Wednesday, August 17, 2005

Glauberrocha: a dimensão épica do cinema brasileiro

O Cinema Novo, movimento cultural que revolucionou o próprio modo de se fazer cinema no Brasil, teve origem em 1952, com o I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, nos quais começaram a ser discutidas novas idéias para a produção cinematográfica brasileira. O filme Rio, 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, é considerado o marco fundador da nova forma de produção brasileira de filmes, que teve nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Leon Hirszman, David Neves, Ruy Guerra e Luiz Carlos Barreto.
Dono de uma vasta produção teórica, em que expõe suas idéias sobre como fazer cinema no Brasil, Glauber Rocha surge como a figura mais representativa do movimento cinemanovista. Depois de atuar como crítico de cinema e ator de teatro universitário – quando participou da montagem de Eros Martim Gonçalves da Ópera dos Três Tostões, de Brecht – Glauber Rocha lança, em 1959, em Salvador, Bahia, os filmes curta-metragem Cruz na Praça, de acento surrealista, e O pátio, que se aproxima mais de uma proposta concretista. Com a adesão ao Cinema Novo, porém, Glauber abandona o esteticismo inicial, em favor da compreensão de uma “função social e humana do cinema” (ROCHA, G. 1968).
Em seus filmes “peliculamente incorretos”, ensaísticos e experimentais ao extremo, fugindo aos padrões do cinema industrial, Glauber Rocha busca a afirmação de um cinema realmente brasileiro, um cinema que não represente um simples “udigrudi”[1] do “cinema industrial do colonizador”, como as pornochanchadas, duramente criticadas por ele:

"Até quando o México vai insistir em conservar os mitos do cinema industrial? Quando os jovens diretores mexicanos vão inventar algo mais revolucionário e deixar de fazer películas corretas para incluí-las na indústria da mediocridade?". (Glauber Rocha, carta a Alfredo Guevara, junho de 1967, citado in VENTURA, 2000: 252).

Em 1965, a partir de uma comunicação de Glauber no Seminário “Terzo Mondo e Comunità Mondiale”, realizado em Gênova, Itália, surge a Estética da Fome, que tornou-se, ao lado do lema “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, espécie de manifesto do Cinema Novo. Como parte do projeto de descolonização cultural pretendido, a Estética da Fome problematiza a relação entre estética e política no contexto de uma economia dependente, estabelecendo o conceito de “cinema ideogramático”. De acordo com tal conceito, a cultura popular brasileira torna-se frente de resistência, ainda que pacífica e inconsciente, aos valores do imperialismo cultural e econômico. Assim, os seus elementos devem ser apropriados criticamente pelo “novo” cinema brasileiro, para a recriação de uma nova linguagem, que expresse a “consciência em relação direta com a construção das condições revolucionárias” (ROCHA, G.1982: 212).
Baseada, pois, na cultura épico-popular dos cantadores, na oralidade, na literatura de cordel, nas crenças populares e no misticismo, esta nova forma estética propõe ainda a transposição de um problema moral e político – que inclui a precariedade do cinema do Terceiro Mundo como reflexo das condições do subdesenvolvimento, tematizado por ele – para o campo estético. Como observa Ismail Xavier, “a fome como metáfora permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que permite redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante” (XAVIER, 1983: 10).
Com uma praxis essencialmente voltada para a luta do cinema latino-americano frente ao imperialismo cultural do “cinema industrial do colonizador”, seja ele “o americano” ou “o europeu”, Glauber Rocha retoma os trabalhos de Humberto Mauro – considerado por ele como precursor de uma linguagem cinematográfica essencialmente brasileira. Também a música de Villa-Lobos, cuja proposta é sintetizar as dicotomias campo/cidade, civilização/barbárie na busca de uma melodia própria para o Brasil, é apropriada por Glauber, que a utiliza fartamente em seus filmes.
Os projetos culturais de Villa-Lobos e Humberto Mauro vêm de encontro à pesquisa estética de Glauber, que se baseia em alguns conceitos, dos quais se destacam: 1) o “específico fílmico”: busca de uma linguagem especificamente fílmica, que utiliza a montagem dialética como rompimento da montagem literário-teatral (ou seja, “narrativa”) do cinema contemporâneo. Segundo esse conceito, a imagem torna-se “invenção”, signo de uma forma lingüística nova; 2) o conceito de “cineação”: a possibilidade de “dominar o tempo sem a mínima discursividade” (ROCHA, G. 1959: 103) – ou seja, eliminando a narratividade e recriando/retomando uma ação própria do cinema, baseado que foi, em suas origens, no puro movimento da imagem; 3) o “cinema-testemunha”: “o cinema ainda não é arte e aqui no Brasil seria melhor chamá-lo de testemunho” (ROCHA, G. 1958); 4) a importância da linguagem do sertanejo como elemento de identidade cultural: “a fala do Terceiro Mundo, a fala secreta, a fala selvagem, a fala reprimida é uma fala antigramatical (...). A língua é forjada segundo todo um sistema de dominação preestabelecido” (ROCHA, G. 1978); 5) o conceito de autor: “o autor é o maior responsável pela verdade; sua estética é uma ética, sua mise-em-scène é uma política... O cinema não é instrumento, o cinema é uma ontologia” (ROCHA, G. 1963:14).
O cinema “peliculamente incorreto” de Glauber Rocha, colocando em prática os conceitos que defende, lança mão de vários recursos experimentalistas, dos quais se destacam:
. o gesto: simultaneamente “crítico” e “messiânico”, não tem “antes” nem “depois”, mas resultaria da “vivência do instante”. Este recurso aparece em várias cenas do filme Terra em Transe (1967), em que os personagens voltam os olhos diretamente para a câmera, quebrando, com esse gesto, a chamada “quarta-parede” do cinema naturalista e invertendo a relação filme/espectador, uma vez que os personagens não são, nesta proposta, apenas “vistos” pelos espectadores, mas também “vêem” estes;
. intervenções em off: numa das cenas do filme Idade da Terra (1980) o Cristo negro, vivido por Antônio Pitanga, desafia o americano John Brahms (interpretado por Maurício do Valle) a “ouvir a voz do Terceiro Mundo”, e essa voz é a própria voz de Glauber, em off sobre a imagem de Brasília, discursando sobre o “mundo rico” e o “mundo pobre”;
. desnaturalização das imagens: contrapondo-se ao neo-realismo do cinema italiano, este recurso busca valorizar a imagem pela imagem, isto é, como um produto específico, e não pela que ela “conta” (narra) ou “representa” (imita o real);
. destruição da montagem: com este recurso (ou “falta” de recurso), a equipe técnica aparece durante as cenas dos filmes, o que, adicionalmente, dispensa os famosos “créditos” do cinema convencional;
. utilização da música: “acho que o cinema brasileiro tem, nas origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música: nosso triste povo canta alegre, uma terrível alegria de tristeza. O samba de morro e a bossa nova, o romanceiro do Nordeste e o samba de roda da Bahia, cantiga de pescador e Villa-Lobos – tudo isso vive dessa tristeza larga, deste balanço e avanço que vem do coração antes da razão” (ROCHA, G. 1964: 111);
. e, por fim, outros recursos, como a quebra da noção de tempo e de espaço, o uso de luz indireta e a caracterização de personagens fragmentados, recursos largamente empregados por Glauber em praticamente todos os seus filmes.

Para compreendermos melhor a utilização desses recursos no cinema de Glauber Rocha – um cinema definido por ele como “épico e sagrado, dialético, produto brasileiro típico que encontra sua matéria-prima bruta na cultura popular do Nordeste, ligado ao projeto estético-político de descolonização” – se faz necessário lançar uma vista de olhos sobre o Teatro Épico, de Bertolt Brecht, de cuja proposta as concepções cinematográficas do cineasta brasileiro muito se aproximam.
Um dos pilares da proposta cinemanovista – o rompimento com o esquema da linearidade da ação, por meio de imagens que não possuem necessariamente relações de causalidade (“começo-meio-fim’) – encontra correspondência no “salto dialético” do Teatro Épico de Brecht, que propõe a quebra da unidade da ação dramática, herdeira da tradição do teatro aristotélico. Também a retomada da cultura épico-popular foi feita por Brecht, que reformulou, do seu ponto de vista, a tradição épica do teatro popular europeu, sobretudo o teatro medieval dos séculos XIII ao XV,[2] empregando o aspecto didático,[3] utilizado naquela forma teatral, e direcionando-o para um engajamento político.
De caráter essencialmente experimental, a imagem do Cinema Novo propõe uma desautomatização da consciência, buscando provocar no espectador uma reflexão idêntica à pretendida pelo “efeito-V”, ou “efeito distanciamento” de Brecht, que busca uma anulação da “empatia” (ou seja, a identificação do espectador com os personagens) do teatro tradicional. Este recurso brechtiano tem por objetivo “despertar” a percepção e eliminar a “ilusão burguesa”. De acordo com o ponto de vista de Brecht, o teatro burguês encerra uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que se baseia na empatia, na identificação personagem-platéia, com o objetivo de criar a “ilusão de realidade” – defendida pelas idéias naturalistas de Stanislavsky – essa identificação é, porém, permeada por uma separação entre o público e o palco, que estariam isolados entre si pela “quarta parede”. A implosão da quarta parede do teatro e do cinema naturalistas, tanto para Brecht como para Glauber, tem o objetivo de estabelecer um diálogo direto com o espectador, opondo-se deste modo à forma burguesa – e canônica – de fazer teatro e cinema.
A ênfase no gesto, e não no diálogo, também é outro ponto comum entre as propostas brechtiana e “glauberrochiana”. Com o objetivo de aumentar a desautomatização da percepção, liberando a consciência do espectador para a reflexão, o gesto é fundamental para a praxis política da arte, pois, para Glauber, assim como para Brecht, como observa Walter Benjamin, “a literatura não é obra, mas aparelho, instrumento (...), e seria tolice calar-se sobre os perigos imanentes de sua obra, sobre sua postura política e mesmo sobre os casos de plágio” (BENJAMIN, 1986: 124).
No entanto, é justamente na praxis política que as propostas de Glauber Rocha e de Brecht parecem divergir. Enquanto para Brecht o homem, senhor não do seu “destino” mas de suas ações, é o agente social por excelência, capaz de forjar e, portanto, modificar as suas próprias condições sociais, para Glauber, a cultura popular brasileira, vista por ele como espécie de “guardiã” dos valores tradicionais, que resistem à colonização “modernizante”, não é, porém, capaz de, efetivamente, agenciar uma ação política. Nesse paradoxo residiria, para o cineasta, todo o “impasse” e a “impossibilidade” do Terceiro Mundo: o “destino” do povo (sem identidade) brasileiro estaria irremediavelmente atrelado ao destino do colonizador, que conduz a cultura e a economia terceiro-mundista. Essa perspectiva trágica do pensamento de Glauber Rocha se acha presente em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), nos quais o povo surge como “entidade abstrata” (VENTURA, 2000: 210), representante do Brasil inculto e bárbaro, sempre à margem da modernização. Assim, enquanto no teatro brechtiano o determinismo, a fatalidade, o destino e o trágico não existem – e sim as ações concretas dos homens em sociedade, interagindo às circunstâncias, que podem ser modificadas politicamente –, em Glauber, a cultura popular, buscada por ele como “guardiã da nação”, não desafia – porque não tem forças suficientes nem consciência da sua posição de dominado – a dominação exercida pelo “complexo colonizador” do Ocidente.
Herdeiro de uma tradição que propõe o engajamento político da arte, e que se constituiria na sua própria “razão de ser”, o cinema de Glauber Rocha não é, porém, mera “importação” do modelo teatral proposto por Brecht. Muito ao contrário, a estética não apenas “experimental” mas sobretudo polêmica do cinema de Glauber Rocha, à maneira do teatro brechtiano, possui sua própria linguagem e sua própria proposta estética, permitindo repensar a questão da identidade cultural brasileira e, sobretudo, o modo de se produzir a cultura no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BENJAMIM, Walter. “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht”. In: ______. Obras escolhidas, vol. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 2a. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 78-90.

BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. 1 e 2. São Paulo, Atlas, 1993.

MONTEIRO, Ronald F. “Do udigrudi às formas mais recentes de recusa radical do naturalismo”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Anos 70: Cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979/80.

ROCHA, Glauber. “Cinema operação Nordeste”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ago. 1958.

____________ . Filme experimental: um tempo fora do tempo. Salvador, Angulos, n. 14, p. 103, maio 1959.

____________ . Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

____________ . Deus e o diabo na terra do sol (roteiro). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

____________ . “Tout la vie on parle”. Positif, n. 91. Paris, jan. 1968.

____________ . Folha de São Paulo, 30/05/1978.

____________ . Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/ Embrafilme, 1982.

ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1977.

VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.

Notas:
[1] Como observa Ronald Monteiro, “o termo udigrudi foi inventado, parece, por Glauber Rocha, numa invectiva aos filmes do ‘underground’ caboclo.” (MONTEIRO, 1979/80: 126).

[2] Com o ressurgimento do teatro greco-latino, no século XVI, o teatro épico medieval sucumbe, cedendo lugar ao drama moderno, que atingiu seu auge no século XIX.

[3] Dividido em “sagrado” e “profano” – e substituindo a divisão tragédia-comédia, típica do teatro greco-romano – o teatro medieval se caracteriza por utilizar o humor como elemento cômico que satiriza as “imoralidades” sociais como a gula, a depravação das mulheres, a licenciosidade dos padres, etc. Assim, o riso, nesse tipo de teatro, possuía sobretudo a função de “corrigir” os costumes sociais, tornando-se, deste modo, didático, e procurando cumprir também uma função exemplar e moralizadora.

3 Comments:

Blogger EDEVALDO JOSE STRAPASSON said...

EDEVALDO (EDEVALDO JOSE STRAPASSON) CANTOR COMPOSITOR INSTRUMENTISTA COLOMBO PR 19/04/1971 EU EDEVALDO COM A GRAÇA DE DEUS TENHO MAIS DE 245 MÚSICAS 2 CDS 36 MÚSICAS GRA., TRA. COM A SEL. BRA. FEM. DE VOLEIBOL GRA. P. GLOBO ESPORTE NACIONAL EM AGOSTO DE 1998, ESCOLA DE VIOLÃO DESDE 2001. EU FIZ UMA MÚSICA EM HOMENAGEM A GLAUBER ROCHA, O TÍTULO DA MÚSICA É A MÚSICA GLAUBER ROCHA (2007). ASSISTI DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, TERRA EM TRANSE, O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO, BELOS FILMES.

5:51 PM  
Blogger EDEVALDOJOSESTRAPASSON said...

EVALDOA MÚSICA GLAUBER ROCHA (2007)
(EDEVALDO)
GLAUBER ROCHA
USOU A DIALÉTICA
ESCREVIA DYALÉTIKA
FEZ DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
TERRA EM TRANSE
O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO
PRA ELE FOI FEITO
GLAUBER O FILME, LABIRINTO DO BRASIL

11:48 AM  
Blogger EDEVALDOJOSESTRAPASSON said...

A MÚSICA GLAUBER ROCHA (2007)
(EDEVALDO)
GLAUBER ROCHA
USOU A DIALÉTICA
ESCREVIA DYALÉTIKA
FEZ DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL
TERRA EM TRANSE
O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO
PRA ELE FOI FEITO
GLAUBER O FILME, LABIRINTO DO BRASIL
Essa música eu fiz pra GLAUBER ROCHA, música bem estruturada, um clássico.

11:58 AM  

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