Domingo, Maio
Isabel Pires
O marido acordou esquisito. A mulher também, mas quis fazer tudo como de costume. Errou, porém, a quantidade do pó, e o café ficou perdido, o que aumentou o constrangimento do homem, a xícara quase intacta esfriando sobre a mesa da cozinha, enquanto ele desdobrava o jornal à cata de alguma notícia alarmante, alguma catástrofe natural de grandes proporções, um escândalo público, um crime hediondo. Algo que pudesse abafar o grito dentro do peito. Sem mágoa, silenciosamente a mulher retirou a xícara cheia de café bem preto da mesa. Lá fora, os pardais rejubilavam-se ao sol claro da manhã de domingo (era domingo), e o homem lembrou-se de ir para a frente da casa, para aquecer-se um pouco ao sol branco do outono (era maio). Largou o jornal sobre a bancada de alvenaria que contornava o pequeno jardim e sentiu a necessidade que as plantas tinham de serem regadas, o frio seco crestando as folhas das roseiras cultivadas com tanto esmero pela mulher.
Na cozinha, ela lavava a louça do café, enquanto pensava no que fazer para o almoço. Almoço de domingo. Há quanto tempo não sabia mais o que era isto? Ela e o marido eternamente de dieta. A filha caçula, a única que ainda morava com eles, tinha ido dormir na casa do noivo, não iria aparecer antes das sete da noite.
Na frente da casa, empunhando o velho regador de plástico azul cheio d’água, o marido molhava as plantas, sentindo-se meio deslocado nesta tarefa. O carro verde-escuro descansando na garagem, num domingo verde-claro como aquele. Até que ele se cansou e entrou. Desajeitado, sentou-se novamente à mesa da cozinha, observando a mulher abrir e fechar as portas dos armários e da geladeira, fazendo limpezas desnecessárias. A mulher olhou para ele. E viu-lhe as olheiras, que denunciavam as noites mal dormidas, as idas e vindas constantes ao hospital, a espera infindável do desfecho que parecia não querer vir nunca. Viu os olhos muito azuis dele, herança da mãe, marejarem um instante, desamparados, e sabia que tudo que dissesse não poderia servir, em absoluto, de consolo. Aproximou-se dele e apenas pousou a mão em seu ombro.
O telefone tocou. Era a Zélia, avisando que iria render a Carmem junto ao leito da mãe. Não, não havia nenhuma novidade. A não ser aquela espera desesperançada que Antônio, o filho mais velho de Dona Clotilde, sessentão já, não sabia mais como suportar. Ele voltou ao jardim e, enquanto observava as gotículas que escorregavam mansamente pela pele das rosas recém-aguadas, reviu, nítido, todos os domingos passados na casa da mãe, que, agora, agonizava no hospital. Reviu o dia em que levara, orgulhoso, seu primeiro neto para a mãe conhecer. O segundo neto. E o terceiro. As irmãs, mais novas que ele, também levavam aos poucos os seus próprios netos. E os bisnetos da Dona Clotilde se multiplicavam. As comidas sobre o fogão também. Enormes panelas onde a velha depositava suor e amor, no sagrado almoço do domingo na “casa da vovó”.
— Meu filho, cadê a Tereza?
— Ela não vem, mãe. Foi para a casa do pai dela, não lembra?
Dona Clotilde se inquietava um instante, os olhos extremamente azuis piscando muito, perturbada. Depois, a ausência de Tereza ia se diluindo pela tarde cheirando a biscoito de polvilho assado com açúcar e canela e café fresquinho, a criançada desafiando o cachorro preso no fundo do quintal.
À beira do jardim bem cuidado, Antônio revia a mãe se enrugando lentamente, os olhos azuis perdendo o viço, o cabelo virando um chumaço de algodão. Era como um espelho para ele, que também se ia encolhendo, a calva cada vez mais calva, os músculos flácidos, problemas de saúde de toda sorte, colesterol, diabetes, pressão alta. O diabo. O tempo infiltrava-se em sua arquitetura e provocava vazamentos por todos os lados. O edifício ruía. Via a mãe se desfazendo lentamente. “Meu filho, meu filho. Meu filho!”. E o mundo à sua frente também se desfazia numa mancha colorida em que as rosas vermelhas, amarelas e brancas do jardim subitamente se fundiam contra o fundo verde. Antônio chorava.
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