Afinal, por que escrevo?
Isabel Pires
Comecei há tempos um blog. Por causa de um poeta, que não sabia mais onde guardar tantas palavras. Assim, fizemos delas pequenas astronautas. E parece que, desde então, tudo ficou muito bem resolvido. É, "pequenas astronautas" mesmo. As palavras são mulheres (pelo menos, em português). Por que escrevo? Talvez, porque a palavra é "não-toda" (Lacan). Então, escrevo. Às vezes, a palavra arde nas vistas, que nem cebola. A gente descasca, ela evapora. Ou melhor, analisemos o velho clichê: "escrever é uma arte". Como cozinhar. Depende do tempo, da temperatura. Quem sabe, até da conjunção dos astros. Se ler o horóscopo ajuda? Talvez, se for todos os dias. E à mesma hora. Mas literatura não segue receita: não pode ser a "cozinha ornamental" descrita por Barthes. Por que escrevo, então, um poema? Se o destino de todo poema é se tornar espuma do mar? A palavra certamente pode ser gris, como as duas noites. Mas nada impede que nela brilhe, delicadamente ou com estardalhaço, pequenos pontos de neon. Ou um sol de cigarro, esburacando a escuridão. Gosto do que disse Adélia Prado: que poesia precisa incomodar, como cocô de criança no chão da sala (vem a visita, e finge que não repara). Não é só questão de "preencher lacunas", como num formulário burocrático. Porque a língua é hemorrágica - não preenche lacunas, derrama-se para todo lado. Mas, por outro lado, a língua é insuficiente - e, neste caso, não preenche lacunas. Le mot juste não existe. O que existe é a voz do poeta, que dorme no fundo de cada um, e que acorda de repente, sacudida pela ventania.
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