves do carro. Felizmente, havia um spray para garganta no armário do banheiro. Enfiei-me numa roupa qualquer e fui dirigindo com a janela do carro bem aberta. Isso justificava o cabelo desgrenhado, a roupa amarrotada. Sorri comigo mesmo, envaidecido da minha própria inteligência.
                À porta do prédio, de mala em punho, bolsa, sacola e laptop, Lina me recebeu com um sorriso do tamanho do mundo, e, enquanto colocava toda aquela tralha no banco traseiro, confessou que estávamos meia hora adiantados. Devo ter sorrido muito amarelo, porque ela me perguntou se eu havia tomado café. “Está com fome, querido? Pobrezinho!” Deu-me as chaves do seu apartamento e insistiu para que, na volta, eu passasse por lá. Havia me preparado uma bela surpresa. “Claro que você vai gostar!” No saguão do aeroporto, Lina notou-me a palidez, o mutismo. E interpretou tudo como saudades antecipadas dela. “Volto logo, querido. Só uma semana...”. Eu só pensava em voltar correndo para debaixo das cobertas.
           Depois do check-in, Lina finalmente me liberou, não sem antes me fazer prometer que sim, que quando saísse dali eu iria direto ao apê dela.
            Enquanto dirigia, o vento fresco da manhã revigorando-me, começava, de fato, a sentir saudades da minha doce Lina. Pouco a pouco, também a curiosidade começava a me dominar. Afinal, não custava nada dar uma passada por lá.
            Era manhã de sábado. O trânsito fluía. Os poucos motoristas também fluíam, sem prestar muita atenção ao sinal. Verde, amarelo, vermelho, que diferença fazia? Eu ia sem pressa, parando em algumas esquinas.
            Devia estar pensando ainda em Lina e na “bela surpresa” que me aguardava, porque não percebi logo que as buzinadas ao lado eram comigo. Só quando o motorista bateu na minha janela é que tomei conhecimento dele. Dele, da mulher e dos dois filhos, que me olhavam cheios de interesse e, provavelmente, com segundas intenções. Era o meu primo Maurício. “Está indo a algum lugar? Bom... Estamos indo a um churrasco, não quer vir com a gente?”. O sinal ficou verde e o carro do Maurício não saía do lugar. Acabou dizendo que foi mesmo muita sorte ter me encontrado. “E?...” O que eu temia aconteceu. A prima Roberta me olhava sorrindo, um sorriso quase do tamanho do sorriso da Lina. “Como não?”. “Com o maior prazer”, atravessei a cidade para ir buscar o casal de velhinhos, avós de Roberta. Era aniversário de alguém e insistiam para eu ficar. Churrasco, piscina. Nada mau para uma manhã de sábado. Maurício arranjou-me um calção de banho e eu fui me deixando ficar ali. Tinha tempo que eu não pegava uma corzinha.
        Entre um mergulho e outro, sempre dando um jeito de devolver o tapa de água recebido dos garotos, lembrava da surpresa da Lina e sentia remorsos. Depois, olhava os dois velhos, sentados placidamente à sombra, com seus chapéus brancos de largas abas, e sentia mais remorsos. Mas, definitivamente, eu não iria levá-los de volta. Lá pelas duas da tarde, arranjei um pretexto para escapulir, apesar da insistência da mãe de Roberta para que eu ficasse. Disse que não podia, tinha um encontro com a Lina, ia almoçar com ela. “Aliás, estou até atrasado...” A velhinha, até então quieta, levantou a cabeça um tanto surpresa. “Mas a Lina não viajou? Você não foi levá-la ao aeroporto?”. Emendei-a, constrangido e percebendo que ela anotara tudo da nossa conversa no trajeto para o churrasco. “Como? Não, Lina ainda vai viajar. Depois que almoçarmos”. Enquanto eu terminava as despedidas, a velhinha fez cara de poucos amigos e, intimamente, deve ter me rogado algumas pragas. Ao lado dela, o velhinho dormitava, indiferente.
            Era um breakfast o que Lina havia me preparado. Simpáticos crisântemos repousavam ao lado da jarra de suco e da leiteira. Torradas, queijo, presunto. Geleia, biscoitos amanteigados. Pão francês. Tudo murcho. O ar recendia a mamão e a laranja azeda. Sob o açucareiro, um bilhete carinhoso de Lina, escrito num delicado papel, ornado de flores e corações.
           Sorri um pouco, sem compreender muito bem a finalidade da estética romântica que presidia tudo aquilo, e que, aparentemente, não combinava em nada com a doutora Idalina Carvalho. A propósito, ela havia embarcado para um simpósio de advogados criminalistas, que ia se realizar em Porto Seguro. Enquanto mastigava uma torrada ressecada em excesso e esvaziava a jarra de suco e a leiteira dentro da pia da cozinha, senti-me, mais uma vez, um monstro inominável. Paciência. Sobretudo, eu deveria ser paciente comigo mesmo. Dobrei com cuidado o bilhete e guardei-o na carteira.
            Escolhi um CD da coleção da Lina para escutar debaixo do chuveiro. Titãs. Só os Titãs salvam. Enquanto esfregava o xampu da Lina no cabelo, podia ouvir a música vinda lá da sala. “Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”. Súbito, a campainha tocou. Eu ainda estava na metade do banho e a campainha tocando, sistemática e pausadamente, uma duas três vezes. Quem seria? Enrolei a toalha na cintura e fui atender a porta.
        De dentro de suas bermudas, um garotão com pinta de surfista sorria, com uns dentes meio exagerados e muito brancos. “Não, a Lina não está”. “É que, bem, a minha avó...” Ele parecia meio desconcertado. E os Titãs: “cabeça cabeça cabeça de dinossauro”. Por fim, o garotão conseguiu se explicar: viera convidar a Lina para a missa de sua bisavó, que morava no apartamento em frente. Lembrei do aviso dentro do elevador, referente a uma missa que seria celebrada pela passagem dos cem anos de alguma senhora do prédio. Com efeito, por trás do garoto, pude ver a velhinha sendo retirada de casa em sua cadeira de rodas. “Bom, cara. Vai rolar um bolo lá mesmo, no salão de festas da igreja. Se quiser, aparece por lá”.
          Aquele era o sábado dos aniversários. Declinei de mais este convite. O garoto não insistiu, afinal, e eu voltei aos Titãs. “Família, família. Papai, mamãe, titia”.
        Uma ligeira azia e a movimentação do apartamento em frente, cujos ruídos pareciam penetrar por debaixo da porta, tiravam-me qualquer concentração. A cabeça começou a latejar. Imóvel, esticado no sofá, escutei o CD terminar a última faixa: “É que a televisão me deixou burro, muito burro demais”.
      A televisão! O controle remoto estava ali mesmo, ao alcance da mão. Bastava apertar um botãozinho de nada. Televisão relaxa, afinal de contas. E a da Lina é das grandes. Quarenta e três polegadas de imagem colorida em 3D invadiram o espaço num blablablá infernal que me aumentava a dor de cabeça. Abaixei o volume até deixá-la muda. E troquei o CD. Agora sim, podia relaxar, escutando Caetano com aquele cenário todo colorido. Parecia um show.
        Não estava com a mínima disposição para dirigir de volta pra casa, e assim fui ficando no apê aconchegante da Lina, sem a Lina, porém. O relaxamento com música, televisão e sofá pode ser que fizesse efeito, era o que eu esperava. Enquanto isso, mudei para os CDs internacionais, sempre com as imagens coloridas ao fundo. Rolling Stones, Supertramp, Dire Straits, Yes. Com tais canções de ninar, acalentadas pela tevê completamente muda, acabei cochilando. Ou melhor, dava cabeçadas para logo ser bruscamente acordado por uma bateria mais pesada ou uma guitarra mais estridente. Até que os CDs cessaram de tocar e peguei no sono de vez.
         Não tenho ideia de quanto tempo depois fui acordado por uma voz estranha que me sussurrava aos ouvidos. Sussurro nada. Era uma voz grandiloquente. Visceral, eu diria, se não fosse tão impostada. Quando abri os olhos, Cid Moreira olhava fixo para mim, de dentro da tela da tevê: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”.
     Que história era aquela? O que o Cid Moreira estava fazendo na televisão da Lina? Mas ele, impassível, continuou: “Ele estava no princípio com Deus. Eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro”. Como eu não reagisse, ele colocou as mãos na moldura da tela, como se fosse sair de lá. Foi o que fez. Quando percebi, ele já havia passado uma das pernas para o lado de fora, e estava prestes a passar a outra, enquanto dizia: “Estamos de olho!”. Foi aí que eu reagi. De um pulo, saltei do sofá, abri a porta e saí em desabalada carreira pelo corredor, enquanto a toalha que me cingia a cintura caía no chão, juntamente com os óculos 3D da televisão da Lina. Antes de alcançar as escadas, completamente nu, ainda vi a cara, lambuzada de glacê branco, da velhinha dos cem anos, que estava sendo removida de volta para casa.

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