Friday, March 05, 2021

O louco raisonner: um modo machadiano de sátira à filosofia ocidental?

Eu não sei se é o cão, se o morto, quem dá o nome ao livro do Sr. Machado de Assis. São talvez ambos ou mais propriamente o espírito do morto. (José Veríssimo)

 

1) Introdução

 

O Quincas Borba é o sexto romance de Machado de Assis e o segundo da chamada “segunda fase”, considerada pelos críticos como a dos “grandes romances machadianos”, iniciada com as Memórias póstumas de Brás Cubas (1880-1881). Publicado em folhetins de junho de 1886 a setembro de 1891, o Quincas Borba também foi publicado em livro, em novembro de 1891. Entre essas duas versões, porém, são tantas as diferenças que alguns estudiosos chegam mesmo a afirmar que se trata de dois livros completamente diversos. Apesar do fascínio que o estudo das versões do Quincas Borba[1] suscita, este trabalho não faz uma análise comparativa delas, detendo-se antes na figura singular do filósofo Quincas Borba, que ali aparece momentaneamente, apenas, como afirma o narrador, para “morrer, como disse o médico” (cap. I, versão em folhetins), deixando para Rubião a sua herança e o seu cão Quincas Borba.

O filósofo Quincas Borba não é uma criação inédita na obra de Machado de Assis, vez que já havia feito uma aparição no livro anterior, as Memórias póstumas de Brás Cubas, fato relembrado pelo narrador do Quincas Borba: “Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia” (cap. IV, versão em livro). Este “filósofo pancada”, como o denomina Roberto Schwarz (1990, p. 148), cria a filosofia do Humanitismo, que muitos estudiosos consideram um “arremedo” e uma sátira ao positivismo comtiano que dominava o espírito cientificista do século XIX. Embora o Humanitismo tenha sido alvo de vários tipos de análises, e ainda que o nome do filósofo que o criou figure no título de um dos mais importantes romances machadianos, o personagem, de modo geral, costuma ser relegado pela crítica ao plano dos “personagens secundários”.

Roberto Schwarz (1980, pp. 83-106), em seu minucioso estudo das Memórias póstumas de Brás Cubas, faz uma espécie de “compêndio” dos personagens, dividindo-os em “pobres” (Eugênia, Dona Plácida, Prudêncio) e “ricos” (o cunhado Contrim, Brás Cubas, Virgília). A ausência do Quincas Borba aí, porém, é flagrante. No estudo A condição de observador na obra de Machado de Assis,  José Raimundo Maia Neto (1987) analisa o emprego sistemático do ceticismo pirrônico como método de elaboração ficcional de Machado de Assis nos romances da “segunda fase” – Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Nesse acurado estudo, porém, o Quincas Borba é completamente deixado de lado, pois, de acordo com o autor, a análise deteve-se apenas nos romances narrados em primeira pessoa, com foco nos “narradores ficcionais de Machado” (MAIA NETO, 1987, p. 14), os quais evidenciariam melhor, para Maia Neto, a perspectiva cética adotada por Machado de Assis, o que não seria o caso, para ele, do Quincas Borba. Verifica-se, assim, certa lacuna nos estudos machadianos, no que diz respeito a análises mais efetivas do personagem Quincas Borba. Desde o estudo de Magalhães de Azeredo[2], publicado n’O Estado de São Paulo em abril de1892, a crítica parece tê-lo condenado ao puro esquecimento, à exceção de Luiz Costa Lima (1981, pp. 57-123), cuja análise considera o Humanitismo de um duplo ponto de vista: enquanto sátira à filosofia e enquanto fruto da loucura de Quincas Borba, constituindo-se, esta última, no verdadeiro “legado” de Rubião.

Mesmo em estudos que têm por objeto o romance Quincas Borba, como os ensaios reunidos na coletânea organizada por Ivo Barbieri (2002), é flagrante a ausência de análises mais profundas dedicadas ao personagem, considerado muitas vezes como mero “pretexto” para o “real” motivo do enredo do livro: a “saga” do matuto Rubião e seus devaneios na Corte. Nessa coletânea, o estudo de Carlos Tadeu de Andrade Galvão, “Quincas Borba: variantes prenhes de questões”, aborda a figura de Quincas Borba e seu cão, tocando no tema do título do romance e sua ambiguidade, que leva o leitor a não se decidir quem é que dá o nome ao livro: se o filósofo, se o cão deste. Dilema, aliás, antigo, que perturba os críticos desde mesmo o surgimento da obra, e ao qual o próprio narrador se refere: “é provável que me perguntes se ele [o cão], se o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que outro, – questão prenhe de questões, que nos levariam longe...” (Quincas Borba, cap. CCI, versão em livro). Carlos Tadeu relaciona a morte do cão Quincas Borba, narrada no último capítulo do livro, à “morte” da própria narrativa, ou seja, o fim do romance, recurso que, segundo ele, teria sido utilizado pelo escritor também no conto “Miss Dollar”, nome de uma cadelinha galga que morre no final da narrativa e que seria apenas a “causa indireta” dos acontecimentos narrados, integrando a narrativa aparentemente sem outro objetivo que “desviar” a atenção do leitor, numa espécie de peça pregada ao “leitor desprevenido” (Ivo Barbieri).

Apesar de tempestiva nos dois livros em que aparece, a presença do filósofo Quincas Borba é bastante incisiva, como observa Luiz Costa Lima:

Nas Memórias póstumas, Quincas Borba tivera uma presença meteórica. No livro que tem seu nome, a presença ainda é mais rápida. Sua ação, contudo, é incisiva. No primeiro, comunicava sua teoria e afirmava por seu destino a existência da loucura. (...) No segundo livro, é o agente dos transtornos de Rubião. Da lucidez de um louco, Humanitas se converte na herança do louco. (...) Tratar de Rubião, pois, é pensar no legado do autor do Humanitismo. (LIMA, 1981, P. 77 - não grifado no original).

 Não se trata, aqui, de refutar a posição indubitável do protagonista Rubião no romance Quincas Borba: é dele, afinal, que trata o livro, e é ele quem “ocupa a cena por inteiro, do primeiro ao último capítulo” (BARBIERI, 2002, p. 15). O que se pretende é buscar entender o papel, ou melhor, um dos papéis, que o filósofo Quincas Borba, enquanto personagem legitimamente machadiano, com possibilidades quase ilimitadas de interpretação, desempenha na obra machadiana. Para tal, este estudo se propõe analisar algumas referências, implícitas ou explícitas, que o Quincas Borba encerra. Como chama a atenção Ivo Barbieri, a intertextualidade, sob a forma de diálogo com autores clássicos e populares (e até mesmo “popularescos” do século XIX), é uma constante na obra machadiana, constituindo-se em um verdadeiro “poço sem fundo, visto que, além das citações e alusões explícitas, sobram na obra pegadas de interlocuções implícitas” (BARBIERI, 2002, p. 10). O objetivo principal deste trabalho é, pois, o de buscar analisar o personagem Quincas Borba, de Machado de Assis, à luz do diálogo que o escritor exerce em sua obra com o discurso filosófico ocidental, desde as suas origens gregas até o século dezenove, o século de Machado de Assis.

 

2) Metodologia

 

Este trabalho procura se beneficiar dos fundamentos e princípios do ceticismo filosófico, corrente filosófica grega que tem, na observação dos fenômenos empíricos e na “suspensão do juízo” sobre as diversas teorias, seu fundamento de análise. Após ter sido fundado por Pirro de Élis no século III a. C. como método para obtenção da ataraxia, a serenidade de espírito, o ceticismo foi utilizado como arma de combate às doutrinas dogmáticas gregas, notadamente o platonismo. Redescobertos por Michel de Montaigne no Renascimento francês, os fundamentos do ceticismo grego passaram a ser utilizados no campo da ciência, fornecendo as bases para o desenvolvimento do cartesianismo, que fundou a ciência moderna. Na literatura, o método cético foi empregado por Cervantes na elaboração do Quixote e, no Brasil, conforme observa José Raimundo Maia Neto (1987), Machado de Assis também teria se valido do ceticismo como método de elaboração ficcional. No campo dos estudos literários, porém, apenas recentemente o ceticismo vem sendo proposto como forma alternativa de análise de obras literárias, capaz de superar certa “disputa” entre o empirismo e a teoria, verificada ao longo da história dos estudos literários.

Quando os estudos literários ganharam estatuto de disciplina, no século XIX, predominava o empirismo, com o inesgotável exame de fontes e influências. Assim, buscava-se determinar, por “evidências” deixadas na obra, uma intertextualidade entre autores. Era costume também analisar uma obra a partir da biografia do autor: Sílvio Romero, por exemplo, atacava a obra de Machado de Assis, baseando-se nas origens social e racial do escritor. O advento do Estruturalismo, na década de 1920, trouxe uma “onda de teoria” sem precedentes nos estudos literários. Porém, a busca incessante de “estruturas imanentes” ao texto gerou o encastelamento da obra em si mesma, remetendo à imagem da “Torre de Marfim”. Essa situação acirrou-se nas décadas de 1940 e 1950, com o New criticism norte-americano, que propõe o completo afastamento de aspectos extratextuais no estudo da literatura. Rompendo com esse paradigma, a Teoria da Recepção, surgida em 1967 na Alemanha, propõe considerar, mediante o conceito de “horizonte de expectativas”, de Hans Robert Jauss (1994, p. 28), o contexto histórico de produção e recepção da obra literária, bem como o papel desempenhado pelo leitor, até então desprezado pelos estudos estruturalistas. Pela primeira vez, uma proposta de caráter empírico, que leva em conta a influência do contexto histórico na produção de uma obra literária, tinha lugar de importância na história dos estudos de literatura.

Na década de 1980, observa-se um retorno à teoria, com os chamados estudos culturalistas, que propõem uma interseção dos estudos literários com outros campos do saber, como a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, etc. Deve-se ter cautela, porém, com possíveis interpretações reducionistas a que tais estudos possam levar. Como observa Ivo Barbieri a propósito do Quincas Borba, um estudo de Rubião que analisasse apenas o aspecto da loucura deixaria de considerar a relação do personagem com o mundo político-histórico e sociocultural que ele habita e de que é parte, “pois, enquanto agente de um universo ficcionalizado, essa figura, singular e concreta, desdobra-se em projeções metafóricas e alegóricas, resultantes da re-elaboração dos dados retirados de áreas constituídas, transformando-os em significantes do novo contexto em processo de constituição” (BARBIERI, 2002, p. 8). De outro lado, é consenso atualmente que pesquisas empíricas possam ajudar a compreender melhor a produção literária de um escritor. Tal é o caso do levantamento e análise do acervo da biblioteca de Machado de Assis, que Jean-Michel Massa realizou em 1961, revisto e atualizado por Glória Vianna em 2000 (JOBIM, 2001).

Verifica-se, no entanto, cada vez mais a necessidade de caminhos alternativos de análise, que levem em conta a própria ambiguidade inerente à obra literária: um “mundo imaginário” que é, também, uma realização empírica, sujeita, devido à multiplicidade que encerra, tanto a especulações teóricas quanto a análises de cunho empírico. Com tal preocupação, Gustavo Bernardo defende a apropriação, pelo campo dos estudos literários, do ceticismo filosófico, tomado como uma regra metodológica básica, pois “sem ela, estamos prontos a despencar na ilusão complacente e, em consequência, no dogmatismo; com ela, se usada com prudência, avançamos nas fronteiras da investigação e tiramos benefícios para a vida prática” (BERNARDO, 2005, p. 104). Com efeito, o método cético parece-nos adequado para se lidar com o paradoxo da obra literária: uma obra produzida e recebida num contexto histórico específico, capaz, porém, de extrapolar o próprio contexto em que foi gerada e suscitar mundos próprios, dando vida a personagens que, embora “de papel”, passam a habitar o imaginário do leitor “como se” fossem de carne e osso.

No século III, Sexto Empírico compilou, na obra Hipotiposis pirronicas[3], o que se conhecia no mundo grego sobre o ceticismo filosófico, desde que fora fundado como um método por Pirro de Élis, seis séculos antes. O método cético de Pirro, tal como compilado por Sexto Empírico, se baseia em alguns procedimentos, conhecidos como “passos pirrônicos”, para se alcançar a imperturbabilidade do espírito: 1) zétesis (investigação); 2) diafonia (conflito de opiniões); 3) isostenia (equipolência de teorias); 4) époké (suspensão do juízo); 5) afasia (ausência de fala); 6) ataraxia (tranquilidade); 7) adiaforia (indiferença) (apud Bernardo, 2000, p. 135-6). A époké é, portanto, o método de “suspensão do juízo” que leva à ataraxia, a tranquilidade pirrônica. Sexto Empírico talvez tenha sido o primeiro, senão o único, cético antigo a utilizar o método do ceticismo com bases científicas. Os céticos anteriores a ele tinham a preocupação com o emprego apenas prático do ceticismo: no século III a. C., Pirro o utilizava como orientação de conduta para se alcançar a serenidade de espírito diante do interminável debate entre as diversas correntes filosóficas. Os acadêmicos e dialéticos que o sucederam, como Arcesilau, Enesidemo e Agripa, apropriaram-se do método cético como arma de combate ao dogmatismo filosófico dos platônicos. Sexto Empírico, porém, empregava o ceticismo como método de análise imparcial das diversas doutrinas existentes, o que o levava a realizar a époké¸ ou seja, “suspender o juízo” sobre elas e, assim, obter a “tranquilidade intelectual”.

Para Sexto Empírico, o ceticismo tinha um caráter “terapêutico”, pois a seus olhos constituía não somente uma arma de combate aos platônicos, mas representava principalmente um “remédio” contra o mal generalizado do dogmatismo. Ao contrário dos dogmáticos platônicos, que baseavam suas crenças no “mundo perfeito das ideias”, lugar da “Verdade transcendente”, condenando o “mundo das aparências” e suas meras cópias enganosas, “distantes em três graus do real, do mundo transcendente das ideias” (FERRAZ, 1999, p. 28), os céticos afirmavam que a base para a compreensão do mundo é justamente “aquilo que aparece” e que é compartilhado por todos, ou seja, o mundo aparente. Esta ênfase cética nos fenômenos e no conhecimento sensível do mundo deu origem ao empirismo, base de todo o desenvolvimento posterior da ciência.

Este trabalho lança mão dos princípios céticos propondo abordar o personagem machadiano Quincas Borba, dono do cão Quincas Borba e inventor da filosofia do Humanitismo, de um duplo ponto de vista: de um lado, por meio do estudo da figura “empírica” do “filósofo de Barbacena”, como o denominou Araripe Júnior, e, de outro lado, pela abordagem do diálogo implícito que Machado de Assis, por meio da “filosofia” do Quincas Borba, exerce com a teoria filosófica ocidental. Embora o viés de análise do Quincas Borba, neste estudo, seja a filosofia, não temos, porém, a pretensão de limitar o personagem a uma leitura única, pois, como observa Ivo Barbieri, as personagens machadianas, enquanto criações literárias complexas, não se entregam “em nenhum estrato isolado ou definição disciplinar, quer seja de cunho filosófico, sociológico ou psicanalítico” (BARBIERI, 2005, p. 35), não cabendo assim em molduras previamente definidas, mas se definindo antes pelo seu caráter aberto a múltiplas interpretações.

 

3) Os “modos” do diálogo machadiano com a tradição filosófica ocidental

 

Desde o aparecimento do Quincas Borba nas páginas machadianas, os “machadólogos” (Ivo Barbieri) o têm reconhecido e à sua “filosofia” como uma caricatura grotesca de sistemas filosóficos diversos, sobretudo do positivismo e do darwinismo, “as duas filosofias do século XIX que mais se têm hostilizado”, nas palavras de Araripe Júnior, contemporâneo de Machado de Assis (in: MACHADO, 2003, p. 178). Mais recentemente, Benedito Nunes (1993) considera que o narrador machadiano “transformou, a seu gosto, as filosofias para zombar da filosofia” (apud BARBIERI, 2002, p. 12). Para Gilberto Pereira Passos, que analisou o diálogo da obra machadiana com a tradição cultural francesa, a finalidade última deste recurso – isto é, a sátira da filosofia e do conhecimento científico – seria a de “criar uma rede particular de significações, sempre no interesse de dar a conhecer o desastre humano presente na ‘saga’ urbana de Rubião” (PASSOS, 2000, p. 97). Em outras palavras, a deturpação do sentido da filosofia – de pretender compreender a realidade, para apreender o seu sentido último – evidenciaria, no texto machadiano, a própria incapacidade da razão humana para dar conta do real, exemplificada pelo “caso” de Rubião, “a personagem provinciana, egressa de Barbacena e perdida no mar do ócio e da dilapidação da fortuna adquirida tangencialmente graças à herança inopinada do ‘filósofo’ Quincas Borba” (PASSOS, op. cit., p. 98).

Maria Cristina Franco Ferraz (1999, p. 53) e Ivo Barbieri (2002, p. 29), por sua vez, consideram que as deturpações do discurso filosófico ocidental, efetuadas por Machado de Assis por meio de paródias, galhofas e distorções as mais diversas, consistem em uma “traição” à tradição, ao mesmo tempo em que esta é apropriada em uma nova chave. Tal procedimento faz com que o escritor, embora renegando e parodiando o discurso estabelecido pela filosofia ocidental, dê continuidade a essa mesma tradição, num movimento simultâneo, que remete àquilo que Octávio Paz chamou de “ruptura com a tradição” e “tradição de ruptura”.

Abordamos a seguir os “modos”, empírico e teórico, pelos quais a obra machadiana parece dialogar com a tradição filosófica ocidental, desde suas origens gregas até o século XIX, o século de Machado de Assis. Observe-se que os “modos do ceticismo”, formulados por Enesidemo e Agripa entre 80 a. C. e 130 da era cristã e sumariados por Sexto Empírico no século III (EMPIRICO, 1993), também encerram perspectivas tanto empíricas quanto teóricas. Enquanto os Dez Modos de Enesidemo são prescrições básicas de conduta diante dos fenômenos físicos, que nos afetam de diferentes maneiras, os Oito Modos de Enesidemo e os Cinco Tropos de Agripa utilizam a époké para colocar em suspenso as teorias dogmáticas, revelando os seus impasses.

 

3.1) A figura empírica do “filósofo de Barbacena” e o diálogo com a filosofia cínica

 

Sátira ao positivismo comtiano, galhofa, agressão ao discurso filosófico ocidental – todas essas são concepções ligadas à figura de Quincas Borba enquanto “teórico”, isto é, enquanto produtor, ele também, de um discurso: a filosofia do Humanitismo. Porém, lançando mão do procedimento cético da époké, a suspensão do juízo sobre as diversas opiniões, vamos colocar por instantes em suspenso a figura “teórica” de Quincas Borba, com seu aparato filosófico, para nos deter “naquilo que aparece”, ou seja, a figura empírica do “filósofo de Barbacena” (Araripe Júnior). Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba havia sido um gracioso menino, que “fazia de imperador nas festas do Espírito Santo” (M.P.B.C., cap. VIII, “Um salto”), companheiro de infância e de escola de Brás Cubas. Capítulos mais tarde, reaparece como mendigo e filósofo: “(...) disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair. / — Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim” (M.P.B.C., cap. LIX, “Um encontro”).

No acervo de representantes ilustres da filosofia ocidental, encontramos um paralelo do Quincas Borba mendigo na figura do filósofo cínico Diógenes [Sínope, atual Turquia, 404 a. C.(?) – Corinto, 323 a. C.]. Embora não fosse propriamente mendigo, Diógenes levava uma vida miserável, perfeitamente de acordo, porém, com a filosofia cínica que tão bem representou. Segundo a lenda, ele vivia em um barril e seus únicos pertences eram um alforje, um bastão e uma tigela, símbolos do desapego e da autossuficiência perante o mundo. Diziam ainda que o filósofo saía à luz do dia, armado com uma lanterna acesa, à cata de “homens virtuosos”. Conta-se também a história de que Alexandre, o Grande, ao encontrá-lo tomando banho de sol, perguntou-lhe o que poderia fazer por ele, ao que Diógenes replicou “Quero apenas meu Sol. Afasta-te!”. Essa resposta teria impressionado o imperador, que, na volta, ouvindo seus oficiais zombarem do filósofo, disse: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Certo dia, Diógenes foi visto pedindo esmola a uma estátua. Perguntado por que fazia aquilo, ele respondeu: “por dois motivos: primeiro, ela é cega e não me vê, e segundo, eu me acostumo a não receber algo de alguém e nem a depender de ninguém”. Outra vez, Alexandre o encontrou e disse-lhe: “Eu sou Alexandre, o grande rei”. Diógenes, por sua vez, retrucou: “E eu sou Diógenes, o cão”. Interrogado sobre qual raça de cão fosse, respondeu: “Quando tenho fome, um maltês, quando estou saciado, um molosso, aquela espécie que as pessoas mais elogiam, mas com a qual não têm coragem de sair para caçar, por causa da fadiga. Assim, não podeis conviver comigo, porque tendes medo de sofrer” (in Diógenes Laércio, Vidas dos filósofos).

Discípulo de Antístenes, o fundador da filosofia cínica, Diógenes defendia que a virtude é o bem soberano. A ciência, as honras, a riqueza, para ele, são falsos bens, que é preciso desprezar. As convenções sociais deviam ser desmascaradas, opondo-lhes a natureza. De igual modo, é necessário libertar-se do desejo, reduzindo ao mínimo as necessidades. Dizia que a prática de exercício é fundamental para a conquista da virtude, e que o exercício deve ser duplo: físico e espiritual. O exercício físico permite formar pensamentos que se integram e se realizam com o exercício espiritual, contribuindo para a saúde da alma e do corpo. Sustentava, assim, que o exercício era o artífice de qualquer sucesso. A prática da virtude era mais importante que teorias sobre a virtude. Eliminados os esforços inúteis, o homem que escolhe as fadigas requeridas pela natureza vive feliz; a incompreensão dos esforços necessários é a causa da infelicidade humana. O próprio desprezo pelo prazer para quem esteja a isso habituado é algo dulcíssimo. Diógenes falsificou dinheiro, mas porque dava menor valor às prescrições das leis do que às da natureza. O modelo de sua vida, dizia, foi Héracles, que nada antepôs à liberdade. Interrogado sobre sua pátria, respondia: “Cidadão do mundo” (in Diógenes Laércio, Vidas dos filósofos).

A vida de Diógenes, de extrema pobreza, era a aplicação prática de suas ideias, ao mesmo tempo em que demonstrava a possibilidade de se acabar com as convenções sociais. Nenhum texto de Diógenes subsistiu, sendo a sua filosofia e as lendas sobre ele conhecidas graças a Diógenes de Laércio, que, no século III, compilou as principais correntes filosóficas gregas no livro Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres.

No cap. LIX, “Um encontro”, das Memórias póstumas de Brás Cubas, o narrador apresenta a figura repelente do mendigo Quincas Borba:

 

Vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse. / Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes, ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras, enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado (M.P.B.C., cap. LIX, “Um encontro”).

 

No entanto, essa figura abjeta, que mora no “terceiro degrau das escadas [da igreja] de S. Francisco, à esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente fresca” (M.P.B.C., op. cit.), é, também, um filósofo: “(...) preparei-me para sair. / — Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim” (M.P.B.C., op. cit., não grifado no original). No entanto, ao contrário de Diógenes de Sínope, que, segundo Diógenes de Laércio, era adepto da independência e do exercício tanto para o corpo como para o espírito, Quincas Borba, criador e praticante de certa “filosofia da miséria”, revela-se completamente avesso a qualquer esforço que implique “trabalho”: após receber uma nota de cinco mil réis de Brás Cubas, ouve deste a promessa de que poderá ver muitas outras, “trabalhando”. Ao que o filósofo “fez um gesto de desdém; calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não queria trabalhar” (M.P.B.C., op. cit.), preferindo, antes, roubar de Brás Cubas o relógio do bolso do colete.

Capítulos depois, o filósofo reaparece, totalmente “repaginado”: botas envernizadas, botão de ouro ao peito, sobrecasaca e camisas impecáveis. Do mesmo modo que sua figura sofrera uma reforma geral, também sua filosofia fora emendada, conforme observa Magalhães de Azeredo, transformando-se de simples “filosofia da miséria” num grandioso sistema filosófico: a doutrina do Humanismo, “modificada já com certas emendas otimistas, que lhe inspirou a sua abastança, restaurada por um sucesso imprevisto [a herança que recebeu de um tio de Barbacena]” (in MACHADO, 2003, p. 169). Por essa ocasião, Quincas Borba escreve uma carta a Brás Cubas, em que lhe envia um relógio de ouro, em substituição ao que havia-lhe roubado na época de mendigo, ao mesmo tempo em que pede vênia para expor-lhe o Humanitismo:

 

(...) peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso esse meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das cousas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma cousa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas (M.P.B.C., Cap. XCI, “Uma carta extraordinária”).

 

Observe-se que, enquanto o Humanitismo é um verdadeiro “tratado filosófico”, composto de “quatro volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas” (M.P.B.C., cap. CXVII, “O Humanitismo”), a primitiva “filosofia da miséria”, formulada quando Quincas Borba ainda era mendigo, não chega sequer a ser escrita, mas apenas “vivenciada” empiricamente, nos degraus da igreja de São Francisco, que haviam servido de casa ao filósofo.

 

3.2) A teoria do Humanitismo e o diálogo com a “filosofia da miséria” oitocentista

 

Após o envio da carta em que devolve a Brás Cubas o relógio de ouro, Quincas Borba, vestido impecavelmente, vai visitar o amigo num momento em que este fazia uma das refeições mais parcas de sua vida, composta de apenas um ovo, uma fatia de pão e uma xícara de chá. Segundo o narrador-defunto, ele não se esqueceu dessa “circunstância mínima” graças às observações que lhe fez o filósofo, de que “a frugalidade não era necessária para entender o Humanitismo, e menos ainda praticá-lo; que esta filosofia acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a frugalidade podia indicar certa tendência para o ascetismo, o qual era a expressão acabada da tolice humana” (M.P.B.C., cap. CIX, “O Filósofo”). Como o filósofo queria expor-lhe naquela hora a sua doutrina na íntegra, Brás Cubas pede-lhe que não, por “estar muito ocupado”. Depois, no capítulo CXV, aborrecido com a partida de Virgília para acompanhar o marido, recém-nomeado presidente de província, Brás Cubas vai almoçar no Hotel Pharoux, saboreando os “acepipes” de M. Prudhon.

No contexto das Memórias póstumas de Brás Cubas, M. Prudhon é o “mestre cozinheiro do Hotel Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, de Paris, e mais nos palácios do conde Molé e do duque de la Rochefoucauld (M.P.B.C., cap. CXV, “O almoço”). Segundo Brás Cubas, “os acepipes do mestre eram deliciosos. / Eram, e naquela manhã (...) jamais o engenho e a arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de formas! Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz” (M.P.B.C., op. cit.). Não obstante essa gastronômica apresentação, o mestre-cozinheiro M. Prudhon parece encerrar uma referência, meio velada, meio explícita, mas em todo caso “enviesada”, a um dos principais representantes do socialismo utópico francês que vigorou no século XIX: o filósofo Pierre Joseph Proudhon, cuja obra, Filosofia da miséria, de 1846, foi duramente criticada por Marx, que “respondeu” com o seu Miséria da filosofia, publicado em 1847, em que são expostos os princípios do materialismo histórico-dialético marxista. Ideólogo da pequena burguesia e defensor de um sistema socialista utópico, que seria resultante da conscientização dos ricos sobre a necessidade de dividir a riqueza com os pobres, o Sr. Proudhon, na visão de Marx, 

tem a desgraça de ver-se incompreendido de singular maneira na Europa. Na França lhe reconhecem o direito de ser um mau economista, porque tem fama de ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha reconhecem-lhe o direito de ser um mau filósofo, porque tem fama de ser um economista francês dos mais abalizados. Em nossa qualidade de alemão e economista a um tempo, quisemos protestar contra esse duplo erro (MARX, 1976, p. 29). 

Nas Memórias póstumas, Monsieur Prudhon (ou Proudhon?) ganha uma conotação cômica, ao ser apresentado como um chef francês especializado em iguarias finas, em comparação com a “proposta” da filosofia de Pierre Proudhon: a criação de uma “república social”, que corresponderia a uma organização comunitária livre, onde trabalhadores e patrões teriam idêntico acesso ao “paraíso” que estes últimos de fato usufruem à custa do trabalho dos primeiros. Na visão do filósofo francês, este mundo utópico seria conseguido sem necessidade de revoluções sangrentas ou lutas de classes, bem ao contrário do que pregava Marx. A propósito, a divergência com os marxistas sobre a necessidade do emprego da revolução para a tomada do poder e fundação do socialismo teria motivado o rompimento de Marx com Proudhon, cuja filosofia passou a ser atacada pelo pai do materialismo histórico. Para Proudhon, bastava uma “reforma social”, por meio de uma “combinação econômica”. Segundo a lenda que cerca este filósofo francês oitocentista, após publicar a Filosofia da miséria, Proudhon divulgou notas nos jornais parisienses, avisando que se encontraria em sua propriedade em certo horário, à espera dos capitalistas dispostos a reformarem com ele o mundo, fazendo generosas doações. Dizem que o filósofo, por anos a fio, cumpriu religiosamente o aviso dos jornais, permanecendo no mesmo horário à espera dos tais “capitalistas generosos”, que, no entanto, nunca apareceram. Enquanto, nas Memórias póstumas, o chef francês M. Prudhon oferece acepipes gastronômicos à saciedade de Brás Cubas, o mendigo-filósofo Quincas Borba apresenta-lhe uma filosofia particular da miséria: “— Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim” (M.P.B.C., op. cit., não grifado no original).

O Humanitismo, versão reformulada, de acordo com as circunstâncias, da antiga “filosofia da miséria” do Quincas Borba mendigo, encerra, tal como a utopia de Proudhon, a promessa de um verdadeiro paraíso terrestre, uma vez que, além da conciliação com os prazeres da vida e da mesa, “retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade e enche de imensa glória o nosso país” (M.P.B.C., cap. XCI, “Uma carta extraordinária”). Quando Quincas Borba, também ele próprio “passado a limpo”, finalmente expõe a Brás Cubas a doutrina do Humanitismo, “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas” (M.P.B.C., cap. CXVII, “O Humanitismo”), fica-se sabendo que, assim como parece ser o objetivo último da utopia socialista de Proudhon, o grande objetivo do tal sistema filosófico de Quincas Borba é, nada mais, nada menos, que a "a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão" (M.P.B.C., op. cit.). 

Observe-se ainda que as "filosofias" de Quincas Borba possuem, à maneira marxista, um caráter de tragédia e de farsa. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), Marx afirma que "a História se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa". Assim, a "filosofia da miséria" do Quincas Borba mendigo revela a tragédia pessoal de alguém relegado à miséria e à própria sorte. Posteriormente, essa mesma filosofia se repete, porém transformada na filosofia farsesca do Humanitismo. 

Versão melhorada, emendada e recriada em um novo contexto, a filosofia do Humanitismo, originada da primitiva “filosofia da miséria” do filósofo Quincas Borba, evidenciaria, assim, um diálogo, de caráter zombeteiro e extremamente galhofeiro, exercido não somente com o positivismo, o darwinismo e toda a “floração oitocentista de ismos” (Schwarz), mas também com a Filosofia da miséria, do filósofo utópico francês Pierre Joseph Proudhon (1846).

 

4) Conclusão

 

Na obra machadiana, as agressões ao discurso filosófico ocidental assumem tanto feições diretas, como a clara exposição da filosofia do Humanitismo, em que se percebem referências aos mais diversos sistemas filosóficos, ou feições apenas implícitas ou veladas, como é o caso das sutis referências ao cinismo, de Diógenes de Sínope, e à “filosofia da miséria”, de Pierre Proudhon, analisadas neste trabalho. Quer explícitas ou apenas implícitas e “enviesadas”, essas referências – que constituem as “pegadas” (Ivo Barbieri) do texto machadiano – parecem, porém, se adequar perfeitamente à diafonia pirrônica, apresentando de um modo específico, propriamente “machadiano”, o “conflito das diversas opiniões”. Diante das diversas “vozes filosóficas” em conflito, o resultado, na obra machadiana, não é a afasia, a “ausência de fala”, como propõe Pirro, mas uma “fala distorcida”, germinada a partir de um “grãozinho de sandice”. A époké, a “suspensão do juízo”, torna-se sobremaneira necessária. Deste modo, as distorções efetuadas por Machado de Assis em seu diálogo com a tradição filosófica ocidental constituiriam uma espécie de époké machadiana, ou seja, um modo de suspender o juízo sobre as diversas opiniões filosóficas, alcançando assim uma ataraxia não apenas “pirrônica”, mas propriamente “machadiana”.

É nas referências implícitas e veladas, quase ocultas nas dobras do texto machadiano, que o escritor dialoga com o tema da “miséria na filosofia”, trabalhado pela tradição filosófica ocidental desde as suas origens gregas até o discurso filosófico oitocentista francês. Este modo de dialogar machadiano elege a paródia, a sátira e a galhofa para tratar do tema em questão, e a figura do filósofo “miserável” Diógenes de Sínope e o sistema utópico da Filosofia da miséria, de Pierre Joseph Proudhon parecem servir-lhe de referências. Se, como afirma Augusto Meyer (1964, p. 185), Machado de Assis “revira” o romance pelo avesso, tomando os clichês dos romances naturalistas e realistas e subvertendo-os à sua maneira, o escritor também parece seguir procedimento semelhante com a filosofia, revirando-a e apresentando o seu avesso, na figura e na doutrina do “filósofo pancada” (Schwartz) Quincas Borba. Adicionalmente, Machado de Assis parece sugerir que as filosofias, sobretudo as “da miséria”, podem muito bem ser corrigidas e emendadas, bastando para isso uma simples mudança de ponto de vista.

O Humanitismo, sistema filosófico tão duramente trabalhado pelo “filósofo de Barbacena”, destinado a tornar-se “a verdadeira religião do futuro”, é, porém, ironicamente destruído pelo seu próprio criador, a fim de “aperfeiçoá-lo”. Quincas Borba também retorna à condição, pelo menos “aparente”, de mendigo, conforme narrado no capítulo CLIX das Memórias póstumas, “Semidemência”, em que Brás Cubas relata a viagem que o amigo fizera para Minas, seis meses antes, levando consigo “a melhor das filosofias”: 

Voltou quatro meses depois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro (M.P.B.C., cap. CLIX, “Semidemência”). 

Dos escombros dessa personalidade assim naufragada, emerge a figura do “louco raisonner”: “Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo” (M.P.B.C., op. cit.). É nessa nova condição que o filósofo envia uma segunda carta, desta vez ao amigo Rubião, que o aguardava em Barbacena: 

Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro! / Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobri isto anteontem ouça e cale-se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus (Quincas Borba, cap. X).

 O louco que se sabe louco sabe, também, que é Santo Agostinho. Ora, Santo Agostinho, um dos mais importantes doutrinários da Igreja, ferrenho fundador e defensor dos dogmas católicos, de inspiração platônica, é um verdadeiro emblema, um ícone do pensamento dogmático religioso. Enquanto mendigo, Quincas Borba havia vivenciado a “filosofia da miséria” que ele próprio formulara, a qual evolui, num segundo momento – o momento da abastança –, para o grandioso sistema do Humanitismo. Por último, já “conscientemente demente”, lança ao fogo a sua própria filosofia, tornando-se, ele próprio, apenas dogma: a encarnação de Santo Agostinho. “A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro” (M.P.B.C., op. cit.).

O louco raisonner Quinca Borba “suspende” assim literalmente o seu juízo, numa époké tão radical quanto fatal, cujo único “benefício” seria, talvez, a serenidade diante da própria loucura e da própria morte: 

Faleceu ontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena (Q. B., cap. XI).

 A Filosofia, todas as filosofias são puro dogma. A époké é, mais uma vez, necessária.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1960 (Edições críticas da obra de Machado de Assis, estabelecida pela Comissão Machado de Assis, v. 13).

 ____________ . Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / Brasília: INL, 1977, 2ª ed. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, v. 14 e Apêndice).

BARBIERI, Ivo. “Pascal atravessado por um olhar oblíquo – o jeito machadiano de ler um clássico”. Palimpsesto. Ano 2, n. 2. Rio de Janeiro: Caetés, 2002, p. 24 a 38.

___________ (org.). Ler e reescrever Quincas Borba. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

BERNARDO, Gustavo. “O nominalismo medieval na base da fenomenologia moderna”. In: MALEVAL, Maria do Amparo T. (org.). Atualizações da Idade Média. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000, p. 133-166.

___________. O Conselheiro cético: o paradoxo machadiano. Rio de Janeiro: UERJ, 2004.

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EMPIRICO, Sexto. Esbozos pirrónicos. Introducción, traducción y notas de Antonio G. Cao e Teresa M. Diego. Madrid: Editorial Gredos, 1993.

FERRAZ, Maria Cristina Franco. Platão: as artimanhas do fingimento. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

JAUSS, Hans-Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro. ABL / Topbooks, 2001.

LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1977.

LIMA, Luiz Costa. Sob a face de um bruxo. In: ______________. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, p. 57 a 123.

MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da consagração [críticas e resenhas dos contemporâneos de Machado de Assis à sua obra]. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

MAIA NETO, José Raimundo. A condição de observador na obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: PUC, 1987. (Dissertação de Mestrado)

MARX, Karl. Miséria da filosofia. Prefácio de Engels. [sem indicação de tradutor.] São Paulo: Grijalbo, 1976. [1847]

MEYER, Augusto. A chave e a máscara. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1964.

PASSOS, Gilberto Pinheiro. Voltaire e Fontenelle ou ficcionalidade da filosofia em Quincas Borba. Scripta, v. 3, n. 6, 1º sem./2000, p. 97 a 104.

SCHWARZ, Roberto . Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.



[1] A coletânea de estudos Ler e reescrever Quincas Borba, organizada por Ivo Barbieri (2003), trata das duas versões do romance Quincas Borba.

[2] Reproduzido em MACHADO (Org.), Machado de Assis: roteiro da consagração.

[3] Traduzida para o latim e publicada na França, em 1562, por Henri Estienne. No ensaio A apologia de Raymond Sebond, de 1580, Michel de Montaigne retoma os postulados céticos defendidos por Sexto Empírico, colocando o ceticismo filosófico no centro dos debates intelectuais da França renascentista.

 

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