Thursday, June 02, 2005

O folhetim

Isabel Pires

Em tempos de sucessivos recordes de audiência das telenovelas, já se tornou lugar-comum classificar este produto da indústria cultural como um “folhetim eletrônico”. Muito se tem insistido que as telenovelas seriam herdeiras diretas dos folhetins que vigoraram durante o século XIX na Europa e no Brasil. No entanto, deixa-se de se procurar entender o que os folhetins de fato foram e representaram, contentando-se muitas vezes com a simples afirmação de terem sido “romances publicados em jornais”. Mais especificamente, o “folhetim” – assim chamados os romances que eram publicados em capítulos nos jornais, no século XIX – teve seu nome derivado das “folhas internas” do jornal, já que se tratava de um “sub-produto”, apresentado internamente, e nunca em lugar de destaque do jornal. Contudo, os folhetins foram os grandes responsáveis pelo aumento das tiragens dos jornais e pela acirrada disputa entre eles. De certo modo, embora tenham desaparecido dos jornais a partir de meados do século XX (ou seja, há mais ou menos um século atrás), os folhetins contribuíram para que o jornal se modernizasse, na conquista pelos leitores, ganhando a pouco e pouco a forma pelos quais são conhecidos atualmente. Este texto busca examinar o folhetim mais de perto, ou seja, tomando-o como um produto vivo da cultura de massas, que tanto seduziu os leitores da época, como o fazem hoje as suas herdeiras, as novelas de tevê.
Surgimento
Os romances em série, ou romances-folhetim, surgiram em Paris, na primeira metade do século XIX. Inicialmente, o folhetim (feuilleton) era uma parte do jornal em que se publicavam “variedades” – críticas literárias, resenhas teatrais, anúncios diversos e receitas culinárias, que compunham o “rodapé” do jornal. Em julho de 1836, Émile de Girardin, editor do jornal francês La Presse, começa a publicar, nessa parte do jornal, romances seriados que vêm a ocupar todo o espaço do folhetim. A partir daí, o termo “folhetim” passou a designar a própria forma literária que nascia.
Com a transformação do jornal em empresa comercial em meados de 1830, a competição entre os jornais parisienses La Presse e Le Siècle acirra-se, desempenhando papel importante na configuração do romance-folhetim. A disputa levou os jornais à obrigação de incluir em suas páginas os folhetins, os horóscopos e os quadrinhos, como forma de atrair um número cada vez maior de leitores. Também a inovação tecnológica da rotativa, com uma aceleração no aumento da tiragem, que passou de 1.100 páginas impressas por hora para 18 mil páginas, contribuiu na “caça ao leitor”, praticada pelos jornais com o objetivo de elevar as vendas.
O folhetim surgiu como o primeiro tipo de texto escrito para um público específico: o operariado francês. Assim, desde o início, caracterizou-se como um texto popular, feito para o entretenimento das massas. Este novo modo de literatura, baseado, em sua maioria, em notícias do próprio jornal, como assassinatos, seqüestros, estupros e outros crimes que faziam parte da rotina de vida dos operários, conforma um tipo de texto a meio caminho entre a informação jornalística e a ficção, ou seja, uma forma de escrita que não é literária nem jornalística, mas sim uma “mistura” das duas formas. Produzidos para um público ainda imerso na cultura oral, que não dominava muito bem a escrita, os folhetins eram impressos em tipografia de letras grandes e espacejadas. Além disso, tinham como principais características:
. narrativa fragmentada em episódios, a fim de facilitar a leitura “não-especializada” das massas, além de atender às necessidades e possibilidades de leitura (semanal como o tempo de descanso e o recebimento do salário);
. presença de mecanismos de “sedução”, predispondo o leitor a interferir nos acontecimentos narrados com o envio de cartas ao jornal; e, finalmente,
. o “suspense”, espécie de “marca registrada” do folhetim, que possuía a função de manter viva a curiosidade do leitor e o seu interesse pelo próximo episódio.

Sem dúvida, estes elementos de fato subsistem nas telenovelas, que, porém, aboliram por completo o hábito da leitura, voltadas que são integralmente para a imagem e para a oralidade. No entanto, ao contrário das suas “herdeiras”, e afastado da idéia que fazemos do folhetim como um texto “água-com-açúcar”, destinado a ser mero passatempo inofensivo, o folhetim oitocentista francês tinha o poder de interferir até mesmo em questões políticas. Segundo o crítico da cultura de massas, Martín-Barbero, o folhetim Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats em 1848, teria sido uma das molas propulsoras do levante das massas parisienses nesse mesmo ano. Para Barbero, as “centenas de cartas”, arquivadas na Biblioteca Nacional de Paris, seriam um atestado de que o proletariado francês, confundindo a sua própria realidade com as fantasias do folhetim, percebe neste “um convite à mudança e uma justificativa para o levantamento”. Após a publicação de Os mistérios de Paris, Sue foi eleito “como deputado ‘vermelho’ em 1849, antecedendo sua expulsão da França, acusado de instigar o levantamento de 1848, bem como a decretação de um novo imposto em 1850, taxando os jornais que publicassem folhetins” (MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, p. 191).
O folhetim no Brasil
Embora herdeiro direto do feuilleton francês, o folhetim brasileiro do século XIX se distingue radicalmente deste. Apesar de ter seguido os mesmos moldes de composição do folhetim francês – uma vez que eram compostos e impressos em Paris, já que o Brasil ainda não possuía tipografias –, os folhetins brasileiros não eram dirigidos para um público popular formado pelo operariado, como na França. Ao contrário, na sociedade brasileira escravocrata do século XIX, a ausência de uma “massa de leitores” é flagrante. Na época de ouro dos folhetins no Brasil, o analfabetismo da população – composta em sua maioria por escravos, que também não compravam jornais – representou um sério entrave para a ampla circulação deles.
Restrito a um “círculo de leitores”, formado principalmente por moças e senhoras “de sociedade”, que residiam na Corte, o folhetim brasileiro difere do folhetim francês ainda pelos temas tratados e pelo tipo de linguagem empregada, bem diversa da linguagem da literatura folhetinesca da França do século XIX, que apresenta um aspecto marcadamente sombrio. De acordo com Martín-Barbero, “o folhetim [francês] fala do popular-urbano: sujo e violento, o que geograficamente se estende desde o subúrbio até a penintenciária, passando pelos hospícios e as casas de prostituição. (...) Além de divórcios e adultérios, há incestos e abortos, mães solteiras e operárias seduzidas por patrões, dos quais se vingam cruel e fatalmente. Existe moralismo, mas também ligação entre a repressão sexual e as condições sociais de vida. O universo operário que aí aparece é o de um proletariado sem consciência de classe – mas quantos romances tinham, antes, tematizado esse universo de miséria, do medo e da luta pela sobrevivência?” (MARTÍN-BARBERO, op. cit., p. 199).
O capitão Paulo, de Alexandre Dumas, foi o primeiro folhetim francês a chegar ao Brasil, traduzido e publicado no Jornal do Commercio em 1838. O primeiro folhetim brasileiro, O aniversário de Dom Miguel em 1828, de Pereira da Silva, foi publicado em 1839, e conta as desventuras amorosas de um jovem casal que vive sob a tirania do rei português Dom Miguel. Ou seja, o primeiro folhetim de um autor brasileiro, trazendo uma história que se passa em Portugal, tem ainda um conteúdo europeu. A partir daí, porém, os folhetins, no Brasil, tornam-se os principais veículos de divulgação de novos escritores, que tinham a oportunidade de ver neles as suas obras publicadas.
Neste espaço literário dominado pelo folhetim, teve lugar ainda a publicação das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, no jornal A partilha, de 1853 a 1854. Surgindo como espécie de “voz de exceção” do Romantismo brasileiro, a narrativa das Memórias, ambientada no Rio de Janeiro “do tempo do Rei”, é de difícil filiação estética, por possuir traços de realismo e também afinidade com a produção cômica e satírica que vigorou durante os primeiros anos do Segundo Reinado no Brasil, a qual apresentava-se bastante caricatural. Numa perfeita mescla de sátira e caricatura, as Memórias apresentam a sociedade carioca “do tempo do Rei” como um “arremedo” das “terras de além-mar”:

"Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que a traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (...) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento. / Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia." (ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Brasília: Editora da UnB, 1963. p. 33.)

As Memórias de um sargento de milícias seriam, ainda, um exemplo vivo de narrativa literária cuja composição, de caráter misto, está subordinada, assim como a notícia, à “lógica do acontecimento”. Para o crítico Antônio Cândido, o romance “apresenta uma coleção de cenas e acontecimentos (...), uma seqüência de situações sem precedência cronológica necessária, e cuja precária unidade é garantida pela pessoa de Leonardo” (CÂNDIDO, in “Dialética da malandragem”. Rio de Janeiro: LTC, 1978), evidenciando assim um intenso diálogo da literatura com a linguagem jornalística, de cujo intercâmbio o folhetim é um resultado concreto.

(Texto adaptado do cap. 3, “As relações entre Literatura, História e Jornalismo”, da dissertação de mestrado em literatura brasileira, Literatura e comunicação de massa no Brasil, defendida na UERJ em nov./ 2002.)

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