Da desnecessidade do ceticismo
Isabel Pires
O ceticismo é uma doutrina extremamente fácil de seguir. Os seus princípios filosóficos, ao contrário dos fundamentos de quase todas as religiões, estão ao alcance de qualquer um que se disponha a, pelo menos, seguir o bom senso, quando não o senso apenas comum. Nada exige o ceticismo além de que o homem (e a mulher) comum siga exatamente a moral comum. Tal doutrina demonstra, também, ser baseada no máximo respeito pelo outro, uma vez que um dos seus maiores fundamentos é o de não se ser dogmático em nenhuma hipótese. Assim, como não se pode ter certeza absoluta se uma opinião é mais correta ou mais justa que outra, o melhor, no caso, é suspender os conceitos pré-fabricados, os juízos de valor. Na falta de provas definitivas, o ceticismo aceita, igualmente, a probabilidade de algo se ter dado tanto de um modo como de outro. Por isso mesmo, contrariando o que muita gente pensa, os céticos não são ateus. A divindade, para eles, tanto pode existir como não. O ceticismo é, ainda, uma doutrina – se é que se pode caracterizá-lo assim – essencialmente humanista, buscando levar em conta, sempre, a falibilidade e limitações da condição humana. Isto leva à suposição de ser, a realidade, não um dado absoluto, mas resultado de um conhecimento que tem por medida justamente o sujeito de sua constituição. Sem falar que os princípios céticos estão afinados com as mais recentes e importantes descobertas da ciência, notadamente o relativismo einsteiniano. Por fim, o objetivo último do ceticismo é alcançar, pela “ataraxia” (palavra grega que quer dizer “ausência de perturbação”), a plena felicidade humana.
Não obstante, essa filosofia, tão atraente em muitos – senão todos – dos seus aspectos, sempre encontrou, ao longo de sua história, poucos simpatizantes, menos ainda seguidores. Uma das razões disso, talvez, seja a necessidade que o ser humano tem de acreditar, de ter fé – o que se opõe ao princípio elementar do ceticismo, que é o de suspender as crenças todas. Assim como o ser humano não pode prescindir da ficção, também não suportaria viver sem crenças, que se tornam, deste modo, como observa Wolfgang Iser, “necessidades antropológicas”.
Ao eliminar o dogmatismo e suspender as crenças, o ceticismo anula igualmente a noção maniqueísta de Bem e Mal e, junto com ela, todas as oposições, desnudando-lhes o caráter relativo: esquerda e direita em relação a quê? Uma destas oposições, a de começo/fim, nos interessa de perto.
As noções de começo e de fim estão presentes em praticamente todas as crenças religiosas, sejam elas ocidentais, não-ocidentais ou “primitivas”. O alfa e o ômega, princípio e fim, gênesis e apocalipse. É uma crença religiosa básica a idéia de que fomos criados – portanto, tivemos um “começo” – e de que, fatalmente, teremos um “fim”. Não um fim individual, representado pela morte de cada um de nós, mas um fim coletivo, uma destinação comum, diferenciada apenas segundo o ponto de vista de cada doutrina religiosa.
Ora, na vida quotidiana, a oposição começo/fim não existe, como não existe, a rigor, nenhum tipo de oposição. Ninguém é somente “bom” ou apenas “mal”. Do mesmo modo, não se é avaro ou generoso ao extremo, assim como não se consegue ser herói, ou vilão, em tempo integral. Tais perfis caricatos são, essencialmente, ficcionais, e, não aleatoriamente, encontraram ambiente propício nos folhetins romanescos (ou romances folhetinescos, tanto faz) do século XIX e, na atualidade, nos folhetins eletrônicos – as novelas de tevê e os filmes ruins.
Na vida dos indivíduos, a oposição começo/fim é, também, mera ficção. Nasce-se e morre-se. São fatos. Mas ninguém vivencia o próprio nascimento, assim como alguém jamais relatou – a não ser Brás Cubas, na ficção literária de Machado de Assis – a própria experiência da morte. O começo e o fim coletivos, aos quais nos referimos como fundamentos religiosos, são, também, crenças, e, mais do que fé, requerem o elemento ficcional para se sustentarem. O começo do mundo e o fim do mundo seriam, assim, ficções necessárias para a psiquê humana, que de outro modo não suportaria a experiência concreta da existência: um contínuo medias res, sem começo nem fim, uma inexorável mediocridade sem um sentido absoluto.
A ficcionalização da vida quotidiana por meio de conceitos em oposição – começo/fim, bem/mal, verdade/mentira, realidade/ficção, ser/não-ser – se revela, assim, como prática necessária à sobrevivência humana. O ceticismo, propondo uma reflexão sobre esta prática, não se torna apenas desnecessário, supérfluo mesmo, mas chega a ser incômodo, porque denuncia a condição – tão real, e, portanto, tão indesejável – de se ser apenas humano.
Rio, 17-18/06/04
Não obstante, essa filosofia, tão atraente em muitos – senão todos – dos seus aspectos, sempre encontrou, ao longo de sua história, poucos simpatizantes, menos ainda seguidores. Uma das razões disso, talvez, seja a necessidade que o ser humano tem de acreditar, de ter fé – o que se opõe ao princípio elementar do ceticismo, que é o de suspender as crenças todas. Assim como o ser humano não pode prescindir da ficção, também não suportaria viver sem crenças, que se tornam, deste modo, como observa Wolfgang Iser, “necessidades antropológicas”.
Ao eliminar o dogmatismo e suspender as crenças, o ceticismo anula igualmente a noção maniqueísta de Bem e Mal e, junto com ela, todas as oposições, desnudando-lhes o caráter relativo: esquerda e direita em relação a quê? Uma destas oposições, a de começo/fim, nos interessa de perto.
As noções de começo e de fim estão presentes em praticamente todas as crenças religiosas, sejam elas ocidentais, não-ocidentais ou “primitivas”. O alfa e o ômega, princípio e fim, gênesis e apocalipse. É uma crença religiosa básica a idéia de que fomos criados – portanto, tivemos um “começo” – e de que, fatalmente, teremos um “fim”. Não um fim individual, representado pela morte de cada um de nós, mas um fim coletivo, uma destinação comum, diferenciada apenas segundo o ponto de vista de cada doutrina religiosa.
Ora, na vida quotidiana, a oposição começo/fim não existe, como não existe, a rigor, nenhum tipo de oposição. Ninguém é somente “bom” ou apenas “mal”. Do mesmo modo, não se é avaro ou generoso ao extremo, assim como não se consegue ser herói, ou vilão, em tempo integral. Tais perfis caricatos são, essencialmente, ficcionais, e, não aleatoriamente, encontraram ambiente propício nos folhetins romanescos (ou romances folhetinescos, tanto faz) do século XIX e, na atualidade, nos folhetins eletrônicos – as novelas de tevê e os filmes ruins.
Na vida dos indivíduos, a oposição começo/fim é, também, mera ficção. Nasce-se e morre-se. São fatos. Mas ninguém vivencia o próprio nascimento, assim como alguém jamais relatou – a não ser Brás Cubas, na ficção literária de Machado de Assis – a própria experiência da morte. O começo e o fim coletivos, aos quais nos referimos como fundamentos religiosos, são, também, crenças, e, mais do que fé, requerem o elemento ficcional para se sustentarem. O começo do mundo e o fim do mundo seriam, assim, ficções necessárias para a psiquê humana, que de outro modo não suportaria a experiência concreta da existência: um contínuo medias res, sem começo nem fim, uma inexorável mediocridade sem um sentido absoluto.
A ficcionalização da vida quotidiana por meio de conceitos em oposição – começo/fim, bem/mal, verdade/mentira, realidade/ficção, ser/não-ser – se revela, assim, como prática necessária à sobrevivência humana. O ceticismo, propondo uma reflexão sobre esta prática, não se torna apenas desnecessário, supérfluo mesmo, mas chega a ser incômodo, porque denuncia a condição – tão real, e, portanto, tão indesejável – de se ser apenas humano.
Rio, 17-18/06/04
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