Friday, June 03, 2005

Espanto e reflexão

Em sua sétima tese sobre O Narrador, Walter Benjamin defende a idéia de que a verdadeira narrativa é aquela que nada explica, mas que, apesar disto – ou por isto mesmo –, é capaz, depois de anos, de suscitar espanto e reflexão. Como exemplo, Benjamin cita um relato feito por Heródoto por volta de 445 a. C.
Em suas Histórias, Heródoto relata que, quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e levado ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar o prisioneiro, fazendo-o assistir ao “cortejo triunfal dos persas”. Neste cortejo, a filha de Psammenit, degradada à condição de criada, levava um jarro com o qual ia ao poço buscar água. “Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão”, conta Heródoto, na transcrição de Benjamin. Em seguida, o rei egípcio viu o filho sendo levado para a execução, e, mesmo assim, “continuou imóvel”. No entanto, ao ver um dos seus servos, “um velho miserável”, na fila dos cativos, Psammenit “golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero”.
Para Benjamin, o relato de Heródoto, que nada explica a respeito do comportamento do rei egípcio e “é dos mais secos”, é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão, assemelhando-se, por isto, “a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas”.
Assim como no relato de Heródoto analisado por Benjamin, encontramos, na obra de Machado de Assis, igual capacidade de, ainda hoje, suscitar espanto e reflexão. Vejamos a seguinte passagem do Dom Casmurro, na qual o narrador rememora o episódio em que penteou os cabelos de Capitu:

"— Pronto.
— Estará bom?
— Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
— Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e..."

Comentando essa passagem em crônica publicada no Jornal do Commercio em 19/03/1900, José Veríssimo já observava que o escritor, ao traçar seus personagens, não buscava fazer-lhes a psicologia, “procurando decompor uma alma, como se decompõe um corpo em seus elementos constituintes, ou analisar os seus sentimentos como se analisa uma substância química, e explicar os seus móveis como um fisiologista explicaria o jogo das funções do nosso organismo”. Ao contrário, de acordo com o crítico, Machado de Assis apenas “explica o quanto baste para completar a representação que da sua dão os mesmos personagens nas suas falas, nos seus gestos, nas suas ações”. E, completa ele, “ao cabo os seus livros são galerias de gente viva, como este Dom Casmurro, com Capitu, José Dias, Escobar, e as figuras secundárias: os pais de Capitu, D. Glória, Justina, o tio Cosme”. O “espanto” e a “reflexão” a que Benjamin se refere, contidos na obra machadiana, são capazes não apenas de suscitar o interesse do leitor através dos anos, conservando a sempre atualidade de Machado de Assis, mas sobretudo têm o poder de trazer à vida, diante dos nossos olhos, os tipos criados pelo nosso (ainda) insuperável e verdadeiro “narrador”.

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