Com Netuno em alto mar
Costumava sonhar com o mar – um mar revolto, em fúria, de ondas gigantes, inquietas, que devoravam tudo, tragando casas, pontes, pessoas, bichos. Outras vezes, estava à deriva, em mar alto, náufraga, sem porto onde ancorar. Minha porção portuguesa, feita de sal, nestas ocasiões acordava tremendo, e, banhada em suor, secretamente orava a Netuno, rogando-lhe clemência. Consultei o oráculo, às páginas mil e tantas: o mar era o inconsciente. Força poderosa, selvagem. Incontrolável. Ontem sonhei de novo com o mar. Mas desta vez foi diferente. Havia barquinhos, delicadamente pousados sobre a face plácida das águas, e o mar era um imenso cartão-postal em 3D. Suave luz arejava a paisagem, da qual eu podia dispor à vontade. Graduava a luz, misturando os tons. Trocava os barcos de lugar. Com um dedo, dava-lhes um peteleco, e eles viravam. Acordei trêmula, soluçando.
Da coletânea ainda não publicada menos ainda escrita, Pequenos guardados e perdidos.
(Também em: Revista Inimigo Rumor nº 16, 1º semestre 2004, p. 118)
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