Ler é preciso, viver...
Estarei só, bem só em mim,
indiferente a todos os balés do mundo.
O que eu fiz, dou tudo para vocês.
André Breton
O que eu fiz, dou tudo para vocês.
André Breton
Depois que lera Kafka, ele não sabia mais o que
fazer com os braços. À noite, não encontrava posição na cama, sentindo-se tão
desajeitado quanto o inseto Gregor Samsa. Se dormia de barriga para cima, tinha
pesadelos horríveis com um admirável mundo novo que parecia cada vez mais
próximo, inexoráveis exércitos de mulheres de cabelo verde e roupa vermelha e
roxa marchando sobre seus miolos, consequência de leituras mal digeridas antes
de dormir. Mas foi na estrada para Oz
que as coisas começaram a piorar. A imagem daquele homem de lata não saía por
nada de sua cabeça. No carro, no metrô ou no ônibus, ele próprio se sentindo
mais lata que tais veículos. Por dúvida das vias, como diria um amigo seu,
professor de literatura, passou a carregar consigo um spray antiferrugem, que guardava
dentro da pasta abarrotada de revistas de cultura, suplementos de jornais e um
ou outro volume de contos, poesia, romance.
Em casa, os livros não
paravam de multiplicar-se na(s) estante(s), desde edições bilíngues, boas e más
traduções, línguas estrangeiras diversas, numa biblioteca que, antes de ser
babélica tornava-se progressivamente bélica, verdadeiro arsenal em que se
encontrava filosofia e literatura, economia, política, antropologia, algum
conhecimento de direito e, até, um tratado de paleontologia. Os filhos
adolescentes tornavam-se esquivos. Medo de que ele os obrigasse a ler um
romance todo final de semana. Deu para emendar ditados. Por exemplo, quando
alguém se punha a relembrar fatos, ele invariavelmente comentava: “Como diria
Dom Quixote, águas passadas não movem gigantes”. Ao atender o telefone, em vez
do clássico “alô”, mandava: “Fala, amendoeira!”. Não perdia um lançamento,
sobretudo de revistas especializadas, ele próprio especializado – para terror
dos amigos articulistas – em descobrir coincidências entre autores, omissão de
citações e plágios diversos. Em suma, tudo aquilo que compõe a emaranhada rede
do trabalho intelectual, e que ele, com paciência magistral e muitas horas de
leitura, se esmerava em esburacar. Tornara-se assim muito erudito.
Essas e outras miudezas
que progressivamente se incorporavam à sua personalidade e ao cotidiano seu e
de outros não seriam de modo algum motivo de preocupação maior, não tivesse
ele, inadvertidamente, trocado o nome da mulher. Agora, só a chamava de Laura
Beatriz e cometia-lhe sonetos de pé quebrado em súbitos arroubos literários de
paixão. Reunidos, os parentes decidiram chamar o Doutor Carlos, médico da
família. Ele veio quando o paciente, abajur aceso à cabeceira da cama,
preparava-se para mais uma noite de leitura febril.
O jaleco branco do Dr.
Carlos era a própria neutralidade e objetividade da Ciência. O cérebro aturdido
do outro, em contraste, vazava leituras para todo lado. Entretanto,
pós-kafkianos que os dois de fato nasceram, algum bretonismo, como o halo
difuso que vinha do pequeno abajur, se interpunha entre eles. Algo que não era
pura ilusão nem a mais concreta realidade. “Sabe por quê vim?”, perguntou o
médico. Cabisbaixo, desta vez o paciente parecia desprovido de palavras.
Lentamente, levantou os olhos: “Está tudo perdido, não é mesmo?”. “Bem”,
começou o Dr. Carlos, mas o outro atalhou a sua fala. “Talvez ainda dê tempo de
salvar-lhe a vida”. O médico aguardava. “Imediatamente, senão será tarde
demais”. “Sim?”. “Em que página ela está?”. “Não sei ao certo”. “Então corra,
pode ser que você encontre o veneno antes dela”. O Dr. Carlos assentiu com a
cabeça, e rapidamente deixou o quarto para tentar cumprir sua missão. Afinal,
amava muito Emma Bovary.
A sós, ele retirou de debaixo do travesseiro o
livro. Das páginas do Quincas Borba, Rubião
acenava-lhe um sorriso azul. Mergulhou na leitura, nela naufragando não
vencido, não vencedor. Apenas leitor: “Ao leitor, as batatas!”.
Referências:
ANDRADE, Carlos Drummond. Fala, amendoeira. Crônicas. 1957.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba.1891
BORGES, Jorge Luís. “A biblioteca de Babel”.
In: Ficções. 1944
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924
CERVANTES. Dom
Quixote. 1605
DANTE. A
divina comédia. 1321
FLAUBERT, Gustave. Madamme Bovary. 1857
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 1932.
KAFKA: A
metamorfose. 19 15.
BAUM, L. Frank. O mágico de Oz. 1901.
Vocabulário:
Paleontologia: ciência que estuda os fósseis de
animais e vegetais. Os fósseis humanos pertencem ao campo da paleantropologia.
“Rubião tinha nos pés um par de chinelas de
damasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na boca,
um riso azul claro”. (Machado de Assis, in: Quincas
Borba, cap. CXLV).
Samuel Coleridge: poeta e filósofo místico
inglês (1772-1834). Em colaboração com Wordsworth, escreveu as Baladas líricas (1789), que marcaram o
advento do Romantismo. Formulou o conceito de “suspensão
voluntária da descrença” – the willing suspension of disbelief –, segundo o
qual todo leitor precisa fazer para se permitir “embarcar” no texto que lê,
como se este fosse verdade. (in: Gustavo Bernardo, O conceito de literatura).
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