Tuesday, December 07, 2021

José de Alencar e o cenário romântico brasileiro

 Isabel Pires

(Trabalho apresentado ao concurso de seleção do Mestrado em Literatura Brasileira da UERJ, 2001) - atualizado com a nova ortografia.

1 - INTRODUÇÃO         

           Parece haver um consenso, entre os estudiosos que se ocupam do Romantismo brasileiro, de que é somente nesse período que são forjados, para o Brasil, os conceitos de uma “literatura brasileira”, e, na esfera política, o de “nacionalidade brasileira”. A literatura brasileira daquele período é vista assim como elemento de consolidação da emergente nacionalidade brasileira. Ou seja, tanto o conceito de uma “literatura brasileira” como o da própria “nação brasileira” teriam sido construídos pelos próprios escritores do período romântico no Brasil, ideia bastante consolidada entre os estudiosos do tema.

Com efeito, essa ideia encontra amplo respaldo nos escritos dos românticos brasileiros, em seus “prefácios”, “posfácios” e “prólogos” diversos, abundantes naqueles textos, e que certamente ratificam esse ponto de vista. Além desse farto material, que tem servido de subsídio para vários estudos, a revista Niterói, lançada em Paris em 1836, é testemunho eloquente de um esforço de construção intelectual. Nessa publicação, são claras a recusa a um padrão de literatura clássica e neoclássica, importado desde a época colonial brasileira, e a busca de novos rumos para a literatura da recente nação. É célebre a imagem alegórica utilizada por Gonçalves de Magalhães naquela revista, ao criticar a adoção de moldes clássicos pela literatura produzida no Brasil:

 (...) a poesia do Brasil não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Helicon, que, peregrinando pelo mundo, estragara seu manto, talhado pelas mãos de Homero (...). [citado por Zilberman (1997) e Campos (1999)]. 

Outro ponto comum entre os que se dedicam ao tema do Romantismo brasileiro é o de que o novo padrão estético buscado então tinha como elemento norteador as “sugestões da natureza” (Zilberman, op. cit.), tomada como ponto fundamental de um “programa nacionalista” (Cândido, 1971, p. 115): 

A natureza desponta como o que há de mais legitimamente nacional, e a tarefa a ser empreendida vai consistir, então, em trazê-la para a literatura. (Rouanet, 1991, p. 243)

Também Costa Lima (1986, p. 205): 

A primordialidade da pátria se combinava à necessidade de observar a natureza.

No entanto, o grandioso projeto intelectual da construção de uma nacionalidade brasileira, pela via literária, também envolve um processo contraditório e complexo, que o “verniz” romântico não conseguiria encobrir. Na base dessas contradições, ou seja, na origem da própria formação do Romantismo no Brasil, se encontra a questão, enfocada por vários autores, como Flávio Kothe (citado por Jobim, 1996), quanto ao fato de ter havido ou não, no período colonial, uma “literatura brasileira” sem que houvesse ainda uma “nação” brasileira: 

Consideramos Gregório de Matos pertencente à Literatura Brasileira, embora saibamos que, na época dele, o Brasil não existia como Estado constituído. (Jobim, op. cit., p. 83)

De outro lado, no período romântico, quando já havia uma nação — com a proclamação da independência política em 1822 —, a questão se inverte, pois passa a se considerar que o conceito de uma literatura brasileira teria surgido antes mesmo dos próprios textos literários, ou seja, havia a nação, mas ainda não a literatura: 

Cabe perguntar como pôde uma literatura já contar com uma história, sem ter sido ainda ‘literatura’, vale dizer, sem terem ainda se destacado os vultos que hoje figuram nos manuais brasileiros. (Zilberman, 1997)

Coincidindo com a independência política, o Romantismo no Brasil teria sentido a necessidade de efetivar, também literariamente, uma “independência”, mediante o estabelecimento de uma literatura brasileira que caminha pari passu com a nacionalidade brasileira, sendo mesmo o seu elemento intelectual e consolidador. Assim, temos outro aspecto contraditório que diz respeito ao papel que o Romantismo brasileiro teria desempenhado face ao estabelecimento de uma nacionalidade, papel esse de modo algum próprio da literatura. Isto é, o Romantismo, no Brasil, na medida em que teria tomado a si a tarefa de “validar” a nacionalidade brasileira, se afasta da condição de ficcionalidade, que confere à literatura a sua especificidade, para servir de “testemunho” e de “documento” da nacionalidade em formação (Costa Lima, 1986). Esse papel de “testemunha” conferido à literatura se contraporia à visão de Hayden White (1994), para quem as narrativas históricas, na medida em que encerram um conteúdo ficcional, não constituem a própria história, mas apenas “representações” dela. Dessa forma, a literatura brasileira romântica, enquanto ficção, ao “ratificar” e “validar” o real, teria assumido um caráter inverso ao que possuem as narrativas históricas, na visão de Hayden White. No entanto, a elaboração “ficcional” da nacionalidade brasileira possuiria uma função específica: a de “contornar” as questões da origem da nação brasileira, em cuja base se encontra um violento processo de colonização (Bosi, 1992).

Finalmente, como parte das contradições reinantes no contexto do Romantismo brasileiro, mas também como fator que teria possibilitado-as, tem-se o “paradoxo da modernidade ‘do Outro’” (Campos, 1999). O Brasil do período romântico, enquanto nação recém-formada, pretendia ingressar no rol das modernas culturas ocidentais, projeto que interessava de perto à literatura. Porém, tal pretensão — num país “pós-colonial” (Bhabha, 1998), visto pelas nações dominantes da Europa ocidental como “exótico” e “diferente” — torna-se difícil, marcada por tensões e contradições. Nesta ótica, o conceito de Maria H. Rouanet (1991) de “exotismo domesticado” se aplicaria perfeitamente: ao mesmo tempo em que integra a sociedade ocidental, o Brasil é “diferente” dela — igualdade e diferença que devem ser, necessariamente, “domesticadas”. Essa dupla marca no nascimento da nação brasileira teria consequências na sua própria formação cultural. Assim, subsistiria no Brasil um duplo aspecto — caracterizado pela coexistência do arcaico e do moderno, do dominante e do dominado, do ocidental e do não-ocidental —, que surge como consequência direta de um processo de modernização tardia, imposto a uma sociedade estruturalmente dependente.

É, pois, num contexto complexo e profundamente contraditório que se inscreve o Romantismo brasileiro e, nele, a obra de José de Alencar, considerado por muitos o autor mais representativo desse instigante período da literatura brasileira.

 

2 - UM ESCRITOR POLÊMICO?

 

Entre os estudos que se ocupam da obra de José de Alencar se encontra um amplo leque de opiniões, variando do elogio à crítica contundente. Para uns, “a sua arte literária é (...) mais consciente e bem armada do que suporíamos à primeira vista” (Cândido, 1971, p. 235), enquanto para outros, “a sua obra nunca é propriamente bem sucedida, e (...) tem sempre um quê descalibrado e, bem pesada a palavra, de bobagem” (Schwarz, 1977, p. 31). Esses dois extremos de visão evidenciariam, assim, o caráter polêmico dos escritos alencarinos.

A natureza controversa da obra de José de Alencar, ressaltada desde o seu surgimento, advém dos próprios temas abordados, considerando-se o contexto brasileiro do século XIX, aliados ao problema da linguagem adotada, aspecto que será tratado mais adiante. Além do caráter polêmico dos temas alencarinos, é ponto comum, nas análises de diversos estudiosos, considerar também os seus aspectos contraditórios, os quais acentuariam o debate sobre o escritor no próprio contexto contemporâneo. Assim, são várias as “contradições” detectadas na obra de Alencar, tanto as que dizem respeito às contradições internas à própria obra quanto as referentes às contradições entre a obra e o contexto histórico do qual ela faz parte.

 

2.1 - As Contradições Internas da Obra de José de Alencar 

 

Uma primeira contradição, apontada por Antônio Cândido (1971, cap. 3) na obra “adulta” de José de Alencar, é a oscilação entre dois extremos opostos: o idealismo e o realismo. Para Cândido, há uma “fidelidade realista”, sobretudo em livros como Senhora e Lucíola, em que a busca da perfeição dos detalhes, tornados “expressivos”, se aliam à descrição dos amores de Lúcia e Paulo “tão realisticamente quanto possível”. No entanto, o extremo oposto, isto é, o idealismo, também despontaria nesse mesmo “Alencar dos adultos”, revelado não somente no happy-end dos encontros e desencontros de Aurélia e Seixas, em Senhora, mas principalmente, segundo o ponto de vista de Cândido, nos diálogos, que, embora “excelentes quanto à distribuição e à dosagem”— ou talvez por isso mesmo — não corresponderiam à realidade quotidiana, servindo apenas como “espécie de convenção literária calcada nas crônicas sociais do tempo” (idem, p. 233).

Roberto Schwarz (1977), por sua vez, vê, também em Senhora, aspectos contraditórios que conferem à obra “alguma coisa descabida” (idem, p. 35). Em primeiro lugar, Schwarz destaca o “carregado” antagonismo entre o idealismo e o dinheiro, tema central do livro. Para ele, a contradição, neste ponto, reside no fato de que Seixas, que “romanticamente aceita humilhar-se a fim de reaver o apreço da amada, no final apresenta entre as razões de sua desobediência... a honorabilidade comercial, revalorizando assim o nexo mercantil cuja crítica é a razão de ser do enredo” (idem, p. 45, não grifado no original). Outro ponto assinalado por Schwarz é o que ele chama de “incongruências da composição”, e que consistiria basicamente em “desarranjos” entre a apresentação do cenário, formado pelas relações sociais e pelo comportamento psicológico dos personagens, e o desenvolvimento do enredo, que “não falariam da mesma coisa”: 

A boa sociedade fluminense é referida sucessivamente como elegante, atrasada e vil, sem que seja assinalada a contradição. Também o narrador não é sempre o mesmo. Ora fala a linguagem conivente do cronista mundano, ora fala como estudioso das leis do coração e da vida social, ora é um duro moralista, ora um homem evoluído, ciente do provincianismo brasileiro, ora enfim é respeitador dos costumes vigentes (idem, p. 45). 

Finalmente, Schwarz ressalta, como contradição inerente à obra de José de Alencar, a existência de uma “rede de relações secundárias”, que acabaria por relativizar o conflito central do enredo, além de conferir, ao conjunto da obra, um “efeito de desproporção, de dualidade formal” (idem, p. 48).

Iracema 

Esse belo “poema em prosa” indianista, cujo traço mais marcante é a linguagem, retrata, de forma bastante idealizada, os costumes dos índios, destacando-se, em várias cenas, o hábito do banho, que pode ser tomado como metáfora da pureza do indígena.[1] No final do romance, porém, esses costumes indígenas são inteiramente substituídos pelos costumes do colonizador:

Ele [Poti] recebeu com o batismo o nome do santo cujo era o dia, e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos (Iracema, p. 102). 

A colonização brasileira teria sido, deste modo, apresentada por Alencar, segundo o ponto de vista de alguns estudiosos, como um processo pacífico, ao qual os nativos se submetiam voluntariamente, se “sacrificando” (ver Bosi, 1992, cap. 6, e sua noção de “mito sacrificial”). É interessante notar a forma como a perspectiva da violência da colonização, em Iracema, é trabalhada literariamente, sendo substituída pela perspectiva da “tristeza”, metaforizada pela tarde, “a tristeza do dia”: o penúltimo capítulo, que narra a morte de Iracema, é aberto com a frase “Descamba o sol”. Moacir, “o filho do sofrimento”, representaria assim a “tristeza” que impregnou todo o processo colonizador: de um lado, a tristeza de Iracema, e de outro, a do próprio Martim, exilado da terra natal. A respeito da tristeza como elemento de importância em Iracema, uma nota do próprio Alencar a assinala: 

O dia vai ficar triste — Os Tupis chamavam a tarde caruca, segundo o dicionário. Segundo Lery, che caruc acy significa "estou triste". Qual destes era o sentido figurado da palavra? Tiraram a imagem da tristeza, sombra da tarde, ou a imagem do crepúsculo, do torvamento do espírito? (Iracema, p. 108, nota 3, referente ao capítulo IX). 

Em Iracema, uma contradição que chama a atenção é o fato de que, apresentada como “lenda do Ceará” — e portanto como algo que se contrapõe à história, dispensando a verificação empírica — o escritor, em suas notas explicativas,[2] procura conferir à narração um caráter de “veracidade”, recorrendo à própria História para confirmar a “lenda”. Isso é feito quando ele pretende comprovar as existências reais de Martim Soares Moreno e Antônio Felipe Camarão, além de tentar delimitar com precisão geográfica, naquelas mesmas notas, o território onde teria se desenrolado a história real que seria o substrato da lenda.

Essa contradição se explicaria, de acordo com o ponto de vista de João Cezar (in Jobim, 1999), pela função que teria assumido o Romantismo no Brasil, de servir de “documento da história” brasileira, produzindo uma literatura cuja pretensão era “ser mais verdadeira do que os relatos dos cronistas e certos tratados de historiadores” (idem, p. 57). Para João Cezar, ao criticar e mesmo contestar os cronistas e historiadores, José de Alencar oferecia uma leitura própria da história brasileira, e uma interpretação alternativa à da historiografia oficial.

 

2.2 - As Contradições entre a Obra de José de Alencar e o Contexto Histórico Brasileiro 

 

Nas contradições que caracterizariam as relações entre a obra de José de Alencar e o contexto histórico, ou seja, a realidade na qual ela é produzida, novamente figurariam os extremos opostos, representados pelo realismo e pelo idealismo. Assim, a capacidade de Alencar de observar o cenário social e “psicológico” da realidade brasileira, que o caracterizaria como “sociólogo implícito” (Cândido, 1971, p. 226), se opõe ao seu idealismo artístico, expresso pelo “apurado senso estilístico”. Essa oposição teria como consequência a atenuação dos conflitos abordados pelo próprio enredo, revelando por outro lado a grande habilidade de escritor de José de Alencar: 

Profundamente romântico, Alencar parece mais senhor de suas capacidades criadoras nas situações mais dramaticamente contraditórias. (Cândido, op. cit., p. 229)

Outro ponto de contradição na obra de José de Alencar em relação ao contexto de sua produção seria dado pelo papel que ela pretende desempenhar — o de ser “interpretação” da realidade brasileira —, mediante porém a adoção de um modelo de romance europeu, que teria, segundo Schwarz (1977), Balzac como fonte de inspiração. Essa contradição resultaria na produção de uma literatura de “efeito dissociado”, se tornando “incoerente, postiça e desproporcional” (idem, p. 44). Deste modo, o conflito vivido por Aurélia, em Senhora, e que seria inspirado nos romances “universalizantes” de Balzac, perderia sua “razão de ser”, ainda segundo o ponto de vista de Schwarz, na realidade brasileira de então. Ou seja, o transporte de um modelo de romance francês, de temática liberal, questionadora de uma ordem social e econômica especificamente europeias, torna-se “descontextualizado” pela prática social e econômica vigente na sociedade brasileira do Segundo Reinado, em que imperava a ideologia do “clientelismo” (idem, p. 49).

A adoção ou importação por José de Alencar do modelo de romance francês, de franca inspiração em Balzac, se explicaria pela “lusofobia”, ou rejeição à herança cultural portuguesa, vigente no período. Campos (1999) vê nessa lusofobia uma rejeição a um “império colonialista europeu de segunda classe”, que a intelligentsia brasileira procurava conscientemente substituir pela influência da França, vista como modelo de nação civilizada do mundo ocidental.

Senhora 

O tema da compra do noivo pela ex-noiva pobre sugere uma leitura bastante específica de José de Alencar acerca das relações mercantis, que regem várias esferas da vida social. Em Senhora, a “alma” da transação mercantil — o próprio dinheiro — é transferida do velho Camargo para a jovem e bela Aurélia, numa metáfora bastante metempsicótica.[3] Assim, é justamente essa “alma” que permite o “nascimento” de Aurélia Camargo na sociedade fluminense.

Chamam a atenção ainda os valores da herança de Aurélia e do dote oferecido a Seixas: enquanto a primeira recebe “mil contos de réis”, o dote pago ao segundo é de “cem contos de réis”, numa proporcionalidade bem definida — isto é, Seixas “vale” exatamente 10% da fortuna recebida por Aurélia, numa demonstração irônica da precisão da relação comercial efetuada. No entanto, essa perspectiva de ironia, reveladora de uma visão crítica contida no romance, é negada no seu “desfecho açucarado” (Schwarz, 1977, p. 52), que se constitui, para Schwarz, no próprio ponto fraco da obra, ou no seu “defeito mais evidente”. 

A respeito do ponto de vista crítico em José de Alencar,  Silviano Santiago (1982) vê, em suas obras, a formulação de “charadas” com o propósito de “adivinhar” a conformação da sociedade brasileira. Para ele:

Alencar era um homem de muitas leituras. Mas de leituras muito mais amplas e generosas do que as que ostentam os seus críticos, como aliás atestaria qualquer consulta às suas copiosas notas de pé de página. Suas leituras não eram só as literárias (...). Eram também outras. (Santiago, op. cit., p. 99-100)

Em Senhora, a contradição do seu diálogo com o contexto diz respeito ao fato de que o escritor, ao analisar o conflito de personagens inseridos numa realidade brasileira específica, o teria feito por um “olhar europeocêntrico” (Santiago, 1982), gerando o que Schwarz (1977, p. 48) denomina “fratura formal”. Essa dualidade se faz presente mesmo no interior da obra, com personagens imersos na “sociedade fluminense”, a partir de um fundo europeizante:

Não faltaram amigos, conhecidos, que sugerissem a Aurélia a lembrança de fazer o casamento à moda europeia (...). Ela, porém, recusou todos esses alvitres; resolveu casar-se ao costume da terra (...). (Senhora, p. 59)

Do outro lado, há uma lareira, não de fogo, que o dispensa nosso ameno clima fluminense, ainda na maior força do inverno. Essa chaminé de mármore cor-de-rosa é meramente pretexto para o cantinho de conversação, pois que não podemos chamá-lo como os franceses o coin du feu. (Senhora, p. 63)   


3 – O PROJETO LITERÁRIO VERSUS A PRÁTICA LITERÁRIA DE JOSÉ DE ALENCAR


Um terceiro ponto de contradição na obra de José de Alencar poderia ser detectado por um confronto entre o seu “projeto literário” e os resultados efetivamente alcançados por sua obra, ou seja, pela sua “prática literária”. Conforme observa Schwarz, a importação de um molde literário de romance europeu por José de Alencar acaba por gerar romances de “efeito esquisito (...) que sendo voltados para a história contemporânea, não produzem a impressão de ritmo histórico algum” (Schwarz, 1977, p. 53), provocando, conforme visto, uma “dissociação” nos romances alencarinos entre a obra e o contexto no qual ela é produzida. Além disso, os pontos de contradição internos à cada romance particular, fartamente levantados pelos estudiosos de José de Alencar, reforçariam a visão de uma “prática” literária essencialmente contraditória.

No entanto, em oposição a essa prática, tem-se o “projeto literário” de José de Alencar, o qual pode ser vislumbrado em seus prés e posfácios apostos aos textos, além de algumas obras independentes de caráter teórico, como por exemplo Como e porque sou romancista (Alencar, 1987), publicado pela primeira vez em 1893 e escrito 20 anos antes. Nesse texto, o escritor faz uma espécie de “autoanálise” literária (ou “autobiografia literária”, como informa Afrânio Coutinho,  op. cit., p. 3), oferecendo farto material para os seus estudiosos e biógrafos. Nele, defendendo-se das acusações de “copiar” os textos indianistas do norte-americano Cooper, José de Alencar afirma: 

Cooper considera o indígena sob o ponto de vista social; e na descripção dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar. / No Guarany o selvagem é um ideal, que o escriptor intenta poetisar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os chronistas, e arrancando-o ao ridiculo que sobre elle projectam os restos embrutecidos da quasi extincta raça. (Alencar, 1987, p. 40) 

            Assim, o caráter idealizado do índio alencarino, largamente ressaltado pelos estudiosos do tema, é aí reconhecido pelo próprio escritor. Por outro lado, José de Alencar não somente se empenha em defender-se dos ataques que lhe dirigiam contemporâneos seus, nem tampouco se limita a fazer observações sobre sua própria obra, mas também e sobretudo defende claramente a ideia de uma autonomia literária e linguística para o Brasil. No “Pós-escrito à segunda edição de Iracema”, outro texto de caráter teórico, bastante contundente ele afirma:

Minhas opiniões em matéria de gramática têm-me valido a reputação de inovador, quando não é a pecha de escritor incorreto e descuidado (...). O corpo de uma língua, a sua substância material, que se compõe de sons e vozes peculiares, esta só a pode modificar a soberania do povo, que nestes assuntos legisla diretamente pelo uso. (Alencar, 1988, p. 66-67) 

            E mais adiante, rebatendo as críticas do “literato” português Pinheiro Chagas: 

Que a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas para a transformação profunda do idioma de Portugal, existe no Brasil, é fato incontestável. Mas, em vez de atribuir-nos a nós escritores essa revolução filológica, devia o Sr. Pinheiro Chagas, para ser coerente com sua teoria, buscar o germe dela e seu fomento no espírito popular, no falar do povo, esse ‘ignorante sublime’ como lhe chamou. (op. cit., p. 68) 

Assim, a defesa de uma língua brasileira, em oposição ao “português quinhentista” (op. cit., p. 66), reveste o próprio projeto literário de José de Alencar, de forjar, pela fixação de uma forma linguística diversa da de Portugal, uma nova literatura: a literatura brasileira, que não somente se contrapõe ao “velho português” — como o denomina o próprio Pinheiro Chagas, em crítica à Alencar (citado à p. 68, op. cit.) —, mas que surgiria mesmo como proposta de renovação, em oposição à literatura clássica: 

(...) aqueles que censuram minha maneira de escrever, saberão que não provém ela, mercê de Deus, da ignorância dos clássicos, mas de uma convicção profunda a respeito da decadência daquela escola. (op. cit., p. 73, não grifado no original) 

            Deste modo, enquanto a prática literária de José de Alencar apresenta pontos de contradição explícita ou implícita, o seu projeto literário se mostra coerente não apenas em sua lógica interna, mas também com o próprio contexto histórico, respondendo a este — pela busca de fixação de uma língua e literatura especificamente brasileiras — em sua demanda de afirmação de uma nação brasileira. 

Lucíola

Segundo o próprio José de Alencar, esse romance, escrito em 1862, foi recebido com desdém pela crítica, que o anunciou com uma única frase no Correio Mercantil: “Sahiu á luz um livro intitulado Luciola” (citado por Alencar, 1987, p. 43). No entanto, ao lado de Iracema e Senhora, Lucíola é considerada, pelos estudiosos contemporâneos, uma obra bastante representativa da literatura alencarina: 

Desses 21 romances [de José de Alencar] (...), três podem ser relidos à vontade e o seu valor tenderá certamente a crescer para o leitor, à medida que a crítica souber assinalar a sua força criadora: Lucíola, Iracema e Senhora. (Cândido, 1971, p. 222)

            Descrevendo as aventuras amorosas entre um jovem “de família” e uma “cortesã”, a narrativa de Lucíola pode ser vista como uma leitura dos acontecimentos a partir da perspectiva do próprio Paulo, personagem-narrador e protagonista, ao lado de Lúcia, da história:

Se naquela ocasião me viesse a ideia de estudar, como hoje faço à luz das minhas recordações, o caráter de Lúcia, desanimaria por certo à primeira tentativa. Felizmente era ator neste drama e guardei, como a urna de cristal guarda por muito tempo, o perfume de essência já evaporada, as impressões que então sentia. É com ela que recomponho este fragmento de minha vida. (Lucíola, cap. VIII, p. 162)

            Essa “leitura” dos fatos — ou essas “impressões” a que o próprio narrador se refere — longe de ser isenta de qualquer juízo de valor, constitui-se numa visão imbuída de contradições, que tanto vê em Lúcia um anjo recatado de bondade como um “furor satânico”, verdadeiro Lúcifer, sem chegar nunca a um meio-termo plausível:

Assim o meu espírito preocupou-me um momento com a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora (...). (Lucíola, p. 138)

Ao final, porém, há uma espécie de “conciliação” entre essas duas Lúcias, pela ótica do narrador Paulo: 

Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo; finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro a adolescência truncada. (Lucíola, cap. XX, p. 239)

            Lucíola surge assim como a tentativa de síntese de dois perfis de mulher a priori inconciliáveis, duas Lúcias que, naquele retrato, compõem uma só: de um lado, o ideal da pureza feminina, e de outro, o perfil da mulher condenada socialmente — a prostituta. Em qualquer dos casos, porém, o ponto de observação da mulher se localiza sempre no seio da sociedade, de onde sua imagem é filtrada pelas lentes da moral burguesa que impõe, a uma, um perfil de mulher recatada e submissa, e a outra, o completo ostracismo social. Essa mesma sociedade, simbolicamente, irá ser a responsável pela morte do protótipo de mulher que sintetiza em si dois perfis sociais tão diversos: após uma febre decorrente de um aborto — que  não fica claro se provocado ou espontâneo — Lúcia, já a essa altura transmutada em “Maria da Glória”, sucumbe. O filho, fruto de um “amor puro” entre ela e Paulo, não deveria vingar no “corpo impuro” da mãe.

Deste modo, o tema escolhido em Lucíola — um “perfil de mulher” — confere a essa um papel destacado, embora visto a partir de uma moral essencialmente burguesa, num contexto histórico em que a mulher desempenhava um papel social bastante restrito. Além disso, a própria condição de prostituta da mulher retratada configura mais um “desnível” (Cândido, 1971) entre a prática social brasileira efetiva e o discurso literário de Alencar.

 

4 – O PARADOXO DA CONTEMPORANEIDADE EM JOSÉ DE ALENCAR 

Embora mais que centenários, os reflexos da obra de José de Alencar se fazem sentir, paradoxalmente, na atualidade, época que, a partir do Modernismo, irá assumidamente rejeitar a perspectiva romântica, forma literária que se quer superada em definitivo. Entretanto, Schwarz (1977), um dos críticos mais severos de José de Alencar, afirma:

A sua obra é uma das minas da literatura brasileira, até hoje, e embora não pareça, tem continuidades no Modernismo. De Iracema, alguma coisa veio até Macunaíma (...). (op. cit., p. 31)

Com efeito, em 1955, reencontramos Lúcia e Paulo no adro da igreja da Glória, ao som do “repicar dos sinos”, exatamente cem anos depois do mesmo encontro narrado em Lucíola. Assim como no texto de José de Alencar, o Paulo de Lúcia — romance de Gustavo Bernardo (1999) — não é capaz de entender de imediato o código do jogo social vigente: o fato de não estarem “acompanhadas” por um marido, pai ou irmão, revela, em ambas as histórias, a situação peculiar (e dúbia) em que se acham essas duas Lúcias, separadas embora no tempo por uma centena de anos. E é pela metáfora do jogo de xadrez que é articulada a história dessa segunda Lúcia contemporânea. Assim, enquanto Lucíola reúne duas diferentes Lúcias em uma só, Lúcia propõe, ao contrário, o desdobramento real das duas mulheres — “Lúcia e Lúcia” —, que fazem as vezes de damas, uma preta, outra branca, de um jogo de xadrez bastante específico.

Do mesmo modo que em Lucíola, o passado é peça fundamental nos lances finais do jogo em que Paulo, involuntariamente, se vê envolvido em Lúcia. Cândido (1971), ao analisar o papel que o passado desempenha na obra de José de Alencar, aponta o seu aspecto dialético, “cujo desfecho é a redenção final” (op. cit., p. 229). Em ambas as narrativas — assim como também em Senhora —, o passado torna-se portanto fundamental, pois é ele, com seu caráter de “revelação”, que conduz o comportamento das personagens e determina o seu destino.

Silviano Santiago (1978), em seu estudo comparativo entre O primo Basílio, de Eça de Queirós, e Madame Bovary, de Flaubert, toma como um dos pontos de análise o papel desempenhado por uma obra que adota uma outra por “modelo”. Conclui ele que essa “obra segunda”, além de comportar uma crítica da anterior (idem, p. 59), traz em seu bojo elementos de “transgressão” que a diferenciam substancialmente daquela, conferindo-lhe uma “visibilidade” própria. Nessa perspectiva, o desdobramento das Lúcias — “a morena de olhos verdes e a loura de olhos negros” —, na obra de Gustavo Bernardo, seria um elemento de transgressão em relação ao romance de José de Alencar. Outro elemento de transgressão, em Lúcia, seria a criação do personagem José de Alencar, professor meio excêntrico que parecia “viver nos tempos do Império, não em 1955, mas sim, por exemplo, em 1855, cem anos para trás” (Lúcia, p. 16). Curiosamente, é justo o professor Alencar — clara alusão ao escritor do Romantismo brasileiro — a chave para a compreensão da composição narrativa em Lúcia: 

O que aconteceu, pergunto, querendo perguntar tudo de uma vez, numa única sentença. O que acontecera para ele estar daquele jeito, e o que acontecera com Lúcia. / Alencar não responde imediatamente. Vira o rosto para o lado, encostando-o na poltrona. Morde os lábios. Aperta os olhos, como se precisasse segurar o choro. Contenho-me e consigo ter o mínimo de delicadeza, na situação, não insistindo com a pergunta — mas, felizmente, Alencar entende o meu silêncio (e o meu profundo suspiro) como a pergunta retomada e se digna a responder (Lúcia, p. 152).

Finalmente, em seu estudo, Silviano Santiago (op. cit.) ressalta que não se deve buscar detectar, na obra que tomou outra por modelo, simplesmente os pontos de “coincidência” com aquela, mas sim a habilidade do escritor em manejar “um texto já no domínio público e sobretudo a tática que inventa para agredir o original, abalando os alicerces que o propunham como elemento único e de reprodução impossível” (idem, p. 59). Enquanto a “tática de agressão” aludida, em Lúcia, se configuraria nos próprios elementos de “transgressão” ao original, já vistos, a propriedade da utilização do texto de José de Alencar se exprime pela transposição de cenas — sobretudo a do encontro de Lúcia e Paulo no adro da igreja da Glória — “pinçadas” do original, e habilmente transportadas para o contexto da nova história:

Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha tranquila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a estabelecer ali o meu observatório. (Lucíola, p. 123)

Como não havia sido eu o autor do artigo, sentia-me no direito a gozar de tranquila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre uma pequena muralha que fazia as vezes de observatório conveniente. (Lúcia, p. 20)

A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras. (Lucíola, p. 124)

A lua vinha assomando pelo cimo dos edifícios fronteiros. (Lúcia, p. 21)

Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia visão que oscila entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se no meu espírito em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro de Lúcia. (Lucíola, p. 126)

Naquela noite, ao deitar, apaguei o pequeno abajur da mesinha de cabeceira e, no dúbio intervalo que faz a passagem da vigília ao sono, desenhou-se em meu espírito, em technicolor, a reminiscência despertada pelo encontro com Lúcia. (Lúcia, p. 21)

            Essa transposição “atualizada” do texto de José de Alencar sugere, em Lúcia, a proposta de um jogo não apenas interno à obra, metaforizado pelo jogo de xadrez, mas um jogo com o próprio leitor. Para Hutchinson (1994), esses jogos com o leitor ou brincadeiras literárias “tornam-se muitas vezes fontes de reflexão (...); representam uma grande forma de jogo entre o autor e o leitor, um jogo de atração e repulsão, de cumplicidade e rivalidade” (op. cit., p. 7-8). Nesta ótica, a retomada de uma perspectiva literária contemporânea, no final de Lúcia, representaria não somente uma “negação” da perspectiva do Romantismo, mas consistiria num “lance reflexivo” sobre aquele momento específico da literatura brasileira, que estaria assim sob “xeque”. Ou seja, a perspectiva contemporânea é retomada, em Lúcia, a partir do seu caráter de metaliteratura.

 

5 CONCLUSÃO   

Alguns estudos chamam a atenção para o fato de ter havido, no período romântico brasileiro, uma “prescrição” dos europeus de como deveria ser a literatura brasileira que se estava estabelecendo. O estudo de Rouanet (1991), principalmente, aponta a figura do francês Ferdinand Denis como espécie de “mentor intelectual” dos escritores brasileiros de então. O modelo de literatura “prescrito” por ele teria basicamente como paradigma a natureza, elemento diferenciador de uma literatura especificamente brasileira.

No entanto, caberia questionar se essa “prescrição” para a literatura brasileira em formação estaria sendo estendida também à própria nacionalidade brasileira, que igualmente estava se forjando, e da qual a literatura tornou-se, como visto, elemento de consolidação. Em outras palavras: teria havido uma “prescrição” da Europa para o Brasil, nação recém-formada, de como deveria ser a nacionalidade brasileira, aliada ao que esta deveria ter em sua literatura?

Na Europa, o processo de nacionalização, por seu turno, ainda era relativamente recente. Assim, a “prescrição”, sobretudo da França, para a literatura brasileira poderia se derivar do fato de que o Brasil era visto como uma “nação” que, embora recém-formada, passava a integrar o “resto do mundo ocidental” (Rouanet, 1991, p. 247) por meio de um dos seus valores mais caros: a nacionalidade. No entanto, a admissão ou inclusão do Brasil na “sociedade civilizada” do Ocidente é mediatizada pelo “exotismo”: de um lado, ele é “igual” aos países europeus, na medida em que, como aqueles, é uma nação devidamente constituída, e de outro lado, é o “diferente”, o “exótico”, o “lá” — é o “Novo Mundo”. Como diz Maria Helena Rouanet: “(...) por mais paradoxal que isto possa se mostrar, os brasileiros seriam grandes porque seriam como os europeus, exatamente por serem diferentes destes...” (op. cit., p. 242).

Dessa forma, o Brasil, ex-colônia portuguesa, não deveria, mesmo detentor de uma nacionalidade, ter o mesmo status das nações europeias. Daí, então, ocorre a “prescrição” — não aleatoriamente ditada pelo Velho Mundo — daquilo que o Brasil deveria ter em sua literatura: a “cor local” e o índio, que surgem assim como elementos diferenciadores entre sociedades desiguais que possuem porém idêntico status quo: o de Nação.

O Romantismo brasileiro, assumindo a tarefa ditada pelo Velho Mundo, e deixando de lado a sua condição de ficcionalidade para ser “documento”, pretende se tornar também “narrativa histórica” da nacionalidade brasileira. Na perspectiva de Hayden White (1994), porém, as narrativas históricas, tomadas por ele como construtos essencialmente ficcionais, não são a própria História, mas apenas “representações” dela. Ou seja, para ele, os textos históricos se constituem em artefatos literários, “representando” a História por meio de diversas formas de “urdiduras de enredo” (White, op. cit., p. 100). De modo inverso, o Romantismo no Brasil, enquanto “texto literário”, faz as vezes de “artefato histórico”, se tornando, pois, “representação” de uma nacionalidade cujo caráter surge como essencialmente ficcional.

Para Luiz C. Lima (1986), o papel desempenhado pelo Romantismo brasileiro de ser “documento” da nacionalidade “terminava por empanar e comprometer a possibilidade de entendimento da literatura como forma discursiva” (op. cit. p. 231). No entanto, segundo o próprio autor, o restabelecimento desta “forma discursiva” — ou seja, da especificidade literária, que remete ao seu caráter intrínseco de ficcionalidade — somente foi possível a partir do início do século atual, com o “fracasso do espírito positivista”, que servia de paradigma à “historiografia literária e [ao] cânone realista do século XIX” (op. cit.,p. 232). Assim, dentro dessa perspectiva, o paradigma de uma época não deve ser tomado como parâmetro de análise de outra época — ou seja, o Romantismo brasileiro não deve ser visto à luz do paradigma literário contemporâneo, que possui uma visão da literatura diversa daquela do século passado. É o próprio Costa Lima que defende essa ideia, quando estabelece a noção de “ângulo de refração” do eu empírico: 

Pela expressão ‘ângulo de refração’ queremos dizer que sua abertura para a alteridade não é absoluta, senão que restringida pelo horizonte coberto por sua própria escala de valores. (Se os heróis de Brecht não têm necessariamente de ser comunistas, em troca não poderíamos imaginar que algum fosse um convicto nazista, sofrendo de má consciência). (Costa Lima, p. 232) 

Deste modo, o paradigma do século XIX não só admitia o caráter documental da literatura, que “precisava ser dissecada como um fato” (Costa Lima, op. cit., p. 233), mas esta cumpria um papel esperado e, sobretudo, “restringido” por aquele paradigma.

A tarefa, quer imposta ou autoimposta, do Romantismo brasileiro de forjar um duplo conceito — o de literatura e o de nacionalidade — irá ser desempenhada a partir de uma posição de ambivalência, que tem em sua base aquilo que Bhabha (1999) chama de “hibridismo cultural”. Esse fenômeno seria característico dos países periféricos que passaram por um processo de colonialismo, atrelados por força às metrópoles europeias: 

É a partir desse lugar híbrido do valor cultural (...) que o intelectual pós-colonial tenta elaborar um projeto histórico e literário. (Bhabha, cap. IX, p. 242) 

O projeto de identidade histórica e literária do Brasil do século XIX será elaborado, de acordo com esse ponto de vista, numa situação sobretudo marginal — ou seja, fora do centro europeu e ocidental —, tomando porém como molde os próprios valores das metrópoles europeias e ocidentais. O resultado mais visível desse processo é a “fratura formal” a que Schwarz (1977) se refere, e que para Bhabha se constitui nos “elementos incomensuráveis”: 

As hifenações híbridas enfatizam os elementos incomensuráveis — os pedaços teimosos — como as bases das identificações culturais (...). Tais atributos de diferenças sociais — onde a diferença não é nem o Um nem o Outro, mas algo além, intervalar — encontram sua agência em uma forma de um ‘futuro’ em que o passado não é originário, em que o presente não é simplesmente transitório. (Bhabha, op. cit., cap. XI, p. 301, não grifado no original) 

A partir dessa perspectiva, a produção literária do Romantismo brasileiro — e em especial a obra do seu autor mais representativo, José de Alencar — torna-se inserida, simultaneamente, no “tamanho fluminense” e nos valores importados — ou talvez impostos — da ideologia liberal europeia. Essa dupla inserção irá se constituir no aspecto por excelência contraditório do Romantismo brasileiro, assumindo grande visibilidade nos textos alencarinos e se tornando, paradoxalmente, o maior legado para a literatura brasileira: 

De fato, a fratura formal em que insistimos, e que Alencar insistia em produzir, guiado pelo senso do ‘tamanho fluminense’, tem extraordinário valor mimético, e nada é mais brasileiro que esta literatura mal-resolvida (...). Para a tradição de nosso Realismo, é o seu legado mais profundo. (Schwarz, 1977, p. 48-49) 

Essa condição de dupla inserção da recente “pós-colônia”, refletida em sua literatura romântica, será, pois, fundamental para a compreensão daquele período literário, abrindo, ao mesmo tempo, perspectivas de análise para a própria literatura contemporânea no Brasil: 

A pós-colonialidade, por sua vez, é um salutar lembrete das relações "neocoloniais" remanescentes no interior da "nova" ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional. Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistências. Além disto, no entanto, a crítica pós-colonial dá testemunhos desses países e comunidades — no norte e no sul, urbanos e rurais — constituídos, se me permitem forjar a expressão, "de outro modo que não a modernidade". Tais culturas de contra-modernidade pós-colonial podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças  para "‘traduzir", e portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da modernidade. (Bhabha, 1998, Introdução, p. 26)

            Por todo o exposto, conclui-se que o período romântico brasileiro constitui uma importante e inesgotável fonte de estudos, cujas questões, largamente suscitadas, longe de estarem totalmente resolvidas e/ou esgotadas, apenas intensificam e ampliam o debate sobre o tema.  

BIBLIOGRAFIA 

ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1987 (Coleção Academia Brasileira).

____________ . Iracema (Lendas do Ceará); Lucíola. São Paulo: Editora Três, 1972. 

____________. Pós-escrito à segunda edição. In: Iracema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988 (Col. Romances para Estudo). 

____________ . Senhora. São Paulo: Ática, 1977. 

BHABHA, Homi K. O local da  cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de L. Reis, Glauce R. Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 

BERNARDO, Gustavo. Lúcia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 

BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 

CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Engendering Nationality. Revista Matraga, n. 12, 2º sem. 1999 (versão disponível na Internet em http://www.2uerj.br/~pgletras). 

CÂNDIDO, Antônio. Um instrumento de descoberta e interpretação; Os três Alencares. In: Formação da literatura brasileira. Vol. 2. São Paulo: Martins, 1971. 

COSTA LIMA, L. Documento e nacionalidade no Brasil; O superego europeu e a domesticação do ficcional. In: Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. 

HUTCHINSON, Peter. Jogos com o leitor. Trad. de Antônia C. de A. Pires. In: DUARTE, L. P. (Org.) Algumas traduções de textos sobre ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: NAPq/FALE/UFMG, dez.1994 (Cadernos de Pesquisa, n. 22). 

JOBIM, José L. História da literatura. In: A poética do fundamento: ensaios de teoria e história da literatura. Niterói: EDUFF, 1996. 

__________. (Org.) Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. 

ROUANET, Maria Helena. Pátria amada, pátrio poder. In: Eternamente em berço esplêndido: A fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991. 

SANTIAGO, Silviano. Eça, autor de Madame Bovary. In: Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978. 

______________. Liderança e hierarquia em Alencar. In: Vale quanto pesa (ensaios sobre questões político-culturais). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 

SCHWARZ, Roberto. A importação do romance e suas contradições em Alencar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. 

WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EdUsp, 1994 (Ensaios de Cultura, vol. 6). 

ZILBERMAN, Regina. História da literatura romântica e o nacionalismo enquanto cânone. In: Cânones e contextos. Anais do V Congresso da Abralic. Rio de Janeiro: Abralic, 1997.


[1] Martim raramente é descrito tomando banhos. Nos primeiros capítulos, em oposição ao banho de Iracema, ele apenas “lava o rosto e as mãos”.

[2] Aqui, consideram-se, para efeito de análise, as contradições entre Iracema e as “notas” apostas ao texto, partes integrantes da própria obra.

[3] Para algumas religiões orientais, as almas “transmigram” de um corpo para outro, num processo chamado “metempsicose”, podendo reencarnar em um corpo humano, em um animal ou em um vegetal. O ponto de vista metempsicótico, em José de Alencar, aparece claramente em uma passagem do prefácio a Sonhos d’Ouro:  “(...) A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem (...)” [trecho citado por Afrânio Coutinho em Apresentação a Como e porque sou romancista  (Alencar, 1987, p. 9). Não grifado no original].

0 Comments:

Post a Comment

<< Home