Friday, October 21, 2011

Raquel, depois que Ricardo foi embora1

Isabel Pires

O zumbido era ensurdecedor, rodopiando dentro de suas têmporas. Aos poucos, foi abrindo os olhos, e se deparou com aquela escuridão gelada e constante, rompida por um tênue fio de luz que penetrava pela rachadura da porta, lá em cima. Manhã? Tarde? Não saberia dizer. Tentou consultar o delicado relógio de pulso folheado a ouro, e ficou na mesma. Com toda aquela claridade, os ponteiros se confundiam, ficavam do mesmo tamanho e se embaralhavam, marcando horas fantasmagóricas. Para quê, afinal, precisava saber das horas?, refletia, consciente da sua condição de enterrada-viva. Mas não queria pensar. Sua cabeça doía, latejando uma dor lancinante, e isso era tudo. A garganta também doía, dilacerada, brasa viva dentro do seu corpo.
— Miserável! – o som rouco e quase inaudível de sua voz parecia rolar sem forças pelo ar rarefeito, ecoando tropegamente pelas partículas de poeira que infestavam o cubículo.
— Ele me paga! – me paaaaga, meeeee pagaaaaa – o som parecia se esbater pelos cantos e retornar, esfarrapado, espectro de si mesmo, assustando-a mais.
Vasculhou mais uma vez a bolsa, à procura do celular, em vão. Evidentemente, ele o havia retirado de lá, num momento de distração. Falha imperdoável. Como fora deixar se impressionar por velhos túmulos rachados e anjos de pedra decapitados? Que vacilo. Sem dúvida, fora imprudente ao extremo. Não podia se perdoar. Mordia os lábios, desesperadamente, constatando a sua demência. Sim, fora completamente idiota. Então não sabia que não podia confiar nele? Seu estômago também doía terrivelmente. Fumara todos os cigarros que haviam restado. E agora?
Deixou a cabeça pender, recostada à parede fria, os braços inermes ao comprido do corpo. Por um momento, sentiu-se, de fato, morta, e imaginava-se cinzenta e imóvel, dura e fria, perfeitamente integrada ao quadrilátero mortífero, envolvida pelos miasmas fétidos que se desprendiam vagarosamente da pedra das gavetas dos mortos em desintegração. Também ela desintegrando-se lentamente. Mas a dor espalhada pelo corpo pulsava quente, inquieta, anunciando-lhe misteriosamente que ainda vivia.
Ouviu um ruído repentino, longínquo. Ficou atenta.
— Ricardo? – ousou pronunciar o nome dele, um jato quente subitamente bombeando um sangue renovado em suas veias. Elas pulsavam, parecendo querer saltar. Sim, estava viva.
Aos poucos, conseguiu identificar o ruído: pareciam fracos pingos de chuva, tamborilando longe, em algum lugar lá fora. Fechou os olhos, apurando bem o ouvido. Porém, mais que o barulho fraco da chuva, que chegava dilacerado lá de fora, o cheiro vivo de terra molhada penetrava ardente e forte em suas narinas, poderoso, invadindo-a toda. Sim, estava viva.
Ela riu, histérica, uma risada descompassada e idiota, risada de quem já havia ultrapassado, de há muito, o precipício do desespero. Não, estava morta. E visualizou seu próprio esqueleto, metido nos farrapos da roupa que um dia fora elegante, sufocado junto com os restos da pequena capela pela fúria violenta da vida, as plantas se enroscando pelas paredes externas, disputando espaço, abafando as cores esmaecidas da morte com seu verde de vida. Via com terror um tufo de cabelos displicentemente caído ao lado do crânio a descoberto e, ridiculamente, o relógio de ouro, circundando com folga o pulso de osso. Ainda marcaria, implacavelmente, as horas?
Não, não estava morta, parecia ouvir dentro de si. Seu coração batendo angustiado dentro do peito, descompassado embora, mas vivo. Esmurrou com força as paredes, apenas para aquecer o sangue congelado nas veias, a pele fina mal recobrindo o sentimento de revolta em seus pulsos cerrados. Também eles doíam agora. Isso era, de algum modo, bom. Pela dor, podia sentir que ainda existia. Sentia que devia agarrar-se a este fio de esperança, ainda que fosse simplesmente para morrer no instante seguinte. Morta-viva, viva e morta, apenas isso.



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[1] Uma continuação do conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles.

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