Wednesday, July 24, 2019

Afinal, por que escrevo?

Isabel Pires

Comecei há tempos um blog. Por causa de um poeta, que não sabia mais onde guardar tantas palavras. Assim, fizemos delas pequenas astronautas. E parece que, desde então, tudo ficou muito bem resolvido. É, "pequenas astronautas" mesmo. As palavras são mulheres (pelo menos, em português). Por que escrevo? Talvez, porque a palavra é "não-toda" (Lacan). Então, escrevo. Às vezes, a palavra arde nas vistas, que nem cebola. A gente descasca, ela evapora. Ou melhor, analisemos o velho clichê: "escrever é uma arte". Como cozinhar. Depende do tempo, da temperatura. Quem sabe, até da conjunção dos astros. Se ler o horóscopo ajuda? Talvez, se for todos os dias. E à mesma hora. Mas literatura não segue receita: não pode ser a "cozinha ornamental" descrita por Barthes. Por que escrevo, então, um poema? Se o destino de todo poema é se tornar espuma do mar? A palavra certamente pode ser gris, como as duas noites. Mas nada impede que nela brilhe, delicadamente ou com estardalhaço, pequenos pontos de neon. Ou um sol de cigarro, esburacando a escuridão. Gosto do que disse Adélia Prado: que poesia precisa incomodar, como cocô de criança no chão da sala (vem a visita, e finge que não repara). Não é só questão de "preencher lacunas", como num formulário burocrático. Porque a língua é hemorrágica - não preenche lacunas, derrama-se para todo lado. Mas, por outro lado, a língua é insuficiente - e, neste caso, não preenche lacunas. Le mot juste não existe. O que existe é a voz do poeta, que dorme no fundo de cada um, e que acorda de repente, sacudida pela ventania. 

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