Saturday, September 03, 2005

Ironia pós-moderna

Quando, no século XIX, o historiador francês Jules Michelet forjou o termo “Renascimento” para designar o amplo movimento cultural, artístico e humanístico que tirou a Europa Ocidental do sono teocêntrico da Idade Média, laicizando-a e lançando-a na Modernidade, alguns séculos já haviam se passado desde aquele evento. O distanciamento entre a ocorrência do fato e a sua análise foi, possivelmente, o que teria permitido ao historiador a lucidez necessária para, reconhecendo aquele fenômeno em toda a sua extensão e implicações, cunhar um termo que ninguém ousa colocar sob suspeita.
Da mesma maneira, os conceitos de “Idade Média” e “Modernidade” necessitaram de um tal distanciamento para virem à luz, assim como Platão e Aristóteles, na Antigüidade Clássica, não se reconheciam como “antigos” ou “clássicos”. No entanto, o mesmo não se dá com o conceito de pós-moderno, uma vez que, sem qualquer distanciamento crítico ou temporal, nos auto-intitulamos e nos reconhecemos “pós-modernos”. Embora haja tanta controvérsia em torno de tal conceito, ele segue sendo utilizado indiscriminadamente nos estudos de literatura, notadamente para designar certo tipo de escrita literária que vem sendo produzida desde a segunda metade do século XX.
Com o marxismo, teria sido inaugurada a tendência de uma época de se auto-analisar e forjar os conceitos com os quais deseja ser identificada no futuro. Opondo-se à historiografia burguesa oitocentista, Marx trouxe à luz novos e importantes conceitos, sobretudo a noção de materialismo histórico,[1] com a qual desvendou o caráter de classe das relações sociais. Em O capital, seu autor empreende a mais completa reconstituição histórica do sistema capitalista, análise que poucos se atrevem a questionar. Embora Susan Sontag, no ensaio Contra a interpretação, denuncie o caráter hermenêutico da psicanálise freudiana e do marxismo, “as mais celebradas e influentes doutrinas modernas”, que tratam seus temas (no marxismo, os acontecimentos sociais; na teoria freudiana, os fatos da vida do indivíduo) como “motivos de interpretação”[2], tal hermenêutica não invalida a importância dessas correntes teóricas que, sem dúvida, se constituem em duas das maiores sistematizações do conhecimento no mundo ocidental.
Apesar de apresentar o esfacelamento do feudalismo e a emergência do moderno modo de produção capitalista de um ponto de vista histórico inquestionável – com ou sem “interpretação” –, os problemas do marxismo começam no instante justo em que, negando a necessidade do distanciamento temporal, propõe “queimar etapas” históricas – negando, portanto, a própria dialética da História que revela – para o estabelecimento imediato do socialismo (a exemplo do que ocorreu com o Império Russo no início do século XX, transformado numa URSS que não chegou a durar um século).
Quando, na primeira metade do século XX, os teóricos do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt utilizaram o conceito de pós-moderno, tinham em mente a orientação marxista, da qual eram herdeiros. Ou seja, o “pós-moderno” frankfurteano se ligava sobretudo às novas configurações da sociedade ocidental na esfera da produção, que introduziram o mundo capitalista na era do capitalismo financeiro e da produção fortemente monopolizada. Para os frankfurteanos, as previsões marxistas de derrocada do capitalismo – que seria levada a cabo devido às próprias contradições internas desse sistema, como a superprodução, geradora de mercadorias cada vez mais desprovidas de valor –, não haviam se concretizado, ou pelo menos, se adiariam durante um bom tempo. Ao contrário, o capitalismo, cada vez mais fortalecido, havia superado fronteiras e se internacionalizado – apesar do nazismo alemão, cujos efeitos os frankfurteanos sentiram bem de perto. Em outras palavras, o capitalismo, transformado em “pós-capitalismo”, também se “pós-modernizou”, já que um dos conceitos fundamentais da Modernidade burguesa era o conceito de Nação, tornado ultrapassado no momento em que as fronteiras entre os países começavam a ser diluídas.
Ainda que uma das propostas da Escola de Frankfurt seja o estudo da esfera cultural da sociedade, com o fim de “preencher lacunas” deixadas por Marx nessa área, teóricos como Benjamin, Marcuse, Adorno, Habermas e Horkheimer, formuladores da Teoria Social Crítica que caracteriza e dá sentido ao Instituto, não poderiam imaginar a confusão que viria se estabelecer, na própria esfera da cultura, em torno do conceito de “pós-moderno”.
Nos estudos literários de hoje em dia não é raro constatarmos imprecisões terminológicas as mais diversas, como por exemplo, um mesmo texto referir-se à Modernidade como sendo os dias atuais, e, logo em seguida, utilizar, sem qualquer discriminação teórica ou metodológica, o conceito de “pós-moderno” para se referir à mesma época chamada, parágrafos antes, de “modernidade”. O que dizer, então, dos conceitos de “pós-modernismo” e “pós-modernidade”, utilizados sem qualquer critério distintivo? Conceitos novíssimos emergem – romance-pastiche, hipertexto, estética de videoclipe, literatura-projeção de mundo, hipermodernidade – colocados todos no mesmo balaio de gatos pós-modernos.
A utilização e mesmo o estabelecimento de conceitos sem dúvida são procedimentos necessários, sem os quais o conhecimento torna-se estagnado ou confuso. No entanto, deve-se buscar manejar os conceitos – que surgem supostamente para esclarecer, não confundir – com um mínimo de coerência interna, o que não é muito observável ultimamente.
A criação e utilização de conceitos para a análise da época que lhes é contemporânea coloca ainda outras questões: devemos ser simples “cronistas” da nossa época, reservando ao futuro os rótulos – que certamente virão – sobre ela, ou devemos desempenhar, nós mesmos, o papel de “historiadores do futuro”, oferecendo às épocas vindouras tudo pronto e acabado? Vive-se, assim, uma verdadeira aporia: se sermos cronistas de nós mesmos torna-se insuficiente, de outro lado, a auto-análise e auto-interpretação que empreendemos – por vezes, excessiva – de nossa própria época implica uma negação da História. Nesse impasse, que alternativa restará aos futuros historiadores senão a sua própria auto-análise e auto-interpretação, e assim sucessivamente, ad infinitum? Teriam, pois, razão, aqueles que proclamam o “fim da História”? Qual seria a sorte dos estudos literários? Triunfaria finalmente a “ficcionalização indiscriminada”, na qual confunde-se um texto de crítica literária com o próprio texto literário, na medida em que aquele torna-se, tanto quanto este, “ficção”?
A grande ironia pós-moderna é, afirmando-se, não apenas negar o futuro, mas também negar-se a si mesma. O “pós-moderno”, tal como a História, não existe. Ao afirmarmos o pós-moderno, cada vez negamos a nós mesmos, da mesma maneira que a fabricação sem trégua de imagens e notícias há muito já perdeu o sentido, produzindo apenas “mercadorias espetaculares” intensamente desvalorizadas num mundo super-informatizado e informado. No entanto, se formos capazes de reconhecer que a ironia – assim como a époké do método cético formulado por Pirro na Antigüidade – se constitui numa forma de “suspensão do juízo”, que pressupõe e requer distanciamento para abarcar, num só golpe, a coisa e seu contrário, a afirmação e a negação do que se afirma, seremos também capazes de aceitar o “pós-moderno”. Pois só assim poderemos obter um mínimo distanciamento de nós mesmos e da nossa “condição pós-moderna”, qualquer que seja ela.
notas
[1] O conceito de materialismo histórico surgiu em oposição ao “materialismo idealista”, de Ludwig Feuerbach, teórico do grupo dos neo-hegelianos alemães da primeira metade do século XIX. Ao contrário de Feuerbach, que vê na ação do indivíduo isolado o princípio da realidade, o marxismo considera que as relações sociais são determinadas historicamente, a partir das condições materiais de existência herdadas das gerações passadas. É mediante a praxis, ou seja, as relações efetivas dos indivíduos em sociedade, que essas condições materiais se desenvolvem, constituindo o “modo de produção” de uma dada sociedade.
[2] SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Trad. Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 15.

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