O Estrangeiro
Isabel Pires
Cena banal: um homem e seu cachorro. É noite. O homem traz o pequeno cão pela coleira e a toda hora o puxa para perto de si, mas o animal, atiçado pelo odor invisível da calçada, segue uma trilha que só a ele é dada a perceber. O homem, no entanto, o traz à rédea curta, frustrando os seus intentos. Passo por eles com certa margem de cautela. O homem (voz rouca): “Bono diê mei-ni-na”. “Como?”. Ele olha em direção ao céu escuro e fumacento, enquanto a luz pálida do poste cai sem piedade sobre a cabeça do estrangeiro. É uma cabeça esquisita, em cujo olhar lampejam coisas de remotos lugares. E dentro dela talvez passem filmes ruins, terríveis, dos quais ele não possa se libertar. O estrangeiro move a cabeça, sacolejando todo o seu conteúdo, mas, como o cão a seus pés, não pode fugir, condenado para sempre às mesmas cenas. “No, no”, corrige-se ele, “bona notche, senhô-rra”. E lamento que desta vez ele tenha tão bem acertado.
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