Inventário dos utensílios: a manteigueira, as chávenas, o açucareiro.
I
"O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananas-maçãs. Todos os domingos punha-se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia; mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez-lhe compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora, cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração. Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo, para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga.
No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes.
— Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez.
— Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma ninhada.
— É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina de chocar ovos...
— Já sei; para tirar os pintos sem galinha.
— Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é coisa mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos, galinhas e frangos.
— Grandes?
— Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira. Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não acabar!
A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é sem dúvida o melhor adubo."
(José de Alencar, 1872, Sonhos d’Ouro, cap. IV)
II
"Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada, em julho contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto de um cavalo de aluguel, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos de um rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no ministério, em comissão. Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!"
(Eça de Queirós, 1878, O primo Basílio)
III
"As negras serviam as infindáveis sobremesas. Ester propôs que tomassem o café na sala. Virgílio levantou-se rapidamente, tomou da cadeira da qual ela se levantava, puxou-a para trás fazendo espaço para ela sair. Horácio olhava com certa longínqua inveja. Maneca Dantas admirava os modos do advogado. Considerava que a educação era uma grande coisa. E pensou nos filhos e os imaginou, no futuro, iguais ao Dr. Virgílio. Ester saía da sala, os homem a seguiram.
Chuviscava no campo, um chuvisco miúdo, atravessado pela claridade da lua. As estrelas eram muitas, nenhuma outra luz empanava sua luz celeste. Virgílio chegou até a porta, andou um passo na varanda. Felícia entrava com a bandeja de café, Ester servia o açúcar. Virgílio voltou, fez a consideração como se declamasse um poema:
- Só na mata se vê uma noite tão bela...
- Está bonita, sim... - apoiou Maneca Dantas que mexia sua xícara de café. Voltou-se para Ester: - Mais uma colherzinha, comadre. Gosto de café bem doce...Mais uma vez atendeu ao advogado. - Muito bonita a noite e essa chuvinha ainda dá mais graça... - fazia força para acompanhar o ritmo que Virgílio e Ester emprestavam à conversa. Ficou contente porque teve a impressão de que dissera uma frase parecida com as deles.
- E o doutor? Pouco ou muito açúcar?
- Pouco, dona Ester... Basta... Muito obrigado... A senhora também não acha que o progresso mata a beleza?
- Ela entregou o açucareiro a Felícia, tardou um minuto a responder. Estava pensativa e séria.
- Acho que o progresso também tem tanta beleza...
- Mas é que nas grandes cidades, com a iluminação, nem se vêem as estrelas... E um poeta ama as estrelas, dona Ester... As do céu e as da terra...
- Mas há outras noites que não são de estrelas...agora a voz de Ester era profunda, vinha do coração. - Nas noites de tempestade é horroroso...
- Deve ser terrivelmente belo... - a frase subia pela sala, dançava diante de todos. Completou: - É o belo horrendo...
- Talvez... - disse Ester. - Mas eu tenho medo nessas noites - e o olhava com um olhar súplice, como a um amigo de largos anos.
Virgílio viu que ela já não representava e teve pena, imensa pena. Foi nesse momento que pousou os olhos nela com doçura e com verdadeiro interesse. E os pensamentos risonhos e astuciosos de antes desapareceram substituídos por algo mais sério e mais profundo."
(Jorge Amado, 1943, Terras do Sem Fim, cap. 7 de “A Mata”)
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