Os cem contos que amei ler IV (In progress. Serão colocados mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.
61. Anão de jardim (Lygia Fagundes Telles)
Anão de jardim
Lygia Fagundes Telles
A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo) pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do encontro com o amante, ela ficava generosa depois desses encontros, recolheu o Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o preferia ao Miguel que era superficial, confiado, na primeira vez em que me viu levantou a perna e mijou na minha bota.
Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos (preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. O Professor, Hortênsia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia, a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as delicadas entranhas de Hortênsia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal) a patroa e só não foi além porque mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortênsia se desfez dela, mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era superficial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo, o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.
Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e
o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto. A madeira do caramanchão
também apodreceu debaixo das trepadeiras ressequidas, um dia os homens da
demolição entraram aqui para fazer suas avaliações. Olharam o violoncelo,
bateram com os nós dos dedos na madeira, Será que isso vai render alguma grana?
o mais velho perguntou. O outro fez uma careta, Apanhou muita chuva, não serve
nem para o fogo, disse e botou a mão no meu ombro. E este anão rachado? Deixa
este por minha conta que eu acabo com ele. Saíram e ficou o silêncio
murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi tecer sua teia entre
as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam fracas e como se a
teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim, tóim. Então a aranha abandonou
a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros bichinhos que
continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas lembranças
que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira.
Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a
ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito
(rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura
por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante
repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no
seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou
fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou
destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última
parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o
mais jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem fingir
eficiência, a pressa porque apressado mesmo é o corretor- amante, ontem ele
andou por aqui. Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno
é grande e está localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio.
Quando foi embora no seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem
desgrenhada enfrentando bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas
fácil de abater, trabalho vai dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à
terra, se descabela às vezes quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste
caramanchão e eu aqui dentro. Meu avô também era meio arrogante, me disse o
Professor certa noite. E riu seu riso breve, nesse tempo ainda ria. É com
arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o menor medo e
essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é
que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta
habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela um simples feixe de
memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho
entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai
continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me
destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que este peito rachou feito
uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um pratinho de biscoitos e a
caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na mesinha e fez um ligeiro
afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao violoncelo mas com as mãos
descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para mim o olhar buliçoso, E
como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus ouvidos com duas bolinhas
de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao Professor, Toma logo, querido,
assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu intumescido, inchado, era
tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe aquela caneca, Não beba
isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para que ela tivesse aquela
reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a caneca, soprou a
fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve um sorriso
descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa o Kobold com
seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos (olhos?) para
não vê-lo beber o resto do chá.
Vou jogar no clube, ela avisou ao
sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de
tomar sua sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de
agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te
matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que
alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me
movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois
levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou
num gemido, Blom!… Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se
cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A
chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi
aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei,
mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor.
Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me
examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram
obedecendo a mesma formação, além de disciplinada a formiga é curiosa e essa
curiosidade é que a faz eterna.
Kobold. Pois Kobold foi o nome
que o Professor me deu, ele estava num antiquário quando me descobriu de
repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo
ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado
Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse
jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se
para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um
furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses chineses para ouvir
melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo, ele avisou ao me
instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de samambaia. Sua
música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse meu dono era
tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não tomava notas ou
então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que acabava perdendo e
a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas (blom, blom, blom)
refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras e nesses
momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá veio
cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto, o sabiá
soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves que
pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um dia,
Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta
para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu
zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele
suspirou, Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida, Não estou falando sozinho,
estou falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do
banqueiro com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar
o Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no
caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone
dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas.
Quando não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta
levar-lhe os bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela
palidez que vi em sua face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era
rico. Vieram em seguida os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer
o corretor que acabou seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam
(às vezes) ao auge da discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar,
deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça,
vai mesmo até o fim. A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já
devia estar chantageando) ficou completamente de fora.
Amanheceu. Ontem, os homens
derrubaram o último muro e hoje será a vez do caramanchão, ouvi os dois
combinando, a figueira vai ficar para depois. Deixa o anão comigo, o mais jovem
lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo. Sei que esta essência
(alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar como a pedra, sei
que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-humorado, intolerante, não
devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem dos outros, não me amei e
nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo eu poderia ser diferente?
Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor era delicado, manso de
coração mas não era irritante com a sua mornidão? A bondade sem a coragem, sem
a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos outros, desses não quero nem
falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui mesmo compassivo e assim ainda
ouso sonhar com uma outra vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com Deus.
Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz
de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo-espectador mas um
discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a
crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que
ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo!
Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui
empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava
as mãos e diz: “Estou inocente do sangue deste justo”. Ah! eu queria tanto
entrar ali na forma de uma serpente e picar Poncio Pilatos no calcanhar!
As vozes dos demolidores estão
mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da camisa, vai acender um
cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu de debaixo da pedra e se
aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o
último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da morte mas agora é diferente,
estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa
de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida,
está com a cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o
veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se defender. Ou atacar. Avançou
mais e as pinças dianteiras que sondam e informam — as pinças se imobilizaram
endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o combate se ele
pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante das cavidades.
Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal (macho e fêmea)
passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de mãos dadas sob o
sol que se escondia, também eles se escondendo.
Os homens estão parados na
entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais tarde, o mais velho parece
satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com
seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser
odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco,
lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu
aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo
espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu
com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas
estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa
vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande
cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outubro.
(In: A noite escura
e mais eu. (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1995).
***
No te pongas sentimental
Arnaldo Bloch
De: Neri – Gerente / Para: Jorg – Controle
Jorg, o setor de suprimento pede pra
agilizar o fornecimento das fibras úmidas.
De: Jorg / Para: Neri
Ok.
*
De: Jorg – Controle / Para: Carter – Fornecimento
Carter, gerência cobra (de novo)
remessa das fibras úmidas.
De: Carter / Para: Jorg
A bosta do container foi liberada
semana passada.
De: Jorg / Para: Carter
Então deve ter ficado retida, a bosta.
De: Carter / Para: Jorg
Retida na sua bunda.
*
De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle
Almoço no Zé Popó?
De: Jorg / Para: Pérola
Agora não dá.
De: Pérola / Para: Jorg
Insisto: quando?
De: Jorg / Para: Pérola
Não sei. Estou afogado.
De: Pérola / Para: Jorg
Quando?
De: Jorg / Para: Pérola
Nunca.
*
De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex
Chuva de meteoros pode ser observada esta madrugada, por volta de duas horas, na Constelação de Leão. Locais mais altos com pouca iluminação são ideais para o espetáculo. Na certa, todos acordarão mais dispostos para mais uma jornada de trabalho! Então, torçamos para que não chova e uma ótima noite celeste para todos!
*
De: Jorg / Para: flor@com
Desculpe escrever assim, mas descobri seu e-mail residencial quase por acaso, anotado num papel caído perto da sua mesa. Se quiser, o papel está comigo, não preciso mais dele, o e-mail já está registrado na minha memória pessoal, na minha cabeça, no meu coração.
*
De: “Outra Consultoria” / Para: Grupo 11
Consultoria com 100 anos de experiência em todas as áreas. Para uma visita, é só clicar Reply! Nós daremos o Triply!
*
De: Marina Rina / Capela / Para: Todos
Oração para todos os dias no arquivo anexo. Enviar para 9 pessoas e aguardar mudanças na vida.
*
De: Rabino Michel / Para: Todos
Vamos todos dançar em volta da Torá Virtual! No chat-Simchá-Torá, segunda-feira, às sete horas, www.simchatorá.com.br
*
De: genetic@unimail.com
Meu nome é Melany, tenho 18 anos e muitos parceiros e parceiras, mas meu orgasmo é com garotas. Um orgasmo pobre, filete de gozo. Esse baixo desempenho me faz pensar em algo mais ousado. Joy, um amigo homossexual, conseguiu. Foram meses de tentativas junto ao laboratório, até que o embrião iniciasse um desenvolvimento saudável. Estou na fila, sou uma das próximas. O sonho de criar e cevar a minha cópia, rever a adolescência, tocá-la, recriar meu prazer. Vou tratá-la com carinho, mas longe de tudo, ao abrigo da sociedade, fora da prisão da linguagem. Nada haverá que subverta a sua verdade, a dimensão absoluta da realidade. Então, ela vai me ensinar a esquecer de tudo, a ser que ela é, a reencontrar o meu sujeito primeiro. E então aprenderemos juntas o que é o verdadeiro amor.
*
De: Jorg / Para: flor@com
Não vai responder?
*
De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex
Jiolino Caldas deixa a empresa. Bolo no Zé Popó.
*
De: flor@com / Para: Jorg
Demorei pra responder, mas aí vai: não
tem nada a ver, ok? Olha só, colega, comigo, bateu valeu.
De: Jorg / Para: flor@com
Não sei. Não sei, não sei mais falar,
não sei escrever, só sei você.
De: flor@com / Para: Jorg
Sai desse mundo, meu caro.
*
De: Jorg / Para: Neri – Gerente
Neri, estou com um problema gástrico,
vou ter que ir embora mais cedo. Amanhã estou aí, ok?
De: Neri / Para: Jorg
Ok, Jorg, mas me diga: o problema das
fibras úmidas, já resolveu?
De: Jorg / Para: Gerente
O Carter está vendo. Houve retenção na
alfândega.
De: Neri / Para: Jorg
Bom, me dá uma posição até amanhã de manhã sobre essa retenção, ok?
*
De: Jorg / Para: Carter
Então?
De: Carter / Para: Jorg
Já está liberado, pode ficar calminho, a retenção acabou, agora você já pode cagar. O transporte não tinha soltado a documentação ainda, porra. Fala com o Caligari.
*
De: Jorg / Para: Neri
Neri, falei agora com o Caligari e já avisei ao suprimento, tá tudo resolvido.
*
De: Administrador do Sistema / Para: Jorg
Não foi possível enviar mensagem para usuário Neri.
*
De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários
O gerente Neri está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó.
*
De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle
Não me deixo abater pelo seu “nunca”. Para mim, você é “sempre”.
*
De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários
O funcionário Jorg está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó.
(In: Geração 90: os transgressores. Org. Nelson de Oliveira. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2003, pp. 72-76).
***
Carta de Paris
Ana Cristina Cesar
I
Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées. Genet dançando a meia luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bicos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.
II
Paris muda! Mas minha melancolia não se move. Beaubour, Forum des Halles,
metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa
como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu
Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam
Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para
sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da
manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso
em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando
pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim
dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro,
em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor
que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste
parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me
rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa,
cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda.
(In: Inéditos e dispersos. Org. Armando Freitas Filho. São Paulo: Ática,
1995, pp. 82-84).
***
Solidão
Charles Bukowski
Edna estava caminhando
pela rua com sua sacola de compras
quando passou pelo carro.
Havia um cartaz
na janela lateral:
PROCURA-SE
MULHER
Ela parou. Havia um grande pedaço de papelão grudado na janela com alguma substância. A maior parte estava datilografada. De onde estava na calçada, Edna não conseguia ler o aviso. Podia apenas ver as letras graúdas:
PROCURA-SE MULHER
Era um carro novo e caro. Edna deu um passo sobre a grama para ler a parte datilografada:
Homem, 49 anos. Divorciado. Procura mulher para casamento.
Deve ter entre 35 e 44 anos. Gosta de televisão
e películas cinematográficas. Boa comida. Sou especialista em custos de produção,
com
estabilidade no emprego. Dinheiro no banco. Gosto de mulheres acima do
peso.
Edna tinha 37
anos e estava acima do peso.
Havia um número de
telefone.
Também havia três fotos do cavalheiro em busca de uma mulher. Ele parecia bem sério de terno e gravata. Também
parecia estúpido e um pouco cruel. E feito de
madeira, pensou Edna, feito
de madeira.
Edna se afastou, sorrindo
um pouco. Sentia
também uma espécie de repulsa.
Ao chegar ao seu
apartamento, ela o tinha esquecido. Apenas algumas horas depois, sentada na banheira, voltou
a pensar nele e, dessa vez, pensou
em como ele devia estar realmente sozinho para fazer tal coisa:
PROCURA-SE
MULHER
Imaginou-o chegando em
casa, encontrando as contas de gás e telefone na caixa de correio,
despindo-se, tomando um banho, a televisão ligada.
Então leria o jornal
da tarde. Depois iria para a cozinha
preparar sua refeição.
De pé, de cuecas, olhando para
a frigideira. Pegando sua comida e caminhando para uma mesa, comendo. Bebendo seu café. Então mais televisão. E talvez
uma solitária lata de cerveja antes
de se deitar. Havia milhões de homens como ele por toda a América.
Edna saiu da banheira,
enrolou-se na toalha,
vestiu-se e saiu do apartamento. O carro ainda estava lá.
Anotou o nome do homem, Joe Lighthill, e o número do telefone. Leu a parte datilografada novamente. “Películas cinematográficas.” Que termo estranho para se usar. Agora as
pessoas dizem “filmes”. PROCURA-SE MULHER.
O aviso era muito ousado.
Estava diante de um sujeito
original.
Quando Edna chegou em casa, tomou três xícaras
de café antes de discar o
número.
O telefone chamou quatro vezes.
— Alô? – ele respondeu.
— Sr. Lighthill?
— Sim?
— Vi seu anúncio. Seu anúncio no carro.
— Ah, sim.
— Meu nome é Edna.
— Como vai, Edna?
— Ah, vou bem. Tem feito tanto calor. Esse tempo está demais.
— Sim,
nada fácil.
— Bem,
sr. Lighthill...
— Me chame apenas
de Joe.
— Bem,
Joe, rá rá rá, me sinto tão boba. Sabe por que estou telefonando?
— Você viu meu aviso?
— Quero dizer, rá rá rá, o que há de errado com
você? Não consegue
arranjar uma mulher?
— Acho que não,
Edna. Me diga, onde elas estão?
— As mulheres?
— Sim.
— Ah, por toda parte,
veja bem.
— Onde? Me diga. Onde?
— Bem, na igreja, veja bem. Há mulheres na igreja.
— Não gosto de igrejas.
— Ah.
— Escute, porque você não vem para cá, Edna?
— Quer dizer para sua casa?
— Sim. Moro em um lugar legal.
Podemos tomar um drinque, conversar. Sem pressão.
— Está tarde.
— Não está tão tarde. Escute, você viu meu aviso. Deve estar interessada.
— Bem...
— Você está com medo, é só isso. Está apenas com medo.
— Não, não estou com
medo.
— Então venha pra cá, Edna.
— Bem...
— Venha.
— Certo. Vejo você em quinze minutos.
O apartamento ficava no último andar de um condomínio moderno. Número 17.
A piscina abaixo
refletia as luzes. Edna bateu. A porta se abriu e lá estava o sr. Lighthill: entradas
frontais, nariz aquilino
com pelos que saíam pelas
narinas, a camisa aberta na altura do
pescoço.
— Entre, Edna...
Entrou, e a porta se fechou atrás dela. Trazia seu
vestido azul de seda.
Estava sem meias, de sandálias, e fumando um cigarro.
— Sente-se, vou pegar
uma bebida para você.
Era um lugar agradável.
Tudo nas cores azul e verde e muito limpo.
Ela ouviu o sr. Lighthill cantarolar surdamente,
enquanto preparava as bebidas, hmmmmmmm,
hmmmmmmm, hmmmmmmm... Ele parecia tranquilo e isso a ajudou
a descontrair.
O sr. Lighthill – Joe – voltou com as bebidas.
Alcançou a Edna a sua e então sentou-se em uma cadeira
do outro lado da sala.
— Sim – ele
disse –, tem feito muito calor,
um calor infernal. Mas tenho ar- condicionado.
— Notei. É muito bom.
— Tome a sua bebida.
— Ah, claro.
Edna tomou um gole. Era
uma boa bebida, um pouco forte, mas com um gosto agradável. Observou Joe inclinar a cabeça enquanto
bebia. Ele parecia ter
rugas profundas em torno
do pescoço. E suas calças estavam
muito folgadas. Pareciam ser de uma numeração muito maior. Davam a suas
pernas uma aparência cômica.
— É um belo vestido, Edna.
— Gosta?
—
Oh, sim. Você é bem fornida.
O vestido fica muito bem em você, muito
bem.
Edna não disse nada. E Joe também não. Apenas permaneceram sentados, olhando um para o outro e bebericando suas bebidas.
Por que ele não fala?,
pensou Edna. É ele quem tem de falar. Havia nele algo que lembrava madeira,
sim. Ela terminou seu drinque.
— Deixe-me preparar
outra bebida para você – disse Joe.
— Não, realmente está na minha hora.
— Ora, vamos lá – ele disse –, deixe-me
preparar outra bebida. Precisamos de algo para relaxar.
— Tudo bem, mas depois vou embora.
Joe foi até a cozinha com os copos. Ele não estava mais cantarolando.
Voltou, alcançou a Edna um copo e
sentou-se novamente em sua cadeira do
outro lado
da sala, em frente à cadeira
dela. A bebida
estava ainda mais forte.
— Sabe – ele disse –, me dou bem nesses testes
sobre sexo das revistas.
Edna tomou um gole de sua bebida e não
respondeu.
— Como você se sai nesses testes?
– Joe perguntou.
— Nunca fiz nenhum.
— Deveria, sabe, assim você descobre quem e o que você é.
— Acha que esses testes funcionam? Já vi nos jornais. Nunca fiz nenhum,
mas
já vi
– disse Edna.
— Claro que funcionam.
— Talvez eu não seja boa em sexo – disse Edna –, talvez
seja por isso que
estou sozinha.
Ela bebeu
um longo gole de
seu copo.
— Cada um de nós
está, no final,
sozinho – disse Joe.
— Como assim?
— Quero dizer,
não importa quão bem a coisa esteja indo no sexo, no amor ou em ambos,
chega um dia em que tudo
acaba.
— Isso é triste – disse Edna.
— Claro que é. Então chega o dia em que tudo acaba. Ou há uma separação ou a coisa toda se resolve em uma trégua:
duas pessoas vivendo
juntas sem sentir
nada. Acho
que ficar sozinho é melhor.
— Você se divorciou da sua esposa,
Joe?
— Não. Ela se divorciou
de mim.
— O que deu errado?
— Orgias sexuais.
— Orgias sexuais?
— Veja bem, uma orgia
sexual é o lugar mais solitário do mundo. Essas orgias... fiquei com uma sensação de desespero... aqueles caralhos
entrando e saindo... me desculpe...
— Tudo bem.
— Aqueles caralhos
entrando e saindo, pernas enlaçadas, dedos trabalhando, bocas,
todo mundo se agarrando
e suando e determinados a fazer a coisa toda... de alguma forma.
— Não sei muito sobre
essas coisas, Joe – disse
Edna.
— Acho que sem amor,
sexo não é nada. As coisas só podem representar alguma coisa quando existe algum sentimento entre os participantes.
— Quer dizer
que as pessoas têm que gostar umas das outras?
— Ajuda.
— Imagine que eles se cansem uns dos outros?
Imagine que tenham que continuar juntos? Por economia? Filhos? Essas coisas?
— Orgias não os manterão
juntos.
— E o que manteria?
— Bem, não sei. Talvez
o suingue.
— O suingue?
— Você sabe, quando dois casais se conhecem muito bem
e trocam parceiros. Os sentimentos têm, pelo
menos, uma chance. Por exemplo, digamos que eu
sempre tenha gostado
da esposa de Mike. Gosto
dela há meses. Já a observei caminhar pela sala. Gosto dos movimentos
dela. Os movimentos me deixaram curioso. Imagino,
você sabe, o que
vem depois desses movimentos. Já
a vi braba, já a vi bêbada, já a vi sóbria. E então, vem o
suingue. Você está no quarto com ela, finalmente você a está conhecendo.
Há uma chance de algo real.
É claro, Mike está com a sua esposa no outro
quarto. Você pensa: “Boa sorte,
Mike, e espero que você seja tão
bom amante quanto eu”.
— E isso dá certo?
— Bem, não sei... Suingues
podem causar dificuldades... mais tarde. Tudo tem que ser combinado... muito bem combinado, antecipadamente. E então pode ter pessoas que não se conheçam bem o suficiente, não importa quanto tenham conversado.
— Você é um desses,
Joe?
— Bem, esse negócio de suingue pode ser bom para alguns...
talvez seja bom para muitos. Acho que não daria certo para mim. Sou muito puritano.
Joe terminou sua bebida. Edna bebeu o
restante da sua e se levantou.
— Escute, Joe, tenho que ir...
Joe caminhou através da sala na direção
dela. Ele parecia um elefante naquelas calças. Ela viu suas orelhas
grandes. Então ele a agarrou e começou a beijá-la. Seu mau hálito
vencia todas as bebidas. Ele tinha um cheiro muito azedo. Parte de sua boca não estava fazendo contato. Era forte, mas sua força não era pura,
sua força claudicava. Ela afastou seu rosto para longe e mesmo assim ele a mantinha
presa.
PROCURA-SE
MULHER
— Joe, me solta! Você está indo muito rápido,
Joe! Me solte!
— Para que você veio aqui, sua puta?
Ele tentou beijá-la
novamente e conseguiu. Era horrível. Edna ergueu o joelho. Acertou-o em cheio.
Ele se dobrou e caiu no tapete.
— Deus, deus...
por que você fez isso? Você tentou
me matar...
Ele rolava no chão.
Seu traseiro, ela pensou, ele tinha uma bunda tão feia.
Deixou-o rolando no tapete e desceu as escadas
correndo. O ar estava limpo lá
fora. Ela ouviu pessoas conversando, ouviu seus aparelhos de televisão. Não era uma caminhada muito longa até seu
apartamento. Sentiu necessidade de outro banho, livrou-se do seu vestido de seda azul e
se lavou. Então saiu da banheira, secou-se com a toalha e ajeitou
os rolos em seus cabelos.
Decidiu que nunca mais
o veria.
[1973]
(In: Ao sul de lugar nenhum: histórias da vida subterrânea. (Contos). Tradução de Pedro Gonzaga. L&PM Pocket, 2010, versão disponível em www.lpm.com.br)
***
O corpo
Clarice
Lispector
Xavier
era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos.
Foi ver O último tango em Paris e
excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de
filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado.
Na
noite em que viu O último tango em Paris
foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que
Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.
Cada
noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo.
Uma não tinha ciúme da outra.
Beatriz
comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra.
A
noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam
exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum –
com gordas colheres de grosso creme de leite – e levou-o para Beatriz e Xavier.
Estava extremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em
forma de novo.
Nesse
dia – domingo – almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a
gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas
comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e
ameixas, tudo úmido e bom.
Às
seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero
de Ravel.
E
de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu
nada: os três estavam muito cansados.
E
assim era, dia após dia.
Xavier
trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às
vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois
não era doido.
Passaram-se
dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem
tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta.
A
vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas
cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas
banhas, escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha.
Um
dia Xavier chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele
estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três
mosqueteiros.
Xavier
chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanha.
Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a
indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas
irem os três a Montevidéu, para um hotel de luxo.
Foi
uma tal azáfama a preparação das três malas.
Carmem
levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma minissaia.
Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas.
Em
Montevidéu compraram tudo o que quiseram. Inclusive uma máquina de costura para
Beatriz e uma máquina de escrever que Carmem quis para aprender a manipulá-la.
Na verdade não precisava de nada, era um pobre desgraçada. Mantinha um diário:
anotava nas páginas do grosso caderno encadernado de vermelho as datas em que
Xavier a procurava. Dava o diário a Beatriz para ler.
Em
Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e
elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões.
Então
compraram um receituário em castelhano. E se esmeraram nos molhos e sopas.
Aprenderam a fazer rosbife. Xavier engordou três quilos e sua força de touro
acresceu-se.
Às
vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem
homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.
Um
dia contaram esse fato a Xavier.
Xavier
vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim
encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizou-se
danadamente.
Durante
três dias ele não disse nenhuma palavra às duas.
Mas,
nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso.
Ao
teatro os três não iam. Preferiam ver televisão. Ou jantar fora.
Xavier
comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para
mastigar, além de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava
com nojo e vergonha. Sem-vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela
casa.
Não
se sabe como começou. Mas começou.
Um
dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar que
estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram cada uma um
pedaço de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este corria feito um
desesperado, gritando: perdão! perdão! perdão!
As
duas, também cansadas, afinal deixaram de persegui-lo.
Às
três da manhã Xavier teve vontade de ter mulher. Chamou Beatriz porque ela era
menos rancorosa. Beatriz, mole e cansada, prestou-se aos desejos do homem que
parecia um super-homem.
Mas
no dia seguinte avisaram-lhe que não cozinhariam mais para ele. Que se
arranjasse com a terceira mulher.
As
duas de vez em quando choravam e Beatriz preparou para ambas uma salada de
batata com maionese.
De
tarde foram ao cinema. Jantaram fora e só voltaram para casa à meia-noite.
Encontrando um Xavier abatido, triste e com fome. Ele tentou explicar:
—
É porque às vezes tenho vontade durante o dia!
—
Então, disse-lhe Carmem, então por que não volta para casa?
Ele
prometeu que assim faria. E chorou. Quando chorou, Carmem e Beatriz ficaram de
coração partido. Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeu-se
de inveja.
Como
é que começou o desejo de vingança? As duas cada vez mais amigas e
desprezando-o.
Ele
não cumpriu a promessa e procurou a prostituta. Esta excitava-o porque dizia
muito palavrão. E chamava-o de filho da puta. Ele aceitava tudo.
Até
que veio um certo dia.
Ou
melhor, uma noite. Xavier dormia placidamente como um bom cidadão que era. As duas
ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava na infância
perdida. E pensaram na morte. Carmem disse:
—
Um dia, nós três morreremos.
Beatriz
retrucou:
—
E à toa.
Tinham
que esperar pacientemente pelo dia em que fechariam os olhos para sempre. E Xavier?
O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo.
—
Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? perguntou Beatriz.
Carmem
pensou, pensou e disse:
—
Acho que devemos as duas dar um jeito.
—
Que jeito?
—
Ainda não sei.
—
Mas temos que resolver.
—
Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço.
E
nada de fazerem nada. Daqui a pouco seria madrugada e nada teria acontecido. Carmem
fez para as duas um café bem forte. E comeram chocolate até à náusea. E nada,
nada mesmo.
Ligaram
o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. Era piano puro. Carmem
disse:
—
Tem que ser hoje.
Carmem
liderava e Beatriz obedecia. Era uma noite especial: cheia de estrelas que as
olhavam faiscantes e tranquilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas
para perto de Xavier para ver se se inspiravam. Xavier roncava. Carmem realmente
inspirou-se.
Disse
para Beatriz:
—
Na cozinha há dois facões.
—
E daí?
—
E daí nós somos duas e temos dois facões.
—
E daí?
—
E daí, sua burra, nós duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos
fazer. Deus manda.
—
Não é melhor não falar em Deus nessa hora?
—
Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço
e do tempo.
Então
foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam força?
Teriam,
sim.
Foram
armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o
cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido de
Xavier.
O
rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício.
Carmem
e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da
lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As
duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o
seu grande amor.
E
agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo
pesava.
Então
as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova.
E,
no escuro da noite – carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque
Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o
espírito. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava.
Puseram
o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do
jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e
revigoraram-se um pouco.
Beatriz,
muito romântica que era – vivia lendo fotonovelas onde acontecia amor
contrariado ou perdido – Beatriz teve a ideia de plantarem rosas naquela terra
fértil.
Então
foram de novo ao jardim, pegaram uma muda de rosas vermelhas e plantaram-na na
sepultura do pranteado Xavier. Amanhecia. O jardim orvalhado. O orvalho era uma
bênção do assassinato. Assim elas pensaram, sentadas no banco branco que lá
havia.
Passaram-se
dias. As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam. Quando anoitecia
a tristeza caía sobre elas. Não tinham mais gosto de cozinhar. De raiva,
Carmem, a colérica, rasgou o livro de receitas em francês. Guardou o
castelhano: nunca sabia se ainda não seria necessário.
Beatriz
passou a ocupar-se da cozinha. Ambas comiam e bebiam em silêncio. O pé de rosas
vermelhas parecia ter pegado. Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido.
E
assim ficaria encerrado o problema.
Mas
acontece que o secretário de Xavier estranhou a longa ausência. Havia papéis
urgentes a assinar. Como a casa de Xavier não tinha telefone, foi até lá. A casa
parecia banhada de mala suerte. As duas
mulheres disseram-lhe que Xavier viajara, que fora a Montevidéu. O secretário
não acreditou muito mas pareceu engolir a história.
Na
semana seguinte o secretário foi à Polícia. Com Polícia não se brinca. Antes os
policiais não quiseram dar crédito à história. Mas, diante da insistência do
secretário, resolveram preguiçosamente dar ordem de busca na casa do polígamo. Tudo
em vão: nada de Xavier.
Então
Carmem falou assim:
—
Xavier está no jardim.
—
No jardim? Fazendo o quê?
—
Só Deus sabe o quê.
—
Mas nós não vimos nada nem ninguém.
Foram
ao jardim: Carmem, Beatriz, o secretário de nome Alberto, dois policiais, e
mais dois homens que não se sabia quem eram. Sete pessoas. Então Beatriz, sem
uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida. Três homens abriram a cova,
destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana.
E
viram Xavier. Estava horrível, deformado, já meio roído, de olhos abertos.
—
E agora? disse um dos policiais.
—
E agora é prender as duas mulheres.
— Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela.
—
Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir
que nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.
—
Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em Montevidéu.
Não nos deem maiores amolações.
As
duas disseram: muito obrigada.
E
Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.
[1974]
(In: A via crucis do corpo. (Contos). Rio de Janeiro:
Rocco, 1998, p. 21 a 28).
***
Um agregado (Capítulo de um livro inédito)
Machado de Assis
O afogado
Rubem Braga
Não, não dá pé. Ele já se sente cansado, mas compreende que ainda precisa nadar um pouco. Dá cinco ou seis braçadas, e tem a impressão de que não saiu do lugar. Pior: parece que está sendo arrastado para fora. Continua a dar braçadas, mas está exausto.
A força dos músculos esgotou-se; sua respiração está curta e opressa. É preciso ter calma. Vira-se de barriga para cima e tenta se manter assim, sem exigir nenhum esforço dos braços doloridos. Mas sente que uma onda grande se aproxima; mal tem tempo para voltar-se e enfrentá-la. Por um segundo pensa que ela vai desabar sobre ele, e consegue dar duas braçadas em sua direção. Foi o necessário para não ser colhido pela arrebentação; é erguido, e depois levado pelo repuxo. Talvez pudesse tomar pé, ao menos por um instante, na depressão da onda que passou. Experimenta; não. Essa tentativa frustrada irrita-o e cansa-o. Tem dificuldade em respirar, e vê que já vem outra onda. Seria melhor talvez mergulhar, deixar que ela passe por cima ou o carregue; mas não consegue controlar a respiração e fatalmente engoliria água; com o choque perderia os sentidos. É outra vez suspenso pela água e novamente se deita de costas, na esperança de descansar um pouco os músculos e regular a respiração; mas vem outra onda imensa. Os braços negam-se a qualquer esforço; agita as pernas para se manter na superfície e ainda uma vez consegue escapar à arrebentação.
Está cada vez mais longe da praia, e alguma coisa o assusta:
é um grito que ele mesmo deu sem querer e parou no meio, como se o principal
perigo fosse gritar.
Tem medo de engolir água, mas tem medo principalmente daquele seu próprio grito rouco e interrompido. Pensa rapidamente que
se não for socorrido morrerá, que, apesar da praia estar cheia nessa manhã de sábado, o banhista da Prefeitura já deve ter se retirado; o horário agora é de morrer, e
não de ser salvo. Olha a praia e as pedras; vê muitos rapazes e moças, tem a impressão de que alguns o olham com indiferença. Terão ouvido seu grito? A imagem que retém melhor
é a de um rapazinho
que, sentado na pedra, procura tirar
algum espeto do pé.
A ideia de que precisará ser salvo incomoda-o muito; desagrada-lhe violentamente, e resolve que de maneira alguma pedirá socorro, mesmo porque naquela aflição já acha que ele não chegaria a tempo. Pensa insistentemente isto: calma, é preciso ter calma. Não apenas para salvar- se, ao menos para morrer direito, sem berraria nem escândalo. Passa outra onda, mais fraca; mas assim mesmo ela rebenta com estrondo. Resolve que é melhor ficar ali fora do que ser colhido por uma onda: com certeza, tendo perdido as forças, quebraria o pescoço jogado pela água no fundo. Sua respiração está intolerável, acha que o ar não chega a penetrar nos pulmões, vai só até a garganta e é expelido com aflição; tem uma dor nos ombros; sente-se completamente fraco.
Olha ainda para as pedras, e vê aquela gente confusamente; a água lhe bate nos olhos. Percebe,
entretanto, que a água o está levando
para o lado das pedras.
Uma onda mais forte pode arremessá-lo contra o rochedo;
mas, apesar de tudo, essa ideia lhe agrada. Sim, ele prefere ser lançado
contra as pedras, ainda que se arrebente
todo. Esforça-se na direção do lugar de onde saltou, mas acha longe demais; de súbito reflete que à sua esquerda deve haver também uma ponta de pedras. Olha. Sente-se tonto e pensa: vou desmaiar. Subitamente faz gestos desordenados e isso o assusta ainda mais; então reage e resolve, com uma espécie
de frieza feroz, que não fará mais esses movimentos idiotas, haja o
que houver; isso é pior do que tudo, essa epilepsia
de afogado. Sente-se
um animal vencido que
vai morrer, mas está frio e disposto
a lutar, mesmo sem qualquer força; lutar ao menos com a
cabeça, não se deixará enlouquecer pelo medo.
Repara, então, que realmente
está agora perto de uma pedra, coberta de mariscos
negros e grandes.
Pensa: é melhor que
venha uma onda fraca; se vier
uma muito forte serei jogado ali,
ficarei todo cortado, talvez bata com a cabeça na pedra ou não consiga me agarrar nela; e se não conseguir
me agarrar da primeira vez não terei mais nenhuma chance.
Sente, pelo puxão da água atrás de si, que uma onda vem, mas não olha para trás. Muda de ideia; se não vier
uma onda bem forte, não atingirá a pedra. Junta todos os restos de forças; a onda vem. Vê então que foi jogado sobre a pedra sem se ferir; talvez instintivamente tivesse usado sua experiência de menino, naquela praia onde passava as férias, e se acostumara a nadar até uma ilhota de pedra também coberta de mariscos.
Vê que alguém, em uma pedra mais alta, lhe faz sinais nervosos
para que saia dali, está em um lugar perigoso. Sim, sabe que está em um lugar perigoso, uma onda pode cobri-lo e arrastá-lo, mas o aviso o irrita; sabe
um pouco melhor do que aquele sujeito o que é morrer e o que é salvar-se, e demora ainda um segundo para se erguer, sentindo
um prazer extraordinário em estar deitado
na pedra, apesar do risco. Quando chega à praia e senta na areia está sem poder respirar, mas sente mais vivo do que antes o medo do perigo que passou.
“Gastei-me todo para
salvar-me, pensa, meio tonto; não valho mais nada”. Deita-se com a cabeça na
areia e confusamente ouve a conversa de uma barraca perto, gente discutindo
uma fita de cinema. Murmura, baixo,
um palavrão para eles; sente-se
superior a eles, uma idiota superioridade de
quem não morreu, mas podia perfeitamente estar morto, e portanto nesse caso não teria a menor importância, seria até ridículo de seu ponto
de vista tudo o que se pudesse discutir sobre uma fita de cinema. O mormaço lhe dá no corpo inteiro um infinito prazer.
[1953]
(In:
200 crônicas escolhidas. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Record, 1979, p. 133-136.)
***
O alienista
Machado de Assis
CAPÍTULO I
DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE
ORATES
As crônicas da vila de Itaguaí dizem
que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho
da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das
Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao
Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a
universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade,
é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e
entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as
leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou
com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de
um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas
perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e
disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições
fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia
regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para
dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, - únicas
dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições,
longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de
preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da
consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr.
Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência
é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois
cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os
escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às
universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen
alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne
de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência,
- explicável, mas inqualificável, - devemos a total extinção da dinastia dos
Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de
curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na
prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou
especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral.
Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante
matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a
ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de
"louros imarcescíveis", - expressão usada por ele mesmo, mas em um
arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos
sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a
ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim
Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros
pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos
dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria
casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do
benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu
desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e
tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais
vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a
família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de
toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se
desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na
mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não
faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre
Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro.
Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada, foi ter com
o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de
vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo
fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou
a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à
Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência,
que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um
imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos
pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em
Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois
penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um
coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta
quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última
bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do
rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na
empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse
ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos
os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o
médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a
casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta
janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes.
Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os
doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A
ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa;
mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a
Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe
contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo,
por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em
Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas,
e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para
assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam
recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a
caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a
glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas.
Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir
visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do
século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto, - e este fato é um
documento altamente honroso para a sociedade do tempo, - porquanto viam nela a
feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja,
era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as
festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.
CAPÍTULO II
TORRENTES DE LOUCOS
Três dias depois, numa expansão íntima
com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu
coração.
— A caridade, Sr. Soares, entra decerto
no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim
que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se
pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. O principal nesta minha obra
da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus,
classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio
universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom
serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o
boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista,
pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas as vilas e
arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram
monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro
meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos;
mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que
não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o
inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que
todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico,
ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e
latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria
acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na
rua!
— Não digo que não, respondia-lhe o
alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos
os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se
pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a
Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las
agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a
explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um
instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente
científica, e disso trato...
— Vá que seja, e fico ansioso.
Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro,
mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de
vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as
pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a
perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre,
sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à
procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir
um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no
encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com
os maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado
estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos
fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares
notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava
às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia,
que era esta:
— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou
a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura
engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde,
que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo
com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão,
que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania
era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas
a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de
monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus,
dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e
as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não
dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só
palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era
o poder que recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o
alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do
alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na
Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um
pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares,
aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento
que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e
assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar
do seu ofício.
— A Casa Verde, disse ele ao vigário, é
agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual.
E o Padre Lopes ria deste pio trocado, - e acrescentava, - com o único fim de
dizer também uma chalaça: - Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo
denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o
alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os
primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou
às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas.
Isto feito, começou um estudo aturado e
contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões,
as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos
enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes
da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família,
uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia
notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno
extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham
nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade
e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal
dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora
interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um
cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
CAPÍTULO III
DEUS SABE O QUE FAZ!
Ilustre dama, no fim de dois meses,
achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou
amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe
nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas
padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe
perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois
atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como
dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de
lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a
levantando os olhos ao teto, - os olhos, que eram a sua feição mais insinuante,
- negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao
gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em
casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o
perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe
as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe
atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer
consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso,
eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a
água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais
filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:
— Consinto que vás dar
um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão
debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse
sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que
Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo.
Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior,
agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa
cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de
menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta.
Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu, - um sorriso tanto ou quanto
filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:
— “Não há remédio certo para as dores da
alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de
Janeiro, e consola-se”. E porque era homem estudioso tomou nota da observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D.
Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não
ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.
— Irá com sua tia, redarguiu o
alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado
nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque
seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor,
mais metódico e racional que a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro que será preciso
gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.
— Que importa? Temos ganho muito, disse
o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou
deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde
estava o dinheiro.
Deus! eram montes de ouro, eram mil
cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência.
Enquanto ela comia o ouro com os seus
olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida
das alusões:
— Quem diria que meia dúzia de
lunáticos...
D. Evarista compreendeu, sorriu e
respondeu com muita resignação:
— Deus sabe o que faz!
Três meses depois efetuava-se a
jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre
que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí
cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu
dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para
todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem
abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de
ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava
naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e
policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia
achar-se ali misturado com a gente de juízo.
— Adeus! soluçaram enfim as damas e o
boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao
tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que
vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante,
deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do
vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa
o futuro com todas as suas auroras.
CAPÍTULO IV
UMA TEORIA NOVA
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas,
vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados
uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo
o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua,
ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e
virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heroicos.
Um dia de manhã, - eram passadas três
semanas, - estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram
dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
— Trata-se de negócio importante,
segundo ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio
importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da
mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem
nele os cronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram
separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que
os fâmulos lhe ouviam muita vez: - “Anda, bem feito, quem te mandou consentir
na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr.
Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão,
vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro,
biltre!” - E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros,
quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão
depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria
própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.
— Estou muito contente, disse ele.
— Notícias do nosso povo? perguntou o
boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e
respondeu:
— Trata-se de coisa mais alta, trata-se
de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a
assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares,
senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma
experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos,
era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um
continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o
pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele
a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com
grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na
história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo
de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou
com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio
familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano,
Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham
entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de
uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até
acrescentou sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco
a sério.
— Gracioso, muito gracioso! exclamou
Crispim Soares levantando as mãos ao céu.
Quanto à ideia de ampliar o território
da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno
de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre
entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso
de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele
tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não
dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de
cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz; - ou por meio
de matraca.
Eis em que consistia este segundo uso.
Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com
uma matraca na mão.
De quando em quando tocava a matraca,
reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, - um remédio para sezões,
umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da
vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a
paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía.
Por exemplo, um dos vereadores, - aquele justamente que mais se opusera à
criação da Casa Verde, - desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras
e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado
de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas
pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação
perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade,
verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do
nosso século.
— Há melhor do que anunciar a minha ideia,
é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.
E o boticário, não divergindo
sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela
execução.
— Sempre haverá tempo de a dar à
matraca, concluiu ele.
Simão Bacamarte refletiu ainda um
instante, e disse:
— Suponho o espírito humano uma vasta
concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão;
por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da
loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí
insânia, insânia e só insânia.
O Vigário Lopes a quem ele confiou a
nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra
absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia
princípio de execução.
— Com a definição atual, que é a de
todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas.
Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do
alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha
casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.
A ciência contentou-se em estender a
mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia
crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.
CAPÍTULO V
O TERROR
Quatro dias depois, a população de
Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa
Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi recolhido hoje de
manhã.
— Mas, na verdade, ele não merecia...
Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...
Costa era um dos cidadãos mais
estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei
Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no
testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança,
como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil
a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco
anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria
enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da
abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria,
gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao
chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com
intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre
lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os
que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com
maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis
devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um
desafeiçoado, com certa perfídia: - “Você suporta esse sujeito para ver se ele
lhe paga”. Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida.
– “Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no
céu”. Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato,
atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira.
Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar
que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de
empréstimo ao devedor.
— “Agora espero que”... - pensou ele sem
concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a
crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos
daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram
bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas.
Um verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas
isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte
cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da
grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro
logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses
depois era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a consternação de Itaguaí,
quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa
ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que
eram furiosos, sombrios, terríveis, - ou mansos, e até engraçados, conforme as
versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um
pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o
tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava
esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a
ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que
intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a
procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista
disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito
equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais
que...
— Isso, não! isso, não! interrompeu a
boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não
é dele.
— Não?
— Não, senhor. Eu lhe digo como o
negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava
furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo
antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como
ficou.
A cara era um pimentão; todo ele
tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio,
cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe
fale n alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou
para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga: - "Todo o seu
dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser
o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso
no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um
par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão
polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir
falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na
galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre
Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer,
que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora
perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um
infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um
romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do
Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era
claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava,
pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a
capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras
coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia
jurar.
— Você, que é íntimo dele, não nos podia
dizer o que há, o que houve, que motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse
interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma
consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o
privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande
homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão
jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não
respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos,
encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos,
que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
— “Há coisa,” pensavam os mais
desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de
ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa
suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais, -
a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que
se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas, - e o jardim,
que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no
fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim
pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na
contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa
Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia
choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa
do albardeiro, - um simples albardeiro, Deus do céu!
— Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes,
de manhã.
De manhã, com efeito, era costume do
Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante
uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o
cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria
riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível,
mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
— Agora lá está o Mateus a ser
contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de
tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus
postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de
branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de
todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto
que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre
Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário,
quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das
pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo
de contemplar a casa...
— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim
Soares.
— Não?
— Há de perdoar-me, mas talvez não saiba
que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o
admiram a ele e à obra. - E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde
cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos
de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou
nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta
ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias
de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma
intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço
para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava ao seu
privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que
estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as
mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer
que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele.
Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da
casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante,
devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus,
apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de
Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! Triste!
não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
— A Casa Verde é um cárcere privado,
disse um médico sem clínica.
Nunca uma opinião pegou e grassou tão
rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a
oeste de Itaguaí, - a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à
captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, - duas ou três de
consideração, - foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram
admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se
as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania
do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em
Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,
com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam
nada, tal era o produto diário da imaginação pública.
Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa
do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, - ou
quase toda -, que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi
recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros
magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é
considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história
moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas,
ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se
ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a
uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um
diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os
braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois
minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se
em marcha.
D. Evarista era a esperança de Itaguaí;
contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações
públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e
damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes - porque o eminente
Bacamarte confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo -
D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O
vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado
anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada, que era a coisa mais bela que
podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela
fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o
chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas - feitas de metal e despejando água
pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de
Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não
admira, maior do que Itaguaí, e, de mais a mais, sede do governo... Mas não se
pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa
Verde...
— A propósito de Casa Verde, disse o
Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem
achá-la muito cheia de gente.
— Sim?
— É verdade. Lá está o Mateus...
— O albardeiro?
— O albardeiro; está o Costa, a prima do
Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
— Tudo isso doido?
— Ou quase doido, obtemperou o padre.
— Mas então?
O vigário derreou os cantos da boca, à
maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não
pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente
extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos?
Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à
Casa Verde sem prova evidente de loucura.
— Sem dúvida... sem dúvida... ia
pontuando o vigário.
Três horas depois, cerca de cinquenta
convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das
boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos
de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo
Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida,
consolação; trazia nos olhos duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim
Soares, e dois sóis, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas
um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito dizia ao ouvido
da mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista
fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando
três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma.
Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete
acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o
nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus,
disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa
pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma
ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”
D. Evarista baixou os olhos com
exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa,
interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista
pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e, provavelmente, de sangue. O
atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que
removesse qualquer episódio trágico, - ou que o adiasse, ao menos para o dia
seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir, consigo
mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser
atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos
fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta ideia fê-la tremer outra vez,
embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e,
levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que
era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia
relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor
que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe
adequada a um arroubo oratório. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do
que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode
à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão
aspérrimo do Nada", esmagado pelas "garras vingadoras do Todo";
e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e
raras, das imagens grandes e nobres...
“Pobre moço!” pensou o alienista. E
continuou consigo: “Trata-se de um caso de lesão cerebral; fenômeno sem
gravidade, mas digno de estudo...”
D. Evarista ficou estupefata quando
soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço
que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do
alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora
audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em
seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico
das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror
acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As
mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa
Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um
ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses
fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta
anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem
levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a
vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a
um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das
cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes
pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava
diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia
era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o
deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar
de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o
trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e
conduzido à Casa Verde.
— Devemos acabar com isto!
— Não pode continuar!
— Abaixo a tirania!
— Déspota! violento! Golias!
Não eram gritos na rua, eram suspiros
em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a
rebelião. A ideia de uma petição ao governo para que Simão Bacamarte fosse
capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio
a expendesse na loja, com grandes gestos de indignação. Note-se, - e essa é uma
das laudas mais puras desta sombrio história - note-se que o Porfírio, desde
que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu
crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe
pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público.
E acrescentava: - é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse
grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um
homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.
— Não me dirão em que é que o Coelho é
doido? bradou o Porfírio,
E ninguém lhe respondia; todos repetiam
que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o
barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e
não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados
que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alegando andar
com pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc.
Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos,
e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras,
mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes, que cultivava o Dante, e era
inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e
emendasse este trecho:
La bocca sollevò dal fiero pasto Quel
"seccatore"...
mas uns sabiam do ódio do padre, e
outros pensavam que isto era uma oração em latim.
CAPÍTULO VI
A REBELIÃO
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao
barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.
A Câmara recusou aceitá-la, declarando
que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser
emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
— Voltai ao trabalho, concluiu o
presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme.
O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a
Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e
experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis, e algumas distintas,
outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o
despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto
que os loucos, ou supostos tais, não eram tratados de graça: as famílias, e em
falta delas a Câmara, pagavam ao alienista...
— É falso! interrompeu o presidente.
— Falso?
— Há cerca de duas semanas recebemos um
ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências
de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como
nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato tão nobre, tão
puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia
estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para
demonstrar o erro era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores.
Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de
alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato
público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde -
"essa Bastilha da razão humana", - expressão que ouvira a um poeta
local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e a um sinal todos saíram com
ele.
Imagine-se a situação dos vereadores;
urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao
mal, um dos vereadores, que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação
dada pelo barbeiro à Casa Verde – “Bastilha da razão humana”, - achou-a tão
elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma
medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado,
manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:
— Nada tenho que ver com a ciência; mas,
se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos
afirma que o alienado não é o alienista?
Sebastião Freitas, o vereador
dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo com prudência,
mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao
menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias
na rua, para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de
átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião
Freitas prometeu suspender qualquer ação reservando-se o direito de pedir pelos
meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: - “Bastilha
da razão humana!”
Entretanto, a arruaça crescia. Já não
eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha
familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe
o Canjica - e o movimento ficou célebre com o nome de revolta
dos Canjicas. A ação podia ser restrita, - visto que muita gente, ou por medo,
ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou
quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, - dada a
diferença de Paris a Itaguaí, - podiam ser comparados aos que tomaram a
Bastilha.
D. Evarista teve notícia da rebelião
antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa
ocasião um vestido de seda, - um dos trinta e sete que trouxera do Rio de
Janeiro, - e não quis crer.
— Há de ser alguma patuscada, dizia ela,
mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama de
cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora; eles
estão gritando: - Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí
do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca
azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar
igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o
tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua
Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de sangue.
No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a.
A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a
quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, um certo
movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a
realidade vinha jurar por ele.
— Morra o alienista! bradavam as vozes
mais perto.
D. Evarista, se não resistia facilmente
às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou;
correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou,
precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele,
empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro,
cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais.
D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à
terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
— Você não ouve estes gritos? perguntou
a digna esposa em lágrimas.
O alienista atendeu então; os gritos
aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da
cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e
tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume
desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte
cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à
mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.
— Não, não, implorava a digna senhora,
quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não, que não
era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que
ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.
— Abaixo a Casa Verde! bradavam os
Canjicas.
O alienista caminhou para a varanda da
frente, e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava,
defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de
desespero. - Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do
alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar;
os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então, o barbeiro,
agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos,
e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da
paciência do povo como fizera até então.
— Direi pouco, ou até não direi nada, se
for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.
— Não pedimos nada, replicou fremente o
barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos
infelizes que lá estão.
— Não entendo.
— Entendeis bem, tirano; queremos dar
liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso desse
grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração
leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é coisa
séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de
alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a
administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me
negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em
comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço,
porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a
rebeldes.
Disse isto o alienista, e a multidão
ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha
serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a
multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para
dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à
demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse
momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo;
pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do
alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e
constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o
seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado
por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou
nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez
a forca, ou o degredo. Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor
dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação,
e quis bradar-lhes: - Canalhas! covardes! - mas conteve-se e rompeu deste modo:
Meus amigos, lutemos até o fim! A
salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heroicas. Destruamos o
cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e
amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na
masmorra daquele indigno.
E a multidão agitou-se, murmurou,
bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que
tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde.
— Vamos! bradou Porfírio agitando o
chapéu.
— Vamos! repetiram todos.
Deteve-os um incidente: era um corpo de
dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.
CAPÍTULO VII
O INESPERADO
Chegados os dragões em frente aos
Canjicas houve um instante de estupefação: os Canjicas não queriam crer que a
força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e
esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse;
mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou
fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:
— Não nos dispersaremos. Se quereis os
nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa
honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.
Nada mais imprudente do que essa
resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises.
Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte
dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os
Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns,
trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar;
mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do
barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões, -
qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram, - passou subitamente
para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao
mesmo tempo que lançou o desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis
não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram
passando para eles, de modo que ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas
era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com alguma gente, contra uma
massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio, declarou-se vencido e
entregou a espada ao barbeiro.
A revolução triunfante não perdeu um só
minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara. Povo e
tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao
"ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a
espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória
cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a
eurijar-lhe os quadris.
Os vereadores, às janelas, vendo a
multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais
exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês
de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha
lançado uma cáfila de rebeldes.” Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas,
o vereador dissidente, cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas.
Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos
vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O
presidente não desanimou: - qualquer que seja a nossa sorte, disse ele,
lembremo-nos de que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo. - Sebastião
insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e
indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o barbeiro, acompanhado de
alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança, e intimava à Câmara a sua
queda. A Câmara não resistiu, entregou-se, e foi dali para a cadeia. Então os
amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de
Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse
(acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o
concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio
à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando
o barbeiro. Este tomou a denominação de – “Protetor da vila em nome de Sua
Majestade e do povo”. - Expediram-se logo várias ordens importantes,
comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com
muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma
proclamação ao povo, curta, mas enérgica:
“Itaguaienses!
Uma Câmara corrupta e violenta
conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública
tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos
dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime
consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva
ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço
senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a
fazenda pública, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos.
Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O Protetor da vila em nome de Sua
Majestade e do povo
Porfírio Caetano das Neves".
Toda a gente advertiu no absoluto
silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia
haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto
maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na
Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras, sendo um dos
homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas
todos o interpretaram dessa maneira, e a vila respirou com a esperança de que o
alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o
terrível cárcere.
O dia acabou alegremente. Enquanto o
arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo
espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos
gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro
faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o
vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era
aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre
Lopes recusou abertamente o seu concurso.
— Em todo caso, Vossa Reverendíssima não
se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à
fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o Padre Lopes respondeu, sem
responder:
— Como alistar-me, se o novo governo não
tem inimigos?
O barbeiro sorriu; era a pura verdade.
Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o
aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra
ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias
abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do
terrível Simão Bacamarte.
CAPÍTULO VIII
AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO
Vinte e quatro horas depois dos
sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,
- foi a denominação dada à casa da Câmara, - com dois ajudantes-de-ordens, e
dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais
decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não
obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror do boticário ao
ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. – “Vai prendê-lo”, pensou
ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário
naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem
se achou em mais apertado lance: - a privança do alienista chamava-o ao lado
deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da
sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade
do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa,
senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao
lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a
causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a
um cadáver. “Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni,” pensava
ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se
atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da
república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha
situação é outra Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra
saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.
— Lá vai o Porfírio à casa do Dr.
Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai
acompanhado de gente.
— “Vai prendê-lo”, pensou o boticário.
Uma ideia traz outra; o boticário
imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele, na
qualidade de cúmplice. Esta ideia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares
ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e apesar de todos os esforços e
protestos da consorte vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em
dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do
alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita
perspicácia, o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário
caminhou resolutamente ao palácio do governo, não à casa do alienista. Ali
chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os
seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E
tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração,
sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a
importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho;
afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde,
a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios;
disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao
que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso
mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.
CAPÍTULO IX
DOIS LINDOS CASOS
Não se demorou o alienista em receber o
barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava
prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir
pessoalmente à destruição da Casa Verde.
— Engana-se Vossa Senhoria, disse o
barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções
vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos
ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão
é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões
científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos
das mãos da Câmara dissolvida. Há, entretanto, - por força que há de haver um alvitre
intermédio que restitua o sossego ao espírito público.
O alienista mal podia dissimular o
assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a
prisão dele, o desterro, tudo, menos...
— O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou
gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo.
O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação,
pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade
que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa
situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e
corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no
ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar,
está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de
ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não deve, não
quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa
maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer.
Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer
retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim
os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos
alguma tolerância e benignidade.
— Quantos mortos e feridos houve ontem
no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou espantado da pergunta,
mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos!
repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou que o alvitre lhe
não parecia bom, mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe
daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera,
ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o
barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no
descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não
tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia
fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse
contar, não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de
Itaguaí, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera
fisionomia daquele grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem
modéstia, mas impassível como um deus de pedra.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos,
repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois
lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento
deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram não é
preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.
— Dois lindos casos!
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas
trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.
O alienista espiou pela janela e ainda
ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o
aclamavam:
— ... porque eu velo, podeis estar
certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e
tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos,
é a base do governo...
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram as
trinta vozes, agitando os chapéus.
— Dois lindos casos! murmurou o
alienista.
CAPÍTULO X
A RESTAURAÇÃO
Dentro de cinco dias, o alienista meteu
na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo governo. O povo
indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro
barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao
ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a
gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa
da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um
grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro
desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que
o ato de Porfírio era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia
crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a
difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação,
da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior,
deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás
subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de
uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas
francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc.
Nisto entrou na vila uma força mandada
pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega
do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos, que declarou
mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais
dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na
primeira rebelião.
Este ponto da crise de Itaguaí marca
também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis,
deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na
prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que
Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da
extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um
caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista,
desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos
Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na véspera, e
mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que
cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova
a ausência de nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama,
doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o
terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos
mais caracterizados.
Mas a prova mais evidente da influência
de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio
presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se
contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes
de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário
da Câmara, entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o
secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara, à qual declarou que o presidente
estava padecendo da "demência dos touros", um gênero que ele
pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio
hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta
desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do
mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse
logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os
fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida
alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé
enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as
namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um
impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia
do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a
completa sanidade mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempre
procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser
aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um
anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra
prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de
sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi
enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o
ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é
menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que,
não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto
à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos
usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião
mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa,
nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em
todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.
— Onde é que este homem vai parar?
diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...
Um dia de manhã - dia em que a Câmara
devia dar um grande baile, - a vila inteira ficou abalada com a notícia de que
a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou;
devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista
fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e
interrogou-o discretamente acerca do fato.
— Já há algum tempo que eu desconfiava,
disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os
matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e
pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então
comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe
falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se
uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita,
descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio
que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um
vestido para a imagem de Nossa Senhora da Matriz. Tudo isto eram sintomas
graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido,
preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só
hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me
qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu
a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. -
Que tem? perguntei-lhe. - Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira
tão bonito! - Pois leve o de safira. - Ah! mas onde fica o de granada? - Enfim,
passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e
meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante
dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a
demência; recolhi-a logo.
O Padre Lopes não se satisfez com a
resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que
o caso de D. Evarista era de "mania sumptuaria", não incurável, e em
todo caso digno de estudo.
— Conto pô-la boa dentro de seis
semanas, concluiu ele.
E a abnegação do ilustre médico deu-lhe
grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde
que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com
todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe - menos
ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates
forrado de Catão.
CAPÍTULO XI
O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ
E agora prepare-se o leitor para o
mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde
iam todos ser postos na rua.
— Todos?
— Todos.
— É impossível; alguns sim, mas todos...
— Todos. Assim o disse ele no ofício que
mandou hoje de manhã à Câmara
De fato, o alienista oficiara à Câmara
expondo: - 1o,: que verificara das estatísticas da vila e da Casa
Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele
estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levara-o a examinar os
fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía do
domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse
perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para
ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e
portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades
e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse
ininterrupto; 4o, que à vista disso declarava à Câmara que ia dar
liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se
achassem nas condições agora expostas; 5°, que, tratando de descobrir a verdade
científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara
igual dedicação; 6º, que restituía à Câmara e aos particulares a soma do
estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte
efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria
verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
O assombro de Itaguaí foi grande; não
foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças,
luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não
descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram
esplêndidas, tocantes e prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio
do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase
final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.
CAPÍTULO XII
O FINAL DO § 4º.
Apagaram-se as luminárias,
reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava
a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o
próprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro
Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o
poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa
Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às
calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da
vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido,
atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato
é que nasceu o nosso adágio: - ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;
- adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.
Não só findaram as queixas contra o alienista,
mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que
os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados,
sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos
entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação, e deram-lhe um
baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D.
Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor de
perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de
amor-próprio, e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima ficou a amizade do
alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a
prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a
magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mão de
amigo velho.
— É um grande homem, disse ele à mulher,
referindo aquela circunstância.
Não é preciso falar do albardeiro, do
Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente nomeados neste
escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores.
O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D.
Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico – “cujo altíssimo gênio,
elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais
espíritos da terra”.
— Agradeço as suas palavras,
retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à
liberdade.
Entretanto, a Câmara que respondera ao
ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em
relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adotada sem
debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas
que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque
a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de
que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser
experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara, antes mesmo daquele
prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de
ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum
caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi
aceita, votada e incluída na postura, apesar das reclamações do vereador
Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara, legislando sobre
uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das
consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas
palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez
do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a
exceção.
— A vereança, concluiu ele, não nos dá
nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com
todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria
profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula,
porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das
faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na
objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas
mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que
lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador
Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou unanimemente a entrega.
Compreende-se que, pela teoria nova,
não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso
um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por
exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário
quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação.
Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera, e declarando às pessoas a quem
encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do
alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos de dissidência, e
correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão
Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe
bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito
humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.
— Um caso destes é raro, disse ele à
mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares entrou. A dor vencera a
raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu
privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse
alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia
deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e
velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele
descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor trabalhará durante o dia na
botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os
domingos e dias santos.
A proposta colocou o pobre boticário na
situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa
Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da
dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os
recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este
último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco meses estavam alojadas
umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de
casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo,
levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma
desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia
cerebral. Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia
com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos
os seus atos, e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve
prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com
um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais
que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado,
pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um
testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano;
era o nome da pessoa em questão.
— Então parece-lhe...?
— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a
verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.
O homem foi ter com o advogado,
confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que lhe tomasse a
causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e
provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência
do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O
distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a
um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo
notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente,
reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão
melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde;
deu-lhe, todavia, um dos melhores cubículos.
Os alienados foram alojados por
classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava
esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de
símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de
sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam
contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A
Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a
licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão
Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse
ato de vingança pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns
principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e
afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele
se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro
respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as
leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca
consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera
autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o
fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido.
Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e
isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.
— O que é que me está dizendo? perguntou
o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com
os principais da vila.
Dois dias depois o barbeiro era
recolhido à Casa Verde. - Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o
infeliz.
Chegou o fim do prazo, a Câmara
autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios
terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e
tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me
com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de
convicção científica e abnegação humana.
CAPÍTULO XIII
PLUS ULTRA!
Era a vez da terapêutica. Simão
Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência
e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas
estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a
mais viva admiração em Itaguaí.
Com efeito, era difícil imaginar mais
racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo
a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte
cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele
aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo
às doses máximas, - graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a
posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma
cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a
moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às
distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão
Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr
matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.
— Foi um santo remédio, contava a mãe do
infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.
Outro doente, também modesto, opôs a
mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome),
não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de
pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos estabelecida em
Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por
especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de
Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou
o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio
honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um
caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o
fez sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a
ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.
— Realmente, é admirável! dizia-se nas
ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.
Tal era o sistema. Imagina-se o resto.
Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia
mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a
qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte,
aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza
por um ponto, se por outro o não pode conseguir.
No fim de cinco meses e meio estava
vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido
de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade,
porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação
corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do
alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte
na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não
aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava
perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da
versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo
de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário,
não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram
carinhos.
— Por que é que o Crispim não vem
visitar-me? dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora uma coisa, ora
outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a
indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões
soltas e vagas, como estas:
— Tratante!... velhaco!... ingrato!...
Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah!
tratante!...
Simão Bacamarte advertiu que, ainda
quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas
para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio
das faculdades; e prontamente lhe deu alta.
Agora, se imaginais que o alienista
ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso
que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua
divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o
contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não
ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria
nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.
— “Vejamos, pensava ele; vejamos se
chego enfim à última verdade.”
Dizia isto, passeando ao longo da vasta
sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua
Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda,
com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e
austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva
adquirida nas cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e
femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram
resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e
modesto latão. Vede a diferença: - só se lhe notava luxo naquilo que era de
origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da
singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia, o grande
alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho
a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral.
Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na
mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
— Mas deveras estariam eles doidos, e
foram curados por mim, - ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta
do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o
resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar
eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a
pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e
outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta conclusão, o ilustre
alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A
de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações,
constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: -
não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa
esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro
efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro
concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não
vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina
psicológica?
A aflição do egrégio Simão Bacamarte é
definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades
morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos;
os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois
alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
— “Sim, há de ser isso,” pensou ele.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em
si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que
possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade,
o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um
acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era
ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a
quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
— Nenhum defeito?
— Nenhum, disse em coro a assembleia.
— Nenhum vício?
— Nada.
— Tudo perfeito?
— Tudo.
— Não, impossível, bradou o alienista.
Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta
magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que
justifique os excessos da vossa bondade.
A assembleia insistiu; o alienista
resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um
observador:
— Sabe a razão por que não vê as suas
elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma
qualidade que realça as outras: - a modéstia.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a
cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato
continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram
que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem
sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
— A questão é científica, dizia ele;
trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo
a teoria e a prática.
— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a
esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o ilustre médico, com os olhos
acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e
brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à
cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no
mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao
ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas
esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não
tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre
Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como
for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.
[1881, A estação (jornal). 1882,
Papéis avulsos (livro de contos)]
(In: O alienista. São Paulo. Ática, 1992.)
A cartomante
Lima Barreto
Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer cousa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom “pistolão”, toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.
Queria fugir, fugir para bem longe,
onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas,
como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher
e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma
calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!
A certeza, porém, de que todas as suas
infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era “coisa
feita”, havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se
não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua
mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente,
entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.
Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa.
Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.
Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.”.
Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.
Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.
O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.
Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce.
Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito.
O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher.
[Publicação original em Outras histórias. 2ª ed. de Histórias e sonhos, 1951]
(In: Contos completos. Org. e Introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 302-303.)
Conto de verão n° 2: Bandeira branca
Luiz Fernando Veríssimo
Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não
podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro
anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e
entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e
ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira,
até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro
baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o
mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar
o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar,
pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo
todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
— Como é teu nome?
— Janice. E o teu?
— Píndaro.
— O quê?!
— Píndaro.
— Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
***
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se
encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela
morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
— Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a
boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se
recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora.
Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira branca, ele veio e a puxou pelo
braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se
despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu
correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias
dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal!
Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da
despedida, ele pediu:
— Me dá alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa.
— O leque.
O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
***
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à
procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não
conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o
leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la
outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma,
tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser
carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O
que acontecera?
— Você vomitou a alma — disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a
teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube — e lá
estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
— Sei lá. Bávara tropical — disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto.
Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
— E aquela bailarina espanhola?
— Nem me fala. E o toureiro?
— Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um
brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente
bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos
caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se.
Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas
presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão
tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos,
pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo
Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro.
Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná
clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e
amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez
até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro.
Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o
meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar
Bandeira branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que
alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para
o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo
“não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela
encostando a cabeça no seu ombro.
***
Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso,
num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe.
Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci
você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a
reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe
dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem,
no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais
aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe
como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia
nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa
bávara...
— O que você ia me dizer, no outro Carnaval? — perguntou ela. — Esqueci
— mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos
dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o
marido também é do Banco do Brasil... E a todas essas ele pensando: digo ou não
digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira branca, a
cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto
da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será
Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que
ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...
(In: Histórias brasileiras de verão. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1999)
Dentro
da noite
João do Rio
— Então causou sensação?
— Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela coitadita! parecia louca por ti e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
— Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, às onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio com o ar desvairado...
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste
muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um
olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá.
Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queirós, o mais elegante artista desta terra,
num trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os
pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgara a treva num silvo
alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele
badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes
das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a
tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da
banqueta próxima – o que falava mais – dizia para o outro:
— Mas como tremes, criatura de Deus!
Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou com a
maldita crise.
E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E
teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada
piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! É o fim, meu bom amigo, é
o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu
tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me,
não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me
inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne
Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos
convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam
a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar
com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto
decerto...
O rapaz que tinha o olhar desvairado
perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais – a não ser eu, e eu dormia
profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de
explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher - a beleza dos braços das Oreadas pintadas por Botticelli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei – uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer O desejo, porém, ficou, cresceu, brotou, enraizou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cosê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a
na sauterie da viscondessa de Lajes, com um vestido em que as
mangas eram de gaze. Os seus braços – oh! que braços, Justino, que braços! –
estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se
metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me: “—Rodolfo,
que olhar o seu. Está zangado?” Não foi possível reter o desejo que me punha a
tremer, rangendo os dentes. “— Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar
este alfinete no seu braço”. Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me
assustada, pensou, sorriu com tristeza: “— Se não quer que eu mostre os braços
por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?” “—
É , é isso, Clotilde.” E rindo – como esse riso devia parecer idiota! – continuei:
“— É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o
alfinete.” “— Está louco, Rodolfo?” “— Que tem?” “— Vai fazer-me doer” “— Não
dói.” “— E o sangue?” “— Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do
esquecimento.” E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando,
inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as fontes a bater, a
bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se
devia ou não resistir Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade,
de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao
cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro: “Bem.
Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!”. E os seus dois
braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca um
alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o
lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma
pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os
meus sentidos. Ela teve um ah! de
dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente: “— Mau!”
— Ah! Justino, não dormi. Deitado, a
delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando
devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer
tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a
certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo em
que forçava o pensamento a dizer: nunca mais farei essa infâmia! todos os meus
nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o
delírio, era a moléstia, era o meu horror...
Houve um silêncio. O trem corria em
plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O
sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante, Rodolfo. Não
há dúvida de que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de
Assis também é degeneração e o amor de Santa Tereza não foi outra coisa. Sabes
que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? É mais um tipo a enriquecer a
série enorme dos discípulos do marquês de Sade. Um homem de espírito já definiu
o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper civilizado, contenta-se com enterrar alfinetes nos
braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. E lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei,
imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com
um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos
ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o
sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na
penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho
exclamou: “— Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa”.
Eu estava louco, apenas. Não poderás
nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado
no sofá, o maelstrom de angústias, de
esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me à
garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos
acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que
subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o
alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.
Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo
um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação,
mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela
compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha
infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se
havia de fazer?... Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a
carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: “—
Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “— Fez...”
Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem,
se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes
pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia
de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que
tristeza!
De novo a voz calou-se. O trem
continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O
outro porém estava interessado e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu, perdeu as
cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não
tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a
hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “— Minha filha, o Rodolfo chegou.
Avia-te.” E ela de dentro: “—Já vou, mãe”. Que dor eu tinha quando a via
aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra,
hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses
pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada
viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa
onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho desfazendo o
compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais
resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras
ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento
total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito
dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil
foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso
de medo, de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma
eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses
entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de
nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra
alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao
acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito
mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas
gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre
se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tomara-se metálica,
outra. De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei, Justino, vinha a
acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo
está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...
De repente, num entrechocar de todos os
vagões o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois
ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram.
Nesse momento, uma menina loira com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou
o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os
apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas
mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme
massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados,
consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loira.
Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido,
fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava
incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no
outro vagão, no que estava a menina loira. Mas o comboio rasgara a treva com outro
silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas
viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes
empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva,
como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo
a treva de um clamor de desgraça e de delírio.
[1910]
(In: Os melhores contos – João do Rio.
São Paulo: Global Editora, 1990)
***
|
A língua do
“P”
Clarice Lispector
Maria Aparecida – Cidinha, como a chamavam em casa – era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.
Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.
Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.
Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale.
Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, e bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.
Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?
Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não entendeu palavra. Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem parecia-lhe vagamente familiar. Que língua era aquela?
De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do “p”. Assim:
— Vopocêpê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa?
— Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá nopo papapopo.
Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.
Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso demais para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:
— Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocêpê?
— Tampambémpém. Vapaipi serper nopo tupunelpel.
Queriam dizer que iam currá-la no túnel...O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí então é que piorava. Me socorre, Virgem Maria! Me socorre! Me socorre!
— Sepe repesispistirpir popodepemospos mapatarpar epelapa.
Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.
— Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.
Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.
Como lhes dizer que não era rica? Que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa. Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda. Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais – nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida era de si mesma – abriu os botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados.
— Tápá dopoipidapa.
Está doida, queriam dizer.
E ela a se requebrar que nem sambista do morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar.
Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel?
Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:
— Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação.
E a próxima estação veio.
O maquinista desceu, falou com um soldado por nome de— José Lindalvo. José Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram.
Os dois homens às gargalhadas.
Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.
Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua do “p” não tinha explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão.
Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara não era mais prostituta. O que a preocupava era o seguinte: quando os dois homens haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.
Chegou ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No aeroporto comprou a passagem.
E andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.
Pois foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E pendurado ali o jornal O Dia. Não saberia dizer por que comprou.
Em manchete negra estava escrito: “Moça currada e assassinada no trem”.
Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara.
Pôs-se a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou:
— Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel.
—
O destino é implacável.
[1974]
(In: A via crucis do corpo. Contos.
Rio
de
Janeiro:
Rocco,
1998, p. 67-70).
Boas
maneiras
Paul
Karrer
A cansada ex-professora
se aproximou do balcão do supermercado. Sua perna esquerda doía e ela esperava
ter tomado todos os comprimidos do dia: para pressão alta, tonteira e um grande
número de outras enfermidades.
“Graças a Deus eu me
aposentei há vários anos” – ela pensou. “Não tenho energia para ensinar hoje em
dia.” Imediatamente antes de se formar a fila para o balcão, ela viu um rapaz
com quatro crianças e uma esposa, ou namorada, grávida. A professora não pôde
deixar de notar a tatuagem em seu pescoço.
“Ele esteve preso”,
pensou.
Continuou a observá-lo.
Sua camiseta branca, cabelo raspado e calças largas levaram-na a conjeturar: “Ele
é membro de uma gangue.”
A professora tentou
deixar o homem passar na sua frente. – Você pode ir primeiro – ofereceu.
– Não, a senhora
primeiro – ele insistiu.
– Não, você está com
mais gente – disse a professora.
– Devemos respeitar os
mais velhos – defendeu-se o homem.
E, com isto, fez um
gesto largo indicando o caminho para a mulher.
Um breve sorriso adejou
em seus lábios enquanto ela mancou na frente dele. A professora que existia
dentro dela não pôde desperdiçar o momento e, virando-se para ele, perguntou:
– Quem lhe ensinou boas
maneiras?
– A senhora, Srª
Simpson, na terceira série.
(In: Histórias para aquecer o coração. Diversos
autores. Trad. Marina Colasanti e Fabiana Colasanti. Rio de Janeiro: Sextante,
1998. Versão disponibilizada na Internet)
***
Poesia até o infinito
Lygia Fagundes Telles
– Li o livro do Carlos Drummond
– ele disse. E prosseguiu com uma careta: – Horrível! Então aquilo é poesia? Eu também sou moderno,
gosto dos modernos, mas assim também é demais!
– Pela primeira vez ouvi hoje
alguns versos dele. Gostei muito! –
confessei.
– É impossível que você tenha gostado! – retorquiu o poeta.
– Ouça só esta maravilha que tive a paciência de decorar... (...) – Começou:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma
pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(...) Calou-se e ficou a me olhar ansiosamente. Dei uma
risada:
– Não acho horrível coisa nenhuma! Acho gozado – exclamei.
O moço da gravata-borboleta tirou então do bolso alguns
versos que compusera.
Leu-os. E depois disse:
– Como você acaba de ver, nos meus também não há rima nem
métrica. Mas há ideia e ritmo, compreendeu? Ao passo que...
– Sim, eu sei! – interrompi-o, impaciente. Não há como um dia
de mau humor para se dizer as verdades todas. Pensei naquele alexandrino e não
resisti. Disse-lhe: – Mas o fato é que já esqueci sua poesia. E não esqueci e “nunca
me esquecerei desse acontecimento” a que você acaba de se referir.
(...) Fui pela rua com o livro
debaixo do braço e pensando em meu exame. A nota era muito baixa e isto era uma
coisa aborrecida, apenas aborrecida. Mas inesquecível. Como se fosse uma pedra
no sapato. No sapato não, que também era demais. Mas uma pedra no meio do
caminho, bem no meio do caminho. Está claro que seria fácil contorná-la. Mas,
em redor de mim, fisionomias empedernidas também iam encontrando outras pedras:
um encontro desfeito por causa da garoa, uma carta que não chegou no momento
desejado, uma vaga que foi preenchida por outro... Pedras, pedras, pedras.
Haverá outros encontros, chegarão outras cartas, abrir-se-ão muitas outras
vagas. Mas a garoa caindo forte justamente naquele momento, e o carteiro
passando reto, e aquele sujeito sentado num lugar que quase foi nosso... Não,
esses acontecimentos nunca mais serão esquecidos.
Agora eu já não achava essa
poesia “gozada”. Tinha um autêntico gosto de vida e era um
gosto bem amargo.
(In: Suplemento
literário do jornal A Manhã. Rio de
Janeiro, 1º de maio de 1948. Versão disponível na Internet)
***
Tem base?
Adélia Prado
Tudo quanto é novidade, pra cima de mim: dor nas costas, no estômago, boca amargando com gosto de fel, de azinhavre, de cabo de sombrinha. Como, fico cheia, não como, fico fraca. Do começo da goela até na boca do estômago, como se tivesse um talo de bambu enfiado, uma espécie de tristeza me sujando. Doutor falava: põe a mão onde que dói. Eu punha, ele explicava: aí não é estômago não, é intestino. É doutor? É, e ninguém tem fígado não senhora. Fígado só adoece de duas coisas, cirrose e câncer. Aí eu gelava.
Foi indo, foi indo, eu tirei chapa, deitada, de costas,
em pé, não deu absolutamente nada. Sabe o que mais? Tomei foi remédio pra toda
qualidade de verme. Tem base? Melhor. Graças a Deus! Agora, posso encarangar de
frio sem preocupação, porque ô frio que tá fazendo! Riqueza pra mim era se eu
pudesse não levantar de manhã cedo, com alguém fazendo as coisas pra mim,
soltando o cachorro, pondo o feijão no fogo, coando e levando o café na cama
pra mim. Tem maior conforto não. Quando o sol esquentasse, aí eu levantava, ia
mexer nas coisas devagarinho.
Titõe chega cedo,
esfregando as mãos, acha eu comendo torresmo com farinha e começa: eu podia ter
vida boa, se tivesse mais compreensão lá em casa. Pensa que eu tenho o gosto de
comer um torresmo gordo desses? Quem me dera! Só de eu falar torcem o nariz,
cada um pra um lado.
Zilu faz uns
bifico à-toa, esturricado, não tem gosto de carne, não tem gosto de nada. Vai
na horta, é só três folhica de cebola, diz que é só pra dar cheiro. Não pica
uma couve com vontade, pra encher a peneira, não faz uma salada mais enfeitada,
pra derramar na travessa, ô povo à-toa esse meu.
Titõe é meio
envergonhado, todo santo dia aparece, meio sorrateiro, a fim de beber um gole
de cachaça que eu vivo ganhando, nem sei por quê. Ele podia entrar, beber e
pronto. Mas não, tem que me dar satisfação, queixando da vida, coitado, é o
modo dele agradecer o gole.
Ficar famoso deve
ser muito ruim é na hora do exame de fezes. Porque eu não livro dessa bobagem.
Numa família de gente meio descarada pra essas coisas eu fico morta de
vergonha. Eu sei que é bobagem mas não tem meio de eu sarar. Dizem que todo
mundo tem uma crucificaçãozinha particular que é muito bom pra abaixar o
orgulho e é mesmo.
Dizem que até teve
um santo que era moço muito bonito no tempo dele, muito vaidoso, pois dizem que
converteu só porque foi entrando num salão de baile, todo pimpão, no tempo que
usava rei, e esparramou no maior tombo, bem no centro da sala. Foi onde que ele
achou de meditar nas misérias das coisas deste mundo e tratou de salvar a alma.
Tombo também é
muito chato e eu tenho medo. Se eu cair eu vou querer quebrar ao menos um dedo,
pra poder ter graça, graça que eu digo é pra eu não ficar sem graça. Porque a
gente cai, ajunta o povo, e se não tiver ao menos um sanguinho, uma coisinha
quebrada, com que cara que a gente bate a poeira pra caminhar? Ô raiva que eu
tenho de certos ajudantes que aparecem nessas horas, parece que brotam do
inferno...
Por falar em
inferno, acontece cada uma! Não há de ver que trás-anteontem, bem no meio da
novena do Espírito Santo, aconteceu tudo quanto foi azar dentro da igreja! Dona
Culinha, chefe dos festeiros, veio cá em casa pra eu dar umas ideias pra ela
arrematar a noite. Eu dei, uai, eu não rídico ideia pra ninguém. Ideia é coisa
que tá solta no ar, apanha quem tem jeito, né? Então eu disse que achava muito
de acordo um menino vestido de São Francisco, Santo da Paz, segurando umas
pombinhas vivas na mão. Com tanto pombo de papelão, encalacrei nessa coisa de pombo
vivo. Foi nada não. Todo mundo achando a ideia coisa do outro mundo, foi a
conta. Uns minutinhos antes da bênção final, todo mundo já em pé, soltam os
pombos. Eles ficaram doidos, não sei se com o povo cantando ou com as luzes,
tinha luz colorida de pisca-pisca, sei não, só sei que foi cada um pra um canto
e um deles achou de pousar num vidro desses que protegem essas lâmpadas
florescentes, pois é, o vidro quebrou, meu filho, foi cair na cabeça da
cardíaca da Dona Eulália. Foi correria, sangue e duzentos contos pra pagar os
pontos e o curativo. Um rombo na coleta, só vendo.
Isso tudo
aconteceu no fim, porque primeiro arranjaram isso, juro que foi sem pedir minha
opinião, uma dança na frente do Santíssimo Sacramento. O vigário deixou,
coitado, porque na cabeça dele ia sair uma coisa assim feito o Rei Davi com as
Donzelas dançando em frente à Arca da Aliança... Deixou por conta do povo, sabe
o que saiu? Vai escutando: Puseram um disco de carimbó e três meninas
sapateando na frente, uma coisa mais fora do esquadro. Só dava gente de cabeça
agachada. O frei também só passando o rabo do olho, as orelhas vermelhinhas mesmo.
Achei bem feito.
Tou cansada de falar que é preciso educar o povo, dar catecismo, ensinar pra
ele as coisas finas da religião, apurar a estética deles; porque boa vontade o
povo tem. Ensina a cantar ele canta, manda dançar ele dança, e como ninguém
explicou nada, escolheram pra Deus o que tinha de mais novidade: carimbó, carimbó,
carimbó.
[1979]
(In: Solte os cachorros. São Paulo:
Siciliano, 1991, p. 31-34).
***
Em torno de uma beleza insuperável
Antonia Cristina de Alencar Pires
Na cabana de madeira, nos arredores de
Porto Alegre, os olhos verdes movem-se na escuridão
rala. Pelas frestas da madeira, junto com a névoa fina de início do inverno
entravam alguns raios de sol. O
olhar buscava o mostrador de um despertador colocado em cima de um banco.
Eram mais de oito horas. Precisava de um
café forte para acabar de acordar. Pensou na avó, uma velha asmática, que dormia no quarto ao lado. Ele despejou a água fervendo
sobre o pó no coador.
O cheiro do café invadiu o ambiente. Tomou-o em goles grandes,
na caneca de louça. Lembrou-se que a avó gostaria de tomar
um pouco daquela bebida. Com a xícara nas mãos, entrou no cômodo. Chamou pela avó duas, três vezes. Ela não
respondeu. Ele tocou-a de leve. Depois
sacudiu-a um pouco. Constatou que estava morta. No fundo esperava por aquele
dia. Sabia que as avós morrem sempre
aos domingos.
Os telejornais mostravam as imagens gravadas pelas câmeras de segurança de um hotel, um homem alto e elegante saía de um dos quartos. Numa das mãos levava uma maleta e a outra estava enfiada no bolso do casaco. A voz do locutor em off informava que o homem era um assassino.
O enterro foi modesto, rápido, quase sem testemunhas, num cemitério
das proximidades. Ele voltou sozinho para casa. Sentia-se cansado. Acomodou-se na cadeira em que a avó sentava-se. Olhou
em torno. Tudo era tão velho, tão desgastado como a mulher
que acabara de sepultar. Do lado de fora as mordidas do tempo
também eram visíveis. A cerca de arame em torno da cabana estava enferrujada e as estacas apodrecidas. O mato
crescia revolto. O canteiro de gerânios
e narcisos desapareceu. As árvores produziam poucos frutos. Poucas aves ainda ciscavam
no terreiro. O rapaz fechou os olhos por alguns instantes. Lembrou-se da época
em que passava finais de semana
naquele lugar: o pequeno sítio dos avós. Gostava de correr descalço, de tomar banho com água fria da cisterna de
pedra, de comer as frutas caídas no chão. Tempos amenos para sempre perdidos na
mesa de pôquer. Seu pai, um jogador compulsivo apostava alto. As dívidas cresciam. Para pagá-las
hipotecou a casa do Bonfim, onde a família morava. Não pôde resgatá-la. O imóvel já estava
vazio quando sob um pretexto qualquer, o pai voltou ao local e enforcou-se com a gravata. Meses depois, a
mãe foi velada numa manhã de chuva fina e insistente.
Ele abriu os olhos tentando afastar as
lembranças. Fixou-os em uma mesa no fundo da
sala. Nela havia algumas esculturas de papel marché. Começou modelando
máscaras. Depois passou a fazer os
gatos. A avó elogiou o bom gosto do neto. “São de uma beleza insuperável”, ela repetia sempre. Uma pequena galeria
interessou-se pelas esculturas. Comprava-as regularmente. Nas tardes de sábado os gatos de papel marché eram vendidos numa feira de
arte, numa praça do centro antigo
da cidade. Seu olhar buscava detalhes daqueles felinos
imóveis. Pensou nas lendas que cercavam esses bichos. Histórias de
mistério e bruxaria. Não eram essas lendas que o fascinavam, mas a natureza daquela espécie animal. A imagem de um felino correndo solitário e saltando de uma grande altura estava
impressa em sua mente como uma tatuagem
que nunca sai da pele. Vira-a num programa vespertino de TV, devia ter uns oito anos.
Os irmãos do
homem morto reclamavam justiça. Além de ter sido assassinado com várias punhaladas, ele ainda
fora roubado. O criminoso levou a maleta com o dinheiro e um anel de rubi, uma
joia que estava há tempos na família. Em seguida às falas, as imagens do
assassino eram novamente
mostradas. Um número de telefone para denúncia e um valor como recompensa eram creditados no rodapé do monitor
da televisão.
Ele deixava a água quente
cair sobre seu corpo em jatos grandes.
Uma figura de mulher surgia em meio à confusão de seus
pensamentos. Lívia era sempre o apoio quando tudo se misturava em sua mente.
Conhecera-a na galeria. Uma pintora cujas telas enigmáticas e um tanto trágicas, seduziram seu olhar
de imediato. Não sabia precisar
o tipo de relação que mantinham. Sabia que era algo intenso, que crescia
como um buraco, como uma fome imensa. Mas era
preciso que aquela relação ficasse em suspenso por algum tempo. Ele iria para o Rio. Lívia ficaria
sabendo disso naquela noite. Ela mesma o incentivara muitas vezes a
deixar o sul, a ir buscar oportunidade em outro
mercado de arte.
Nas listas de passageiros da rota São Paulo – Nova York, a polícia
federal encontrou um nome cuja inicial correspondia a um pré-nome
anotado na agenda
do homem morto,
junto com um número de telefone e a frase “beleza insuperável”.
Da janela do apartamento não era
possível ver o mar. Para encontrá-lo, ele andava algumas quadras. Fazia isso todo final de tarde. Ficava
contemplando as ondas, o passar das pernas,
o movimento dos pneus deslizando no asfalto, os pombos mimetizados com as
pedras portuguesas do calçadão.
Às vezes lembrava-se dos gatos de papel marché. Pensava
na galeria. Mas não naquela
que expunha suas esculturas. Nesta, que agora vinha-lhe à mente,
ele era o próprio objeto
artístico. Ele e outros rapazes, quase tão belos, vestidos com minúsculas
tangas dançavam dentro de
jaulas douradas e eram conhecidos como “Leopardos”. Observados por homens de condição e tipo diversos, que se ocultavam
na penumbra e na fumaça de gelo seco, os rapazes vendiam a juventude e o corpo. Eram deuses
absolutos de um obscuro Olimpo.
Um dos amigos do rapaz que também viera do sul sonhando em ser modelo de uma griffe de
jeans trabalhava na galeria e, vez por outra, posava
para calendários gays.
O outro rapaz saiu de Porto Alegre para ser ator de teatro. Conseguira integrar-se a um grupo amador
que tentava se profissionalizar.
Para se sustentar, ficava nos cruzamentos da Avenida Atlântica, à espera dos clientes que passavam nos carros.
Homens e às vezes mulheres
querendo experimentar emoções perigosas ou apenas em busca de companhia.
Quando foi morar com eles, o rapaz ainda
modelou por algum tempo suas esculturas. Abandonou-as
meses depois. Nenhuma galeria demonstrou interesse por seu trabalho. Alguns marchands aconselhavam-no a ir morar em Santa Teresa, numa casa que pudesse ser ao
mesmo tempo estúdio e show-room. Com os dias seu projeto
ficava mais distante, ao passo que o universo
clandestino e imprevisível dos companheiros de apartamento arrastava-o cada vez mais para si. Deixava-se atrair pelo jogo de máscaras
propiciado pela vida dupla. Seus amigos eram socialmente,
modelo e ator.
Na jaula da
galeria ou nas esquinas da Atlântica, entretanto, eram ragazzi di vita. Lera esta expressão
nos textos de um cineasta italiano que Lívia admirava. Lembrava-se disso toda
vez que via os dois saírem para trabalhar.
Pensava na ambiguidade em que eles estavam mergulhados.
No outro lado da linha a voz feminina pedia que ditasse o anúncio. O rapaz ficou calado. A telefonista insistiu. Ele respondeu: “artista plástico oferece aos amantes do belo, sua beleza insuperável”. À galeria chegou trazido pelo modelo. As esquinas, porém, dispensou. Vez por outra pensava como era fácil e rápido entrar no mercado do qual ele passou a fazer parte. De pé no calçadão, às seis da tarde, buscava a linha do horizonte. Seus olhos verdes capturavam o azul do mar de Copacabana. Em meio aos rostos das mulheres que passavam, procurava o de Lívia. Precisava mantê-lo aceso na memória, como o remoto farol que os navegantes esperam encontrar nas noites de tempestades.
Na casa do Morumbi, o empresário de meia idade lia os jornais enquanto
tomava o café da manhã. Depois de anos passando os finais de
semana em Miami ou Nova York, resolvera ir ao
Rio. Precisaria de companhia. Por isso passava
os olhos nos anúncios classificados de um jornal
carioca. A proposta do artista plástico chamou-lhe atenção. Anotou na
agenda o número do telefone de
contato e escreveu do lado a frase “beleza insuperável”. Posteriormente o nome do rapaz passou a constar
daquela anotação. Horas
depois, na suíte em frente ao mar, o empresário telefonou para o escultor. Marcaram o primeiro de muitos
encontros. Alguns no Rio, outros em São Paulo. A galeria já não integrava a rotina do
rapaz. Menos ainda os leitores dos classificados. Tampouco o apartamento da Toneleiros, com latas de cerveja vazias
e roupas usadas
espalhadas pelo chão,
com o ralo do banheiro
sempre entupido.
Cinzeiros, copos, garrafas ou qualquer
outro objeto acabavam
aos cacos, atirados
contra as paredes do duplex
da Vieira Souto. Aos gritos, o empresário arremessava-os com fúria. Arranhava as pernas e os braços do rapaz
com o rubi do anel. A cena se repetia sempre que o amante propunha romper o relacionamento.
Invariavelmente era imobilizado com um
murro no queixo ou no estômago. Então chorava,
fazia promessas. Iria deixá-lo sair de sua vida, dizia, mas aos poucos,
devagar. Não estava acostumado às
perdas bruscas. “Os colecionadores de arte não sabem subtrair; só aprendem a somar”, repetia. E novamente
afirmava que o rapaz era sua peça mais rara e linda. Mais do que qualquer quadro,
vaso de Murano
ou anjo barroco
de sua coleção.
A primavera em Nova York ainda não se fazia visível. O ar frio e os agasalhos remetiam ao inverno que, pelo calendário, já era findo
há vários dias.
Com a mão esquerda segurando uma
maleta e a direita
grosseiramente enfaixada numa atadura, o rapaz caminhava rápido. O hotel ficara para trás. No quarto trancado, o
corpo do empresário no chão, perfurado por um punhal. Quando passou pela portaria, o rapaz aparentava tranquilidade.
Sem tirar a mão do bolso do casaco,
dirigiu-se ao recepcionista. Informou que seu acompanhante passaria o dia no
quarto e não queria ser incomodado.
No banheiro do aeroporto, examinou o corte da mão. Latejava muito, estava inflamado. Enrolou novamente a atadura. No espelho olhou-se demoradamente. Seus olhos estavam avermelhados e inchados, emoldurados por olheiras arroxeadas. Coberto por um band-aid, havia um machucado no maxilar esquerdo que ardia e incomodava. Naquele semblante não havia beleza alguma. Não reconhecia nele o menino que corria descalço no sítio dos avós. Nem o adolescente gentil que cativava as garotas do colégio. Menos ainda o escultor dos gatos de papel marchè. O rosto no espelho era do ragazzi di vita. Mais ainda: era do criminoso em que se transformara horas antes. Matara e roubara um homem que, durante um ano, vivera para ele, embriagado por sua beleza, por sua juventude. Bebia-a em grandes goles, como o andarilho sedento que encontra a água que o fará continuar o percurso.
O tom carinhoso da voz de uma senhora,
na sala de embarque, trouxe-lhe por um breve
instante a lembrança da avó. “Machucou-se meu filho?”. O rapaz respondeu
afirmativamente e afastou-se um pouco. Estava
tenso. Não queria
dar continuidade aquele
diálogo. Durante o voo, pensava
no nada que havia sob seus pés. No espaço rarefeito e cinzento seu corpo flutuava.
Sua existência era nada também.
Retalhos de
cenas buscavam sequência em sua mente. Abria os olhos e via as cabeças dos outros passageiros.
Fechava-os. Ouvia o som incômodo de
um filme no vídeo que não interessava a ninguém: pessoas encurraladas em um parque fugindo
de monstros jurássicos. Ele, encurralado em si mesmo,
sem poder fugir
dos seus monstros. Desejava dormir um pouco. Não conseguia.
Agora entendia o sentido dos versos de uma canção que Lívia, vez por outra cantarolava. “Ouça um bom conselho/que eu lhe dou de graça/ inútil dormir/ que a dor
não passa”.
As imagens do sábado em Nova York insistiam em ficar mais nítidas. A cidade vista do alto no
terraço do Empire State. Ali
lembrou-se de um filme alugado por Lívia, que assistiu numa tarde de domingo, tomando cerveja e
comendo sobras de carne assada do almoço. Lívia, como ela mesma dizia, adorava a
nostalgia monocromática dos melodramas hollywoodianos.
Na história do filme, a mocinha pobre
marca um encontro com o playboy milionário naquele mesmo terraço. Mas um acidente muda tudo
radicalmente em suas vidas. A voz do
empresário chamando-o, atirou essas lembranças para longe. No carro, a mão
do amante sobre a sua. A chegada na galeria.
O exame dos objetos pelo empresário. Entre as antiguidades, o
homem interessou-se por um punhal do
século dezoito. Lâmina de prata, cabo de ouro, contornado por inúmeras e
pequenas esmeraldas. “Combinam com seus olhos”,
disse, colocando o punhal abaixo
da linha dos olhos do rapaz. O jantar, o cassino, a roleta girando,
o dinheiro sendo
guardado na maleta.
O jantar começou a ser servido pelos
comissários de bordo. Ele não estava com fome.
Recusou com gentileza a bandeja que a moça oferecera-lhe. Queria apenas beber mais um pouco.
A mão latejava. Pequenos tremores
de frio percorriam seu corpo.
Por instantes teve dificuldade em distinguir a aeronave. Pensava
estar no quarto do hotel.
Estava confuso. Precisava ordenar o pensamento. Estava com medo de enlouquecer. Veio a vontade
de vomitar.
Odilon
estava de pé, no meio do quarto,
com o copo de uísque
na mão. “Este
é o último fim de semana
que passamos juntos”. A voz do rapaz soou seca e sem vacilação. Num movimento rápido, o empresário
aproximou-se do amante e arranhou-lhe furiosamente o rosto com o anel de rubi. Gotas de sangue brotaram
rápidas escorrendo sobre a pele.
O rapaz sacudiu Odilon
violentamente e atirou-o no chão. Arrancou-lhe o anel e jogo-o a esmo. Foi
lavar o machucado. Pelo espelho viu o
empresário vindo com o punhal. O rapaz segurou Odilon pelos punhos, apertando-os com força. O punhal
caiu no chão. O homem movia a cabeça furioso,
tentando morder o amante foi outra vez jogado no chão. Caiu com a
barriga para cima. Seus dedos ainda tocaram o punhal. O rapaz foi mais
rápido. Pegou a arma e estocou-a várias vezes no empresário, até cortar
a própria mão. “Eu não fiz isto, não fiz”,
repetia, olhando para o homem agonizante. Os jatos de sangue que saíam do corpo caído e o corte em sua
mão, entretanto, impediam-no de
enganar-se. Ficou de joelhos por algum tempo. Passou a mão nos cabelos de Odilon. Levantou-se, apanhou uma manta e
colocou-a sobre o morto. Os olhos do empresário estavam abertos. Não teve coragem de fechá-los. Tomou um banho
demorado. No banheiro havia clorexidina, atadura e band-aid. Fez um curativo. Devolveu o punhal ao estojo e guardou-o na maleta. Ao sentar-se na poltrona, encontrou no chão o anel. Ficou observando a joia, girando-
a de um lado para o outro. As cintilações da pedra faziam-no lembrar das
vezes que fora arranhado por ela e da
cicatriz que, certamente, ficaria em seu rosto. Apertou-o na mão esquerda.
Fechou os olhos. A cabeça e o corpo pesavam. Abriu os olhos, depois de um tempo estava
amanhecendo. O cheiro
acre de sangue tomava conta do ambiente. Jogou o roupão
sobre a cama. Vestiu-se. Saiu
com a maleta. Trancou a porta do quarto e colocou as chaves no bolso interno do casaco. O anel estava ali. No
outro bolso, a passagem e o passaporte. Era urgente deixar o hotel.
No primeiro voo de segunda-feira para Porto Alegre, o rapaz não entendia como ainda era capaz de raciocinar sobre alguma coisa. Diria à Lívia que era um assassino, um ladrão, um fugitivo. Não esperava dela nenhuma compaixão. Queria apenas um abrigo temporário. Talvez um abraço. Uma poça de sangue inundou seu pensamento. Nela havia os olhos de Odilon. De algum modo, amara aquele homem refinado, culto, colecionador de arte, possessivo e dominador. Pensava como algumas formas de amor são doentias, ásperas, fatais e como essas formas são duradouras, pois incrustam-se na história dos indivíduos para sempre. São feridas que crescem e devoram. A Odilon não ensinaram outras formas de amor. A ele também não.
No apartamento de Lívia, acompanhou com ela os noticiários durante cinco
dias. Sabiam que ele
precisava fugir para longe. A moça iria levá-lo para Antônio Prado. Na cidade
mais alta da serra gaúcha,
entre o casario de arquitetura italiana e as pedras do calçamento, o tempo transcorria lentamente. O vinho servido no almoço provinha das
uvas cultivadas nos quintais. As receitas
das massas e dos molhos
eram as mesmas há dezenas
de gerações. A mãe e o avô de Lívia moravam numa casa grande. O rapaz
ficaria com eles. Aprenderia com o velho a arte da marchetaria. Poderia
voltar a modelar os gatos de papel marchè. Ficaria ali até que nada mais restasse da história sombria em que mergulhara. Até que os fatos se transformassem em arquivo. Da mídia, da polícia, de sua própria
memória. Na volta a Porto
Alegre poderia retomar
antigos projetos. Usaria
o dinheiro que o empresário ganhou no cassino
nova-iorquino.
Lívia
acordou primeiro. Ainda estava escuro.
Um café forte era tudo o que necessitavam antes de irem para a rodoviária. A
polícia, pelo alto-falante, anunciou o cerco ao edifício. Na denuncia anônima, alguém indicou o
possível destino do rapaz e o endereço de Lívia. Ele não queria, não iria se entregar. Disse à moça que desceria pelo vão
de ventilação entre as áreas de serviço.
Tentaria alcançar o telhado de um casarão vizinho. ”É alto demais, quarto
andar, um descuido pode ser fatal” disse desesperada. “Estou sempre com os pés sobre o vazio”. Não seria diferente agora. As pontes são
improváveis para os da minha condição. É apenas mais um buraco. É apenas mais uma descida.”, disse friamente, com os olhos fixos na parede alta da área. Os
policiais revistavam, um a um, os apartamentos do primeiro andar. O informante
não forneceu
o número do apartamento, somente o do prédio. Todo o edifício seria vasculhado.
Lívia viu a cabeça do rapaz desaparecer no vazio entre
as paredes.
Com as costas apoiadas numa parede e os pés na outra, o rapaz descia cuidadosamente. Havia limo em algumas partes. Outras estavam descascadas ou rachadas. Baratas e lagartixas entravam e saíam dessas fendas Alguns canos estavam à mostra, como ossos de um esqueleto saindo da tumba. Há quanto tempo estaria descendo? Muitas horas? Dias talvez. Naquele vão o tempo não existia. Presente e passado: uma mistura pegajosa e escura como a geleia de ameixa que a avó fazia, escorrendo pelas paredes da mente. Pela lacuna por onde seu corpo escorregava agora. Vozes, latidos, pratos batendo, água correndo de torneiras, choro de crianças. Estava quase no nível do segundo andar. Um homem, cujo apartamento já fora revistado, equilibrava-se sobre um banco. Estava tirando uma gaiola pendurada no teto. Viu as pernas do rapaz. Um policial que vigiava as escadas foi chamado. Silencioso, subiu no tanque e constatou a descida do fugitivo. O canto do rouxinol invadiu o vão de ventilação. O rapaz pensou em outro rouxinol. Um que fixara o ninho no pessegueiro do sítio. O sítio. Um dia voltaria para lá com Lívia. Não para o lugar decadente dos últimos anos. Voltaria para o sítio da infância. Um dia.
Tentando equilibrar-se sobre o muro estreito do primeiro andar, para passar para o telhado, viu dois policiais. Virou-se pra pular para dentro do vão. Tiros. Um corpo em queda. Sirenes quebrando a lassidão da manhã.
(In: Revista
Travessias, edição 05, 30/04/2009, www.unioeste.br/travessias)
***
A mulher mais linda da cidade
Charles Bukowski
Cass era
a mais jovem e bonita de 5 irmãs. Cass era a garota mais bonita da cidade. 1/2
indígena com um corpo flexível e estranho, com um corpo e olhos ardentes como
de uma cobra. Cass era um fogo fluido ambulante. Ela era como um espírito preso
numa forma incapaz de contê-la. Seus cabelos eram negros e longos e macios e
ondulados assim como seu corpo. Seu espírito estava ou lá em cima ou lá
embaixo. Não havia meio-termo para a Cass. Alguns a chamavam de louca. Os
idiotas diziam isso. Os idiotas nunca entenderiam a Cass. Para os homens ela
não passava de uma máquina de sexo e eles não se importavam se ela era louca ou
não. E Cass dançava e flertava, beijava os homens, mas exceto por um caso ou
outro, quando chegava a hora de ir para a cama, Cass dava um jeito de se
esquivar, iludia os homens.
Suas
irmãs lhe acusavam de abusar de sua beleza, ou de não usá-la o suficiente, mas
Cass tinha cabeça e espírito; ela pintava, dançava, cantava, fazia coisas de
argila, e quando as pessoas estavam machucadas ou no espírito ou na carne, Cass
sentia muita empatia por elas. Só que sua cabeça era diferente; só que sua
cabeça não era prática. Suas irmãs tinham inveja dela porque ela atraía seus
homens, e elas tinham raiva porque sentiam que ela não os usava da melhor
maneira. Ela tinha o costume de ser gentil com os mais feios; os homens
considerados bonitos lhe revoltavam — “Sem colhões,” dizia, “sem graça. Ficam
se exibindo com seus lóbulos da orelha perfeitos e seus narizes bem
estruturados… Muita superfície e nenhum conteúdo…” Ela tinha um temperamento
que se aproximava da insanidade. Seu pai morreu de álcool e sua mãe foi embora
abandonando as garotas sozinhas. As garotas foram para a casa de um parente que
as deixou em um convento. O convento foi um lugar infeliz, mais para Cass que
para suas irmãs. As garotas tinham inveja de Cass e Cass brigou com a maioria
delas. Ela tinha marcas de navalha por todo o braço esquerdo de se defender em
duas brigas. Também tinha uma cicatriz permanente na bochecha esquerda, mas a
cicatriz em vez de diminuir sua beleza só parecia realçá-la. Eu a conheci no
West End Bar várias noites depois de ela ter deixado o convento. Sendo a mais
jovem, ela foi a última das irmãs a ser liberada. Ela simplesmente veio e
sentou do meu lado. Eu provavelmente era o cara mais feio da cidade e isso deve
ter tido alguma influência.
“Quer uma
bebida?” perguntei.
“Claro,
por que não?”
Acho que
não teve nada de anormal na nossa conversa naquela noite, era essa a impressão
que Cass dava. Ela tinha me escolhido e as coisas se resumiam nisso. Sem
pressão. Ela gostou das bebidas e bebeu bastante. Ela não aparentava ser maior
de idade mas eles a serviram mesmo assim. Talvez ela tivesse identidade falsa,
não sei. Enfim, sempre que ela voltava do banheiro e sentava ao meu lado, eu
sentia um certo orgulho. Ela era não só a mulher mais bonita da cidade como
também a mulher mais bonita que eu já vi. Envolvi sua cintura com meu braço e
lhe dei um beijo.
“Você me
acha bonita?” ela perguntou.
“Sim, é
claro, mas tem algo a mais… algo além da sua aparência…”
“As
pessoas estão sempre me acusando de ser bonita. Você me acha mesmo bonita?”
“Bonita
não é a palavra, ela dificilmente lhe faz justiça.”
Cass
mexeu em sua bolsa. Achei que ela estava procurando um lenço. Ela puxou um
grande alfinete. Antes de eu poder impedi-la, ela atravessou o alfinete pelo
nariz, de um lado até o outro, logo acima das narinas. Senti desgosto e horror.
Ela me olhou e riu, “Agora você me acha bonita? O que você acha agora, cara?”
Eu puxei o alfinete para fora e segurei meu lenço sobre o sangramento. Várias
pessoas, incluindo o balconista, viram a cena. O balconista veio até nós:
“Olha,”
ele disse para Cass, “se se exaltar de novo você vai para fora. Não precisamos
dos seus dramas aqui.”
“Ah, vai
se foder, cara!” ela disse.
“Melhor
manter ela na linha,” o balconista me disse.
“Ela vai
se comportar,” eu disse.
“É o meu
nariz, eu faço o que quiser com meu nariz.”
“Não,” eu
disse, “isso me machuca.”
“Quer
dizer que você se machuca quando enfio um alfinete no meu nariz?”
“Sim,
machuca, de verdade.”
“Está
bem, não vou fazer isso de novo. Relaxa.”
Ela me
beijou, meio sorrindo através do beijo e segurando o lenço no nariz. Fomos para
minha casa na hora de fechar. Tomei uma cerveja e sentamos conversando. Foi aí
que me dei conta de que ela era uma pessoa cheia de gentileza e compaixão. Ela
se doava sem perceber. Ao mesmo tempo, ela saltava de volta para áreas de
selvageria e incoerência. Maluca. Uma maluca bonita e espirituosa. Talvez
alguma coisa, algum homem, arruinaria ela para sempre. Queria que não fosse eu.
Fomos para a cama e depois de eu desligar as luzes Cass me perguntou,
“Quando
você quer fazer? Agora ou de manhã?”
“De
manhã,” eu disse e me virei.
De manhã
eu levantei e preparei duas xícaras de café, levei um para ela na cama. Ela
riu.
“Você é o
primeiro homem que recusou fazer à noite.”
“Tudo
bem,” eu disse, “a gente nem precisa fazer.”
“Não,
espera, eu quero agora. Deixa eu me arrumar um pouco.” Cass entrou no banheiro.
Ela saiu logo, muito bonita, seus cabelos negros brilhando, seus olhos e lábios
brilhando, ela brilhando… Ela revelava seu corpo com calma, como uma coisa boa.
Ela entrou debaixo das cobertas.
“Pode
vir, garanhão.”
Eu fui.
Ela beijou com vigor mas sem pressa. Deixei minhas mãos passearem pelo seu
corpo, pelo seu cabelo. Eu montei. Era quente, e apertado. Comecei a meter
devagar, tentando fazer durar. Seus olhos focavam diretamente nos meus.
“Qual o
seu nome?” perguntei.
“Que
merda de diferença isso faz? ela perguntou.
Eu ri e
continuei. Depois ela se vestiu e a levei de carro de volta ao bar, mas era
difícil esquecê-la. Eu não tinha trabalho e dormi até as duas da tarde, então
levantei e li o jornal. Eu estava na banheira quando ela chegou com uma folha
enorme — uma orelha de elefante.
“Eu sabia
que você estaria na banheira,” ela disse, então trouxe uma coisa para você
cobrir essa coisa, garoto selvagem.”
Ela jogou
a folha de elefante em mim na banheira.
“Como
você sabia que eu estaria na banheira?”
“Eu
sabia.”
Quase
todo dia Cass chegava quando eu estava na banheira. Os horários eram diferentes
mas ela quase nunca errava, e lá estava a folha de elefante. E então nós
fazíamos amor. Uma ou duas noites ela ligou e eu tive que pagar a fiança dela
por lutas e bebedeiras.
“Esses
filhos das putas,” ela disse, “só porque eles te compram umas bebidas acham que
podem entrar nas suas calças.”
“Quando
aceita uma bebida você cria problemas para si mesma.”
“Achei
que eles estivessem interessados em mim, não só no meu corpo.”
“Eu estou
interessado em você e no seu corpo. Duvido, porém, que a maioria dos homens
consigam ver além do seu corpo.”
Deixei a
cidade por 6 meses, vagabundeei por aí, voltei. Eu nunca esqueci Cass, mas nós
tivemos uma discussão e eu estava com vontade de me mudar de qualquer jeito, e
quando eu voltei descobri que ela tinha partido, mas fiquei sentado no West End
Bar uns 30 minutos quando ela entrou e sentou ao meu lado.
“Olha só,
desgraçado, então você voltou.”
Pedi uma
bebida para ela. Então olhei para ela. Ela usava um vestido de gola rolê. Eu
nunca tinha visto ela usar um desses. E sob cada olho, enfiados, estavam 2
alfinetes com cabeças de vidro. Tudo que dava para ver eram as cabeças dos
afinetes, mas as hastes estavam enfiadas em seu rosto.
“Cacete,
ainda tentando destruir sua beleza, é?”
“Não, é a
moda, seu idiota.”
“Você é
maluca.”
“Senti
sua falta,” ela disse.
“Tem mais
alguém?”
“Não, não
tem mais ninguém. Só você. Mas estou fazendo programa. Custa dez contos. Mas
para você eu faço de graça.”
“Tira
esses alfinetes.”
“Não, é a
moda.”
“Está me
deixando muito triste.”
“Tem
certeza?”
“Tenho
certeza para caralho.”
Cass
removeu os alfinetes devagar e os pôs de volta na bolsa.
“Por que
você despedaça sua beleza?” perguntei. “Por que você não convive com ela?”
“Porque
as pessoas acham que é tudo que eu tenho. Beleza não é nada, beleza não vai
durar para sempre. Você não sabe a sorte que tem de ser feio, porque quando as
pessoas gostam de você, você sabe que é por outra razão.”
“O.k.,”
eu disse, “sou um sortudo.”
“Não
estou dizendo que você é feio. Só que as pessoas acham que você é feio. Você
tem um rosto fascinante.”
“Obrigado.”
Tomamos
outra dose.
“O que
você tem feito?” perguntou.
“Nada.
Não consigo chegar a lugar nenhum. Sem interesse.”
“Também
nada. Se fosse mulher você poderia fazer programa.”
“Acho que
eu nunca conseguiria falar com tantos estranhos, é cansativo.”
“Tem
razão, é cansativo, tudo é cansativo.”
Saímos
juntos. As pessoas da rua ainda encaravam a Cass. Ela era uma mulher linda,
talvez mais linda do que nunca. Fomos até a minha casa e abrimos uma garrafa de
vinho e conversamos. Entre nós dois, as coisas sempre fluíam. Ela falava um
pouco e eu escutava e então eu falava. Nossas conversas aconteciam sem qualquer
tensão. Nós parecíamos descobrir segredos juntos. Quando descobríamos um dos
bons Cass ria aquela risada — daquele jeito que era só dela. Era como alegria
tirada das chamas. Durante a conversa a gente se beijou e se aproximou mais.
Ficamos bem excitados e decidimos ir para a cama. Foi aí que Cass tirou seu
vestido de gola rolê e eu vi — a cicatriz horrível entalhada na sua goela. Era
longa e grossa.
“Meu
deus, mulher,” eu disse da cama, “meu deus, o que você fez?”
“Eu
tentei fazer aquilo com uma garrafa quebrada outra noite. Você não gosta mais
de mim? Você ainda me acha bonita?”
Eu puxei
ela para a cama e a beijei. Ela me empurrou e riu, “Alguns caras me pagam dez e
eu tiro as roupas e eles não querem mais trepar. Eu fico com os dez. É bem
engraçado.”
“É,” eu
disse, “não consigo parar de rir… Cass, vadia, eu te amo… para de se destruir;
você é a mulher mais viva que eu já conheci.”
Nos
beijamos de novo. Cass chorava emudecida. Eu podia sentir as lágrimas. Os
cabelos longos e negros repousavam ao meu lado como uma bandeira de morte.
Curtimos e fizemos amor lento e soturno e belo. De manhã Cass estava fazendo
desjejum. Ela parecia calma e feliz. Estava cantando. Fiquei na cama e apreciei
sua felicidade. Finalmente ela veio e me sacudiu.
“Acorda,
desgraçado! Joga água fria na cara e no bilau e vem aproveitar o banquete!”
Levei ela
de carro até a praia nesse dia. Era fim de semana e ainda não era verão então
estava tudo esplendidamente desértico. Beberrões praieiros dormiam em trapos no
gramado acima da areia. Outros sentavam em bancos de pedra dividindo uma
garrafa solitária. As gaivotas rodopiavam no céu, estúpidas mas distraídas.
Senhoras em seus 70 ou 80 anos sentavam nos bancos e discutiam a venda de
imóveis deixados para trás por seus maridos há muito mortos pelo ritmo e
estupidez da sobrevivência. Com tudo isso, havia paz no ar e andamos e nos
esticamos nos gramados e não falamos muito. Simplesmente era bom estar junto.
Comprei dois sanduíches, alguns salgadinhos e bebida e sentamos na areia
comendo. Então segurei Cass e dormimos juntos por volta de uma hora. De certa
forma era melhor que fazer amor. Era fluir junto sem tensão. Quando acordamos
voltamos à minha casa e cozinhei o jantar. Depois do jantar eu sugeri a Cass
que dormíssemos juntos. Ela esperou um longo tempo, olhando para mim, então lentamente
ela disse, “Não.” Levei ela de volta ao bar, lhe comprei uma bebida e fui
embora. Achei um trabalho como guarda do estacionamento de uma fábrica no dia
seguinte e no resto da semana passei trabalhando. Eu estava cansado demais para
fazer muita coisa mas nessa sexta à noite eu fui ao West End Bar. Sentei e
esperei pela Cass. Horas se passaram. Quando eu estava bastante bêbado o
balconista me disse, “sinto muito pela sua namorada.”
“Como
assim?” perguntei.
“Desculpa,
você não sabia?”
“Não.”
“Suicídio.
O enterro foi ontem.”
“Enterro?”
perguntei. Parecia que ela entraria pela porta a qualquer momento. Como ela
poderia ter partido?
“A irmã a
enterrou.”
“Suicídio?
Pode me dizer como?”
“Ela
cortou a garganta.”
“Entendi.
Me vê outra dose.”
Bebi até
a hora de fechar. Cass era a mais bonita de 5 irmãs, a mais bonita da cidade.
Consegui dirigir até em casa e fiquei pensando, eu devia ter insistido para ela
ficar comigo em vez de aceitar aquele “não.” Tudo que ela fazia indicava que
ela se importava. Eu simplesmente perdi a mão, fui preguiçoso, despreocupado
demais. Eu mereço a minha morte e a dela. Eu fui um cão. Não, por que culpar os
cães? Levantei e encontrei uma garrafa de vinho e a entornei. Cass, a garota
mais bonita da cidade, estava morta aos 20. Lá fora alguém apertava a buzina de
seu automóvel. Era bem alto e persistente. Larguei a garrafa e gritei:
“CARALHO, FILHO DA PUTA, CALA ESSA BOCA!” Continuava escurecendo e não tinha
nada que eu pudesse fazer.
(In A mulher mais linda da cidade & outras
histórias, coletânea de contos. Trad. Albino Ernesto Poli Junior. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997).