Sunday, July 31, 2016

Ler é preciso, viver...

Estarei só, bem só em mim, indiferente a todos os balés do mundo. 
O que eu fiz, dou tudo para vocês. 
André Breton

Depois que lera Kafka, ele não sabia mais o que fazer com os braços. À noite, não encontrava posição na cama, sentindo-se tão desajeitado quanto o inseto Gregor Samsa. Se dormia de barriga para cima, tinha pesadelos horríveis com um admirável mundo novo que parecia cada vez mais próximo, inexoráveis exércitos de mulheres de cabelo verde e roupa vermelha e roxa marchando sobre seus miolos, consequência de leituras mal digeridas antes de dormir. Mas foi na estrada para Oz que as coisas começaram a piorar. A imagem daquele homem de lata não saía por nada de sua cabeça. No carro, no metrô ou no ônibus, ele próprio se sentindo mais lata que tais veículos. Por dúvida das vias, como diria um amigo seu, professor de literatura, passou a carregar consigo um spray antiferrugem, que guardava dentro da pasta abarrotada de revistas de cultura, suplementos de jornais e um ou outro volume de contos, poesia, romance.
Em casa, os livros não paravam de multiplicar-se na(s) estante(s), desde edições bilíngues, boas e más traduções, línguas estrangeiras diversas, numa biblioteca que, antes de ser babélica tornava-se progressivamente bélica, verdadeiro arsenal em que se encontrava filosofia e literatura, economia, política, antropologia, algum conhecimento de direito e, até, um tratado de paleontologia. Os filhos adolescentes tornavam-se esquivos. Medo de que ele os obrigasse a ler um romance todo final de semana. Deu para emendar ditados. Por exemplo, quando alguém se punha a relembrar fatos, ele invariavelmente comentava: “Como diria Dom Quixote, águas passadas não movem gigantes”. Ao atender o telefone, em vez do clássico “alô”, mandava: “Fala, amendoeira!”. Não perdia um lançamento, sobretudo de revistas especializadas, ele próprio especializado – para terror dos amigos articulistas – em descobrir coincidências entre autores, omissão de citações e plágios diversos. Em suma, tudo aquilo que compõe a emaranhada rede do trabalho intelectual, e que ele, com paciência magistral e muitas horas de leitura, se esmerava em esburacar. Tornara-se assim muito erudito.
Essas e outras miudezas que progressivamente se incorporavam à sua personalidade e ao cotidiano seu e de outros não seriam de modo algum motivo de preocupação maior, não tivesse ele, inadvertidamente, trocado o nome da mulher. Agora, só a chamava de Laura Beatriz e cometia-lhe sonetos de pé quebrado em súbitos arroubos literários de paixão. Reunidos, os parentes decidiram chamar o Doutor Carlos, médico da família. Ele veio quando o paciente, abajur aceso à cabeceira da cama, preparava-se para mais uma noite de leitura febril.
O jaleco branco do Dr. Carlos era a própria neutralidade e objetividade da Ciência. O cérebro aturdido do outro, em contraste, vazava leituras para todo lado. Entretanto, pós-kafkianos que os dois de fato nasceram, algum bretonismo, como o halo difuso que vinha do pequeno abajur, se interpunha entre eles. Algo que não era pura ilusão nem a mais concreta realidade. “Sabe por quê vim?”, perguntou o médico. Cabisbaixo, desta vez o paciente parecia desprovido de palavras. Lentamente, levantou os olhos: “Está tudo perdido, não é mesmo?”. “Bem”, começou o Dr. Carlos, mas o outro atalhou a sua fala. “Talvez ainda dê tempo de salvar-lhe a vida”. O médico aguardava. “Imediatamente, senão será tarde demais”. “Sim?”. “Em que página ela está?”. “Não sei ao certo”. “Então corra, pode ser que você encontre o veneno antes dela”. O Dr. Carlos assentiu com a cabeça, e rapidamente deixou o quarto para tentar cumprir sua missão. Afinal, amava muito Emma Bovary.
A sós, ele retirou de debaixo do travesseiro o livro. Das páginas do Quincas Borba, Rubião acenava-lhe um sorriso azul. Mergulhou na leitura, nela naufragando não vencido, não vencedor. Apenas leitor: “Ao leitor, as batatas!”.

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond. Fala, amendoeira. Crônicas. 1957.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba.1891

BORGES, Jorge Luís. “A biblioteca de Babel”. In: Ficções. 1944

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924

CERVANTES. Dom Quixote. 1605

DANTE. A divina comédia. 1321

FLAUBERT, Gustave. Madamme Bovary. 1857

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 1932.

KAFKA: A metamorfose. 19 15.

BAUM, L. Frank. O mágico de Oz. 1901.

Vocabulário:

Paleontologia: ciência que estuda os fósseis de animais e vegetais. Os fósseis humanos pertencem ao campo da paleantropologia.


“Rubião tinha nos pés um par de chinelas de damasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na boca, um riso azul claro”. (Machado de Assis, in: Quincas Borba, cap. CXLV).

Samuel Coleridge: poeta e filósofo místico inglês (1772-1834). Em colaboração com Wordsworth, escreveu as Baladas líricas (1789), que marcaram o advento do Romantismo. Formulou o conceito de “suspensão voluntária da descrença” – the willing suspension of disbelief –, segundo o qual todo leitor precisa fazer para se permitir “embarcar” no texto que lê, como se este fosse verdade. (in: Gustavo Bernardo, O conceito de literatura).



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