Tuesday, July 20, 2021

O terceiro grande momento cético: Bertrand Russell

Isabel Pires

Se o “segundo grande momento” da história do ceticismo é, reconhecidamente, caracterizado pelo surgimento da obra de Montaigne no Renascimento francês, após um período de dez séculos de obscurantismo quebrado apenas pelo nominalismo de Guilherme de Occam[1] no início do século XIV –, pode-se considerar que um terceiro grande momento cético ocorre com o pensador inglês Bertrand Russell, cuja obra começou a ser publicada ainda em finais do século XIX e perdurou até 1969, com a publicação do terceiro e último volume de sua autobiografia. O pensamento de Bertrand Russell é, pois, contemporâneo dos principais eventos ocorridos no século XX, e que deram conformidade a esse século: a revolução socialista, a ascensão do nazi-fascismo, as duas Grandes Guerras que sacudiram a Europa e tiveram reflexos em diversas partes do mundo, o advento da guerra fria, a emergência dos Estados Unidos como superpotência, a corrida espacial, entre outros. Dono de uma extensa obra, em que aborda desde matemática a filosofia, política e religião, Bertrand Russell talvez seja o pensador que melhor corporifique o “espírito de época” do século XX – um século de dúvidas e incertezas, em que os parâmetros positivistas da ciência, tão eficazes no século anterior, cedem lugar definitivamente ao relativismo einsteiniano.

Em tal contexto, Bertrand Russell não poderia mais ser um fideísta, como o cético Montaigne, que, no final do século XVI, aderiu irrestritamente ao catolicismo. Ao contrário, num mundo sem outros deuses que não os tecnológicos e sem outro sentido que não o do mercado, Bertrand Russell irá colocar em xeque a religião, vista por ele como essencialmente perniciosa à humanidade, tema tratado em Mysticism and Logic and Other Essays (1918) e Religion and Science (1935).  A própria existência de Deus é questionada, em Why I am not a Chistian, coletânea de ensaios publicada em 1957. A preocupação com a civilização industrial do Ocidente e com a guerra gerada no seio dessa mesma civilização é uma constante em seu pensamento, em obras como Justice in War-time (1916), The Prospects of Industrial Civilization (1923, em colaboração com Dora Russell), Icarus, or the Future of Science (1924), The Impact of Science on Society (1952), Common Sense and Nuclear Warfare (1959), e Has Man a Future? (1961).

Inicialmente identificadas com o pensamento lógico-analítico, as ideias de Russell mostrarão possuir uma base essencialmente cética. Afastado tanto da posição extremista do pirronismo quanto do fideísmo montaigniano, Russell adota porém um dos pressupostos céticos mais fundamentais: o de levar em conta aquilo que é evidente e compartilhado por todos – ou seja, os fenômenos, as aparências –, adequando-o para um ceticismo que ele denomina “racional”:

Assuntos existem a respeito a respeito dos quais concordam os que os investigaram; as datas dos eclipses podem servir de exemplo. Outros há sobre os quais os peritos não concordam. Mesmo quando concordam todos os peritos, podem estar enganados. A opinião de Einstein relativa ao grau de curvatura da luz, causada pela gravitação, seria rejeitada por todos os peritos vinte anos atrás, e no entanto demonstrou-se correta. Quando unânime, todavia, a opinião dos peritos deve ser aceite pelos não-peritos como mais provavelmente certa do que a opinião oposta. O ceticismo que eu advogo reduz-se a isto: 1) que quando os peritos concordam, a opinião contrária não pode ser considerada certa; 2) que quando não concordam, nenhuma opinião pode ser considerada certa pelo não-perito, e 3) que quando todos afirmam não haver base suficiente para uma opinião positiva, o melhor que o homem comum tem a fazer é reservar seu julgamento. (RUSSELL, 1955, p. 10)

Percebe-se assim que a suspensão cética do juízo, presente na tradição do ceticismo desde suas origens, serve de fundamento às ideias de Russel, expressa na afirmação de que, na ausência de bases suficientes para o estabelecimento definitivo de uma determinada opinião, “o melhor que o homem comum tem a fazer é reservar seu julgamento” – ou seja, suspender o juízo. Além deste claro argumento a favor da époké, a suspensão cética do juízo, o pensador inglês propõe em sua autobiografia, publicada em três volumes entre 1967 e 1969, um decálogo que encerra um código de conduta:

1. Não tenhas certeza absoluta de nada. 

2. Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz. 

3. Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza terás sucesso. 

4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória dependente da autoridade é irreal e ilusória. 

5. Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas. 

6. Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te. 

7. Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas. 

8. Encontres mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda. 

9. Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la. 

10. Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.

Aparentando, segundo o autor, “complementar” os dez mandamentos do judaísmo-cristianismo, ou ser uma espécie de paródia deste, o decálogo de Russell remete ao Dez modos de Enesidemo, filósofo cético grego que viveu provavelmente entre 80 a. C. e 130 da era cristã. Em seus “modos” (ou “tropos”), Enesidemo busca evidenciar a relatividade do conhecimento filosófico e a incapacidade dos sentidos para apreender a real natureza dos objetos, colocando em destaque ainda a “realtividade das circunstâncias” na apreensão do conhecimento. Ao lado dos Oito modos, também de Enesidemo, e dos Cinco tropos de Agripa, os Dez modos constituem a chamada “bateria cética” do pirronismo. No século III, Sexto Empírico, o representante máximo do ceticismo antigo, compilou esses “modos” céticos em sua obra Hipotiposes pirronicas, tornando-os conhecidos no Renascimento, quando, em 1562, o editor francês Henri Estienne publica a obra de Sexto Empírico, traduzida do grego para o latim.

O decálogo russelliano também aproxima-se do preceito do ceticismo grego que estabelece que os céticos devem seguir “um tipo de argumento de acordo com o manifesto, que nos ensina a viver segundo os costumes pátrios, as leis, os ensinamentos recebidos e os sentimentos naturais” (Empírico, 1993, p. 58). Esse preceito remete ainda à necessidade de se adotar uma espécie de “roteiro prático” que possa auxiliar a orientação humana no mundo. A “moral provisória” de Descartes[2] também encerra este mesmo princípio. De caráter essencialmente cético, essa moral tem por finalidade auxiliar Descartes na etapa de investigação, quando o filósofo coloca em xeque as opiniões existentes, inclusive as suas próprias:

(...) formei para mim mesmo uma moral provisória que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos participar. / A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. (Descartes, 1996, p. 83)

             Embora devamos a Pirro (300 anos-a.C.) a elaboração do método do ceticismo filosófico, o  primeiro grande cético é Sexto Empírico, que, no século III, compilou, em sua obra Hipotiposis pirronicas, o que se conhecia do ceticismo desde Pirro, passando pelos céticos acadêmicos, como Arcesilau, e pelos dialéticos, como Enesidemo e Agripa. Sexto Empírico, representante máximo do ceticismo antigo, ao discutir a existência da divindade, lança mão da dialética – recurso muito praticado por ele e outros céticos, como Enesidemo e Agripa – para chegar à conclusão de que “tanto pode ser que os deuses existam ou não”. Ou seja, praticando uma radical suspensão cética do juízo, Sexto Empírico se coloca a igual distância de ambas as possibilidades: da existência ou não existência da divindade.

            Durante o Renascimento, no segundo momento cético, do qual Montaigne é a figura por excelência, a époké é praticada somente com relação ao conhecimento humano, isto é, suspende-se o juízo diante dos argumentos da razão. Quando o assunto é religião, ocorre uma separação, no pensamento cético renascentista, entre fé e razão, o que permitirá que Montaigne se torne um fideísta, aderindo irrestritamente ao catolicismo. Mesmo antes de Montaigne, Guilherme de Occam, pensador cético bastante expressivo do final da Idade Média, também já havia aderido à fé cristã, separando radicalmente o pensamento racional, que na verdade é o único a sofrer os efeitos da suspensão cética do juízo.

            Ao contrário dos céticos que lhe antecederam, Bertrand Russel não se coloca à igual distância da possibilidade da existência divina, e muito menos adere ao fideísmo. Seu “ceticismo racional” é, também, um “ceticismo ateísta”, na medida em que ele apresenta as razões de sua descrença, chegando mesmo a enumerar, no ensaio Por que não sou cristão, “evidências” que, para ele, seriam provas da não existência divina. 

A busca da felicidade terrena          

                Fiel aos ideias de Pirro, que, no século III a. C. fundou o ceticismo como método filosófico de alcançar a felicidade, para Bertrand Russel a felicidade humana não é algo que possa ser usufruída apenas depois da morte, como preconiza a maioria das religiões, mas algo que deve ser alcançado no mundo:

Penso que quando morrer, eu me putrefarei e nada em mim sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharei os calafrios de terror ao pensamento da aniquilação total. A felicidade não é, absolutamente, menor e menos verdadeira, apenas porque deve, necessariamente, chegar a um fim, e tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor, por não serem eternos. (Bertrand Russell)

 O pensamento libertário e sobretudo humanitário de Bertrand Russell rendeu-lhe o prêmio Nobel de literatura, em 1950.


BIBLIOGRAFIA

DESCARTES, René. “Discurso do método”. In: ___________ . Vida e obra. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jr. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 61-127.

EMPIRICO, Sexto. Esbozos pirrónicos. Introducción, traducción y notas de Antonio G. Cao e Teresa M. Diego. Madrid: Editorial Gredos, 1993.

RUSSELL, Bertrand. Ensaios céticos. Trad. Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955.

_______________ . “Por que não sou cristão”. In: RUSSELL, Bertrand. Ensaios escolhidos. Seleção de textos Hugh Mattew Lacey. Trad. Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 205 a 222. (Col. Os Pensadores)

_______________ . The Autobiography of Bertrand Russell, 3 vols., London: George Allen & Unwin, 1967–1969.



[1] O frade franciscano inglês Guilherme de Occam foi acusado de heresia e julgado pela corte de Avignon, em 1324, por ter defendido posições contrárias ao dogmatismo teológico tomista da Igreja. As ideias de Occam, sintetizadas na chamada “navalha de Occam”, que questiona a noção de “essência” e a existência dos “universais” – para ele, apenas conceitos, isto é, palavras –, tiveram o poder de abalar a ordem eclesiástica tradicional, ao evidenciar a relatividade do conhecimento, que só pode ser adquirido através da experiência sensível.

[2] Embora não seja considerado cético no sentido estrito do termo, Descartes utilizou a “dúvida cética” como método de conhecimento para garantir a existência de Deus e a imortalidade da alma. É no Discurso do método, texto fundamental para o desenvolvimento posterior de toda a ciência moderna, que Descartes adota, para seu uso particular, a “moral provisória”. 

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