O louco raisonner: um modo machadiano de sátira à filosofia ocidental?
Eu não sei se é o cão, se o morto, quem dá o nome ao livro do Sr. Machado de Assis. São talvez ambos ou mais propriamente o espírito do morto. (José Veríssimo)
1)
Introdução
O Quincas Borba é o sexto romance de Machado de Assis e o segundo
da chamada “segunda fase”, considerada pelos críticos como a dos “grandes
romances machadianos”, iniciada com as Memórias póstumas de Brás Cubas
(1880-1881). Publicado em folhetins de junho de 1886 a setembro de 1891, o Quincas Borba também foi publicado em
livro, em novembro de 1891. Entre essas duas versões, porém, são tantas as
diferenças que alguns estudiosos chegam mesmo a afirmar que se trata de dois
livros completamente diversos. Apesar do fascínio que o estudo das versões do Quincas
Borba[1]
suscita, este trabalho não faz uma análise comparativa delas, detendo-se antes na figura singular do filósofo Quincas
Borba, que ali aparece momentaneamente, apenas, como afirma o narrador,
para “morrer, como disse o médico” (cap. I, versão em folhetins), deixando para
Rubião a sua herança e o seu cão Quincas Borba.
O filósofo Quincas Borba não é uma criação inédita na obra de Machado
de Assis, vez que já havia feito uma aparição no livro anterior, as Memórias
póstumas de Brás Cubas, fato relembrado pelo narrador do Quincas Borba:
“Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas
de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece,
mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia” (cap. IV, versão em
livro). Este “filósofo pancada”, como
o denomina Roberto Schwarz (1990, p. 148), cria a filosofia do Humanitismo, que
muitos estudiosos consideram um “arremedo” e uma sátira ao positivismo comtiano
que dominava o espírito cientificista do século XIX. Embora o Humanitismo tenha
sido alvo de vários tipos de análises, e ainda que o nome do filósofo que o
criou figure no título de um dos mais importantes romances machadianos, o
personagem, de modo geral, costuma ser relegado pela crítica ao plano dos
“personagens secundários”.
Roberto Schwarz (1980, pp.
83-106), em seu minucioso
estudo das Memórias póstumas de
Brás Cubas, faz uma espécie de
“compêndio” dos personagens, dividindo-os em “pobres” (Eugênia, Dona Plácida,
Prudêncio) e “ricos” (o cunhado Contrim, Brás Cubas, Virgília). A ausência do
Quincas Borba aí, porém, é flagrante. No estudo A condição
de observador na obra de Machado de Assis, José Raimundo Maia Neto (1987) analisa o
emprego sistemático do ceticismo pirrônico como método de elaboração ficcional
de Machado de Assis nos romances da “segunda fase” – Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom
Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Nesse acurado estudo, porém, o Quincas Borba é completamente deixado de lado, pois, de acordo com o autor, a análise
deteve-se apenas nos romances narrados em primeira pessoa, com foco nos
“narradores ficcionais de Machado” (MAIA NETO, 1987, p. 14), os quais
evidenciariam melhor, para Maia Neto, a perspectiva cética adotada por Machado
de Assis, o que não seria o caso, para ele, do Quincas Borba.
Verifica-se, assim, certa lacuna nos estudos machadianos, no que diz respeito a
análises mais efetivas do personagem Quincas Borba. Desde o estudo de
Magalhães de Azeredo[2], publicado n’O Estado de São Paulo em
abril de1892, a crítica parece tê-lo condenado ao puro esquecimento, à exceção
de Luiz Costa Lima (1981, pp. 57-123), cuja análise considera o Humanitismo de
um duplo ponto de vista: enquanto sátira à filosofia e enquanto fruto da loucura
de Quincas Borba, constituindo-se, esta última, no verdadeiro “legado” de
Rubião.
Mesmo em estudos que têm por objeto o romance Quincas Borba, como os ensaios reunidos na
coletânea organizada por Ivo Barbieri (2002), é flagrante a ausência de
análises mais profundas
dedicadas ao personagem, considerado muitas vezes como mero “pretexto” para o
“real” motivo do enredo do livro: a “saga” do matuto Rubião e seus devaneios na
Corte. Nessa coletânea, o estudo de Carlos Tadeu de Andrade Galvão, “Quincas
Borba: variantes prenhes de questões”, aborda a figura de Quincas Borba e
seu cão, tocando no tema do título do romance e sua ambiguidade, que leva o
leitor a não se decidir quem é que dá o nome ao livro: se o filósofo, se o cão
deste. Dilema, aliás, antigo, que perturba os críticos desde mesmo o surgimento
da obra, e ao qual o próprio narrador se refere: “é provável que me perguntes se ele [o cão], se
o seu defunto homônimo é que dá o título ao livro, e por que antes um que
outro, – questão prenhe de questões, que nos levariam longe...” (Quincas Borba, cap. CCI, versão em livro). Carlos
Tadeu relaciona a morte do cão Quincas Borba, narrada no
último capítulo do livro, à “morte” da própria narrativa, ou seja, o fim do
romance, recurso que, segundo ele, teria sido utilizado pelo escritor também no
conto “Miss Dollar”, nome de uma cadelinha galga que morre no final da
narrativa e que seria apenas a “causa indireta” dos acontecimentos narrados, integrando
a narrativa aparentemente sem outro objetivo que “desviar” a atenção do leitor,
numa espécie de peça pregada ao “leitor desprevenido” (Ivo Barbieri).
Apesar de tempestiva
nos dois livros em que aparece, a presença do filósofo Quincas Borba é bastante
incisiva, como observa Luiz Costa Lima:
Nas Memórias póstumas, Quincas
Borba tivera uma presença meteórica. No livro que tem seu nome, a presença
ainda é mais rápida. Sua ação, contudo, é incisiva. No primeiro, comunicava sua
teoria e afirmava por seu destino a existência da loucura. (...) No segundo
livro, é o agente dos transtornos de Rubião. Da lucidez de um louco, Humanitas se converte na herança do louco.
(...) Tratar de Rubião, pois, é pensar no legado do autor do Humanitismo. (LIMA, 1981, P. 77 - não grifado no
original).
Este trabalho procura se
beneficiar dos fundamentos e princípios do ceticismo filosófico, corrente
filosófica grega que tem, na observação dos fenômenos empíricos e na “suspensão
do juízo” sobre as diversas teorias, seu fundamento de análise. Após ter sido
fundado por Pirro de Élis no século III a. C. como método para obtenção da ataraxia,
a serenidade de espírito, o ceticismo foi utilizado como arma de combate às
doutrinas dogmáticas gregas, notadamente o platonismo. Redescobertos por Michel
de Montaigne no Renascimento francês, os fundamentos do ceticismo grego
passaram a ser utilizados no campo da ciência, fornecendo as bases para o
desenvolvimento do cartesianismo, que fundou a ciência moderna. Na literatura,
o método cético foi empregado por Cervantes na elaboração do Quixote e,
no Brasil, conforme observa José Raimundo Maia Neto (1987), Machado de Assis
também teria se valido do ceticismo como método de elaboração ficcional. No
campo dos estudos literários, porém, apenas recentemente o ceticismo vem sendo
proposto como forma alternativa de análise de obras literárias, capaz de
superar certa “disputa” entre o empirismo e a teoria, verificada ao longo da
história dos estudos literários.
Quando os estudos literários
ganharam estatuto de disciplina, no século XIX, predominava o empirismo, com o
inesgotável exame de fontes e influências. Assim, buscava-se determinar, por
“evidências” deixadas na obra, uma intertextualidade entre autores. Era costume
também analisar uma obra a partir da biografia do autor: Sílvio Romero, por
exemplo, atacava a obra de Machado de Assis, baseando-se nas origens social e
racial do escritor. O advento do Estruturalismo, na década de 1920, trouxe uma
“onda de teoria” sem precedentes nos estudos literários. Porém, a busca
incessante de “estruturas imanentes” ao texto gerou o encastelamento da obra em
si mesma, remetendo à imagem da “Torre de Marfim”. Essa situação acirrou-se nas
décadas de 1940 e 1950, com o New criticism norte-americano, que propõe
o completo afastamento de aspectos extratextuais no estudo da literatura.
Rompendo com esse paradigma, a Teoria da Recepção, surgida em 1967 na Alemanha,
propõe considerar, mediante o conceito de “horizonte de expectativas”, de Hans
Robert Jauss (1994, p. 28), o contexto histórico de produção e recepção da obra
literária, bem como o papel desempenhado pelo leitor, até então desprezado
pelos estudos estruturalistas. Pela primeira vez, uma proposta de caráter
empírico, que leva em conta a influência do contexto histórico na produção de
uma obra literária, tinha lugar de importância na história dos estudos de
literatura.
Na década de 1980, observa-se um
retorno à teoria, com os chamados estudos culturalistas, que propõem uma
interseção dos estudos literários com outros campos do saber, como a Filosofia,
a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, etc. Deve-se ter cautela, porém,
com possíveis interpretações reducionistas a que tais estudos possam levar.
Como observa Ivo Barbieri a propósito do Quincas Borba, um estudo de
Rubião que analisasse apenas o aspecto da loucura deixaria de considerar a
relação do personagem com o mundo político-histórico e sociocultural que ele
habita e de que é parte, “pois, enquanto agente de um universo ficcionalizado,
essa figura, singular e concreta, desdobra-se em projeções metafóricas e
alegóricas, resultantes da re-elaboração dos dados retirados de áreas
constituídas, transformando-os em significantes do novo contexto em processo de
constituição” (BARBIERI, 2002, p. 8). De outro lado, é consenso atualmente que
pesquisas empíricas possam ajudar a compreender melhor a produção literária de
um escritor. Tal é o caso do levantamento e análise do acervo da biblioteca de
Machado de Assis, que Jean-Michel Massa realizou em 1961, revisto e atualizado
por Glória Vianna em 2000 (JOBIM, 2001).
Verifica-se, no entanto, cada vez mais a
necessidade de caminhos alternativos de análise, que levem em conta a própria
ambiguidade inerente à obra literária: um “mundo imaginário” que é, também, uma
realização empírica, sujeita, devido à multiplicidade que encerra, tanto a
especulações teóricas quanto a análises de cunho empírico. Com tal preocupação,
Gustavo Bernardo defende a apropriação, pelo campo dos estudos literários, do
ceticismo filosófico, tomado como uma regra metodológica básica, pois “sem ela,
estamos prontos a despencar na ilusão complacente e, em consequência, no
dogmatismo; com ela, se usada com prudência, avançamos nas fronteiras da
investigação e tiramos benefícios para a vida prática” (BERNARDO, 2005, p. 104).
Com efeito, o método cético parece-nos adequado
para se lidar com o paradoxo da obra literária: uma
obra produzida e recebida num contexto histórico específico, capaz,
porém, de extrapolar o próprio contexto em que foi gerada e suscitar mundos
próprios, dando vida a personagens que, embora “de papel”, passam a habitar o
imaginário do leitor “como se” fossem de carne e osso.
No século III, Sexto Empírico compilou, na obra Hipotiposis pirronicas[3], o
que se conhecia no mundo grego sobre o ceticismo filosófico, desde que fora
fundado como um método por Pirro de Élis, seis séculos antes. O método
cético de Pirro, tal como compilado por Sexto Empírico, se baseia em alguns
procedimentos, conhecidos como “passos pirrônicos”, para se alcançar a
imperturbabilidade do espírito: 1) zétesis
(investigação); 2) diafonia (conflito
de opiniões); 3) isostenia
(equipolência de teorias); 4) époké
(suspensão do juízo); 5) afasia
(ausência de fala); 6) ataraxia
(tranquilidade); 7) adiaforia
(indiferença) (apud Bernardo, 2000,
p. 135-6). A époké é, portanto, o método de “suspensão do juízo” que
leva à ataraxia, a tranquilidade pirrônica. Sexto
Empírico talvez tenha sido o primeiro, senão o único, cético antigo a utilizar
o método do ceticismo com bases científicas. Os céticos anteriores a ele tinham
a preocupação com o emprego apenas prático do ceticismo: no século III a. C., Pirro
o utilizava como orientação de conduta para se alcançar a serenidade de
espírito diante do interminável debate entre as diversas correntes filosóficas.
Os acadêmicos e dialéticos que o sucederam, como Arcesilau, Enesidemo e Agripa,
apropriaram-se do método cético como arma de combate ao dogmatismo filosófico
dos platônicos. Sexto Empírico, porém, empregava o ceticismo como método de
análise imparcial das diversas doutrinas existentes, o que o levava a realizar
a époké¸ ou seja, “suspender o juízo” sobre elas e, assim, obter a
“tranquilidade intelectual”.
Para Sexto Empírico, o ceticismo
tinha um caráter “terapêutico”, pois a seus olhos constituía não somente uma
arma de combate aos platônicos, mas representava principalmente um “remédio”
contra o mal generalizado do dogmatismo. Ao contrário dos dogmáticos platônicos,
que baseavam suas crenças no “mundo perfeito das ideias”, lugar da “Verdade
transcendente”, condenando o “mundo das aparências” e suas meras cópias
enganosas, “distantes em três graus do real, do mundo transcendente das ideias”
(FERRAZ, 1999, p. 28), os céticos afirmavam que a base para a compreensão do
mundo é justamente “aquilo que aparece” e que é compartilhado por todos, ou
seja, o mundo aparente. Esta ênfase cética nos fenômenos e no conhecimento
sensível do mundo deu origem ao empirismo, base de todo o desenvolvimento
posterior da ciência.
3) Os “modos” do diálogo machadiano com a
tradição filosófica ocidental
Desde o aparecimento do Quincas Borba nas páginas machadianas, os
“machadólogos” (Ivo Barbieri) o têm reconhecido e à sua “filosofia” como uma caricatura grotesca de sistemas filosóficos diversos,
sobretudo do positivismo e do darwinismo, “as duas filosofias do século XIX
que mais se têm hostilizado”, nas palavras de Araripe Júnior, contemporâneo de
Machado de Assis (in: MACHADO, 2003, p. 178). Mais recentemente, Benedito Nunes
(1993) considera que o narrador machadiano “transformou, a seu gosto, as
filosofias para zombar da filosofia” (apud BARBIERI, 2002, p. 12). Para
Gilberto Pereira Passos, que analisou o diálogo da obra machadiana com a
tradição cultural francesa, a finalidade última deste recurso – isto é, a
sátira da filosofia e do conhecimento científico – seria a de “criar uma rede
particular de significações, sempre no interesse de dar a conhecer o desastre
humano presente na ‘saga’ urbana de Rubião” (PASSOS, 2000, p. 97). Em outras
palavras, a deturpação do sentido da filosofia – de pretender compreender a
realidade, para apreender o seu sentido último – evidenciaria, no texto
machadiano, a própria incapacidade da razão humana para dar conta do real,
exemplificada pelo “caso” de Rubião, “a personagem provinciana, egressa de
Barbacena e perdida no mar do ócio e da dilapidação da fortuna adquirida
tangencialmente graças à herança inopinada do ‘filósofo’ Quincas Borba” (PASSOS,
op. cit., p. 98).
Maria Cristina Franco Ferraz (1999, p. 53) e Ivo Barbieri (2002, p. 29),
por sua vez, consideram que as deturpações do discurso filosófico ocidental,
efetuadas por Machado de Assis por meio de paródias, galhofas e distorções as
mais diversas, consistem em uma “traição” à tradição, ao mesmo tempo em que
esta é apropriada em uma nova chave. Tal procedimento faz com que o escritor,
embora renegando e parodiando o discurso estabelecido pela filosofia ocidental,
dê continuidade a essa mesma tradição, num movimento simultâneo, que
remete àquilo que Octávio Paz chamou de “ruptura com a
tradição” e “tradição de ruptura”.
Abordamos a seguir os “modos”, empírico e teórico, pelos quais a obra
machadiana parece dialogar com a tradição filosófica ocidental, desde
suas origens gregas até o século XIX, o século de Machado de Assis. Observe-se
que os “modos do ceticismo”, formulados por Enesidemo e Agripa entre 80 a. C. e
130 da era cristã e sumariados por Sexto Empírico no século III (EMPIRICO, 1993),
também encerram perspectivas tanto empíricas quanto teóricas. Enquanto os Dez Modos de Enesidemo são prescrições
básicas de conduta diante dos fenômenos físicos, que nos afetam de diferentes
maneiras, os Oito Modos de Enesidemo
e os Cinco Tropos de Agripa utilizam
a époké para colocar em suspenso as
teorias dogmáticas, revelando os seus impasses.
3.1) A figura empírica do “filósofo de Barbacena”
e o diálogo com a filosofia cínica
Sátira ao positivismo comtiano, galhofa, agressão ao discurso filosófico
ocidental – todas essas são concepções ligadas à figura de Quincas Borba
enquanto “teórico”, isto é, enquanto produtor, ele também, de um discurso: a
filosofia do Humanitismo. Porém, lançando mão do procedimento cético da époké,
a suspensão do juízo sobre as diversas opiniões, vamos colocar por instantes em
suspenso a figura “teórica” de Quincas Borba, com seu aparato filosófico, para
nos deter “naquilo que aparece”, ou seja, a figura empírica do “filósofo de
Barbacena” (Araripe Júnior). Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba havia sido um gracioso menino, que “fazia de
imperador nas festas do Espírito Santo” (M.P.B.C., cap. VIII, “Um salto”), companheiro
de infância e de escola de Brás Cubas. Capítulos mais tarde, reaparece como
mendigo e filósofo: “(...) disse-me positivamente que não queria trabalhar. Eu
estava enjoado dessa abjeção tão cômica e tão triste, e preparei-me para sair.
/ — Não vá sem eu lhe
ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de
mim” (M.P.B.C., cap. LIX, “Um encontro”).
No acervo de
representantes ilustres da filosofia ocidental, encontramos um paralelo do
Quincas Borba mendigo na figura do filósofo cínico Diógenes [Sínope, atual
Turquia, 404 a. C.(?) – Corinto, 323 a. C.]. Embora não fosse propriamente
mendigo, Diógenes levava uma vida miserável, perfeitamente de acordo, porém,
com a filosofia cínica que tão bem representou. Segundo a lenda, ele vivia em
um barril e seus únicos pertences eram um alforje, um bastão e uma tigela,
símbolos do desapego e da autossuficiência perante o mundo. Diziam ainda que o
filósofo saía à luz do dia, armado com uma lanterna acesa, à cata de “homens
virtuosos”. Conta-se também a história de que Alexandre, o Grande, ao
encontrá-lo tomando banho de sol, perguntou-lhe o que poderia fazer por ele, ao
que Diógenes replicou “Quero apenas meu Sol. Afasta-te!”. Essa resposta teria
impressionado o imperador, que, na volta, ouvindo seus oficiais zombarem do
filósofo, disse: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”. Certo dia,
Diógenes foi visto pedindo esmola a uma estátua. Perguntado por que fazia
aquilo, ele respondeu: “por dois motivos: primeiro, ela é cega e não me vê, e
segundo, eu me acostumo a não receber algo de alguém e nem a depender de
ninguém”. Outra vez, Alexandre o encontrou e disse-lhe: “Eu sou
Alexandre, o grande rei”. Diógenes, por sua vez, retrucou: “E eu sou Diógenes,
o cão”. Interrogado sobre qual raça de cão fosse, respondeu: “Quando tenho
fome, um maltês, quando estou saciado, um molosso, aquela espécie que as
pessoas mais elogiam, mas com a qual não têm coragem de sair para caçar, por
causa da fadiga. Assim, não podeis conviver comigo, porque tendes medo de
sofrer” (in Diógenes Laércio, Vidas
dos filósofos).
Discípulo de Antístenes, o
fundador da filosofia cínica, Diógenes defendia que a virtude é o bem soberano.
A ciência, as honras, a riqueza, para ele, são falsos bens, que é preciso
desprezar. As convenções sociais deviam ser desmascaradas, opondo-lhes a
natureza. De igual modo, é necessário libertar-se do desejo, reduzindo ao
mínimo as necessidades. Dizia que a prática de exercício é fundamental para a
conquista da virtude, e que o exercício deve ser duplo: físico e espiritual. O exercício físico permite
formar pensamentos que se integram e se realizam com o exercício espiritual,
contribuindo para a saúde da alma e do corpo. Sustentava, assim, que o
exercício era o artífice de qualquer sucesso. A
prática da virtude era mais importante que teorias sobre a virtude. Eliminados os esforços inúteis, o homem que escolhe as
fadigas requeridas pela natureza vive feliz; a incompreensão dos esforços
necessários é a causa da infelicidade humana. O próprio desprezo pelo prazer
para quem esteja a isso habituado é algo dulcíssimo. Diógenes falsificou
dinheiro, mas porque dava menor valor às prescrições das leis do que às da
natureza. O modelo de sua vida, dizia, foi Héracles, que nada antepôs à
liberdade. Interrogado sobre sua pátria, respondia: “Cidadão do mundo” (in Diógenes Laércio, Vidas dos
filósofos).
A vida de Diógenes, de extrema
pobreza, era a aplicação prática de suas ideias, ao mesmo tempo em que
demonstrava a possibilidade de se acabar com as convenções sociais. Nenhum texto de Diógenes subsistiu, sendo a sua
filosofia e as lendas sobre ele conhecidas graças a Diógenes de Laércio, que,
no século III, compilou as principais correntes filosóficas gregas no livro Vidas
e doutrinas dos filósofos ilustres.
No cap. LIX, “Um encontro”, das Memórias
póstumas de Brás Cubas, o narrador apresenta a figura repelente do mendigo
Quincas Borba:
Vejo encaminhar-se para mim uma cara, que não me
pareceu desconhecida. Conhecia-a, fosse donde fosse. / Imaginem um homem de
trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio,
pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do
de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca, mais larga do que pediam as carnes,
ou, literalmente, os ossos da pessoa; a cor preta ia cedendo o passo a um
amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos botões
restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,
enquanto as bainhas eram roídas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem
graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas
desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também
colete, um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado (M.P.B.C., cap. LIX, “Um encontro”).
No entanto, essa figura abjeta, que mora no “terceiro degrau das escadas [da igreja] de S. Francisco, à
esquerda de quem sobe; não precisa bater na porta. Casa fresca, extremamente
fresca” (M.P.B.C., op. cit.),
é, também, um filósofo: “(...)
preparei-me para sair. / —
Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria, disse ele,
escarranchando-se diante de mim” (M.P.B.C.,
op. cit., não
grifado no original).
No entanto, ao
contrário de Diógenes de Sínope, que, segundo Diógenes de Laércio, era adepto
da independência e do exercício tanto para o corpo como para o espírito,
Quincas Borba, criador e praticante de certa “filosofia da miséria”, revela-se
completamente avesso a qualquer esforço que implique “trabalho”: após receber
uma nota de cinco mil réis de Brás Cubas, ouve deste a promessa de que poderá
ver muitas outras, “trabalhando”. Ao que o filósofo “fez um gesto de desdém;
calou-se alguns instantes; depois disse-me positivamente que não queria trabalhar”
(M.P.B.C., op. cit.), preferindo, antes, roubar de Brás Cubas o relógio
do bolso do colete.
Capítulos depois, o filósofo reaparece, totalmente
“repaginado”: botas envernizadas, botão de ouro ao peito,
sobrecasaca e camisas impecáveis. Do mesmo modo que sua figura sofrera uma
reforma geral, também sua filosofia fora emendada, conforme observa Magalhães
de Azeredo, transformando-se de simples “filosofia da miséria” num
grandioso sistema filosófico: a doutrina do Humanismo, “modificada já com
certas emendas otimistas, que lhe inspirou a sua abastança, restaurada por um
sucesso imprevisto [a herança que recebeu de um tio de Barbacena]” (in MACHADO,
2003, p. 169). Por essa ocasião, Quincas Borba escreve uma carta a Brás Cubas,
em que lhe envia um relógio de ouro, em substituição ao que havia-lhe roubado
na época de mendigo, ao mesmo tempo em que pede vênia para expor-lhe o
Humanitismo:
(...) peço licença para ir um dia destes expor-lhe um
trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só
explica e descreve a origem e a consumação das cousas, como faz dar um grande
passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de
crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso esse meu
sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e
enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas,
princípio das cousas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação; era
chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E
com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um
monumento; e se alguma cousa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da
vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na
minha mão essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas,
descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro
Brás Cubas (M.P.B.C., Cap. XCI, “Uma carta extraordinária”).
Observe-se
que, enquanto o Humanitismo é um verdadeiro “tratado filosófico”, composto de “quatro
volumes manuscritos, de cem páginas cada um, com letra miúda e citações
latinas” (M.P.B.C., cap. CXVII, “O Humanitismo”), a primitiva
“filosofia da miséria”, formulada quando Quincas Borba ainda era mendigo, não
chega sequer a ser escrita, mas apenas “vivenciada” empiricamente, nos degraus
da igreja de São Francisco, que haviam servido de casa ao filósofo.
3.2) A teoria do Humanitismo e
o diálogo com a “filosofia da miséria”
oitocentista
Após o envio da carta em que devolve a Brás Cubas o relógio de ouro,
Quincas Borba, vestido impecavelmente, vai visitar o amigo num momento em que
este fazia uma das refeições mais parcas de sua vida, composta de apenas um
ovo, uma fatia de pão e uma xícara de chá. Segundo o narrador-defunto, ele não
se esqueceu dessa “circunstância mínima” graças às observações que lhe fez o
filósofo, de que “a frugalidade não
era necessária para entender o Humanitismo, e menos ainda praticá-lo; que esta
filosofia acomodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o
espetáculo e os amores; e que, ao contrário, a frugalidade podia indicar certa
tendência para o ascetismo, o qual era a expressão acabada da tolice humana” (M.P.B.C., cap. CIX, “O Filósofo”). Como o filósofo
queria expor-lhe naquela hora a sua doutrina na íntegra, Brás Cubas pede-lhe
que não, por “estar muito ocupado”. Depois, no capítulo CXV, aborrecido com a partida de Virgília para acompanhar o
marido, recém-nomeado presidente de província, Brás
Cubas vai almoçar no Hotel Pharoux, saboreando os “acepipes” de M. Prudhon.
No contexto das Memórias póstumas de Brás Cubas, M. Prudhon é o “mestre cozinheiro do Hotel Pharoux, um sujeito que, segundo dizia o dono da casa, havia servido nos famosos Véry e Véfour, de Paris, e mais nos palácios do conde Molé e do duque de la Rochefoucauld (M.P.B.C., cap. CXV, “O almoço”). Segundo Brás Cubas, “os acepipes do mestre eram deliciosos. / Eram, e naquela manhã (...) jamais o engenho e a arte lhe foram tão propícios. Que requinte de temperos! que tenrura de carnes! que rebuscado de formas! Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz” (M.P.B.C., op. cit.). Não obstante essa gastronômica apresentação, o mestre-cozinheiro M. Prudhon parece encerrar uma referência, meio velada, meio explícita, mas em todo caso “enviesada”, a um dos principais representantes do socialismo utópico francês que vigorou no século XIX: o filósofo Pierre Joseph Proudhon, cuja obra, Filosofia da miséria, de 1846, foi duramente criticada por Marx, que “respondeu” com o seu Miséria da filosofia, publicado em 1847, em que são expostos os princípios do materialismo histórico-dialético marxista. Ideólogo da pequena burguesia e defensor de um sistema socialista utópico, que seria resultante da conscientização dos ricos sobre a necessidade de dividir a riqueza com os pobres, o Sr. Proudhon, na visão de Marx,
tem a desgraça de ver-se incompreendido de singular maneira na Europa. Na
França lhe reconhecem o direito de ser um mau economista, porque tem fama de
ser um bom filósofo alemão. Na Alemanha reconhecem-lhe o direito de ser um mau
filósofo, porque tem fama de ser um economista francês dos mais abalizados. Em
nossa qualidade de alemão e economista a um tempo, quisemos protestar contra
esse duplo erro (MARX, 1976, p. 29).
Nas Memórias póstumas, Monsieur
Prudhon (ou Proudhon?) ganha uma conotação cômica, ao ser apresentado como um chef
francês especializado em iguarias finas, em comparação com a “proposta” da
filosofia de Pierre Proudhon: a criação de uma “república social”, que
corresponderia a uma organização comunitária livre, onde trabalhadores e
patrões teriam idêntico acesso ao “paraíso” que estes últimos de fato usufruem
à custa do trabalho dos primeiros. Na visão do filósofo francês, este mundo
utópico seria conseguido sem necessidade de revoluções sangrentas ou lutas de
classes, bem ao contrário do que pregava Marx. A propósito, a divergência com
os marxistas sobre a necessidade do emprego da revolução para a tomada do poder
e fundação do socialismo teria motivado o rompimento de Marx com Proudhon, cuja
filosofia passou a ser atacada pelo pai do materialismo histórico. Para Proudhon,
bastava uma “reforma social”, por meio de uma “combinação econômica”. Segundo a
lenda que cerca este filósofo francês oitocentista, após publicar a Filosofia
da miséria, Proudhon divulgou notas nos jornais parisienses, avisando que
se encontraria em sua propriedade em certo horário, à espera dos capitalistas
dispostos a reformarem com ele o mundo, fazendo generosas doações. Dizem que o
filósofo, por anos a fio, cumpriu religiosamente o aviso dos jornais,
permanecendo no mesmo horário à espera dos tais “capitalistas generosos”, que,
no entanto, nunca apareceram. Enquanto, nas Memórias
póstumas, o chef francês M. Prudhon oferece acepipes gastronômicos à
saciedade de Brás Cubas, o mendigo-filósofo Quincas Borba apresenta-lhe uma
filosofia particular da miséria: “— Não vá sem eu lhe ensinar a minha
filosofia da miséria, disse ele, escarranchando-se diante de mim” (M.P.B.C.,
op. cit., não grifado no original).
O Humanitismo, versão reformulada, de acordo com as circunstâncias, da antiga “filosofia da miséria” do Quincas Borba mendigo, encerra, tal como a utopia de Proudhon, a promessa de um verdadeiro paraíso terrestre, uma vez que, além da conciliação com os prazeres da vida e da mesa, “retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade e enche de imensa glória o nosso país” (M.P.B.C., cap. XCI, “Uma carta extraordinária”). Quando Quincas Borba, também ele próprio “passado a limpo”, finalmente expõe a Brás Cubas a doutrina do Humanitismo, “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas” (M.P.B.C., cap. CXVII, “O Humanitismo”), fica-se sabendo que, assim como parece ser o objetivo último da utopia socialista de Proudhon, o grande objetivo do tal sistema filosófico de Quincas Borba é, nada mais, nada menos, que a "a destruição da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão" (M.P.B.C., op. cit.).
Observe-se ainda que as "filosofias" de Quincas Borba possuem, à maneira marxista, um caráter de tragédia e de farsa. Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), Marx afirma que "a História se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa". Assim, a "filosofia da miséria" do Quincas Borba mendigo revela a tragédia pessoal de alguém relegado à miséria e à própria sorte. Posteriormente, essa mesma filosofia se repete, porém transformada na filosofia farsesca do Humanitismo.
Versão melhorada, emendada e recriada em um novo contexto, a filosofia do
Humanitismo, originada da primitiva “filosofia da miséria” do filósofo Quincas
Borba, evidenciaria, assim, um diálogo, de caráter
zombeteiro e extremamente galhofeiro, exercido não somente com o positivismo, o
darwinismo e toda a “floração
oitocentista de ismos” (Schwarz), mas também com
a Filosofia da miséria, do filósofo utópico francês Pierre Joseph
Proudhon (1846).
4) Conclusão
Na obra machadiana, as agressões ao discurso filosófico ocidental
assumem tanto feições diretas, como a clara exposição da filosofia do
Humanitismo, em que se percebem referências aos mais diversos sistemas
filosóficos, ou feições apenas implícitas ou veladas, como é o caso das sutis
referências ao cinismo, de Diógenes de Sínope, e à “filosofia da miséria”, de Pierre
Proudhon, analisadas neste trabalho. Quer explícitas ou apenas implícitas e
“enviesadas”, essas referências – que constituem as “pegadas” (Ivo Barbieri) do
texto machadiano – parecem, porém, se adequar perfeitamente à diafonia pirrônica,
apresentando de um modo específico, propriamente “machadiano”, o “conflito das
diversas opiniões”. Diante das diversas “vozes filosóficas” em conflito, o
resultado, na obra machadiana, não é a afasia, a “ausência de fala”,
como propõe Pirro, mas uma “fala distorcida”, germinada a partir de um
“grãozinho de sandice”. A époké, a “suspensão do juízo”, torna-se sobremaneira
necessária. Deste modo, as distorções efetuadas por Machado de Assis em seu
diálogo com a tradição filosófica ocidental constituiriam uma espécie de époké
machadiana, ou seja, um modo de suspender o juízo sobre as diversas
opiniões filosóficas, alcançando assim uma ataraxia não apenas
“pirrônica”, mas propriamente “machadiana”.
É nas referências implícitas e veladas, quase ocultas nas dobras do
texto machadiano, que o escritor dialoga com o tema da “miséria na filosofia”,
trabalhado pela tradição filosófica ocidental desde as suas origens gregas até
o discurso filosófico oitocentista francês. Este modo de dialogar machadiano
elege a paródia, a sátira e a galhofa para tratar do tema em questão, e a
figura do filósofo “miserável” Diógenes de Sínope e o sistema utópico da Filosofia da miséria, de Pierre Joseph
Proudhon parecem servir-lhe de referências. Se, como afirma Augusto Meyer
(1964, p. 185), Machado de Assis “revira” o romance pelo avesso, tomando os
clichês dos romances naturalistas e realistas e subvertendo-os à sua maneira, o
escritor também parece seguir procedimento semelhante com a filosofia,
revirando-a e apresentando o seu avesso, na figura e na doutrina do “filósofo
pancada” (Schwartz) Quincas Borba. Adicionalmente, Machado de Assis parece
sugerir que as filosofias, sobretudo as “da miséria”, podem muito bem ser corrigidas e emendadas, bastando para isso uma simples
mudança de ponto de vista.
O Humanitismo, sistema filosófico tão duramente trabalhado pelo “filósofo de Barbacena”, destinado a tornar-se “a verdadeira religião do futuro”, é, porém, ironicamente destruído pelo seu próprio criador, a fim de “aperfeiçoá-lo”. Quincas Borba também retorna à condição, pelo menos “aparente”, de mendigo, conforme narrado no capítulo CLIX das Memórias póstumas, “Semidemência”, em que Brás Cubas relata a viagem que o amigo fizera para Minas, seis meses antes, levando consigo “a melhor das filosofias”:
Voltou quatro meses depois, e entrou-me em casa, certa manhã, quase no estado em que eu o vira no Passeio Público. A diferença é que o olhar era outro. Vinha demente. Contou-me que, para o fim de aperfeiçoar o Humanitismo queimara o manuscrito todo e ia recomeçá-lo. A parte dogmática ficava completa, embora não escrita; era a verdadeira religião do futuro (M.P.B.C., cap. CLIX, “Semidemência”).
Dos escombros dessa personalidade assim naufragada, emerge a figura do “louco raisonner”: “Quincas Borba não só estava louco, mas sabia que estava louco, e esse resto de consciência, como uma frouxa lamparina no meio das trevas, complicava muito o horror da situação. Sabia-o, e não se irritava contra o mal; ao contrário, dizia-me que era ainda uma prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesmo” (M.P.B.C., op. cit.). É nessa nova condição que o filósofo envia uma segunda carta, desta vez ao amigo Rubião, que o aguardava em Barbacena:
Quem sou
eu, Rubião? Sou Santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você é um ignaro,
Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe
esta concessão, que é a última. Ignaro! / Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho;
descobri isto anteontem ouça e cale-se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo
e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero
heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em
pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás
Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como eu, que
tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII das
Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão
própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo
existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia
bona, e adeus (Quincas Borba, cap.
X).
O louco raisonner Quinca Borba “suspende” assim literalmente o seu juízo, numa époké tão radical quanto fatal, cujo único “benefício” seria, talvez, a serenidade diante da própria loucura e da própria morte:
Faleceu
ontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular
filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse
pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a
moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que
Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa
muitos bens. O testamento está em Barbacena (Q. B., cap. XI).
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de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.
[1] A coletânea
de estudos Ler e reescrever Quincas Borba, organizada por Ivo
Barbieri (2003), trata das duas versões do romance Quincas Borba.
[2] Reproduzido
em MACHADO (Org.), Machado de Assis:
roteiro da consagração.
[3] Traduzida
para o latim e publicada na França, em 1562, por Henri Estienne. No ensaio A
apologia de Raymond Sebond, de
1580, Michel de Montaigne retoma os postulados céticos defendidos por Sexto
Empírico, colocando o ceticismo filosófico no centro dos debates intelectuais
da França renascentista.
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