Monday, January 08, 2024

Os cem contos que amei ler IV (In progress. Serão colocados mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.

61. Anão de jardim (Lygia Fagundes Telles) 
62. No te pongas sentimental (Arnaldo Bloch) 
63. Carta de Paris (Ana Cristina Cesar) - poema em prosa sobre o poema Le Cygne de Charles Baudelaire
64. Solidão (Charles Bukowski)
65. O corpo (Clarice Lispector)
66. Um agregado - Capitulo de um livro inédito (Machado de Assis)
67. O afogado (Rubem Braga)
68. O alienista (Machado de Assis)
69. A cartomante (Lima Barreto)
70. Conto de verão nº 2: Bandeira Branca (Luís Fernando Veríssimo)
71. Dentro da noite (João do Rio)
72. A língua do "p" (Clarice Lispector)
73. Boas maneiras (Paul Karrer)
74. Poesia até o infinito (Lygia Fagundes Telles)
75. Tem base? (Adélia Prado)
76. Em torno de uma beleza insuperável (Antonia Cristina de Alencar Pires)
77. A mulher mais linda da cidade (Charles Bukowski)




Anão de jardim

Lygia Fagundes Telles

A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo) pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do encontro com o amante, ela ficava generosa depois desses encontros, recolheu o Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o preferia ao Miguel que era superficial, confiado, na primeira vez em que me viu levantou a perna e mijou na minha bota.

Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos (preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. O Professor, Hortênsia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia, a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as delicadas entranhas de Hortênsia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal) a patroa e só não foi além porque mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortênsia se desfez dela, mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era superficial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo, o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.

Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto. A madeira do caramanchão também apodreceu debaixo das trepadeiras ressequidas, um dia os homens da demolição entraram aqui para fazer suas avaliações. Olharam o violoncelo, bateram com os nós dos dedos na madeira, Será que isso vai render alguma grana? o mais velho perguntou. O outro fez uma careta, Apanhou muita chuva, não serve nem para o fogo, disse e botou a mão no meu ombro. E este anão rachado? Deixa este por minha conta que eu acabo com ele. Saíram e ficou o silêncio murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi tecer sua teia entre as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam fracas e como se a teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim, tóim. Então a aranha abandonou a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros bichinhos que continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito (rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o mais jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem fingir eficiência, a pressa porque apressado mesmo é o corretor- amante, ontem ele andou por aqui. Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno é grande e está localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio. Quando foi embora no seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem desgrenhada enfrentando bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas fácil de abater, trabalho vai dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à terra, se descabela às vezes quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste caramanchão e eu aqui dentro. Meu avô também era meio arrogante, me disse o Professor certa noite. E riu seu riso breve, nesse tempo ainda ria. É com arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que este peito rachou feito uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um pratinho de biscoitos e a caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na mesinha e fez um ligeiro afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao violoncelo mas com as mãos descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para mim o olhar buliçoso, E como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus ouvidos com duas bolinhas de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu intumescido, inchado, era tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe aquela caneca, Não beba isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para que ela tivesse aquela reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a caneca, soprou a fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve um sorriso descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa o Kobold com seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos (olhos?) para não vê-lo beber o resto do chá.

Vou jogar no clube, ela avisou ao sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!… Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram obedecendo a mesma formação, além de disciplinada a formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna.

Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo, ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de samambaia. Sua música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse meu dono era tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não tomava notas ou então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que acabava perdendo e a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas (blom, blom, blom) refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras e nesses momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá veio cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto, o sabiá soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves que pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um dia, Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele suspirou, Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida, Não estou falando sozinho, estou falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas. Quando não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta levar-lhe os bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer o corretor que acabou seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam (às vezes) ao auge da discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim. A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já devia estar chantageando) ficou completamente de fora.

Amanheceu. Ontem, os homens derrubaram o último muro e hoje será a vez do caramanchão, ouvi os dois combinando, a figueira vai ficar para depois. Deixa o anão comigo, o mais jovem lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo. Sei que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar como a pedra, sei que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-humorado, intolerante, não devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem dos outros, não me amei e nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo eu poderia ser diferente? Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor era delicado, manso de coração mas não era irritante com a sua mornidão? A bondade sem a coragem, sem a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos outros, desses não quero nem falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui mesmo compassivo e assim ainda ouso sonhar com uma outra vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com Deus. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo-espectador mas um discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava as mãos e diz: “Estou inocente do sangue deste justo”. Ah! eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Poncio Pilatos no calcanhar!

As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu de debaixo da pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da morte mas agora é diferente, estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida, está com a cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se defender. Ou atacar. Avançou mais e as pinças dianteiras que sondam e informam — as pinças se imobilizaram endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o combate se ele pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante das cavidades. Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal (macho e fêmea) passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de mãos dadas sob o sol que se escondia, também eles se escondendo.

Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outubro.

(In: A noite escura e mais eu. (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1995).

***


No te pongas sentimental

Arnaldo Bloch 

 

De: Neri – Gerente / Para: Jorg – Controle

Jorg, o setor de suprimento pede pra agilizar o fornecimento das fibras úmidas.

 

De: Jorg / Para: Neri

Ok. 

* 

De: Jorg – Controle / Para: Carter – Fornecimento

Carter, gerência cobra (de novo) remessa das fibras úmidas.

 

De: Carter / Para: Jorg

A bosta do container foi liberada semana passada.

 

De: Jorg / Para: Carter

Então deve ter ficado retida, a bosta.

 

De: Carter / Para: Jorg

Retida na sua bunda. 


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De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle

Almoço no Zé Popó?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Agora não dá.

 

De: Pérola / Para: Jorg

Insisto: quando?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Não sei. Estou afogado.

 

De: Pérola / Para: Jorg

Quando?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Nunca. 


* 

De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex

Chuva de meteoros pode ser observada esta madrugada, por volta de duas horas, na Constelação de Leão. Locais mais altos com pouca iluminação são ideais para o espetáculo. Na certa, todos acordarão mais dispostos para mais uma jornada de trabalho! Então, torçamos para que não chova e uma ótima noite celeste para todos! 


* 

De: Jorg / Para: flor@com

Desculpe escrever assim, mas descobri seu e-mail residencial quase por acaso, anotado num papel caído perto da sua mesa. Se quiser, o papel está comigo, não preciso mais dele, o e-mail já está registrado na minha memória pessoal, na minha cabeça, no meu coração. 


* 

De: “Outra Consultoria” / Para: Grupo 11

Consultoria com 100 anos de experiência em todas as áreas. Para uma visita, é só clicar Reply! Nós daremos o Triply!


* 

De: Marina Rina / Capela / Para: Todos

Oração para todos os dias no arquivo anexo. Enviar para 9 pessoas e aguardar mudanças na vida. 


* 

De: Rabino Michel / Para: Todos

Vamos todos dançar em volta da Torá Virtual! No chat-Simchá-Torá, segunda-feira, às sete horas, www.simchatorá.com.br 


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De: genetic@unimail.com

Meu nome é Melany, tenho 18 anos e muitos parceiros e parceiras, mas meu orgasmo é com garotas. Um orgasmo pobre, filete de gozo. Esse baixo desempenho me faz pensar em algo mais ousado. Joy, um amigo homossexual, conseguiu. Foram meses de tentativas junto ao laboratório, até que o embrião iniciasse um desenvolvimento saudável. Estou na fila, sou uma das próximas. O sonho de criar e cevar a minha cópia, rever a adolescência, tocá-la, recriar meu prazer. Vou tratá-la com carinho, mas longe de tudo, ao abrigo da sociedade, fora da prisão da linguagem. Nada haverá que subverta a sua verdade, a dimensão absoluta da realidade. Então, ela vai me ensinar a esquecer de tudo, a ser que ela é, a reencontrar o meu sujeito primeiro. E então aprenderemos juntas o que é o verdadeiro amor. 


* 

De: Jorg / Para: flor@com

Não vai responder? 


* 

De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex

Jiolino Caldas deixa a empresa. Bolo no Zé Popó. 


* 

De: flor@com / Para: Jorg

Demorei pra responder, mas aí vai: não tem nada a ver, ok? Olha só, colega, comigo, bateu valeu.


De: Jorg / Para: flor@com

Não sei. Não sei, não sei mais falar, não sei escrever, só sei você.

 

De: flor@com / Para: Jorg

Sai desse mundo, meu caro. 


* 

De: Jorg / Para: Neri – Gerente

Neri, estou com um problema gástrico, vou ter que ir embora mais cedo. Amanhã estou aí, ok?

 

De: Neri / Para: Jorg

Ok, Jorg, mas me diga: o problema das fibras úmidas, já resolveu?

 

De: Jorg / Para: Gerente

O Carter está vendo. Houve retenção na alfândega.

 

De: Neri / Para: Jorg

Bom, me dá uma posição até amanhã de manhã sobre essa retenção, ok? 


* 

De: Jorg / Para: Carter

Então?

 

De: Carter / Para: Jorg

Já está liberado, pode ficar calminho, a retenção acabou, agora você já pode cagar. O transporte não tinha soltado a documentação ainda, porra. Fala com o Caligari. 


* 

De: Jorg / Para: Neri

Neri, falei agora com o Caligari e já avisei ao suprimento, tá tudo resolvido. 


* 

De: Administrador do Sistema / Para: Jorg

Não foi possível enviar mensagem para usuário Neri. 


* 

De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários

O gerente Neri está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó. 


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De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle

Não me deixo abater pelo seu “nunca”. Para mim, você é “sempre”. 


* 

De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários

O funcionário Jorg está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó. 

 

 (In: Geração 90: os transgressores. Org. Nelson de Oliveira. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2003, pp. 72-76). 


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Carta de Paris

Ana Cristina Cesar

I

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées. Genet dançando a meia luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bicos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.


II

Paris muda! Mas minha melancolia não se move. Beaubour, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda.

 

(In: Inéditos e dispersos. Org. Armando Freitas Filho. São Paulo: Ática, 1995, pp. 82-84).

 

***


Solidão

Charles Bukowski 

 

Edna estava caminhando pela rua com sua sacola de compras quando passou  pelo carro. Havia um cartaz na janela lateral:

PROCURA-SE MULHER

Ela parou. Havia um grande pedaço de papelão grudado na janela com  alguma substância. A maior parte estava datilografada. De onde estava na calçada, Edna não conseguia ler o aviso. Podia apenas ver as letras graúdas:

PROCURA-SE MULHER

Era um carro novo e caro. Edna deu um passo sobre a grama para ler a parte     datilografada:

Homem, 49 anos. Divorciado. Procura mulher para casamento. Deve ter entre 35 e 44 anos. Gosta de televisão e películas cinematográficas. Boa comida. Sou especialista em custos de produção,  com estabilidade no emprego. Dinheiro no banco. Gosto de mulheres acima do peso.

 

Edna tinha 37 anos e estava acima do peso. Havia um número de telefone.

Também havia três fotos do cavalheiro em busca de uma mulher. Ele parecia bem  sério de terno e gravata. Também parecia estúpido e um pouco cruel. E feito de madeira, pensou Edna, feito de madeira.

Edna se afastou, sorrindo um pouco. Sentia também uma espécie de repulsa.

Ao chegar ao seu apartamento, ela o tinha esquecido. Apenas algumas horas depois, sentada na banheira, voltou a pensar nele e, dessa vez, pensou em como  ele devia estar realmente sozinho para fazer tal coisa:

 

PROCURA-SE MULHER

Imaginou-o chegando em casa, encontrando as contas de gás e telefone na caixa de correio, despindo-se, tomando um banho, a televisão ligada. Então leria o  jornal da tarde. Depois iria para a cozinha preparar sua refeição. De pé, de cuecas, olhando para a frigideira. Pegando sua comida e caminhando para uma mesa, comendo. Bebendo seu café. Então mais televisão. E talvez uma solitária lata de cerveja antes de se deitar. Havia milhões de homens como ele por toda a América.

Edna saiu da banheira, enrolou-se na toalha, vestiu-se e saiu do apartamento. O carro ainda estava lá. Anotou o nome do homem, Joe Lighthill, e o número do telefone. Leu a parte datilografada novamente. “Películas cinematográficas.” Que  termo estranho para se usar. Agora as pessoas dizem “filmes”. PROCURA-SE MULHER. O aviso era muito ousado. Estava diante de um sujeito original.

Quando Edna chegou em casa, tomou três xícaras de café antes de discar o  número. O telefone chamou quatro vezes.

— Alô? – ele respondeu.

Sr. Lighthill?

— Sim?

— Vi seu anúncio. Seu anúncio no carro.

— Ah, sim.

— Meu nome é Edna.

— Como vai, Edna?

— Ah, vou bem. Tem feito tanto calor. Esse tempo está demais.

— Sim, nada fácil.

— Bem, sr. Lighthill...

— Me chame apenas de Joe.

— Bem, Joe, rá, me sinto tão boba. Sabe por que estou telefonando?

— Você viu meu aviso?

— Quero dizer, rá, o que de errado com você? Não consegue arranjar    uma mulher?

— Acho que não, Edna. Me diga, onde elas estão?

— As mulheres?

— Sim.

— Ah, por toda parte, veja bem.

— Onde? Me diga. Onde?

— Bem, na igreja, veja bem. mulheres na igreja.

— Não gosto de igrejas.

— Ah.

— Escute, porque você não vem para cá, Edna?

— Quer dizer para sua casa?

— Sim. Moro em um lugar legal. Podemos tomar um drinque, conversar. Sem pressão.

— Está tarde.

— Não está tão tarde. Escute, você viu meu aviso. Deve estar interessada.

— Bem...

— Você está com medo, é isso. Está apenas com medo.

— Não, não estou com medo.

— Então venha pra cá, Edna.

— Bem...

— Venha.

— Certo. Vejo você em quinze minutos.

 

 

O apartamento ficava no último andar de um condomínio moderno. Número 17.

A piscina abaixo refletia as luzes. Edna bateu. A porta se abriu e lá estava o sr. Lighthill: entradas frontais, nariz aquilino com pelos que saíam pelas narinas, a  camisa aberta na altura do pescoço.

— Entre, Edna...

Entrou, e a porta se fechou atrás dela. Trazia seu vestido azul de seda.

Estava sem meias, de sandálias, e fumando um cigarro.

— Sente-se, vou pegar uma bebida para você.

Era um lugar agradável. Tudo nas cores azul e verde e muito limpo. Ela  ouviu o sr. Lighthill cantarolar surdamente, enquanto preparava as bebidas, hmmmmmmm, hmmmmmmm, hmmmmmmm... Ele parecia tranquilo e isso ajudou a descontrair.

O sr. Lighthill Joe voltou com as bebidas. Alcançou a Edna a sua e então  sentou-se em uma cadeira do outro lado da sala.

— Sim ele disse –, tem feito muito calor, um calor infernal. Mas tenho ar- condicionado.

— Notei. É muito bom.

— Tome a sua bebida.

— Ah, claro.

Edna tomou um gole. Era uma boa bebida, um pouco forte, mas com um gosto agradável. Observou Joe inclinar a cabeça enquanto bebia. Ele parecia ter rugas profundas em torno do pescoço. E suas calças estavam muito folgadas. Pareciam ser de uma numeração muito maior. Davam a suas pernas uma aparência cômica.

— É um belo vestido, Edna.

— Gosta?

— Oh, sim. Você é bem fornida. O vestido fica muito bem em você, muito bem.

Edna não disse nada. E Joe também não. Apenas permaneceram sentados, olhando um para o outro e bebericando suas bebidas.

 

Por que ele não fala?, pensou Edna. É ele quem tem de falar. Havia nele algo    que lembrava madeira, sim. Ela terminou seu drinque.

— Deixe-me preparar outra bebida para você disse Joe.

— Não, realmente está na minha hora.

— Ora, vamos ele disse –, deixe-me preparar outra bebida. Precisamos de  algo para relaxar.

— Tudo bem, mas depois vou embora.

Joe foi até a cozinha com os copos. Ele não estava mais cantarolando.

Voltou, alcançou a Edna um copo e sentou-se novamente em sua cadeira do outro  lado da sala, em frente à cadeira dela. A bebida estava ainda mais forte.

— Sabe ele disse –, me dou bem nesses testes sobre sexo das revistas.

Edna tomou um gole de sua bebida e não respondeu.

— Como você se sai nesses testes? Joe perguntou.

— Nunca fiz nenhum.

— Deveria, sabe, assim você descobre quem e o que você é.

— Acha que esses testes funcionam? vi nos jornais. Nunca fiz nenhum, mas   já vi – disse Edna.

— Claro que funcionam.

— Talvez eu não seja boa em sexo disse Edna –, talvez seja por isso que  estou sozinha.

Ela bebeu um longo gole de seu copo.

— Cada um de nós está, no final, sozinho disse Joe.

— Como assim?

— Quero dizer, não importa quão bem a coisa esteja indo no sexo, no amor ou  em ambos, chega um dia em que tudo acaba.

— Isso é triste – disse Edna.

— Claro que é. Então chega o dia em que tudo acaba. Ou uma separação ou a coisa toda se resolve em uma trégua: duas pessoas vivendo juntas sem sentir      nada. Acho que ficar sozinho é melhor.

— Você se divorciou da sua esposa, Joe?

— Não. Ela se divorciou de mim.

— O que deu errado?

— Orgias sexuais.

— Orgias sexuais?

— Veja bem, uma orgia sexual é o lugar mais solitário do mundo. Essas orgias... fiquei com uma sensação de desespero... aqueles caralhos entrando e  saindo... me desculpe...

— Tudo bem.

— Aqueles caralhos entrando e saindo, pernas enlaçadas, dedos trabalhando, bocas, todo mundo se agarrando e suando e determinados a fazer a coisa toda... de alguma forma.

— Não sei muito sobre essas coisas, Joe – disse Edna.

— Acho que sem amor, sexo não é nada. As coisas só podem representar   alguma coisa quando existe algum sentimento entre os participantes.

— Quer dizer que as pessoas têm que gostar umas das outras?

— Ajuda.

— Imagine que eles se cansem uns dos outros? Imagine que tenham que continuar juntos? Por economia? Filhos? Essas coisas?

— Orgias não os manterão juntos.

— E o que manteria?

— Bem, não sei. Talvez o suingue.

— O suingue?

— Você sabe, quando dois casais se conhecem muito bem e trocam parceiros. Os sentimentos têm, pelo menos, uma chance. Por exemplo, digamos que eu sempre tenha gostado da esposa de Mike. Gosto dela meses. a observei caminhar pela sala. Gosto dos movimentos dela. Os movimentos me deixaram curioso. Imagino, você sabe, o que vem depois desses movimentos. Já a vi braba,   já a vi bêbada, já a vi sóbria. E então, vem o suingue. Você está no quarto com ela, finalmente você a está conhecendo. Há uma chance de algo real. É claro, Mike está com a sua esposa no outro quarto. Você pensa: “Boa sorte, Mike, e espero que você seja tão bom amante quanto eu”.

— E isso dá certo?

— Bem, não sei... Suingues podem causar dificuldades... mais tarde. Tudo tem  que ser combinado... muito bem combinado, antecipadamente. E então pode ter pessoas que não se conheçam bem o suficiente, não importa quanto tenham conversado.

— Você é um desses, Joe?

— Bem, esse negócio de suingue pode ser bom para alguns... talvez seja bom   para muitos. Acho que não daria certo para mim. Sou muito puritano.

Joe terminou sua bebida. Edna bebeu o restante da sua e se levantou.

— Escute, Joe, tenho que ir...

Joe caminhou através da sala na direção dela. Ele parecia um elefante naquelas calças. Ela viu suas orelhas grandes. Então ele a agarrou e começou a beijá-la. Seu mau hálito vencia todas as bebidas. Ele tinha um cheiro muito azedo.  Parte de sua boca não estava fazendo contato. Era forte, mas sua força não era pura, sua força claudicava. Ela afastou seu rosto para longe e mesmo assim ele a mantinha presa.

 

PROCURA-SE MULHER

 

— Joe, me solta! Você está indo muito rápido, Joe! Me solte!

— Para que você veio aqui, sua puta?

Ele tentou beijá-la novamente e conseguiu. Era horrível. Edna ergueu o joelho. Acertou-o em cheio. Ele se dobrou e caiu no tapete.

— Deus, deus... por que você fez isso? Você tentou me matar...

Ele rolava no chão.

Seu traseiro, ela pensou, ele tinha uma bunda tão feia.

Deixou-o rolando no tapete e desceu as escadas correndo. O ar estava limpo lá fora. Ela ouviu pessoas conversando, ouviu seus aparelhos de televisão. Não era uma caminhada muito longa até seu apartamento. Sentiu necessidade de outro  banho, livrou-se do seu vestido de seda azul e se lavou. Então saiu da banheira, secou-se com a toalha e ajeitou os rolos em seus cabelos. Decidiu que nunca mais o veria.

 

[1973]


(In: Ao sul de lugar nenhum: histórias da vida subterrânea. (Contos). Tradução de Pedro Gonzaga. L&PM Pocket, 2010, versão disponível em www.lpm.com.br)


                                                          ***




O corpo

Clarice Lispector

Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado.

Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.

Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra.

Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra.

A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum – com gordas colheres de grosso creme de leite – e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava extremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo.

Nesse dia – domingo – almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e ameixas, tudo úmido e bom.

Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel.

E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados.

E assim era, dia após dia.

Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido.

Passaram-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta.

A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha.

Um dia Xavier chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros.

Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanha. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevidéu, para um hotel de luxo.

Foi uma tal azáfama a preparação das três malas.

Carmem levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma minissaia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas.

Em Montevidéu compraram tudo o que quiseram. Inclusive uma máquina de costura para Beatriz e uma máquina de escrever que Carmem quis para aprender a manipulá-la. Na verdade não precisava de nada, era um pobre desgraçada. Mantinha um diário: anotava nas páginas do grosso caderno encadernado de vermelho as datas em que Xavier a procurava. Dava o diário a Beatriz para ler.

Em Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões.

Então compraram um receituário em castelhano. E se esmeraram nos molhos e sopas. Aprenderam a fazer rosbife. Xavier engordou três quilos e sua força de touro acresceu-se.

Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.

Um dia contaram esse fato a Xavier.

Xavier vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizou-se danadamente.

Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas.

Mas, nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso.

Ao teatro os três não iam. Preferiam ver televisão. Ou jantar fora.

Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava com nojo e vergonha. Sem-vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela casa.

Não se sabe como começou. Mas começou.

Um dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar que estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram cada uma um pedaço de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este corria feito um desesperado, gritando: perdão! perdão! perdão!

As duas, também cansadas, afinal deixaram de persegui-lo.

Às três da manhã Xavier teve vontade de ter mulher. Chamou Beatriz porque ela era menos rancorosa. Beatriz, mole e cansada, prestou-se aos desejos do homem que parecia um super-homem.

Mas no dia seguinte avisaram-lhe que não cozinhariam mais para ele. Que se arranjasse com a terceira mulher.

As duas de vez em quando choravam e Beatriz preparou para ambas uma salada de batata com maionese.

De tarde foram ao cinema. Jantaram fora e só voltaram para casa à meia-noite. Encontrando um Xavier abatido, triste e com fome. Ele tentou explicar:

— É porque às vezes tenho vontade durante o dia!

— Então, disse-lhe Carmem, então por que não volta para casa?

Ele prometeu que assim faria. E chorou. Quando chorou, Carmem e Beatriz ficaram de coração partido. Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeu-se de inveja.

Como é que começou o desejo de vingança? As duas cada vez mais amigas e desprezando-o.

Ele não cumpriu a promessa e procurou a prostituta. Esta excitava-o porque dizia muito palavrão. E chamava-o de filho da puta. Ele aceitava tudo.

Até que veio um certo dia.

Ou melhor, uma noite. Xavier dormia placidamente como um bom cidadão que era. As duas ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava na infância perdida. E pensaram na morte. Carmem disse:

— Um dia, nós três morreremos.

Beatriz retrucou:

— E à toa.

Tinham que esperar pacientemente pelo dia em que fechariam os olhos para sempre. E Xavier? O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo.

— Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? perguntou Beatriz.

Carmem pensou, pensou e disse:

— Acho que devemos as duas dar um jeito.

— Que jeito?

— Ainda não sei.

— Mas temos que resolver.

— Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço.

E nada de fazerem nada. Daqui a pouco seria madrugada e nada teria acontecido. Carmem fez para as duas um café bem forte. E comeram chocolate até à náusea. E nada, nada mesmo.

Ligaram o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. Era piano puro. Carmem disse:

— Tem que ser hoje.

Carmem liderava e Beatriz obedecia. Era uma noite especial: cheia de estrelas que as olhavam faiscantes e tranquilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas para perto de Xavier para ver se se inspiravam. Xavier roncava. Carmem realmente inspirou-se.

Disse para Beatriz:

— Na cozinha há dois facões.

— E daí?

— E daí nós somos duas e temos dois facões.

— E daí?

— E daí, sua burra, nós duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda.

— Não é melhor não falar em Deus nessa hora?

— Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo.

Então foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam força?

Teriam, sim.

Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier.

O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício.

Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor.

E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava.

Então as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova.

E, no escuro da noite – carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava.

Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco.

Beatriz, muito romântica que era – vivia lendo fotonovelas onde acontecia amor contrariado ou perdido – Beatriz teve a ideia de plantarem rosas naquela terra fértil.

Então foram de novo ao jardim, pegaram uma muda de rosas vermelhas e plantaram-na na sepultura do pranteado Xavier. Amanhecia. O jardim orvalhado. O orvalho era uma bênção do assassinato. Assim elas pensaram, sentadas no banco branco que lá havia.

Passaram-se dias. As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam. Quando anoitecia a tristeza caía sobre elas. Não tinham mais gosto de cozinhar. De raiva, Carmem, a colérica, rasgou o livro de receitas em francês. Guardou o castelhano: nunca sabia se ainda não seria necessário.

Beatriz passou a ocupar-se da cozinha. Ambas comiam e bebiam em silêncio. O pé de rosas vermelhas parecia ter pegado. Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido.

E assim ficaria encerrado o problema.

Mas acontece que o secretário de Xavier estranhou a longa ausência. Havia papéis urgentes a assinar. Como a casa de Xavier não tinha telefone, foi até lá. A casa parecia banhada de mala suerte. As duas mulheres disseram-lhe que Xavier viajara, que fora a Montevidéu. O secretário não acreditou muito mas pareceu engolir a história.

Na semana seguinte o secretário foi à Polícia. Com Polícia não se brinca. Antes os policiais não quiseram dar crédito à história. Mas, diante da insistência do secretário, resolveram preguiçosamente dar ordem de busca na casa do polígamo. Tudo em vão: nada de Xavier.

Então Carmem falou assim:

— Xavier está no jardim.

— No jardim? Fazendo o quê?

— Só Deus sabe o quê.

— Mas nós não vimos nada nem ninguém.

Foram ao jardim: Carmem, Beatriz, o secretário de nome Alberto, dois policiais, e mais dois homens que não se sabia quem eram. Sete pessoas. Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida. Três homens abriram a cova, destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana.

E viram Xavier. Estava horrível, deformado, já meio roído, de olhos abertos.

— E agora? disse um dos policiais.

— E agora é prender as duas mulheres.

— Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela.           

— Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.

— Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em Montevidéu. Não nos deem maiores amolações.

As duas disseram: muito obrigada.

E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.

[1974]

            (In: A via crucis do corpo. (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 21 a 28).

***



Um agregado (Capítulo de um livro inédito)

Machado de Assis


Naquele ano de 1855, por uma tarde de Dezembro, indo eu a entrar na saleta onde a minha família costumava passar a sesta, ouvi o meu nome e parei.

— Senhora D. Maria da Glória, V. Ex. persiste em meter o nosso Bentinho no seminário? perguntou o nosso agregado José Dias. 

— De certo. Por quê?

— Pode haver uma dificuldade.

— Que dificuldade?

Espiei pela fresta da porta. Minha mãe despegou o corpo da cadeira, e aguardou a resposta. As outras pessoas que estavam na saleta eram meu tio, o coronel Cosme, irmão de minha mãe, e uma prima, D. Justina, que ali vivia de favor. A casa era na rua do Rezende, um grande prédio de sete janelas, vasto saguão, extensa chácara ao fundo. Era mui bem pintada e algumas salas a fresco, – alguns tetos lavrados. Meu pai, fazendeiro e deputado, já havia trocado a residência de Cantagalo pela do Rio de Janeiro, quando veio a falecer. Minha mãe, depois de viúva, só duas vezes tornou à fazenda; preferia ficar naquela casa, onde as lembranças do marido não eram menores e eram recentes, – perto da igreja onde ele fora enterrado, e cuidando de educar o seu único filho.

Tinha quarenta e dois anos minha mãe. Teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-los da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, xale dobrado em triângulo e afrouxado ao pescoço por um velho camafeu. Os cabelos, em bandós, andavam apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga. Às vezes, trazia touca. Lidava assim, com os sapatos de cordovão, rasos e surdos, abaixo e acima, de um lado para outro, vendo e guiando o serviço dos fâmulos. Ia à missa, aos domingos, e a alguma visita rara e de obrigação. Guardava os vestidos de outro tempo, e as joias que nunca mais pôs, desde que enviuvou. A vida, como a casa, era assim monótona e soturna. Pelas festas de junho consentiam-me um oratório. Nas noites de festa nacional ou religiosa, nas três de S. Sebastião, mandava pendurar luminárias. Tudo o mais contrastava com a vida externa.

A vida externa era festiva, intensa e variada. Tinham acabado as revoluções políticas. Crescia o luxo, abundava o dinheiro, nasciam melhoramentos. Tudo bailes e teatros. Um cronista de 1853 (se não vos fiais em mim) dizia haver trezentos e sessenta e cinco bailes por ano. Outro de 1854 escreve que do princípio ao fim do ano toda a gente ia ao espetáculo. Salões particulares à porfia. Além deles, muitas sociedades coreográficas, com os seus títulos bucólicos ou mitológicos, a Campestre, a Sílfide, a Vestal, e outras muitas chamava a gente moça às danças, que eram todas peregrinas, algumas recentes. A alta classe tinha o Cassino Fluminense. Tal era o amor ao baile que os médicos organizaram uma associação particular deles, a que chamaram Cassino dos Médicos. Hoje, se dançam, dançam avulsos. A Ópera Italiana tinha desde muito os seus anais; no decênio anterior, mais de uma cantora entontecera a nossa população maviosa e entusiasta; agora desfilava uma série de artistas mais ou menos célebres, a Stoltz, o Tamberlick, o Mirate, a Charton, a La-Grua. O próprio teatro dramático mesclava nos seus espetáculos o canto e a dança, árias e duos, um passo a três, um passo a quatro, não raro um bailado inteiro. Já havia corridas de cavalos, um clube apenas, que chamava a flor da cidade. As corridas começavam às dez horas da manhã e findavam à uma da tarde. Ia-se a elas por elas mesmas. A Europa mandava para cá as suas modas, as suas artes, os seus clowns. Traquitanas e velhas seges cediam o passo ao coupé, e os cavalos do Cabo entravam como triunfadores. Modinhas e serenatas brasileiras iam de par com árias italianas. As festas eclesiásticas eram numerosas e esplêndidas; na igreja e na rua, a devoção geral e sincera, as romarias e patuscadas infinitas.

— Que dificuldade? repetia minha mãe.

Não pude ver o gesto do José Dias; mas naturalmente passou a mão pela cara desbarbada e cerrou um pouco os olhos; era o seu gesto sempre que tinha de dizer alguma coisa grave.

— Negócio delicado, replicou; entretanto...

— Entretanto...?

— Entretanto, o perigo é grande, e eu, como amigo desta casa, é natural que a defenda.

— Sim, mas que há?

— Minha senhora, vou direto ao assunto. Não me parece bonito que o nosso querido Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga; e esta é a dificuldade, porque se ele, – com perdão da palavra, – se eles pegam de namoro, v. ex. terá muito que lutar para separá-los, pode crê-lo, e não sei se o conseguirá.

— Não acho nada disso, respondeu minha mãe. Metidos nos cantos?

— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Ele quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê.... Pudera! Quer naturalmente subir; casa rica, casa respeitável, onde é que ele achará genro igual, nem que de longe se aproxime? Compreendo o seu gesto, minha senhora, não se pode admitir que a ideia de semelhante enlace entre na cabeça de homem tão reles, tão ínfimo... Provoca, realmente, uma estrondosa gargalhada.

José Dias riu-se neste ponto, talvez um tanto forçado; logo depois concluiu:

— Não obstante, encontram-se ambições dessas.

— Mas, José Dias, disse minha mãe, tenho visto os pequenos brincarem, não acho nada que faça desconfiar. Basta a idade, ele tem quinze anos, ela mal passa dos treze. São dois criançolas. Não se esqueça que são companheiros de infância. Quando a família Fialho veio para essa casa ao pé, tive ocasião de lhe fazer um favor, e assim começaram as relações entre os pequenos. Pois eu hei de crer que se namorem? Você que diz, mano?

Tio Cosme respondeu com um — Ora! que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias. Ele anda sempre com a cabeça no ar. Os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”

— Sim, acho que José Dias está enganado, concluiu minha mãe.

— Pode ser, minha senhora; mas não falei senão depois de muito examinar. V. Ex. e o digno Sr. coronel estão de boa fé. Conheço o pai da pequena; é um velhaco. A filha não é menos velhaca, apesar de desmiolada. Enfim, cumpro um dever amargo, um dever amaríssimo.

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias, não as havendo, serviam a esticar as frases. Já o conheci agregado à nossa fazenda de Cantagalo, onde aparecera um dia, vendendo-se por médico homeopata; levava uma botica portátil e um manual de medicina. Curou uma escrava e o feitor, mas não aceitou a proposta que meu pai lhe fez de ficar ali com ordenado; agradeceu dizendo que era justo ir levar a saúde à casa de sapé do pobre.

— Mas quem lhe impede de ir? perguntou meu pai.

— Voltarei daqui a dois meses.

Voltou antes de duas semanas, aceitou casa e comida, sem outro estipêndio, salvo o que lhe dessem por festas. Não obstante, marcou-se-lhe um pequeno ordenado. Quando meu pai foi eleito deputado, José Dias veio com ele e a família e teve o seu quarto na nossa casa da rua do Rezende. Um dia, reinando febres em Cantagalo, disse-lhe meu pai que fosse acudir à escravatura. José Dias deixou-se estar calado, soltou um grande suspiro e confessou que não era médico. Usurpara esse título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais curas. “Perdoe-me V. Ex. (concluiu) perdoe-me a mentira com que o enganei, e expulse-me desta casa tão nobre, tão honesta, onde tão indignamente iludi a confiança...” Não foi expulso, nem perdeu as graças da família. Além das maneiras obsequiosas, tinha uma infinidade de préstimos, recados, fazer contas, redigir e copiar cartas, aparar penas, parceiro ao solo e ao gamão, ledor de histórias e de jornais, contador de anedotas, autor e decifrador de charadas e logogrifos. A afeição que mostrou por ocasião da morte de meu pai ainda mais o prendeu ao coração de minha mãe, que não consentiu em despedi-lo, quando ele lhe foi pedir as suas ordens. Era já como pessoa da família. Cuidava de mim com extremos de mãe e atenções de servo.

— Seja o que for, vou metê-lo no seminário o quanto antes.

— Bem, uma vez que v. ex. não perdeu a ideia de o meter no seminário, tudo está salvo. Há de ser um sacerdote modelo; tem muito boa índole e a educação não pode ser melhor. Vai-se perdendo a raça dos bons padres; eu conheci alguns e ainda conheço. V. ex. não teve um caso notabilíssimo na sua própria família, monsenhor Camillo? Ouvi dizer que era grande teólogo. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó foi regente do império. A igreja brasileira tem altos destinos.

— Você o que quer é um capote, disse o tio Cosme. Ande, vá buscar o gamão.

José Dias caminhou para a porta com as suas calças brancas e engomadas, presilhas, rodaque e gravata da moda. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um aro de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço. Juntai a isso um passo vagaroso, não do vagar arrastado dos preguiçosos, mas daquele outro vagar solene, calculado, deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão, e tereis a pessoa do nosso agregado. Um dever amaríssimo!


(Publicado no jornal A República, em 15/11/1896, e posteriormente, com modificações, em Dom Casmurro, sob o título "Capítulo III - A denúncia". Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1899.)

***

 

O afogado

Rubem Braga

 

Não, não pé. Ele se sente cansado, mas compreende que ainda precisa nadar um pouco. cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar braçadas, mas está exausto.

A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim,  sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se aproxima; mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta; não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade em respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.

Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta: é um grito que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal perigo fosse gritar. Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que se não for socorrido morrerá, que, apesar da praia estar  cheia nessa manhã de sábado, o banhista da Prefeitura deve ter se retirado; o horário agora é de morrer, e não de ser salvo. Olha a praia e as  pedras; muitos rapazes e moças, tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A imagem que retém melhor é a de um rapazinho que, sentado na pedra, procura tirar algum espeto do pé.

A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque naquela aflição acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar- se, ao menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o ar não chega a penetrar    nos pulmões, vai até a garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.

Olha ainda para as pedras, e aquela gente confusamente; a água lhe bate nos olhos. Percebe, entretanto, que a água o está levando para o lado das pedras. Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo; mas, apesar de tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado contra as pedras, ainda que se arrebente todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas acha longe demais; de súbito reflete que à sua esquerda deve haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma espécie de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o que houver; isso  é pior do que tudo, essa epilepsia de afogado. Sente-se um animal vencido  que vai morrer, mas está frio e disposto a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a cabeça, não se deixará enlouquecer pelo medo.

Repara, então, que realmente está agora perto de uma pedra, coberta de mariscos negros e grandes. Pensa: é melhor que venha uma onda fraca; se  vier uma muito forte serei jogado ali, ficarei todo cortado, talvez bata com a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir me agarrar da primeira vez não terei mais nenhuma chance.

Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha para trás. Muda de ideia; se não vier uma onda bem forte, não atingirá a pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. então que foi jogado sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma ilhota de pedra também coberta de mariscos. que alguém, em uma pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos  para que saia dali, está em um lugar perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo um prazer extraordinário em estar deitado na pedra, apesar do risco. Quando      chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do que antes o medo do perigo que passou.

“Gastei-me todo para salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada”. Deita-se com a cabeça na areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca perto, gente discutindo uma fita de cinema. Murmura, baixo, um palavrão para eles; sente-se superior a eles, uma idiota superioridade de quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto  de vista tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe no corpo inteiro um infinito  prazer.

 

[1953]

 

(In: 200 crônicas escolhidas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1979, p. 133-136.)

 

***


O alienista

Machado de Assis

CAPÍTULO I

DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, - únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, - explicável, mas inqualificável, - devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.

Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.

Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.

D. Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.

A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto, - e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, - porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.

 

CAPÍTULO II

TORRENTES DE LOUCOS

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.

A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.

Um excelente serviço, corrigiu o boticário.

Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.

Muito maior, acrescentou o outro.

E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!

Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.

Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...

Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!

Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.

Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.

A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado, - e acrescentava, - com o único fim de dizer também uma chalaça: - Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.

Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

 

CAPÍTULO III

DEUS SABE O QUE FAZ!

Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto, - os olhos, que eram a sua feição mais insinuante, - negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:

 Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.

D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu, - um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:

“Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se”. E porque era homem estudioso tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.

Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.

Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.

Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro.

Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência.

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

Quem diria que meia dúzia de lunáticos...

D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

Deus sabe o que faz!

Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.

Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

 

CAPÍTULO IV

UMA TEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.

Um dia de manhã, - eram passadas três semanas, - estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.

Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: - “Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!” - E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.

Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.

Estou muito contente, disse ele.

Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.

Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:

A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.

Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu.

Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; - ou por meio de matraca.

Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão.

De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, - um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, - aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, - desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século.

Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.

E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.

Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:

Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.

 

CAPÍTULO V

O TERROR

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.

Impossível!

Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.

Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...

Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: - “Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga”. Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida. – “Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu”. Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.

— “Agora espero que”... - pensou ele sem concluir a frase.

Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.

Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, - ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que...

Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.

Não?

Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.

A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga: - "Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.

Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.

A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.

Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...

Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.

“Há coisa,” pensavam os mais desconfiados.

Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais, - a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas, - e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro, - um simples albardeiro, Deus do céu!

Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.

De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.

Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.

A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa...

Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.

Não?

Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra. - E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite.

Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! Triste! não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.

A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, - a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, - duas ou três de consideração, - foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, - ou quase toda -, que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes - porque o eminente Bacamarte confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo - D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada, que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas - feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, de mais a mais, sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...

A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.

Sim?

É verdade. Lá está o Mateus...

O albardeiro?

O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...

Tudo isso doido?

Ou quase doido, obtemperou o padre.

Mas então?

O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.

Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.

Três horas depois, cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dois sóis, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito dizia ao ouvido da mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e, provavelmente, de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico, - ou que o adiasse, ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir, consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta ideia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão aspérrimo do Nada", esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...

“Pobre moço!” pensou o alienista. E continuou consigo: “Trata-se de um caso de lesão cerebral; fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...”

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.

Devemos acabar com isto!

Não pode continuar!

Abaixo a tirania!

Déspota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja, com grandes gestos de indignação. Note-se, - e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história - note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava: - é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.

Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio,

E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alegando andar com pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes, que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:

La bocca sollevò dal fiero pasto Quel "seccatore"...

mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

 

CAPÍTULO VI

A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis, e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos, ou supostos tais, não eram tratados de graça: as famílias, e em falta delas a Câmara, pagavam ao alienista...

É falso! interrompeu o presidente.

Falso?

Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde - "essa Bastilha da razão humana", - expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e a um sinal todos saíram com ele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores, que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde – “Bastilha da razão humana”, - achou-a tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: - “Bastilha da razão humana!”

Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica - e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita, - visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, - dada a diferença de Paris a Itaguaí, - podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.

D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda, - um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro, - e não quis crer.

Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.

Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.

Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: - Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado.

Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e...

Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.

 Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto.

D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.

O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...

Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero. - Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então, o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então.

Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.

Não entendo.

Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.

Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes: - Canalhas! covardes! - mas conteve-se e rompeu deste modo:

Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.

Vamos! bradou Porfírio agitando o chapéu.

Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.

 

CAPÍTULO VII

O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação: os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:

 Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões, - qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram, - passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, de modo que ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a eurijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes.” Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente, cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não desanimou: - qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos de que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo. - Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.

Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, e intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se, e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de – “Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo”. - Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:

“Itaguaienses!

Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

Porfírio Caetano das Neves".

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder:

Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.

 

CAPÍTULO VIII

AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo, - foi a denominação dada à casa da Câmara, - com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. – “Vai prendê-lo”, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: - a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. “Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni,” pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.

Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.

“Vai prendê-lo”, pensou o boticário.

Uma ideia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele, na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e apesar de todos os esforços e protestos da consorte vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia, o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo, não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.

CAPÍTULO IX

DOIS LINDOS CASOS

 

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde.

Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há, entretanto, - por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.

O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...

O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.

Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.

O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.

Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.

E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar, não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.

Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.

Dois lindos casos!

Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.

O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:

... porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo...

Viva o ilustre Porfírio! bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus.

Dois lindos casos! murmurou o alienista.

 

CAPÍTULO X

A RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.

Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos, que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião.

Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.

Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara, entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara, à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.

Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...

Um dia de manhã - dia em que a Câmara devia dar um grande baile, - a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.

Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. - Que tem? perguntei-lhe. - Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito! - Pois leve o de safira. - Ah! mas onde fica o de granada? - Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a demência; recolhi-a logo.

O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania sumptuaria", não incurável, e em todo caso digno de estudo.

Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.

E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe - menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.

Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.

CAPÍTULO XI

O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

 

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

Todos?

Todos.

É impossível; alguns sim, mas todos...

Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara

De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo: - 1o,: que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4o, que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5°, que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º, que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.

 

CAPÍTULO XII

O FINAL DO § 4º.

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o próprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio: - ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; - adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mão de amigo velho.

É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.

Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico – “cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra”.

Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.

Entretanto, a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara, antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou unanimemente a entrega.

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera, e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.

Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

Então parece-lhe...?

Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe, todavia, um dos melhores cubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde. - Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.

 

CAPÍTULO XIII

PLUS ULTRA!

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.

Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, - graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.

Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.

Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.

Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.

Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.

No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.

Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.

Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:

Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah! tratante!...

Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.

Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.

“Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.”

Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: - só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:

Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, - ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?

E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.

Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: - não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.

“Sim, há de ser isso,” pensou ele.

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

Nenhum defeito?

Nenhum, disse em coro a assembleia.

Nenhum vício?

Nada.

Tudo perfeito?

Tudo.

Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.

A assembleia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador:

Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

[1881, A estação (jornal). 1882, Papéis avulsos (livro de contos)]

(In: O alienista. São Paulo. Ática, 1992.)

***


A cartomante

Lima Barreto

Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer cousa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom “pistolão”, toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.


Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!


A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era “coisa feita”, havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.


Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa. 


Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida. 


Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.”. 


Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã. 


Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá. 


O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo. 


Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce. 


Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito. 


O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher. 


[Publicação original em Outras histórias. 2ª ed. de Histórias e sonhos, 1951] 

(In: Contos completos. Org. e Introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 302-303.)

 

***



Conto de verão n° 2: Bandeira branca

Luiz Fernando Veríssimo

 

Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.


Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.

— Como é teu nome?

— Janice. E o teu?

— Píndaro.

— O quê?!

— Píndaro.

— Que nome!

Ele de legionário romano, ela de índia americana.

***


Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.

— Ah.

Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.

No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:

— Me dá alguma coisa.

— O quê?

— Qualquer coisa.

— O leque.

O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.

***

No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?

— Você vomitou a alma — disse a mãe.

Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.

Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.

— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.

Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.

— E aquela bailarina espanhola?

— Nem me fala. E o toureiro?

— Aposentado.

A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

***

Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...

— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci — mentiu ele.

Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...

(In: Histórias brasileiras de verão. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999)

***


Dentro da noite

João do Rio

— Então causou sensação?

— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.

— Contra mim?

— Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado...

— Eu tenho o ar desvairado?

— Absolutamente desvairado.

— Vê-se?

— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra, num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro:

— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

O outro sorriu desanimado.

— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise.

E como o gordo esperasse:

— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

— Mas que é isto, Rodolfo?

— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.

— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.

— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.

— Que horror!

— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! – estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “—Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. “— Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço”. Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: “— Se não quer que eu mostre os braços por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” “— É , é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei: “— É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete.” “— Está louco, Rodolfo?” “— Que tem?” “— Vai fazer-me doer” “— Não dói.” “— E o sangue?” “— Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem. Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!”. E os seus dois braços tremiam.

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “— Mau!”

— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...

Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.

— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper civilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.

O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.

— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.

— Então continuaste?

— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: “— Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa”.

Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.

Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?... Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: “— Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “— Fez...” Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!

De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado e indagou:

— Mas então como te saíste?

— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “— Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te.” E ela de dentro: “—Já vou, mãe”. Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.

— E fugiste?

— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.

A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.

A voz do desvairado tomara-se metálica, outra. De novo porém a envolveu um tremor assustado.

— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...

De repente, num entrechocar de todos os vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.

— Adeus.

— Saltas aqui?

— Salto.

— Mas que vais fazer?

— Não posso, deixa-me! Adeus!

Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.

[1910]

(In: Os melhores contos – João do Rio. São Paulo: Global Editora, 1990)

 

***

 

 

 

A língua do “P”

Clarice Lispector

Maria AparecidaCidinha, como a chamavam em casa era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.

Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.

Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.

Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale.

Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, e bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.

Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?

Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não entendeu palavra. Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem parecia-lhe vagamente familiar. Que língua era aquela?

De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua dop. Assim:

Vopocêpê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa?

Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá nopo papapopo.

Queriam dizer: você reparou na moça bonita? vi tudo. É linda. Está no papo.

Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso demais para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:

Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocêpê?

Tampambémpém. Vapaipi serper nopo tupunelpel.

Queriam dizer que iam currá-la no túnel...O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, então é que piorava. Me socorre, Virgem Maria! Me socorre! Me socorre!

Sepe repesispistirpir popodepemospos mapatarpar epelapa.

Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.

Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.

Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.

Como lhes dizer que não era rica? Que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa. Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda. Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais – nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida era de si mesma abriu os botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados.

Tápá dopoipidapa.

Está doida, queriam dizer.

E ela a se requebrar que nem sambista do morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar.

Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel?

Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:

Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação.

E a próxima estação veio.

O maquinista desceu, falou com um soldado por nome de José Lindalvo. José Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram.

Os dois homens às gargalhadas.

Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.

Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua dopnão tinha explicação. Foi levada ao xadrez e fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão.

Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara não era mais prostituta. O que a preocupava era o seguinte: quando os dois homens haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.

Chegou ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No aeroporto comprou a passagem.

E andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.

Pois foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E pendurado ali o jornal O Dia. Não saberia dizer por que comprou.

Em manchete negra estava escrito:Moça currada e assassinada no trem.

Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara.

Pôs-se a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou:

Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel.

O destino é implacável.

[1974]

(In: A via crucis do corpo. Contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 67-70).         

 

***


Boas maneiras

Paul Karrer

 

A cansada ex-professora se aproximou do balcão do supermercado. Sua perna esquerda doía e ela esperava ter tomado todos os comprimidos do dia: para pressão alta, tonteira e um grande número de outras enfermidades.

“Graças a Deus eu me aposentei há vários anos” – ela pensou. “Não tenho energia para ensinar hoje em dia.” Imediatamente antes de se formar a fila para o balcão, ela viu um rapaz com quatro crianças e uma esposa, ou namorada, grávida. A professora não pôde deixar de notar a tatuagem em seu pescoço.

“Ele esteve preso”, pensou.

Continuou a observá-lo. Sua camiseta branca, cabelo raspado e calças largas levaram-na a conjeturar: “Ele é membro de uma gangue.”

A professora tentou deixar o homem passar na sua frente. – Você pode ir primeiro – ofereceu.

– Não, a senhora primeiro – ele insistiu.

– Não, você está com mais gente – disse a professora.

– Devemos respeitar os mais velhos – defendeu-se o homem.

E, com isto, fez um gesto largo indicando o caminho para a mulher.

Um breve sorriso adejou em seus lábios enquanto ela mancou na frente dele. A professora que existia dentro dela não pôde desperdiçar o momento e, virando-se para ele, perguntou:

– Quem lhe ensinou boas maneiras?

– A senhora, Srª Simpson, na terceira série.

(In: Histórias para aquecer o coração. Diversos autores. Trad. Marina Colasanti e Fabiana Colasanti. Rio de Janeiro: Sextante, 1998. Versão disponibilizada na Internet)

***


Poesia até o infinito

Lygia Fagundes Telles

 

Li o livro do Carlos Drummond ele disse. E prosseguiu com uma careta: Horrível! Então aquilo é poesia? Eu também sou moderno, gosto dos modernos, mas assim também é demais!

Pela primeira vez ouvi hoje alguns versos dele. Gostei muito! confessei.

– É impossível que você tenha gostado! – retorquiu o poeta. – Ouça só esta maravilha que tive a paciência de decorar... (...) – Começou:

No meio do caminho tinha uma pedra 

tinha uma pedra no meio do caminho 

tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento 

na vida de minhas retinas tão fatigadas. 

Nunca me esquecerei que no meio do caminho 

tinha uma pedra 

tinha uma pedra no meio do caminho 

no meio do caminho tinha uma pedra.


(...) Calou-se e ficou a me olhar ansiosamente. Dei uma risada:

– Não acho horrível coisa nenhuma! Acho gozado – exclamei.

O moço da gravata-borboleta tirou então do bolso alguns versos que compusera.

Leu-os. E depois disse:

– Como você acaba de ver, nos meus também não há rima nem métrica. Mas há ideia e ritmo, compreendeu? Ao passo que...

– Sim, eu sei! – interrompi-o, impaciente. Não há como um dia de mau humor para se dizer as verdades todas. Pensei naquele alexandrino e não resisti. Disse-lhe: – Mas o fato é que já esqueci sua poesia. E não esqueci e “nunca me esquecerei desse acontecimento” a que você acaba de se referir.

(...) Fui pela rua com o livro debaixo do braço e pensando em meu exame. A nota era muito baixa e isto era uma coisa aborrecida, apenas aborrecida. Mas inesquecível. Como se fosse uma pedra no sapato. No sapato não, que também era demais. Mas uma pedra no meio do caminho, bem no meio do caminho. Está claro que seria fácil contorná-la. Mas, em redor de mim, fisionomias empedernidas também iam encontrando outras pedras: um encontro desfeito por causa da garoa, uma carta que não chegou no momento desejado, uma vaga que foi preenchida por outro... Pedras, pedras, pedras. Haverá outros encontros, chegarão outras cartas, abrir-se-ão muitas outras vagas. Mas a garoa caindo forte justamente naquele momento, e o carteiro passando reto, e aquele sujeito sentado num lugar que quase foi nosso... Não, esses acontecimentos nunca mais serão esquecidos.

Agora eu já não achava essa poesia “gozada”. Tinha um autêntico gosto de vida e era um gosto bem amargo.

(In: Suplemento literário do jornal A Manhã. Rio de Janeiro, 1º de maio de 1948. Versão disponível na Internet)

 

***


Tem base?

Adélia Prado

 

Tudo quanto é novidade, pra cima de mim: dor nas costas, no estômago, boca amargando com gosto de fel, de azinhavre, de cabo de sombrinha. Como, fico cheia, não como, fico fraca. Do começo da goela até na boca do estômago, como se tivesse um talo de bambu enfiado, uma espécie de tristeza me sujando. Doutor falava: põe a mão onde que dói. Eu punha, ele explicava: aí não é estômago não, é intestino. É doutor? É, e ninguém tem fígado não senhora. Fígado só adoece de duas coisas, cirrose e câncer. Aí eu gelava. 

Foi indo, foi indo, eu tirei chapa, deitada, de costas, em pé, não deu absolutamente nada. Sabe o que mais? Tomei foi remédio pra toda qualidade de verme. Tem base? Melhor. Graças a Deus! Agora, posso encarangar de frio sem preocupação, porque ô frio que tá fazendo! Riqueza pra mim era se eu pudesse não levantar de manhã cedo, com alguém fazendo as coisas pra mim, soltando o cachorro, pondo o feijão no fogo, coando e levando o café na cama pra mim. Tem maior conforto não. Quando o sol esquentasse, aí eu levantava, ia mexer nas coisas devagarinho.

Titõe chega cedo, esfregando as mãos, acha eu comendo torresmo com farinha e começa: eu podia ter vida boa, se tivesse mais compreensão lá em casa. Pensa que eu tenho o gosto de comer um torresmo gordo desses? Quem me dera! Só de eu falar torcem o nariz, cada um pra um lado.

Zilu faz uns bifico à-toa, esturricado, não tem gosto de carne, não tem gosto de nada. Vai na horta, é só três folhica de cebola, diz que é só pra dar cheiro. Não pica uma couve com vontade, pra encher a peneira, não faz uma salada mais enfeitada, pra derramar na travessa, ô povo à-toa esse meu.

Titõe é meio envergonhado, todo santo dia aparece, meio sorrateiro, a fim de beber um gole de cachaça que eu vivo ganhando, nem sei por quê. Ele podia entrar, beber e pronto. Mas não, tem que me dar satisfação, queixando da vida, coitado, é o modo dele agradecer o gole.

Ficar famoso deve ser muito ruim é na hora do exame de fezes. Porque eu não livro dessa bobagem. Numa família de gente meio descarada pra essas coisas eu fico morta de vergonha. Eu sei que é bobagem mas não tem meio de eu sarar. Dizem que todo mundo tem uma crucificaçãozinha particular que é muito bom pra abaixar o orgulho e é mesmo.

Dizem que até teve um santo que era moço muito bonito no tempo dele, muito vaidoso, pois dizem que converteu só porque foi entrando num salão de baile, todo pimpão, no tempo que usava rei, e esparramou no maior tombo, bem no centro da sala. Foi onde que ele achou de meditar nas misérias das coisas deste mundo e tratou de salvar a alma.

Tombo também é muito chato e eu tenho medo. Se eu cair eu vou querer quebrar ao menos um dedo, pra poder ter graça, graça que eu digo é pra eu não ficar sem graça. Porque a gente cai, ajunta o povo, e se não tiver ao menos um sanguinho, uma coisinha quebrada, com que cara que a gente bate a poeira pra caminhar? Ô raiva que eu tenho de certos ajudantes que aparecem nessas horas, parece que brotam do inferno...

Por falar em inferno, acontece cada uma! Não há de ver que trás-anteontem, bem no meio da novena do Espírito Santo, aconteceu tudo quanto foi azar dentro da igreja! Dona Culinha, chefe dos festeiros, veio cá em casa pra eu dar umas ideias pra ela arrematar a noite. Eu dei, uai, eu não rídico ideia pra ninguém. Ideia é coisa que tá solta no ar, apanha quem tem jeito, né? Então eu disse que achava muito de acordo um menino vestido de São Francisco, Santo da Paz, segurando umas pombinhas vivas na mão. Com tanto pombo de papelão, encalacrei nessa coisa de pombo vivo. Foi nada não. Todo mundo achando a ideia coisa do outro mundo, foi a conta. Uns minutinhos antes da bênção final, todo mundo já em pé, soltam os pombos. Eles ficaram doidos, não sei se com o povo cantando ou com as luzes, tinha luz colorida de pisca-pisca, sei não, só sei que foi cada um pra um canto e um deles achou de pousar num vidro desses que protegem essas lâmpadas florescentes, pois é, o vidro quebrou, meu filho, foi cair na cabeça da cardíaca da Dona Eulália. Foi correria, sangue e duzentos contos pra pagar os pontos e o curativo. Um rombo na coleta, só vendo.

Isso tudo aconteceu no fim, porque primeiro arranjaram isso, juro que foi sem pedir minha opinião, uma dança na frente do Santíssimo Sacramento. O vigário deixou, coitado, porque na cabeça dele ia sair uma coisa assim feito o Rei Davi com as Donzelas dançando em frente à Arca da Aliança... Deixou por conta do povo, sabe o que saiu? Vai escutando: Puseram um disco de carimbó e três meninas sapateando na frente, uma coisa mais fora do esquadro. Só dava gente de cabeça agachada. O frei também só passando o rabo do olho, as orelhas vermelhinhas mesmo.

Achei bem feito. Tou cansada de falar que é preciso educar o povo, dar catecismo, ensinar pra ele as coisas finas da religião, apurar a estética deles; porque boa vontade o povo tem. Ensina a cantar ele canta, manda dançar ele dança, e como ninguém explicou nada, escolheram pra Deus o que tinha de mais novidade: carimbó, carimbó, carimbó.

[1979]

 

(In: Solte os cachorros. São Paulo: Siciliano, 1991, p. 31-34).

 

***


Em torno de uma beleza insuperável

Antonia Cristina de Alencar Pires


                                                
                                                “Os belos meninos trazem
                                                todos os seus medos 
                                                tanta raiva, tanta angústia  
                                                tudo nos dão generosos  
                                                e tudo fica em silêncio 
                                                – versos para uma canção, Lucas Alves              


Na cabana de madeira, nos arredores de Porto Alegre, os olhos verdes movem-se na escuridão rala. Pelas frestas da madeira, junto com a névoa fina de início do inverno entravam  alguns raios de sol. O olhar buscava o mostrador de um despertador colocado em cima de um banco.

Eram mais de oito horas. Precisava de um café forte para acabar de acordar. Pensou na avó, uma velha asmática, que dormia no quarto ao lado. Ele despejou a água fervendo sobre o pó  no coador. O cheiro do café invadiu o ambiente. Tomou-o em goles grandes, na caneca de louça.  Lembrou-se que a avó gostaria de tomar um pouco daquela bebida. Com a xícara nas mãos, entrou no cômodo. Chamou pela avó duas, três vezes. Ela não respondeu. Ele tocou-a de leve.  Depois sacudiu-a um pouco. Constatou que estava morta. No fundo esperava por aquele dia. Sabia que as avós morrem sempre aos domingos.

Os telejornais mostravam as imagens gravadas pelas câmeras de segurança de um hotel,  um homem alto e elegante saía de um dos quartos. Numa das mãos levava uma maleta e a outra  estava enfiada no bolso do casaco. A voz do locutor em off informava que o homem era um assassino.

O enterro foi modesto, rápido, quase sem testemunhas, num cemitério das proximidades. Ele voltou sozinho para casa. Sentia-se cansado. Acomodou-se na cadeira em que a avó sentava-se. Olhou em torno. Tudo era tão velho, tão desgastado como a mulher que acabara de sepultar.  Do lado de fora as mordidas do tempo também eram visíveis. A cerca de arame em torno da cabana estava enferrujada e as estacas apodrecidas. O mato crescia revolto. O canteiro de gerânios e narcisos desapareceu. As árvores produziam poucos frutos. Poucas aves ainda ciscavam no terreiro. O rapaz fechou os olhos por alguns instantes. Lembrou-se da época em que passava finais de semana naquele lugar: o pequeno sítio dos avós. Gostava de correr descalço, de   tomar banho com água fria da cisterna de pedra, de comer as frutas caídas no chão. Tempos amenos para sempre perdidos na mesa de pôquer. Seu pai, um jogador compulsivo apostava alto. As dívidas cresciam. Para pagá-las hipotecou a casa do Bonfim, onde a família morava. Não pôde resgatá-la. O imóvel já estava vazio quando sob um pretexto qualquer, o pai voltou ao local e enforcou-se com a gravata. Meses depois, a mãe foi velada numa manhã de chuva fina e insistente.

Ele abriu os olhos tentando afastar as lembranças. Fixou-os em uma mesa no fundo da sala. Nela havia algumas esculturas de papel marché. Começou modelando máscaras. Depois passou a fazer os gatos. A avó elogiou o bom gosto do neto. “São de uma beleza insuperável”, ela repetia sempre. Uma pequena galeria interessou-se pelas esculturas. Comprava-as regularmente. Nas tardes de sábado os gatos de papel marché eram vendidos numa feira de arte, numa praça do centro antigo da cidade. Seu olhar buscava detalhes daqueles felinos imóveis. Pensou nas lendas que     cercavam esses bichos. Histórias de mistério e bruxaria. Não eram essas lendas que o fascinavam, mas a natureza daquela espécie animal. A imagem de um felino correndo solitário e saltando de uma grande altura estava impressa em sua mente como uma tatuagem que nunca sai   da pele. Vira-a num programa vespertino de TV, devia ter uns oito anos.

Os irmãos do homem morto reclamavam justiça. Além de ter sido assassinado com várias punhaladas, ele ainda fora roubado. O criminoso levou a maleta com o dinheiro e um anel de rubi, uma joia que estava há tempos na família. Em seguida às falas, as imagens do assassino eram novamente mostradas. Um número de telefone para denúncia e um valor como recompensa eram creditados no rodapé do monitor da televisão.

Ele deixava a água quente cair sobre seu corpo em jatos grandes. Uma figura de mulher  surgia em meio à confusão de seus pensamentos. Lívia era sempre o apoio quando tudo se misturava em sua mente. Conhecera-a na galeria. Uma pintora cujas telas enigmáticas e um tanto trágicas, seduziram seu olhar de imediato. Não sabia precisar o tipo de relação que mantinham.     Sabia que era algo intenso, que crescia como um buraco, como uma fome imensa. Mas era preciso que aquela relação ficasse em suspenso por algum tempo. Ele iria para o Rio. Lívia ficaria sabendo disso naquela noite. Ela mesma o incentivara muitas vezes a deixar o sul, a ir buscar oportunidade em outro mercado de arte.

Nas listas de passageiros da rota São Paulo Nova York, a polícia federal encontrou um  nome cuja inicial correspondia a um pré-nome anotado na agenda do homem morto, junto com   um número de telefone e a frase “beleza insuperável”.

Da janela do apartamento não era possível ver o mar. Para encontrá-lo, ele andava algumas quadras. Fazia isso todo final de tarde. Ficava contemplando as ondas, o passar das pernas, o movimento dos pneus deslizando no asfalto, os pombos mimetizados com as pedras portuguesas do calçadão. Às vezes lembrava-se dos gatos de papel marché. Pensava na galeria. Mas não    naquela que expunha suas esculturas. Nesta, que agora vinha-lhe à mente, ele era o próprio objeto artístico. Ele e outros rapazes, quase tão belos, vestidos com minúsculas tangas dançavam dentro de jaulas douradas e eram conhecidos como “Leopardos”. Observados por homens de condição e tipo diversos, que se ocultavam na penumbra e na fumaça de gelo seco, os rapazes vendiam a juventude e o corpo. Eram deuses absolutos de um obscuro Olimpo.

Um dos amigos do rapaz que também viera do sul sonhando em ser modelo de uma griffe de jeans trabalhava na galeria e, vez por outra, posava para calendários gays. O outro rapaz saiu   de Porto Alegre para ser ator de teatro. Conseguira integrar-se a um grupo amador que tentava se profissionalizar. Para se sustentar, ficava nos cruzamentos da Avenida Atlântica, à espera dos clientes que passavam nos carros. Homens e às vezes mulheres querendo experimentar emoções    perigosas ou apenas em busca de companhia.

Quando foi morar com eles, o rapaz ainda modelou por algum tempo suas esculturas. Abandonou-as meses depois. Nenhuma galeria demonstrou interesse por seu trabalho. Alguns  marchands aconselhavam-no a ir morar em Santa Teresa, numa casa que pudesse ser ao mesmo tempo estúdio e show-room. Com os dias seu projeto ficava mais distante, ao passo que o universo clandestino e imprevisível dos companheiros de apartamento arrastava-o cada vez mais para si. Deixava-se atrair pelo jogo de máscaras propiciado pela vida dupla. Seus amigos eram  socialmente, modelo e ator.

Na jaula da galeria ou nas esquinas da Atlântica, entretanto, eram ragazzi di vita. Lera esta expressão nos textos de um cineasta italiano que Lívia admirava. Lembrava-se disso toda vez que via os dois saírem para trabalhar. Pensava na ambiguidade em que eles estavam mergulhados.

No outro lado da linha a voz feminina pedia que ditasse o anúncio. O rapaz ficou calado.  A telefonista insistiu. Ele respondeu: “artista plástico oferece aos amantes do belo, sua beleza insuperável”. À galeria chegou trazido pelo modelo. As esquinas, porém, dispensou. Vez por outra pensava como era fácil e rápido entrar no mercado do qual ele passou a fazer parte. De pé  no calçadão, às seis da tarde, buscava a linha do horizonte. Seus olhos verdes capturavam o azul  do mar de Copacabana. Em meio aos rostos das mulheres que passavam, procurava o de Lívia. Precisava mantê-lo aceso na memória, como o remoto farol que os navegantes esperam encontrar nas noites de tempestades.

Na casa do Morumbi, o empresário de meia idade lia os jornais enquanto tomava o café da manhã. Depois de anos passando os finais de semana em Miami ou Nova York, resolvera ir ao Rio. Precisaria de companhia. Por isso passava os olhos nos anúncios classificados de um jornal carioca. A proposta do artista plástico chamou-lhe atenção. Anotou na agenda o número do telefone de contato e escreveu do lado a frase “beleza insuperável”. Posteriormente o nome do  rapaz passou a constar daquela anotação. Horas depois, na suíte em frente ao mar, o empresário telefonou para o escultor. Marcaram o primeiro de muitos encontros. Alguns no Rio, outros em São Paulo. A galeria já não integrava a rotina do rapaz. Menos ainda os leitores dos classificados. Tampouco o apartamento da Toneleiros, com latas de cerveja vazias e roupas usadas espalhadas pelo chão, com o ralo do banheiro sempre entupido.

Cinzeiros, copos, garrafas ou qualquer outro objeto acabavam aos cacos, atirados contra as   paredes do duplex da Vieira Souto. Aos gritos, o empresário arremessava-os com fúria. Arranhava as pernas e os braços do rapaz com o rubi do anel. A cena se repetia sempre que o amante propunha romper o relacionamento.

Invariavelmente era imobilizado com um murro no queixo ou no estômago. Então chorava, fazia promessas. Iria deixá-lo sair de sua vida, dizia, mas aos poucos, devagar. Não estava acostumado às perdas bruscas. “Os colecionadores de arte não sabem subtrair; só aprendem a somar”, repetia. E novamente afirmava que o rapaz era sua peça mais rara e linda.  Mais do que qualquer quadro, vaso de Murano ou anjo barroco de sua coleção.

A primavera em Nova York ainda não se fazia visível. O ar frio e os agasalhos remetiam ao inverno que, pelo calendário, era findo vários dias. Com a mão esquerda segurando uma maleta e a direita grosseiramente enfaixada numa atadura, o rapaz caminhava rápido. O hotel ficara para trás. No quarto trancado, o corpo do empresário no chão, perfurado por um punhal. Quando passou pela portaria, o rapaz aparentava tranquilidade. Sem tirar a mão do bolso do casaco, dirigiu-se ao recepcionista. Informou que seu acompanhante passaria o dia no quarto e  não queria ser incomodado.

No banheiro do aeroporto, examinou o corte da mão. Latejava muito, estava inflamado. Enrolou novamente a atadura. No espelho olhou-se demoradamente. Seus olhos estavam avermelhados e inchados, emoldurados por olheiras arroxeadas. Coberto por um band-aid, havia um machucado no maxilar esquerdo que ardia e incomodava. Naquele semblante não havia beleza alguma. Não reconhecia nele o menino que corria descalço no sítio dos avós. Nem o adolescente gentil que cativava as garotas do colégio. Menos ainda o escultor dos gatos de papel  marchè. O rosto no espelho era do ragazzi di vita. Mais ainda: era do criminoso em que se transformara horas antes. Matara e roubara um homem que, durante um ano, vivera para ele, embriagado por sua beleza, por sua juventude. Bebia-a em grandes goles, como o andarilho sedento que encontra a água que o fará continuar o percurso.

O tom carinhoso da voz de uma senhora, na sala de embarque, trouxe-lhe por um breve instante a lembrança da avó. “Machucou-se meu filho?”. O rapaz respondeu afirmativamente e afastou-se um pouco. Estava tenso. Não queria dar continuidade aquele diálogo. Durante o voo, pensava no nada que havia sob seus pés. No espaço rarefeito e cinzento seu corpo flutuava. Sua  existência era nada também.

Retalhos de cenas buscavam sequência em sua mente. Abria os olhos e via as cabeças dos outros passageiros. Fechava-os. Ouvia o som incômodo de um filme no vídeo que não interessava a ninguém: pessoas encurraladas em um parque fugindo de monstros jurássicos. Ele, encurralado em si mesmo, sem poder fugir dos seus monstros. Desejava dormir um pouco. Não  conseguia. Agora entendia o sentido dos versos de uma canção que Lívia, vez por outra cantarolava. “Ouça um bom conselho/que eu lhe dou de graça/ inútil  dormir/ que a dor não passa”.

As imagens do sábado em Nova York insistiam em ficar mais nítidas. A cidade vista do  alto no terraço do Empire State. Ali lembrou-se de um filme alugado por Lívia, que assistiu numa tarde de domingo, tomando cerveja e comendo sobras de carne assada do almoço. Lívia, como ela mesma dizia, adorava a nostalgia monocromática dos melodramas hollywoodianos. Na história do filme, a mocinha pobre marca um encontro com o playboy milionário naquele mesmo terraço. Mas um acidente muda tudo radicalmente em suas vidas. A voz do empresário chamando-o, atirou essas lembranças para longe. No carro, a mão do amante sobre a sua. A chegada na galeria. O exame dos objetos pelo empresário. Entre as antiguidades, o homem interessou-se por um punhal do século dezoito. Lâmina de prata, cabo de ouro, contornado por inúmeras e pequenas  esmeraldas. “Combinam com seus olhos”, disse, colocando o punhal abaixo da linha dos olhos  do rapaz. O jantar, o cassino, a roleta girando, o dinheiro sendo guardado na maleta.

O jantar começou a ser servido pelos comissários de bordo. Ele não estava com fome. Recusou com gentileza a bandeja que a moça oferecera-lhe. Queria apenas beber mais um pouco. A mão latejava. Pequenos tremores de frio percorriam seu corpo. Por instantes teve dificuldade  em distinguir a aeronave. Pensava estar no quarto do hotel. Estava confuso. Precisava ordenar o pensamento. Estava com medo de enlouquecer. Veio a vontade de vomitar.

Odilon estava de pé, no meio do quarto, com o copo de uísque na mão. “Este é o último  fim de semana que passamos juntos”. A voz do rapaz soou seca e sem vacilação. Num movimento rápido, o empresário aproximou-se do amante e arranhou-lhe furiosamente o rosto com o anel de rubi. Gotas de sangue brotaram rápidas escorrendo sobre a pele. O rapaz sacudiu  Odilon violentamente e atirou-o no chão. Arrancou-lhe o anel e jogo-o a esmo. Foi lavar o machucado. Pelo espelho viu o empresário vindo com o punhal. O rapaz segurou Odilon pelos punhos, apertando-os com força. O punhal caiu no chão. O homem movia a cabeça furioso, tentando morder o amante foi outra vez jogado no chão. Caiu com a barriga para cima. Seus dedos ainda tocaram o punhal. O rapaz foi mais rápido. Pegou a arma e estocou-a várias vezes no empresário, até cortar a própria mão. “Eu não fiz isto, não fiz”, repetia, olhando para o homem  agonizante. Os jatos de sangue que saíam do corpo caído e o corte em sua mão, entretanto, impediam-no de enganar-se. Ficou de joelhos por algum tempo. Passou a mão nos cabelos de Odilon. Levantou-se, apanhou uma manta e colocou-a sobre o morto. Os olhos do empresário estavam abertos. Não teve coragem de fechá-los. Tomou um banho demorado. No banheiro havia clorexidina, atadura e band-aid. Fez um curativo. Devolveu o punhal ao estojo e guardou-o na maleta. Ao sentar-se na poltrona, encontrou no chão o anel. Ficou observando a joia, girando- a de um lado para o outro. As cintilações da pedra faziam-no lembrar das vezes que fora arranhado por ela e da cicatriz que, certamente, ficaria em seu rosto. Apertou-o na mão esquerda. Fechou os olhos. A cabeça e o corpo pesavam. Abriu os olhos, depois de um tempo estava amanhecendo. O cheiro acre de sangue tomava conta do ambiente. Jogou o roupão sobre  a cama. Vestiu-se. Saiu com a maleta. Trancou a porta do quarto e colocou as chaves no bolso  interno do casaco. O anel estava ali. No outro bolso, a passagem e o passaporte. Era urgente deixar o hotel.

No primeiro voo de segunda-feira para Porto Alegre, o rapaz não entendia como ainda era capaz de raciocinar sobre alguma coisa. Diria à Lívia que era um assassino, um ladrão, um fugitivo. Não esperava dela nenhuma compaixão. Queria apenas um abrigo temporário. Talvez  um abraço. Uma poça de sangue inundou seu pensamento. Nela havia os olhos de Odilon. De algum modo, amara aquele homem refinado, culto, colecionador de arte, possessivo e dominador. Pensava como algumas formas de amor são doentias, ásperas, fatais e como essas formas são duradouras, pois incrustam-se na história dos indivíduos para sempre. São feridas que crescem e devoram. A Odilon não ensinaram outras formas de amor. A ele também não.

No apartamento de Lívia, acompanhou com ela os noticiários durante cinco dias. Sabiam que ele precisava fugir para longe. A moça iria levá-lo para Antônio Prado. Na cidade mais alta da serra gaúcha, entre o casario de arquitetura italiana e as pedras do calçamento, o tempo transcorria lentamente. O vinho servido no almoço provinha das uvas cultivadas nos quintais. As receitas das massas e dos molhos eram as mesmas dezenas de gerações. A mãe e o avô de Lívia moravam numa casa grande. O rapaz ficaria com eles. Aprenderia com o velho a arte da  marchetaria. Poderia voltar a modelar os gatos de papel marchè. Ficaria ali até que nada mais restasse da história sombria em que mergulhara. Até que os fatos se transformassem em arquivo. Da mídia, da polícia, de sua própria memória. Na volta a Porto Alegre poderia retomar antigos  projetos. Usaria o dinheiro que o empresário ganhou no cassino nova-iorquino.

Lívia acordou primeiro. Ainda estava escuro. Um café forte era tudo o que necessitavam  antes de irem para a rodoviária. A polícia, pelo alto-falante, anunciou o cerco ao edifício. Na denuncia anônima, alguém indicou o possível destino do rapaz e o endereço de Lívia. Ele não queria, não iria se entregar. Disse à moça que desceria pelo vão de ventilação entre as áreas de serviço. Tentaria alcançar o telhado de um casarão vizinho. ”É alto demais, quarto andar, um descuido pode ser fatal” disse desesperada. “Estou sempre com os pés sobre o vazio”. Não seria  diferente agora. As pontes são improváveis para os da minha condição. É apenas mais um buraco. É apenas mais uma descida.”, disse friamente, com os olhos fixos na parede alta da área. Os policiais revistavam, um a um, os apartamentos do primeiro andar. O informante não forneceu o número do apartamento, somente o do prédio. Todo o edifício seria vasculhado. Lívia viu a cabeça do rapaz desaparecer no vazio entre as paredes.

Com as costas apoiadas numa parede e os pés na outra, o rapaz descia cuidadosamente.  Havia limo em algumas partes. Outras estavam descascadas ou rachadas. Baratas e lagartixas entravam e saíam dessas fendas Alguns canos estavam à mostra, como ossos de um esqueleto saindo da tumba. quanto tempo estaria descendo? Muitas horas? Dias talvez. Naquele vão o tempo não existia. Presente e passado: uma mistura pegajosa e escura como a geleia de ameixa  que a avó fazia, escorrendo pelas paredes da mente. Pela lacuna por onde seu corpo escorregava agora. Vozes, latidos, pratos batendo, água correndo de torneiras, choro de crianças. Estava quase no nível do segundo andar. Um homem, cujo apartamento fora revistado, equilibrava-se sobre um banco. Estava tirando uma gaiola pendurada no teto. Viu as pernas do rapaz. Um policial que vigiava as escadas foi chamado. Silencioso, subiu no tanque e constatou a descida do fugitivo. O canto do rouxinol invadiu o vão de ventilação. O rapaz pensou em outro rouxinol. Um que fixara o ninho no pessegueiro do sítio. O sítio. Um dia voltaria para com Lívia. Não  para o lugar decadente dos últimos anos. Voltaria para o sítio da infância. Um dia.

Tentando equilibrar-se sobre o muro estreito do primeiro andar, para passar para o telhado, viu dois policiais. Virou-se pra pular para dentro do vão. Tiros. Um corpo em queda. Sirenes quebrando a lassidão da manhã. 

(In: Revista Travessias, edição 05, 30/04/2009, www.unioeste.br/travessias)

***


A mulher mais linda da cidade

Charles Bukowski

Cass era a mais jovem e bonita de 5 irmãs. Cass era a garota mais bonita da cidade. 1/2 indígena com um corpo flexível e estranho, com um corpo e olhos ardentes como de uma cobra. Cass era um fogo fluido ambulante. Ela era como um espírito preso numa forma incapaz de contê-la. Seus cabelos eram negros e longos e macios e ondulados assim como seu corpo. Seu espírito estava ou lá em cima ou lá embaixo. Não havia meio-termo para a Cass. Alguns a chamavam de louca. Os idiotas diziam isso. Os idiotas nunca entenderiam a Cass. Para os homens ela não passava de uma máquina de sexo e eles não se importavam se ela era louca ou não. E Cass dançava e flertava, beijava os homens, mas exceto por um caso ou outro, quando chegava a hora de ir para a cama, Cass dava um jeito de se esquivar, iludia os homens.

Suas irmãs lhe acusavam de abusar de sua beleza, ou de não usá-la o suficiente, mas Cass tinha cabeça e espírito; ela pintava, dançava, cantava, fazia coisas de argila, e quando as pessoas estavam machucadas ou no espírito ou na carne, Cass sentia muita empatia por elas. Só que sua cabeça era diferente; só que sua cabeça não era prática. Suas irmãs tinham inveja dela porque ela atraía seus homens, e elas tinham raiva porque sentiam que ela não os usava da melhor maneira. Ela tinha o costume de ser gentil com os mais feios; os homens considerados bonitos lhe revoltavam — “Sem colhões,” dizia, “sem graça. Ficam se exibindo com seus lóbulos da orelha perfeitos e seus narizes bem estruturados… Muita superfície e nenhum conteúdo…” Ela tinha um temperamento que se aproximava da insanidade. Seu pai morreu de álcool e sua mãe foi embora abandonando as garotas sozinhas. As garotas foram para a casa de um parente que as deixou em um convento. O convento foi um lugar infeliz, mais para Cass que para suas irmãs. As garotas tinham inveja de Cass e Cass brigou com a maioria delas. Ela tinha marcas de navalha por todo o braço esquerdo de se defender em duas brigas. Também tinha uma cicatriz permanente na bochecha esquerda, mas a cicatriz em vez de diminuir sua beleza só parecia realçá-la. Eu a conheci no West End Bar várias noites depois de ela ter deixado o convento. Sendo a mais jovem, ela foi a última das irmãs a ser liberada. Ela simplesmente veio e sentou do meu lado. Eu provavelmente era o cara mais feio da cidade e isso deve ter tido alguma influência.

“Quer uma bebida?” perguntei.

“Claro, por que não?”

Acho que não teve nada de anormal na nossa conversa naquela noite, era essa a impressão que Cass dava. Ela tinha me escolhido e as coisas se resumiam nisso. Sem pressão. Ela gostou das bebidas e bebeu bastante. Ela não aparentava ser maior de idade mas eles a serviram mesmo assim. Talvez ela tivesse identidade falsa, não sei. Enfim, sempre que ela voltava do banheiro e sentava ao meu lado, eu sentia um certo orgulho. Ela era não só a mulher mais bonita da cidade como também a mulher mais bonita que eu já vi. Envolvi sua cintura com meu braço e lhe dei um beijo.

“Você me acha bonita?” ela perguntou.

“Sim, é claro, mas tem algo a mais… algo além da sua aparência…”

“As pessoas estão sempre me acusando de ser bonita. Você me acha mesmo bonita?”

“Bonita não é a palavra, ela dificilmente lhe faz justiça.”

Cass mexeu em sua bolsa. Achei que ela estava procurando um lenço. Ela puxou um grande alfinete. Antes de eu poder impedi-la, ela atravessou o alfinete pelo nariz, de um lado até o outro, logo acima das narinas. Senti desgosto e horror. Ela me olhou e riu, “Agora você me acha bonita? O que você acha agora, cara?” Eu puxei o alfinete para fora e segurei meu lenço sobre o sangramento. Várias pessoas, incluindo o balconista, viram a cena. O balconista veio até nós:

“Olha,” ele disse para Cass, “se se exaltar de novo você vai para fora. Não precisamos dos seus dramas aqui.”

“Ah, vai se foder, cara!” ela disse.

“Melhor manter ela na linha,” o balconista me disse.

“Ela vai se comportar,” eu disse.

“É o meu nariz, eu faço o que quiser com meu nariz.”

“Não,” eu disse, “isso me machuca.”

“Quer dizer que você se machuca quando enfio um alfinete no meu nariz?”

“Sim, machuca, de verdade.”

“Está bem, não vou fazer isso de novo. Relaxa.”

Ela me beijou, meio sorrindo através do beijo e segurando o lenço no nariz. Fomos para minha casa na hora de fechar. Tomei uma cerveja e sentamos conversando. Foi aí que me dei conta de que ela era uma pessoa cheia de gentileza e compaixão. Ela se doava sem perceber. Ao mesmo tempo, ela saltava de volta para áreas de selvageria e incoerência. Maluca. Uma maluca bonita e espirituosa. Talvez alguma coisa, algum homem, arruinaria ela para sempre. Queria que não fosse eu. Fomos para a cama e depois de eu desligar as luzes Cass me perguntou,

“Quando você quer fazer? Agora ou de manhã?”

“De manhã,” eu disse e me virei.

De manhã eu levantei e preparei duas xícaras de café, levei um para ela na cama. Ela riu.

“Você é o primeiro homem que recusou fazer à noite.”

“Tudo bem,” eu disse, “a gente nem precisa fazer.”

“Não, espera, eu quero agora. Deixa eu me arrumar um pouco.” Cass entrou no banheiro. Ela saiu logo, muito bonita, seus cabelos negros brilhando, seus olhos e lábios brilhando, ela brilhando… Ela revelava seu corpo com calma, como uma coisa boa. Ela entrou debaixo das cobertas.

“Pode vir, garanhão.”

Eu fui. Ela beijou com vigor mas sem pressa. Deixei minhas mãos passearem pelo seu corpo, pelo seu cabelo. Eu montei. Era quente, e apertado. Comecei a meter devagar, tentando fazer durar. Seus olhos focavam diretamente nos meus.

“Qual o seu nome?” perguntei.

“Que merda de diferença isso faz? ela perguntou.

Eu ri e continuei. Depois ela se vestiu e a levei de carro de volta ao bar, mas era difícil esquecê-la. Eu não tinha trabalho e dormi até as duas da tarde, então levantei e li o jornal. Eu estava na banheira quando ela chegou com uma folha enorme — uma orelha de elefante.

“Eu sabia que você estaria na banheira,” ela disse, então trouxe uma coisa para você cobrir essa coisa, garoto selvagem.”

Ela jogou a folha de elefante em mim na banheira.

“Como você sabia que eu estaria na banheira?”

“Eu sabia.”

Quase todo dia Cass chegava quando eu estava na banheira. Os horários eram diferentes mas ela quase nunca errava, e lá estava a folha de elefante. E então nós fazíamos amor. Uma ou duas noites ela ligou e eu tive que pagar a fiança dela por lutas e bebedeiras.

“Esses filhos das putas,” ela disse, “só porque eles te compram umas bebidas acham que podem entrar nas suas calças.”

“Quando aceita uma bebida você cria problemas para si mesma.”

“Achei que eles estivessem interessados em mim, não só no meu corpo.”

“Eu estou interessado em você e no seu corpo. Duvido, porém, que a maioria dos homens consigam ver além do seu corpo.”

Deixei a cidade por 6 meses, vagabundeei por aí, voltei. Eu nunca esqueci Cass, mas nós tivemos uma discussão e eu estava com vontade de me mudar de qualquer jeito, e quando eu voltei descobri que ela tinha partido, mas fiquei sentado no West End Bar uns 30 minutos quando ela entrou e sentou ao meu lado.

“Olha só, desgraçado, então você voltou.”

Pedi uma bebida para ela. Então olhei para ela. Ela usava um vestido de gola rolê. Eu nunca tinha visto ela usar um desses. E sob cada olho, enfiados, estavam 2 alfinetes com cabeças de vidro. Tudo que dava para ver eram as cabeças dos afinetes, mas as hastes estavam enfiadas em seu rosto.

“Cacete, ainda tentando destruir sua beleza, é?”

“Não, é a moda, seu idiota.”

“Você é maluca.”

“Senti sua falta,” ela disse.

“Tem mais alguém?”

“Não, não tem mais ninguém. Só você. Mas estou fazendo programa. Custa dez contos. Mas para você eu faço de graça.”

“Tira esses alfinetes.”

“Não, é a moda.”

“Está me deixando muito triste.”

“Tem certeza?”

“Tenho certeza para caralho.”

Cass removeu os alfinetes devagar e os pôs de volta na bolsa.

“Por que você despedaça sua beleza?” perguntei. “Por que você não convive com ela?”

“Porque as pessoas acham que é tudo que eu tenho. Beleza não é nada, beleza não vai durar para sempre. Você não sabe a sorte que tem de ser feio, porque quando as pessoas gostam de você, você sabe que é por outra razão.”

“O.k.,” eu disse, “sou um sortudo.”

“Não estou dizendo que você é feio. Só que as pessoas acham que você é feio. Você tem um rosto fascinante.”

“Obrigado.”

Tomamos outra dose.

“O que você tem feito?” perguntou.

“Nada. Não consigo chegar a lugar nenhum. Sem interesse.”

“Também nada. Se fosse mulher você poderia fazer programa.”

“Acho que eu nunca conseguiria falar com tantos estranhos, é cansativo.”

“Tem razão, é cansativo, tudo é cansativo.”

Saímos juntos. As pessoas da rua ainda encaravam a Cass. Ela era uma mulher linda, talvez mais linda do que nunca. Fomos até a minha casa e abrimos uma garrafa de vinho e conversamos. Entre nós dois, as coisas sempre fluíam. Ela falava um pouco e eu escutava e então eu falava. Nossas conversas aconteciam sem qualquer tensão. Nós parecíamos descobrir segredos juntos. Quando descobríamos um dos bons Cass ria aquela risada — daquele jeito que era só dela. Era como alegria tirada das chamas. Durante a conversa a gente se beijou e se aproximou mais. Ficamos bem excitados e decidimos ir para a cama. Foi aí que Cass tirou seu vestido de gola rolê e eu vi — a cicatriz horrível entalhada na sua goela. Era longa e grossa.

“Meu deus, mulher,” eu disse da cama, “meu deus, o que você fez?”

“Eu tentei fazer aquilo com uma garrafa quebrada outra noite. Você não gosta mais de mim? Você ainda me acha bonita?”

Eu puxei ela para a cama e a beijei. Ela me empurrou e riu, “Alguns caras me pagam dez e eu tiro as roupas e eles não querem mais trepar. Eu fico com os dez. É bem engraçado.”

“É,” eu disse, “não consigo parar de rir… Cass, vadia, eu te amo… para de se destruir; você é a mulher mais viva que eu já conheci.”

Nos beijamos de novo. Cass chorava emudecida. Eu podia sentir as lágrimas. Os cabelos longos e negros repousavam ao meu lado como uma bandeira de morte. Curtimos e fizemos amor lento e soturno e belo. De manhã Cass estava fazendo desjejum. Ela parecia calma e feliz. Estava cantando. Fiquei na cama e apreciei sua felicidade. Finalmente ela veio e me sacudiu.

“Acorda, desgraçado! Joga água fria na cara e no bilau e vem aproveitar o banquete!”

Levei ela de carro até a praia nesse dia. Era fim de semana e ainda não era verão então estava tudo esplendidamente desértico. Beberrões praieiros dormiam em trapos no gramado acima da areia. Outros sentavam em bancos de pedra dividindo uma garrafa solitária. As gaivotas rodopiavam no céu, estúpidas mas distraídas. Senhoras em seus 70 ou 80 anos sentavam nos bancos e discutiam a venda de imóveis deixados para trás por seus maridos há muito mortos pelo ritmo e estupidez da sobrevivência. Com tudo isso, havia paz no ar e andamos e nos esticamos nos gramados e não falamos muito. Simplesmente era bom estar junto. Comprei dois sanduíches, alguns salgadinhos e bebida e sentamos na areia comendo. Então segurei Cass e dormimos juntos por volta de uma hora. De certa forma era melhor que fazer amor. Era fluir junto sem tensão. Quando acordamos voltamos à minha casa e cozinhei o jantar. Depois do jantar eu sugeri a Cass que dormíssemos juntos. Ela esperou um longo tempo, olhando para mim, então lentamente ela disse, “Não.” Levei ela de volta ao bar, lhe comprei uma bebida e fui embora. Achei um trabalho como guarda do estacionamento de uma fábrica no dia seguinte e no resto da semana passei trabalhando. Eu estava cansado demais para fazer muita coisa mas nessa sexta à noite eu fui ao West End Bar. Sentei e esperei pela Cass. Horas se passaram. Quando eu estava bastante bêbado o balconista me disse, “sinto muito pela sua namorada.”

“Como assim?” perguntei.

“Desculpa, você não sabia?”

“Não.”

“Suicídio. O enterro foi ontem.”

“Enterro?” perguntei. Parecia que ela entraria pela porta a qualquer momento. Como ela poderia ter partido?

“A irmã a enterrou.”

“Suicídio? Pode me dizer como?”

“Ela cortou a garganta.”

“Entendi. Me vê outra dose.”

Bebi até a hora de fechar. Cass era a mais bonita de 5 irmãs, a mais bonita da cidade. Consegui dirigir até em casa e fiquei pensando, eu devia ter insistido para ela ficar comigo em vez de aceitar aquele “não.” Tudo que ela fazia indicava que ela se importava. Eu simplesmente perdi a mão, fui preguiçoso, despreocupado demais. Eu mereço a minha morte e a dela. Eu fui um cão. Não, por que culpar os cães? Levantei e encontrei uma garrafa de vinho e a entornei. Cass, a garota mais bonita da cidade, estava morta aos 20. Lá fora alguém apertava a buzina de seu automóvel. Era bem alto e persistente. Larguei a garrafa e gritei: “CARALHO, FILHO DA PUTA, CALA ESSA BOCA!” Continuava escurecendo e não tinha nada que eu pudesse fazer.

(In A mulher mais linda da cidade & outras histórias, coletânea de contos. Trad. Albino Ernesto Poli Junior. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997).