Monday, January 08, 2024

Os cem contos que amei ler IV (In progress. Serão colocados mais 20 contos nesta postagem). *Atualizados com a ortografia vigente.

61. Anão de jardim (Lygia Fagundes Telles) 
62. No te pongas sentimental (Arnaldo Bloch) 
63. Carta de Paris (Ana Cristina Cesar) - poema em prosa sobre o poema Le Cygne de Charles Baudelaire
64. Solidão (Charles Bukowski)
65. O corpo (Clarice Lispector)
66. Um agregado - Capitulo de um livro inédito (Machado de Assis)



Anão de jardim

Lygia Fagundes Telles

A data na qual fui modelado está (ou não) gravada na sola da minha bota mas esse detalhe não interessa, parece que os anões já nascem velhos e isso deve vigorar também para os anões de jardim, sou um anão de jardim. Não de gesso como pensava a Marieta, Esse anão de gesso é muito feio, ela disse quando me viu. Sou feio mas sou de pedra e do tamanho de um anão de verdade com aquela roupeta meio idiota das ilustrações das histórias tradicionais, a carapuça. A larga jaqueta fechada por um cinto e as calças colantes com as botinhas pontudas, de cano curto. A diferença é que os anões decorativos são risonhos e eu sou um anão sério. As crianças (poucas) que me viram não acharam a menor graça em mim. Esse anão tem cara de besta, disse o sobrinho do Professor, um menino de olhar dissimulado, fugidio. Então eu pensei aqui com os meus botões (não tenho botões) que quando ele for homem vai ser um corrupto boçal e essa ideia me deixou bastante satisfeito. Não agrado as crianças e nem espero mesmo agradar essas sementes em geral ruins, com aqueles defeitos de origem somados aos vícios que acabam vindo com o tempo. Quais desses pequeninos modelados pela vulgaridade dos pais vão chegar à plenitude de seres honestos? Verdadeiros? Não quero ser um anão puritano, afinal, não estou pedindo heróis, não estou pedindo santos mas dentre esses machos e fêmeas, quais deles serão ao menos limpos? Dê um passo à frente aquele que conseguir escapar da agressividade num mundo onde a marca (principal) é a da violência. Pois é, as crianças. Não tive melhor impressão dos adultos, pelo menos dos habitantes dessa casa. Tirante o Professor (bom e bobo) pude ver (por dentro) a sedutora Hortênsia que desde o começo desconfiou de mim, Não parece um anão filosofante? Prefiro os anões inocentes, ela disse. Então a Marieta riu com seu hipócrita lábio leporino, É um anão de gesso, Professor? Não dá sorte, resmungou. Ele não respondeu, tinha o cachimbo no canto da boca e estava ocupado em me instalar mais confortavelmente entre os tufos de samambaia e próximo da cadeira onde vinha se sentar para tocar o seu violoncelo. Pois é, os adultos. A saltitante Hortênsia matou (devagar) o Professor com doses (mínimas) de arsênico dissolvido no chá-mate. Não era melhor a chantagista Marieta que vestia as roupas da patroa quando ela viajava e dava beijos estalados no focinho do Miguel para depois aplicar-lhe os maiores pontapés quando não via ninguém por perto. Falei em Miguel, um vira-lata que Hortênsia achou na rua quando voltava do encontro com o amante, ela ficava generosa depois desses encontros, recolheu o Miguel com suas pulgas e numa outra noite recolheu o gato no qual botou o nome de Adolfo. Esse sempre foi sagaz como a própria dona mas ainda assim eu o preferia ao Miguel que era superficial, confiado, na primeira vez em que me viu levantou a perna e mijou na minha bota.

Fui feito de uma pedra bastante resistente mas há um limite, meu nariz está carcomido e carcomidas as pontas destes dedos que seguram o meu pequeno cachimbo. E me pergunto agora, se eu fosse um anão de carne e osso não estaria (nesta altura) com estas mesmas gretas? Nem são gretas mas furos enegrecidos como os furos dos carunchos, a erosão. Tanto tempo exposto aos ventos, às chuvas. E ao sol. Tudo somado, nesta minha vida onde não há vida (normal) o que me restou foi apenas isto, juntar as lembranças do que vi sem olhos de ver e do que ouvi sem ouvidos de ouvir. Presenciei, assisti como testemunha impassível (na aparência) ao que vagarosa ou apressadamente foi se desenrolando (ou enrolando) em redor, tantos acontecimentos com gentes. Com bichos. Mas tudo já acabou, as pessoas, os bichos, desapareceram todos. Fiquei só dentro de um caramanchão em meio a um jardim abandonado. Pela porta (porta?) deste caramanchão em ruínas vejo a casa que está sendo demolida, resta pouco dessa antiga casa. Quando ainda estava inteira havia em torno uma espécie de auréola, não eram as pessoas mas era a casa que tinha essa auréola mais intensa nas tardes de céu azul. E em certas noites claras, quando em redor dela se formava aquele mesmo halo luminoso que há em redor da lua. Agora há apenas névoa. Pó. A morte lenta (e opaca) da casa exposta vai se arrastando demais, os dois operários demolidores são vagarosos (preguiçosos) e estão sempre deixando de lado as picaretas para um jogo de cartas com uma cerveja debaixo do teto que ainda resta. Falei na auréola da casa. Esse suave halo também surpreendi (às vezes) em redor da cabeça do Professor mas isso foi nos primeiros tempos, quando ele ainda tinha forças para vir compor no seu violoncelo, ele compunha aqui ao meu lado. Mas assim que a distraída Hortênsia (fazia a distraída) começou a executar seu plano para herdar esta casa (e outras), assim que começou a esquecer (era esquecida) as tais pequenas doses de veneno na caneca do chá-mate, a carne já envelhecida (setenta anos) do Professor começou a ficar mais triste. E o halo foi se apagando até desaparecer completamente. O Professor, Hortênsia e Marieta. O Professor tocava seu violoncelo e sonhava até que interrompeu (ou continuou?) o sonho debaixo da terra. Hortênsia, a (falsa) distraída podia ter ido embora simplesmente com seu amante corretor de imóveis mas e a herança? Na última vez em que apareceu aqui no caramanchão teve um olhar pensativo para o violoncelo lá no canto. Voltou o olhar para mim e disse como se eu tivesse lhe pedido satisfações, Depois eu volto para levar. Não voltou. Saiu com seu passinho curto e o seu espelho e o seu gozo. Depois de tão longa temporada com um músico velho, só um corretor tão jovem quanto voraz, foram cúmplices no crime. Será que o tempo (o remorso) vai um dia corroer as delicadas entranhas de Hortênsia como corroeu a minha cara? Fico às vezes me perguntando por que a Marieta me irritava ainda mais do que a própria assassina que pelo menos sabia o que queria e fez (bem) o que planejou. Mas a Marieta-Alcoviteira era uma estúpida, chantageou (mal) a patroa e só não foi além porque mediu a força da outra e teve medo, recuou. Habilmente, Hortênsia se desfez dela, mandou-a cozinhar em outra freguesia até o dia em que ela mesma for cozinhada no fogo do inferno. Os bichos? Adolfo, o gato, assim que desconfiou que as coisas por aqui não andavam brilhantes, fez sua valise e tomou rumo ignorado, sempre foi misterioso. Continua em algum lugar com o seu mistério. Miguel, o cachorro, era superficial mas esperto, quando viu o navio afundando, saiu correndo e foi se aboletar com os móveis no caminhão da mudança e de lá ninguém conseguiu tirá-lo, o que fez a Marieta perder o fôlego de tanto rir quando avisou à patroa que o Miguel já tinha ido na frente esperar por ela na nova casa. O triunfo da impunidade.

Debandaram todos. Eu fiquei. Eu e o violoncelo esquecido e apodrecendo lá no canto. A madeira do caramanchão também apodreceu debaixo das trepadeiras ressequidas, um dia os homens da demolição entraram aqui para fazer suas avaliações. Olharam o violoncelo, bateram com os nós dos dedos na madeira, Será que isso vai render alguma grana? o mais velho perguntou. O outro fez uma careta, Apanhou muita chuva, não serve nem para o fogo, disse e botou a mão no meu ombro. E este anão rachado? Deixa este por minha conta que eu acabo com ele. Saíram e ficou o silêncio murmurejando no jardim. Uma aranha cinzenta desceu e foi tecer sua teia entre as grossas cordas do violoncelo mas as cordas já estavam fracas e como se a teia pesasse, foram estourando aos poucos, tóim, tóim. Então a aranha abandonou a casa musical, deve estar por aí com os insetos e outros bichinhos que continuam fazendo (e desfazendo) os seus negócios. Volto às minhas lembranças que foram se acumulando no meu eu lá de dentro, em camadas, feito poeira. Invento (de vez em quando) o que é sempre melhor do que o nada que nem chega a ser nada porque meu coração pulsante diz EU SOU EU SOU EU SOU. Meu peito (rachado) continua oco. A não ser um ou outro inseto (formiga) que se aventura por esta fresta, não há nada aqui dentro e contudo ouço o coração pulsante repetir e repetir EU SOU. Fiquei como um homem que é prisioneiro de si mesmo no seu invólucro de carne, a diferença é que o homem pode se movimentar e eu estou fincado no lugar onde me depositaram e esqueceram. Até ser removido. Ou destruído, o que vai acontecer logo, os demolidores estão chegando à última parede da casa. Logo eles virão com as picaretas nesta direção, já disse que o mais jovem (e mais forte) me escolheu. E até que esses operários sabem fingir eficiência, a pressa porque apressado mesmo é o corretor- amante, ontem ele andou por aqui. Deu suas ordens com a maior ênfase, está impaciente, o terreno é grande e está localizado num bairro elegante, quer fazer logo o negócio. Quando foi embora no seu belo carro, fiquei olhando o jardim com sua folhagem desgrenhada enfrentando bravamente o capim furioso. Um jardim selvagem mas fácil de abater, trabalho vai dar a figueira-brava com suas raízes agarradas à terra, se descabela às vezes quando fica em pânico. Mas antes será a vez deste caramanchão e eu aqui dentro. Meu avô também era meio arrogante, me disse o Professor certa noite. E riu seu riso breve, nesse tempo ainda ria. É com arrogância que agora espero a morte? Não tenho medo, não tenho o menor medo e essa é outra diferença importante entre um anão de pedra e um homem, a carne é que sofre o temor e tremor mas meu corpo é insensível, sensível é esta habitante que se chama alma. Falei em alma, seria ela um simples feixe de memórias? Memórias desordenadas, obscuras. Tudo assim esfumado como um sonho entremeado de fantasmas, seria isso? Não sei, sei apenas que esta alma vai continuar não mais neste corpo rachado mas em algum outro corpo que Deus vai me destinar, Ele sabe. E agora me lembro da noite em que este peito rachou feito uma casca de ovo: Hortênsia entrou aqui trazendo um pratinho de biscoitos e a caneca fumegante de chá-mate. Deixou a bandeja na mesinha e fez um ligeiro afago na cabeça do Professor que estava abraçado ao violoncelo mas com as mãos descansando frouxas sobre as cordas. Ela voltou para mim o olhar buliçoso, E como vai o anão filosofante? Um dia vou tapar os seus ouvidos com duas bolinhas de algodão, ela disse rindo. E levou a caneca ao Professor, Toma logo, querido, assim vai esfriar! Foi quando meu peito pareceu intumescido, inchado, era tamanha a minha fúria e asco, quis saltar e jogar longe aquela caneca, Não beba isso! O que eu teria lhe transmitido nesse instante para que ela tivesse aquela reação estranha? Ficou de costas, afastou-se. Ele pegou a caneca, soprou a fumaça e tomou um largo gole como um viciado em veneno. Teve um sorriso descorado quando me indicou com a mão que segurava a caneca, Deixa o Kobold com seus ouvidos, preciso de um ouvinte assim severo. Fechei os olhos (olhos?) para não vê-lo beber o resto do chá.

Vou jogar no clube, ela avisou ao sair toda saltitante, andava às vezes feito um passarinho. Ah, não vá deixar de tomar sua sopa, já avisei a Marieta. Ficamos sós. Então eu tive ímpetos de agarrá-lo, sacudi-lo até fazê-lo vomitar o chá, Seu idiota! Ela está te matando, te matando! Minha indignação foi tão violenta que senti nessa hora que alguma coisa em mim estava se rompendo, foi excessivo o esforço que fiz para me movimentar. Ele continuou imóvel, pensando, a cara assombrada. Depois levantou-se com dificuldade, chegou a se apoiar no violoncelo que quase tombou num gemido, Blom!… Vai chover, Kobold, avisou baixinho. Quando o vi afastar-se cambaleando em direção à casa eu tive a certeza de que não ia vê-lo mais. A chuva se anunciou num raio que varou o teto do caramanchão. Fui atingido ou foi aquela coisa que se armou no meu peito e acabou por golpear a pedra? Não sei, mas sei que foi nessa noite que se abriu esta rachadura sem sangue e sem dor. Então as formigas foram subindo pelo meu corpo e vieram (em fila indiana) me examinar. Entraram pela fresta, bisbilhotaram o avesso da pedra e depois saíram obedecendo a mesma formação, além de disciplinada a formiga é curiosa e essa curiosidade é que a faz eterna.

Kobold. Pois Kobold foi o nome que o Professor me deu, ele estava num antiquário quando me descobriu de repente no fundo penumbroso de uma das salas. Achou graça em mim (nesse tempo ainda ria) e disse ao vendedor que eu era muito parecido com seu avô chamado Kobold, o avô tinha o mesmo nariz de batatinha, a pele toda enrugada e esse jeito pretensioso de juiz que julga mas não admite ser julgado. Inclinou-se para me examinar e pareceu agradavelmente surpreendido, Esse anão tem um furinho lá dentro do ouvido como as imagens dos deuses chineses para ouvir melhor as preces. Não vai ouvir preces mas o meu violoncelo, ele avisou ao me instalar no chão arenoso do caramanchão, entre dois tufos de samambaia. Sua música era boa? Era ruim? Não sei e nem ele ficou sabendo, esse meu dono era tão fraco que não teve nem forças para cumprir sua vocação, não tomava notas ou então rabiscava desordenadamente as composições em folhas que acabava perdendo e a Marieta jogava no lixo. Tocava o violoncelo horas seguidas (blom, blom, blom) refugiado ali no verde do caramanchão fechado pelas trepadeiras e nesses momentos parecia (vagamente) feliz. E agora me lembro, quando um sabiá veio cantar na figueira, ele se encantou e acabaram ambos fazendo um dueto, o sabiá soltava seus gorjeios agudos e o violoncelo respondia com sons tão graves que pareciam vir das profundezas da terra. Me lembro ainda que ele lamentou um dia, Que pena, o sabiá foi embora. Numa tarde em que Hortênsia chegou com a manta para cobrir-lhe os pés (fazia frio), surpreendeu-o falando sozinho e fingiu zangar-se, Não quero que fale sozinho, querido, isso é coisa de velho! Ele suspirou, Mas eu sou velho. E defendeu-se em seguida, Não estou falando sozinho, estou falando com o Kobold. Mas isso já faz muito tempo, ela era amante do banqueiro com quem ia para a Europa, acho que não pensava (ainda) em assassinar o Professor. Nessa época ele estava de cama com bronquite e era aqui no caramanchão que ela vinha telefonar para o amante. Trazia o pequeno telefone dentro da sacola de lona vermelha e ficava fazendo suas ligações secretas. Quando não conseguia comunicar-se com ele (era casado) mandava a Marieta levar-lhe os bilhetes. Aqui ela teve a notícia da morte do banqueiro e pela palidez que vi em sua face (sempre corada) pude bem imaginar o quanto ele era rico. Vieram em seguida os outros amantes, demorou um certo tempo para conhecer o corretor que acabou seu cúmplice. Pelas conversas (em código) que chegavam (às vezes) ao auge da discussão, deu bem para perceber que ele queria recuar, deve ter tido medo. Mas quando esse tipo de mulher mete uma coisa na cabeça, vai mesmo até o fim. A diferença foi que dessa vez a mensageira Marieta (que já devia estar chantageando) ficou completamente de fora.

Amanheceu. Ontem, os homens derrubaram o último muro e hoje será a vez do caramanchão, ouvi os dois combinando, a figueira vai ficar para depois. Deixa o anão comigo, o mais jovem lembrou e fez um gesto obsceno. Tenho pouco tempo. Sei que esta essência (alma?) que me habitou tantos anos não vai agora se esfarelar como a pedra, sei que vou continuar, mas onde? Reconheço que sou mal-humorado, intolerante, não devo ter sido um bom parceiro nem de mim mesmo nem dos outros, não me amei e nem amei o próximo. Mas convivendo com esse próximo eu poderia ser diferente? Tanta ambição, tanta vaidade. Tanta mentira. O Professor era delicado, manso de coração mas não era irritante com a sua mornidão? A bondade sem a coragem, sem a energia, ele nem dava pena, dava até raiva. Dos outros, desses não quero nem falar, tenho pouco tempo, confesso que não fui mesmo compassivo e assim ainda ouso sonhar com uma outra vida porque sempre sonhei (e ainda sonho) com Deus. Então peço isto, queria servi-lo na ativa, quero lutar com o amor que sou capaz de ter e não tive, queria ser um guerreiro, não um discípulo-espectador mas um discípulo-guerreiro, me pergunto até hoje como aqueles lá permitiram a crucificação de Jesus Cristo. Eu sei do seu desencanto diante deste mundo que ficou ruim demais e ainda assim estou pedindo, quero lutar, me dê um corpo! Imploro o inferno do corpo (e o gozo) que inferno maior eu conheci aqui empedrado. Na hora do julgamento do Cristo Pilatos pede uma bacia d’água, lava as mãos e diz: “Estou inocente do sangue deste justo”. Ah! eu queria tanto entrar ali na forma de uma serpente e picar Pôncio Pilatos no calcanhar!

As vozes dos demolidores estão mais nítidas, um deles parou para arregaçar as mangas da camisa, vai acender um cigarro. Baixo o olhar e vejo um escorpião que saiu de debaixo da pedra e se aproximou até parar interrogativo diante do bico da minha bota. Sei que é o último bicho que vejo, nenhum medo nem dele nem da morte mas agora é diferente, estou ansioso, ansioso, ah! se pudesse compreendê-lo, mas escorpião não precisa de compreensão, precisa de amor. Tem a cor da palha seca e a cauda erguida, está com a cauda em gomos sempre erguida no alto e em posição de dardo, o veneno na ponta aguda, é um lutador pronto para se defender. Ou atacar. Avançou mais e as pinças dianteiras que sondam e informam — as pinças se imobilizaram endurecidas no ar. A cauda (rabo) erguida e pronta para o combate se ele pressentir que minha bota vai avançar. Aí está o taciturno habitante das cavidades. Das sombras. E me lembro de repente, vi certa tarde um casal (macho e fêmea) passeando de mãos dadas, é possível? mas vi o casal sair de mãos dadas sob o sol que se escondia, também eles se escondendo.

Os homens estão parados na entrada do caramanchão e combinam um jogo para mais tarde, o mais velho parece satisfeito, o trabalho está praticamente terminado. O escorpião já fugiu com seu dardo aceso, as pinças altas no alerta, escondeu-se. A tática. Um ser odiado odiado odiado e que resiste porque os deuses o inscreveram no Zodíaco, lá está o Signo do Escorpião o Scorpio e se Deus me der essa mínima forma eu aceito, quero a ilusão da esperança, quero a ilusão do sonho em qualquer tempo espaço e o demolidor jovem está aqui junto de mim. Pai nosso que estais no céu com a Constelação do Escorpião brilhando gloriosa brilhando com todas as suas estrelas e o braço do homem se levanta e fecho os olhos Seja feita a Vossa vontade e agora a picareta e então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outubro.

(In: A noite escura e mais eu. (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1995).

***


No te pongas sentimental

Arnaldo Bloch 

 

De: Neri – Gerente / Para: Jorg – Controle

Jorg, o setor de suprimento pede pra agilizar o fornecimento das fibras úmidas.

 

De: Jorg / Para: Neri

Ok. 

* 

De: Jorg – Controle / Para: Carter – Fornecimento

Carter, gerência cobra (de novo) remessa das fibras úmidas.

 

De: Carter / Para: Jorg

A bosta do container foi liberada semana passada.

 

De: Jorg / Para: Carter

Então deve ter ficado retida, a bosta.

 

De: Carter / Para: Jorg

Retida na sua bunda. 


* 

De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle

Almoço no Zé Popó?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Agora não dá.

 

De: Pérola / Para: Jorg

Insisto: quando?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Não sei. Estou afogado.

 

De: Pérola / Para: Jorg

Quando?

 

De: Jorg / Para: Pérola

Nunca. 


* 

De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex

Chuva de meteoros pode ser observada esta madrugada, por volta de duas horas, na Constelação de Leão. Locais mais altos com pouca iluminação são ideais para o espetáculo. Na certa, todos acordarão mais dispostos para mais uma jornada de trabalho! Então, torçamos para que não chova e uma ótima noite celeste para todos! 


* 

De: Jorg / Para: flor@com

Desculpe escrever assim, mas descobri seu e-mail residencial quase por acaso, anotado num papel caído perto da sua mesa. Se quiser, o papel está comigo, não preciso mais dele, o e-mail já está registrado na minha memória pessoal, na minha cabeça, no meu coração. 


* 

De: “Outra Consultoria” / Para: Grupo 11

Consultoria com 100 anos de experiência em todas as áreas. Para uma visita, é só clicar Reply! Nós daremos o Triply!


* 

De: Marina Rina / Capela / Para: Todos

Oração para todos os dias no arquivo anexo. Enviar para 9 pessoas e aguardar mudanças na vida. 


* 

De: Rabino Michel / Para: Todos

Vamos todos dançar em volta da Torá Virtual! No chat-Simchá-Torá, segunda-feira, às sete horas, www.simchatorá.com.br 


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De: genetic@unimail.com

Meu nome é Melany, tenho 18 anos e muitos parceiros e parceiras, mas meu orgasmo é com garotas. Um orgasmo pobre, filete de gozo. Esse baixo desempenho me faz pensar em algo mais ousado. Joy, um amigo homossexual, conseguiu. Foram meses de tentativas junto ao laboratório, até que o embrião iniciasse um desenvolvimento saudável. Estou na fila, sou uma das próximas. O sonho de criar e cevar a minha cópia, rever a adolescência, tocá-la, recriar meu prazer. Vou tratá-la com carinho, mas longe de tudo, ao abrigo da sociedade, fora da prisão da linguagem. Nada haverá que subverta a sua verdade, a dimensão absoluta da realidade. Então, ela vai me ensinar a esquecer de tudo, a ser que ela é, a reencontrar o meu sujeito primeiro. E então aprenderemos juntas o que é o verdadeiro amor. 


* 

De: Jorg / Para: flor@com

Não vai responder? 


* 

De: Canetéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários Emprex

Jiolino Caldas deixa a empresa. Bolo no Zé Popó. 


* 

De: flor@com / Para: Jorg

Demorei pra responder, mas aí vai: não tem nada a ver, ok? Olha só, colega, comigo, bateu valeu.


De: Jorg / Para: flor@com

Não sei. Não sei, não sei mais falar, não sei escrever, só sei você.

 

De: flor@com / Para: Jorg

Sai desse mundo, meu caro. 


* 

De: Jorg / Para: Neri – Gerente

Neri, estou com um problema gástrico, vou ter que ir embora mais cedo. Amanhã estou aí, ok?

 

De: Neri / Para: Jorg

Ok, Jorg, mas me diga: o problema das fibras úmidas, já resolveu?

 

De: Jorg / Para: Gerente

O Carter está vendo. Houve retenção na alfândega.

 

De: Neri / Para: Jorg

Bom, me dá uma posição até amanhã de manhã sobre essa retenção, ok? 


* 

De: Jorg / Para: Carter

Então?

 

De: Carter / Para: Jorg

Já está liberado, pode ficar calminho, a retenção acabou, agora você já pode cagar. O transporte não tinha soltado a documentação ainda, porra. Fala com o Caligari. 


* 

De: Jorg / Para: Neri

Neri, falei agora com o Caligari e já avisei ao suprimento, tá tudo resolvido. 


* 

De: Administrador do Sistema / Para: Jorg

Não foi possível enviar mensagem para usuário Neri. 


* 

De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários

O gerente Neri está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó. 


* 

De: Pérola – Financeiro / Para: Jorg – Controle

Não me deixo abater pelo seu “nunca”. Para mim, você é “sempre”. 


* 

De: Cananéia – Qualidade de Vida / Para: Usuários

O funcionário Jorg está deixando a empresa. Bolo no Zé Popó. 

 

 (In: Geração 90: os transgressores. Org. Nelson de Oliveira. São Paulo: Boi Tempo Editorial, 2003, pp. 72-76). 


***



Carta de Paris

Ana Cristina Cesar

I

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas apenas em delírio vejo Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées. Genet dançando a meia luz com Leslie fazendo de francesa e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, na fuga da gaiola, na sede do deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, talvez bicos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio.


II

Paris muda! Mas minha melancolia não se move. Beaubour, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda.

 

(In: Inéditos e dispersos. Org. Armando Freitas Filho. São Paulo: Ática, 1995, pp. 82-84).

 

***


Solidão

Charles Bukowski 

 

Edna estava caminhando pela rua com sua sacola de compras quando passou  pelo carro. Havia um cartaz na janela lateral:

PROCURA-SE MULHER

Ela parou. Havia um grande pedaço de papelão grudado na janela com  alguma substância. A maior parte estava datilografada. De onde estava na calçada, Edna não conseguia ler o aviso. Podia apenas ver as letras graúdas:

PROCURA-SE MULHER

Era um carro novo e caro. Edna deu um passo sobre a grama para ler a parte     datilografada:

Homem, 49 anos. Divorciado. Procura mulher para casamento. Deve ter entre 35 e 44 anos. Gosta de televisão e películas cinematográficas. Boa comida. Sou especialista em custos de produção,  com estabilidade no emprego. Dinheiro no banco. Gosto de mulheres acima do peso.

 

Edna tinha 37 anos e estava acima do peso. Havia um número de telefone.

Também havia três fotos do cavalheiro em busca de uma mulher. Ele parecia bem  sério de terno e gravata. Também parecia estúpido e um pouco cruel. E feito de madeira, pensou Edna, feito de madeira.

Edna se afastou, sorrindo um pouco. Sentia também uma espécie de repulsa.

Ao chegar ao seu apartamento, ela o tinha esquecido. Apenas algumas horas depois, sentada na banheira, voltou a pensar nele e, dessa vez, pensou em como  ele devia estar realmente sozinho para fazer tal coisa:

 

PROCURA-SE MULHER

Imaginou-o chegando em casa, encontrando as contas de gás e telefone na caixa de correio, despindo-se, tomando um banho, a televisão ligada. Então leria o  jornal da tarde. Depois iria para a cozinha preparar sua refeição. De pé, de cuecas, olhando para a frigideira. Pegando sua comida e caminhando para uma mesa, comendo. Bebendo seu café. Então mais televisão. E talvez uma solitária lata de cerveja antes de se deitar. Havia milhões de homens como ele por toda a América.

Edna saiu da banheira, enrolou-se na toalha, vestiu-se e saiu do apartamento. O carro ainda estava lá. Anotou o nome do homem, Joe Lighthill, e o número do telefone. Leu a parte datilografada novamente. “Películas cinematográficas.” Que  termo estranho para se usar. Agora as pessoas dizem “filmes”. PROCURA-SE MULHER. O aviso era muito ousado. Estava diante de um sujeito original.

Quando Edna chegou em casa, tomou três xícaras de café antes de discar o  número. O telefone chamou quatro vezes.

— Alô? – ele respondeu.

Sr. Lighthill?

— Sim?

— Vi seu anúncio. Seu anúncio no carro.

— Ah, sim.

— Meu nome é Edna.

— Como vai, Edna?

— Ah, vou bem. Tem feito tanto calor. Esse tempo está demais.

— Sim, nada fácil.

— Bem, sr. Lighthill...

— Me chame apenas de Joe.

— Bem, Joe, rá, me sinto tão boba. Sabe por que estou telefonando?

— Você viu meu aviso?

— Quero dizer, rá, o que de errado com você? Não consegue arranjar    uma mulher?

— Acho que não, Edna. Me diga, onde elas estão?

— As mulheres?

— Sim.

— Ah, por toda parte, veja bem.

— Onde? Me diga. Onde?

— Bem, na igreja, veja bem. mulheres na igreja.

— Não gosto de igrejas.

— Ah.

— Escute, porque você não vem para cá, Edna?

— Quer dizer para sua casa?

— Sim. Moro em um lugar legal. Podemos tomar um drinque, conversar. Sem pressão.

— Está tarde.

— Não está tão tarde. Escute, você viu meu aviso. Deve estar interessada.

— Bem...

— Você está com medo, é isso. Está apenas com medo.

— Não, não estou com medo.

— Então venha pra cá, Edna.

— Bem...

— Venha.

— Certo. Vejo você em quinze minutos.

 

 

O apartamento ficava no último andar de um condomínio moderno. Número 17.

A piscina abaixo refletia as luzes. Edna bateu. A porta se abriu e lá estava o sr. Lighthill: entradas frontais, nariz aquilino com pelos que saíam pelas narinas, a  camisa aberta na altura do pescoço.

— Entre, Edna...

Entrou, e a porta se fechou atrás dela. Trazia seu vestido azul de seda.

Estava sem meias, de sandálias, e fumando um cigarro.

— Sente-se, vou pegar uma bebida para você.

Era um lugar agradável. Tudo nas cores azul e verde e muito limpo. Ela  ouviu o sr. Lighthill cantarolar surdamente, enquanto preparava as bebidas, hmmmmmmm, hmmmmmmm, hmmmmmmm... Ele parecia tranquilo e isso ajudou a descontrair.

O sr. Lighthill Joe voltou com as bebidas. Alcançou a Edna a sua e então  sentou-se em uma cadeira do outro lado da sala.

— Sim ele disse –, tem feito muito calor, um calor infernal. Mas tenho ar- condicionado.

— Notei. É muito bom.

— Tome a sua bebida.

— Ah, claro.

Edna tomou um gole. Era uma boa bebida, um pouco forte, mas com um gosto agradável. Observou Joe inclinar a cabeça enquanto bebia. Ele parecia ter rugas profundas em torno do pescoço. E suas calças estavam muito folgadas. Pareciam ser de uma numeração muito maior. Davam a suas pernas uma aparência cômica.

— É um belo vestido, Edna.

— Gosta?

— Oh, sim. Você é bem fornida. O vestido fica muito bem em você, muito bem.

Edna não disse nada. E Joe também não. Apenas permaneceram sentados, olhando um para o outro e bebericando suas bebidas.

 

Por que ele não fala?, pensou Edna. É ele quem tem de falar. Havia nele algo    que lembrava madeira, sim. Ela terminou seu drinque.

— Deixe-me preparar outra bebida para você disse Joe.

— Não, realmente está na minha hora.

— Ora, vamos ele disse –, deixe-me preparar outra bebida. Precisamos de  algo para relaxar.

— Tudo bem, mas depois vou embora.

Joe foi até a cozinha com os copos. Ele não estava mais cantarolando.

Voltou, alcançou a Edna um copo e sentou-se novamente em sua cadeira do outro  lado da sala, em frente à cadeira dela. A bebida estava ainda mais forte.

— Sabe ele disse –, me dou bem nesses testes sobre sexo das revistas.

Edna tomou um gole de sua bebida e não respondeu.

— Como você se sai nesses testes? Joe perguntou.

— Nunca fiz nenhum.

— Deveria, sabe, assim você descobre quem e o que você é.

— Acha que esses testes funcionam? vi nos jornais. Nunca fiz nenhum, mas   já vi – disse Edna.

— Claro que funcionam.

— Talvez eu não seja boa em sexo disse Edna –, talvez seja por isso que  estou sozinha.

Ela bebeu um longo gole de seu copo.

— Cada um de nós está, no final, sozinho disse Joe.

— Como assim?

— Quero dizer, não importa quão bem a coisa esteja indo no sexo, no amor ou  em ambos, chega um dia em que tudo acaba.

— Isso é triste – disse Edna.

— Claro que é. Então chega o dia em que tudo acaba. Ou uma separação ou a coisa toda se resolve em uma trégua: duas pessoas vivendo juntas sem sentir      nada. Acho que ficar sozinho é melhor.

— Você se divorciou da sua esposa, Joe?

— Não. Ela se divorciou de mim.

— O que deu errado?

— Orgias sexuais.

— Orgias sexuais?

— Veja bem, uma orgia sexual é o lugar mais solitário do mundo. Essas orgias... fiquei com uma sensação de desespero... aqueles caralhos entrando e  saindo... me desculpe...

— Tudo bem.

— Aqueles caralhos entrando e saindo, pernas enlaçadas, dedos trabalhando, bocas, todo mundo se agarrando e suando e determinados a fazer a coisa toda... de alguma forma.

— Não sei muito sobre essas coisas, Joe – disse Edna.

— Acho que sem amor, sexo não é nada. As coisas só podem representar   alguma coisa quando existe algum sentimento entre os participantes.

— Quer dizer que as pessoas têm que gostar umas das outras?

— Ajuda.

— Imagine que eles se cansem uns dos outros? Imagine que tenham que continuar juntos? Por economia? Filhos? Essas coisas?

— Orgias não os manterão juntos.

— E o que manteria?

— Bem, não sei. Talvez o suingue.

— O suingue?

— Você sabe, quando dois casais se conhecem muito bem e trocam parceiros. Os sentimentos têm, pelo menos, uma chance. Por exemplo, digamos que eu sempre tenha gostado da esposa de Mike. Gosto dela meses. a observei caminhar pela sala. Gosto dos movimentos dela. Os movimentos me deixaram curioso. Imagino, você sabe, o que vem depois desses movimentos. Já a vi braba,   já a vi bêbada, já a vi sóbria. E então, vem o suingue. Você está no quarto com ela, finalmente você a está conhecendo. Há uma chance de algo real. É claro, Mike está com a sua esposa no outro quarto. Você pensa: “Boa sorte, Mike, e espero que você seja tão bom amante quanto eu”.

— E isso dá certo?

— Bem, não sei... Suingues podem causar dificuldades... mais tarde. Tudo tem  que ser combinado... muito bem combinado, antecipadamente. E então pode ter pessoas que não se conheçam bem o suficiente, não importa quanto tenham conversado.

— Você é um desses, Joe?

— Bem, esse negócio de suingue pode ser bom para alguns... talvez seja bom   para muitos. Acho que não daria certo para mim. Sou muito puritano.

Joe terminou sua bebida. Edna bebeu o restante da sua e se levantou.

— Escute, Joe, tenho que ir...

Joe caminhou através da sala na direção dela. Ele parecia um elefante naquelas calças. Ela viu suas orelhas grandes. Então ele a agarrou e começou a beijá-la. Seu mau hálito vencia todas as bebidas. Ele tinha um cheiro muito azedo.  Parte de sua boca não estava fazendo contato. Era forte, mas sua força não era pura, sua força claudicava. Ela afastou seu rosto para longe e mesmo assim ele a mantinha presa.

 

PROCURA-SE MULHER

 

— Joe, me solta! Você está indo muito rápido, Joe! Me solte!

— Para que você veio aqui, sua puta?

Ele tentou beijá-la novamente e conseguiu. Era horrível. Edna ergueu o joelho. Acertou-o em cheio. Ele se dobrou e caiu no tapete.

— Deus, deus... por que você fez isso? Você tentou me matar...

Ele rolava no chão.

Seu traseiro, ela pensou, ele tinha uma bunda tão feia.

Deixou-o rolando no tapete e desceu as escadas correndo. O ar estava limpo lá fora. Ela ouviu pessoas conversando, ouviu seus aparelhos de televisão. Não era uma caminhada muito longa até seu apartamento. Sentiu necessidade de outro  banho, livrou-se do seu vestido de seda azul e se lavou. Então saiu da banheira, secou-se com a toalha e ajeitou os rolos em seus cabelos. Decidiu que nunca mais o veria.

 

[1973]


(In: Ao sul de lugar nenhum: histórias da vida subterrânea. (Contos). Tradução de Pedro Gonzaga. L&PM Pocket, 2010, versão disponível em www.lpm.com.br)


                                                          ***




O corpo

Clarice Lispector

Xavier era um homem truculento e sanguíneo. Muito forte esse homem. Adorava tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreendeu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era a história de um homem desesperado.

Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para cama: Xavier, Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas mulheres.

Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistindo. Uma não tinha ciúme da outra.

Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa. Já Carmem era alta e magra.

A noite do último tango em Paris foi memorável para os três. De madrugada estavam exaustos. Mas Carmem se levantou de manhã, preparou um lautíssimo desjejum – com gordas colheres de grosso creme de leite – e levou-o para Beatriz e Xavier. Estava extremunhada. Precisou tomar um banho de chuveiro gelado para se pôr em forma de novo.

Nesse dia – domingo – almoçaram às três horas da tarde. Quem cozinhou foi Beatriz, a gorda. Xavier bebeu vinho francês. E comeu sozinho um frango inteiro. As duas comeram o outro frango. Os frangos eram recheados de farofa de passas e ameixas, tudo úmido e bom.

Às seis horas da tarde foram os três para a igreja. Pareciam um bolero. O bolero de Ravel.

E de noite ficaram em casa vendo televisão e comendo. Nessa noite não aconteceu nada: os três estavam muito cansados.

E assim era, dia após dia.

Xavier trabalhava muito para sustentar as duas e a si mesmo, as grandes comidas. E às vezes enganava a ambas com uma prostituta ótima. Mas nada contava em casa pois não era doido.

Passaram-se dias, meses, anos. Ninguém morria. Xavier tinha quarenta e sete anos. Carmem tinha trinta e nove. E Beatriz já completara os cinquenta.

A vida lhes era boa. Às vezes Carmem e Beatriz saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo. E comprar perfume. Carmem era mais elegante. Beatriz, com suas banhas, escolhia biquíni e um sutiã mínimo para os enormes seios que tinha.

Um dia Xavier chegou de noite bem tarde: as duas desesperadas. Mal sabiam que ele estava com a sua prostituta. Os três na verdade eram quatro, como os três mosqueteiros.

Xavier chegou com uma fome que não acabava mais. E abriu uma garrafa de champanha. Estava em pleno vigor. Conversou animadamente com as duas, contou-lhes que a indústria farmacêutica que lhe pertencia ia bem de finanças. E propôs às duas irem os três a Montevidéu, para um hotel de luxo.

Foi uma tal azáfama a preparação das três malas.

Carmem levou toda a sua complicada maquilagem. Beatriz saiu e comprou uma minissaia. Foram de avião. Sentaram-se em banco de três lugares: ele no meio das duas.

Em Montevidéu compraram tudo o que quiseram. Inclusive uma máquina de costura para Beatriz e uma máquina de escrever que Carmem quis para aprender a manipulá-la. Na verdade não precisava de nada, era um pobre desgraçada. Mantinha um diário: anotava nas páginas do grosso caderno encadernado de vermelho as datas em que Xavier a procurava. Dava o diário a Beatriz para ler.

Em Montevidéu compraram um livro de receitas culinárias. Só que era em francês e elas nada entendiam. As palavras mais pareciam palavrões.

Então compraram um receituário em castelhano. E se esmeraram nos molhos e sopas. Aprenderam a fazer rosbife. Xavier engordou três quilos e sua força de touro acresceu-se.

Às vezes as duas se deitavam na cama. Longo era o dia. E, apesar de não serem homossexuais, se excitavam uma à outra e faziam amor. Amor triste.

Um dia contaram esse fato a Xavier.

Xavier vibrou. E quis que nessa noite as duas se amassem na frente dele. Mas, assim encomendado, terminou tudo em nada. As duas choraram e Xavier encolerizou-se danadamente.

Durante três dias ele não disse nenhuma palavra às duas.

Mas, nesse intervalo, e sem encomenda, as duas foram para a cama e com sucesso.

Ao teatro os três não iam. Preferiam ver televisão. Ou jantar fora.

Xavier comia com maus modos: pegava a comida com as mãos, fazia muito barulho para mastigar, além de comer com a boca aberta. Carmem, que era mais fina, ficava com nojo e vergonha. Sem-vergonha mesmo era Beatriz que até nua andava pela casa.

Não se sabe como começou. Mas começou.

Um dia Xavier veio do trabalho com marcas de batom na camisa. Não pôde negar que estivera com a sua prostituta preferida. Carmem e Beatriz pegaram cada uma um pedaço de pau e correram pela casa toda atrás de Xavier. Este corria feito um desesperado, gritando: perdão! perdão! perdão!

As duas, também cansadas, afinal deixaram de persegui-lo.

Às três da manhã Xavier teve vontade de ter mulher. Chamou Beatriz porque ela era menos rancorosa. Beatriz, mole e cansada, prestou-se aos desejos do homem que parecia um super-homem.

Mas no dia seguinte avisaram-lhe que não cozinhariam mais para ele. Que se arranjasse com a terceira mulher.

As duas de vez em quando choravam e Beatriz preparou para ambas uma salada de batata com maionese.

De tarde foram ao cinema. Jantaram fora e só voltaram para casa à meia-noite. Encontrando um Xavier abatido, triste e com fome. Ele tentou explicar:

— É porque às vezes tenho vontade durante o dia!

— Então, disse-lhe Carmem, então por que não volta para casa?

Ele prometeu que assim faria. E chorou. Quando chorou, Carmem e Beatriz ficaram de coração partido. Nessa noite as duas fizeram amor na sua frente e ele roeu-se de inveja.

Como é que começou o desejo de vingança? As duas cada vez mais amigas e desprezando-o.

Ele não cumpriu a promessa e procurou a prostituta. Esta excitava-o porque dizia muito palavrão. E chamava-o de filho da puta. Ele aceitava tudo.

Até que veio um certo dia.

Ou melhor, uma noite. Xavier dormia placidamente como um bom cidadão que era. As duas ficaram sentadas junto de uma mesa, pensativas. Cada uma pensava na infância perdida. E pensaram na morte. Carmem disse:

— Um dia, nós três morreremos.

Beatriz retrucou:

— E à toa.

Tinham que esperar pacientemente pelo dia em que fechariam os olhos para sempre. E Xavier? O que fariam com Xavier? Este parecia uma criança dormindo.

— Vamos esperar que Xavier morra de morte morrida? perguntou Beatriz.

Carmem pensou, pensou e disse:

— Acho que devemos as duas dar um jeito.

— Que jeito?

— Ainda não sei.

— Mas temos que resolver.

— Pode deixar por minha conta, eu sei o que faço.

E nada de fazerem nada. Daqui a pouco seria madrugada e nada teria acontecido. Carmem fez para as duas um café bem forte. E comeram chocolate até à náusea. E nada, nada mesmo.

Ligaram o rádio de pilha e ouviram uma lancinante música de Schubert. Era piano puro. Carmem disse:

— Tem que ser hoje.

Carmem liderava e Beatriz obedecia. Era uma noite especial: cheia de estrelas que as olhavam faiscantes e tranquilas. Que silêncio. Mas que silêncio. Foram as duas para perto de Xavier para ver se se inspiravam. Xavier roncava. Carmem realmente inspirou-se.

Disse para Beatriz:

— Na cozinha há dois facões.

— E daí?

— E daí nós somos duas e temos dois facões.

— E daí?

— E daí, sua burra, nós duas temos armas e poderemos fazer o que precisamos fazer. Deus manda.

— Não é melhor não falar em Deus nessa hora?

— Você quer que eu fale no Diabo? Não, falo em Deus que é dono de tudo. Do espaço e do tempo.

Então foram à cozinha. Os dois facões eram amolados, de fino aço polido. Teriam força?

Teriam, sim.

Foram armadas. O quarto estava escuro. Elas faquejaram erradamente, apunhalando o cobertor. Era noite fria. Então conseguiram distinguir o corpo adormecido de Xavier.

O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício.

Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina. As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado o seu grande amor.

E agora? Agora tinham que se desfazer do corpo. O corpo era grande. O corpo pesava.

Então as duas foram ao jardim e com auxílio de duas pás abriram no chão uma cova.

E, no escuro da noite – carregaram o corpo pelo jardim afora. Era difícil porque Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito. Enquanto o carregavam, gemiam de cansaço e de dor. Beatriz chorava.

Puseram o grande corpo dentro da cova, cobriram-na com a terra úmida e cheirosa do jardim, terra de bom plantio. Depois entraram em casa, fizeram de novo café, e revigoraram-se um pouco.

Beatriz, muito romântica que era – vivia lendo fotonovelas onde acontecia amor contrariado ou perdido – Beatriz teve a ideia de plantarem rosas naquela terra fértil.

Então foram de novo ao jardim, pegaram uma muda de rosas vermelhas e plantaram-na na sepultura do pranteado Xavier. Amanhecia. O jardim orvalhado. O orvalho era uma bênção do assassinato. Assim elas pensaram, sentadas no banco branco que lá havia.

Passaram-se dias. As duas mulheres compraram vestidos pretos. E mal comiam. Quando anoitecia a tristeza caía sobre elas. Não tinham mais gosto de cozinhar. De raiva, Carmem, a colérica, rasgou o livro de receitas em francês. Guardou o castelhano: nunca sabia se ainda não seria necessário.

Beatriz passou a ocupar-se da cozinha. Ambas comiam e bebiam em silêncio. O pé de rosas vermelhas parecia ter pegado. Boa mão de plantio, boa terra próspera. Tudo resolvido.

E assim ficaria encerrado o problema.

Mas acontece que o secretário de Xavier estranhou a longa ausência. Havia papéis urgentes a assinar. Como a casa de Xavier não tinha telefone, foi até lá. A casa parecia banhada de mala suerte. As duas mulheres disseram-lhe que Xavier viajara, que fora a Montevidéu. O secretário não acreditou muito mas pareceu engolir a história.

Na semana seguinte o secretário foi à Polícia. Com Polícia não se brinca. Antes os policiais não quiseram dar crédito à história. Mas, diante da insistência do secretário, resolveram preguiçosamente dar ordem de busca na casa do polígamo. Tudo em vão: nada de Xavier.

Então Carmem falou assim:

— Xavier está no jardim.

— No jardim? Fazendo o quê?

— Só Deus sabe o quê.

— Mas nós não vimos nada nem ninguém.

Foram ao jardim: Carmem, Beatriz, o secretário de nome Alberto, dois policiais, e mais dois homens que não se sabia quem eram. Sete pessoas. Então Beatriz, sem uma lágrima nos olhos, mostrou-lhes a cova florida. Três homens abriram a cova, destroçando o pé de rosas que sofriam à toa a brutalidade humana.

E viram Xavier. Estava horrível, deformado, já meio roído, de olhos abertos.

— E agora? disse um dos policiais.

— E agora é prender as duas mulheres.

— Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela.           

— Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.

— Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em Montevidéu. Não nos deem maiores amolações.

As duas disseram: muito obrigada.

E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.

[1974]

            (In: A via crucis do corpo. (Contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 21 a 28).

***



Um agregado (Capítulo de um livro inédito)

Machado de Assis


Naquele ano de 1855, por uma tarde de Dezembro, indo eu a entrar na saleta onde a minha família costumava passar a sesta, ouvi o meu nome e parei.

— Senhora D. Maria da Glória, V. Ex. persiste em meter o nosso Bentinho no seminário? perguntou o nosso agregado José Dias. 

— De certo. Por quê?

— Pode haver uma dificuldade.

— Que dificuldade?

Espiei pela fresta da porta. Minha mãe despegou o corpo da cadeira, e aguardou a resposta. As outras pessoas que estavam na saleta eram meu tio, o coronel Cosme, irmão de minha mãe, e uma prima, D. Justina, que ali vivia de favor. A casa era na rua do Rezende, um grande prédio de sete janelas, vasto saguão, extensa chácara ao fundo. Era mui bem pintada e algumas salas a fresco, – alguns tetos lavrados. Meu pai, fazendeiro e deputado, já havia trocado a residência de Cantagalo pela do Rio de Janeiro, quando veio a falecer. Minha mãe, depois de viúva, só duas vezes tornou à fazenda; preferia ficar naquela casa, onde as lembranças do marido não eram menores e eram recentes, – perto da igreja onde ele fora enterrado, e cuidando de educar o seu único filho.

Tinha quarenta e dois anos minha mãe. Teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-los da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, xale dobrado em triângulo e afrouxado ao pescoço por um velho camafeu. Os cabelos, em bandós, andavam apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga. Às vezes, trazia touca. Lidava assim, com os sapatos de cordovão, rasos e surdos, abaixo e acima, de um lado para outro, vendo e guiando o serviço dos fâmulos. Ia à missa, aos domingos, e a alguma visita rara e de obrigação. Guardava os vestidos de outro tempo, e as joias que nunca mais pôs, desde que enviuvou. A vida, como a casa, era assim monótona e soturna. Pelas festas de junho consentiam-me um oratório. Nas noites de festa nacional ou religiosa, nas três de S. Sebastião, mandava pendurar luminárias. Tudo o mais contrastava com a vida externa.

A vida externa era festiva, intensa e variada. Tinham acabado as revoluções políticas. Crescia o luxo, abundava o dinheiro, nasciam melhoramentos. Tudo bailes e teatros. Um cronista de 1853 (se não vos fiais em mim) dizia haver trezentos e sessenta e cinco bailes por ano. Outro de 1854 escreve que do princípio ao fim do ano toda a gente ia ao espetáculo. Salões particulares à porfia. Além deles, muitas sociedades coreográficas, com os seus títulos bucólicos ou mitológicos, a Campestre, a Sílfide, a Vestal, e outras muitas chamava a gente moça às danças, que eram todas peregrinas, algumas recentes. A alta classe tinha o Cassino Fluminense. Tal era o amor ao baile que os médicos organizaram uma associação particular deles, a que chamaram Cassino dos Médicos. Hoje, se dançam, dançam avulsos. A Ópera Italiana tinha desde muito os seus anais; no decênio anterior, mais de uma cantora entontecera a nossa população maviosa e entusiasta; agora desfilava uma série de artistas mais ou menos célebres, a Stoltz, o Tamberlick, o Mirate, a Charton, a La-Grua. O próprio teatro dramático mesclava nos seus espetáculos o canto e a dança, árias e duos, um passo a três, um passo a quatro, não raro um bailado inteiro. Já havia corridas de cavalos, um clube apenas, que chamava a flor da cidade. As corridas começavam às dez horas da manhã e findavam à uma da tarde. Ia-se a elas por elas mesmas. A Europa mandava para cá as suas modas, as suas artes, os seus clowns. Traquitanas e velhas seges cediam o passo ao coupé, e os cavalos do Cabo entravam como triunfadores. Modinhas e serenatas brasileiras iam de par com árias italianas. As festas eclesiásticas eram numerosas e esplêndidas; na igreja e na rua, a devoção geral e sincera, as romarias e patuscadas infinitas.

— Que dificuldade? repetia minha mãe.

Não pude ver o gesto do José Dias; mas naturalmente passou a mão pela cara desbarbada e cerrou um pouco os olhos; era o seu gesto sempre que tinha de dizer alguma coisa grave.

— Negócio delicado, replicou; entretanto...

— Entretanto...?

— Entretanto, o perigo é grande, e eu, como amigo desta casa, é natural que a defenda.

— Sim, mas que há?

— Minha senhora, vou direto ao assunto. Não me parece bonito que o nosso querido Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga; e esta é a dificuldade, porque se ele, – com perdão da palavra, – se eles pegam de namoro, v. ex. terá muito que lutar para separá-los, pode crê-lo, e não sei se o conseguirá.

— Não acho nada disso, respondeu minha mãe. Metidos nos cantos?

— É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Ele quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê.... Pudera! Quer naturalmente subir; casa rica, casa respeitável, onde é que ele achará genro igual, nem que de longe se aproxime? Compreendo o seu gesto, minha senhora, não se pode admitir que a ideia de semelhante enlace entre na cabeça de homem tão reles, tão ínfimo... Provoca, realmente, uma estrondosa gargalhada.

José Dias riu-se neste ponto, talvez um tanto forçado; logo depois concluiu:

— Não obstante, encontram-se ambições dessas.

— Mas, José Dias, disse minha mãe, tenho visto os pequenos brincarem, não acho nada que faça desconfiar. Basta a idade, ele tem quinze anos, ela mal passa dos treze. São dois criançolas. Não se esqueça que são companheiros de infância. Quando a família Fialho veio para essa casa ao pé, tive ocasião de lhe fazer um favor, e assim começaram as relações entre os pequenos. Pois eu hei de crer que se namorem? Você que diz, mano?

Tio Cosme respondeu com um — Ora! que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias. Ele anda sempre com a cabeça no ar. Os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”

— Sim, acho que José Dias está enganado, concluiu minha mãe.

— Pode ser, minha senhora; mas não falei senão depois de muito examinar. V. Ex. e o digno Sr. coronel estão de boa fé. Conheço o pai da pequena; é um velhaco. A filha não é menos velhaca, apesar de desmiolada. Enfim, cumpro um dever amargo, um dever amaríssimo.

José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias, não as havendo, serviam a esticar as frases. Já o conheci agregado à nossa fazenda de Cantagalo, onde aparecera um dia, vendendo-se por médico homeopata; levava uma botica portátil e um manual de medicina. Curou uma escrava e o feitor, mas não aceitou a proposta que meu pai lhe fez de ficar ali com ordenado; agradeceu dizendo que era justo ir levar a saúde à casa de sapé do pobre.

— Mas quem lhe impede de ir? perguntou meu pai.

— Voltarei daqui a dois meses.

Voltou antes de duas semanas, aceitou casa e comida, sem outro estipêndio, salvo o que lhe dessem por festas. Não obstante, marcou-se-lhe um pequeno ordenado. Quando meu pai foi eleito deputado, José Dias veio com ele e a família e teve o seu quarto na nossa casa da rua do Rezende. Um dia, reinando febres em Cantagalo, disse-lhe meu pai que fosse acudir à escravatura. José Dias deixou-se estar calado, soltou um grande suspiro e confessou que não era médico. Usurpara esse título para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito; mas a consciência não lhe permitia aceitar mais curas. “Perdoe-me V. Ex. (concluiu) perdoe-me a mentira com que o enganei, e expulse-me desta casa tão nobre, tão honesta, onde tão indignamente iludi a confiança...” Não foi expulso, nem perdeu as graças da família. Além das maneiras obsequiosas, tinha uma infinidade de préstimos, recados, fazer contas, redigir e copiar cartas, aparar penas, parceiro ao solo e ao gamão, ledor de histórias e de jornais, contador de anedotas, autor e decifrador de charadas e logogrifos. A afeição que mostrou por ocasião da morte de meu pai ainda mais o prendeu ao coração de minha mãe, que não consentiu em despedi-lo, quando ele lhe foi pedir as suas ordens. Era já como pessoa da família. Cuidava de mim com extremos de mãe e atenções de servo.

— Seja o que for, vou metê-lo no seminário o quanto antes.

— Bem, uma vez que v. ex. não perdeu a ideia de o meter no seminário, tudo está salvo. Há de ser um sacerdote modelo; tem muito boa índole e a educação não pode ser melhor. Vai-se perdendo a raça dos bons padres; eu conheci alguns e ainda conheço. V. ex. não teve um caso notabilíssimo na sua própria família, monsenhor Camillo? Ouvi dizer que era grande teólogo. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó foi regente do império. A igreja brasileira tem altos destinos.

— Você o que quer é um capote, disse o tio Cosme. Ande, vá buscar o gamão.

José Dias caminhou para a porta com as suas calças brancas e engomadas, presilhas, rodaque e gravata da moda. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um aro de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço. Juntai a isso um passo vagaroso, não do vagar arrastado dos preguiçosos, mas daquele outro vagar solene, calculado, deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão, e tereis a pessoa do nosso agregado. Um dever amaríssimo!


(Publicado no jornal A República, em 15/11/1896, e posteriormente, com modificações, em Dom Casmurro, sob o título "Capítulo III - A denúncia". Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1899.)

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