Estamos apenas ensaiando
“O homem”, considerado isoladamente, fora de uma
frase, é uma procura,
uma interrogação, e deveria ser
escrito, a rigor, “o homem?”. Vilém Flusser
No conto Estão apenas ensaiando, de Bernardo de Carvalho (2000), a narração nos
surge em forma de respostas — respostas a questões que não foram, de fato,
formuladas, mas que estão implícitas no próprio enredo e na forma como este é
montado. As questões são básicas e o texto “ensaia” resposta possíveis, ou,
talvez, “verossímeis”. A primeira questão poderia ser formulada como: “quem são
essas pessoas de que o foco narrativo se ocupa?”. Resposta imediata e
(aparentemente) fácil: “são gente de teatro”. Em seguida, surge a segunda
pergunta: “o que estão fazendo?”. E a resposta, quase óbvia e bastante enfática
ao longo do texto: “estão apenas ensaiando”. A terceira pergunta, decorrente da
anterior, poderia ser: “para quê?”. E sua resposta correspondente: “para
representar”, ou seja, para assumir de fato um dado papel e a entonação de fala
que lhe é desejável. No contexto do conto, entretanto, alcançar essa etapa
pertenceria ao futuro, pois, por ora, estão
apenas ensaiando.
Todos “ensaiam” algo, à exceção
do “vulto sem rosto” que vem de fora para anunciar, sem prévio ensaio, a dura
realidade da rua de “buzinas, motores e sirenes”. Neste ponto, ficção e
realidade, até então diametralmente opostas e radicalmente separadas (há um hall que separa o teatro da rua), se
confundem. Os papéis — o papel real e o papel ficcional —, antes nitidamente separados,
já não estão mais tão claramente delimitados. O “ator que interpreta o humilde
lavrador” e o ator “que interpreta a morte” passam a ser, a partir deste
momento, o próprio “humilde lavrador” que dialoga com a “morte” sobre o atraso
da mulher:
Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra de novo
à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que a esta altura já
devia estar sentada na plateia.
O embaralhamento dos papéis leva à derradeira pergunta:
“de onde vem essa gente?”. Tal como a confusão que a originou, a resposta a
essa pergunta só poderia ser igualmente obscura, e se apresenta sob a forma de outra
pergunta, para a qual, desta vez, não há resposta possível ou verossímil: “vem
da realidade? ou da ficção?”. Ou seja, a fusão entre realidade e ficção, no
texto, leva a um questionamento bastante complexo acerca do que seja realidade
e do que seja ficção — seriam coisas necessariamente distintas e distantes uma
da outra? —, e também acerca dos papéis desempenhados pelo próprio “ator” diante
de uma e de outra.
Para
Flusser (1963), a tradição filosófica ocidental tem adotado uma visão
dicotômica, expressa pela relação sujeito versus
objeto. Do seu ponto de vista, na busca do significado da realidade, esta relação deve
ser superada, dando lugar a uma nova relação — que teria origem na própria
estrutura gramatical da língua — entre sujeito, objeto e predicado. Assim, o que interessaria não é a rígida separação entre realidade e ficção
(sujeito x objeto), mas sim o predicado que
essa relação possui.
No texto de Bernardo Carvalho, ficção e realidade estão
mediatizadas por um predicado específico: ensaiando.
Deste modo, de acordo com a relação proposta por Flusser de
sujeito-objeto-predicado, o “ensaio” do texto poderia caber em qualquer
cenário, em qualquer papel: uma equipe não de teatro, mas de ciência,
“ensaiando” uma fórmula num laboratório, por exemplo. Quem sabe, uma equipe de
pedagogos “ensaiando” um novo método de ensino. Ou talvez uma orquestra
“ensaiando” uma peça musical. Não importa: todos estão, igualmente, “apenas
ensaiando”, assim como “o ator que interpreta o humilde lavrador” ou o “ator
que interpreta a morte”.
O ensaio, no
texto ou fora dele, se afigura como, utilizando ainda a terminologia de
Flusser, o campo onde ocorrem simultaneamente realidade e ficção. O ensaio
encerraria deste modo tanto o possível, que remete ao palpável, ao real, quanto
o verossímil, que remete ao ficcional, possuindo portanto um caráter ambíguo —
uma vez que contém, em si mesmo, o possível e o verossímil em igual medida. Pretender
questionar essa ambiguidade, pois, seria pretender questionar o próprio
conceito, ou seja, o próprio sujeito ou o próprio objeto, recaindo dessa forma
numa visão polarizada. Assim, “o ator que interpreta o humilde lavrador” passaria
a ser “o ator? que interpreta o humilde lavrador”, implicando no questionamento
“o que é o ator?”.
Do ponto de vista de Flusser,
descontextualizada do seu predicado, a busca do significado do conceito perde o
seu verdadeiro sentido. A pergunta “o que é o ator?” remete à pergunta “o que é
o homem?”, que contém em si mesma todas as demais perguntas, implícitas ou
explícitas, possíveis ou verossímeis. É o próprio enigma proposto a Édipo e que
não deveria ser respondido, sequer formulado. Pois o homem está no cerne
daquilo que Flusser chama de “inarticulável” e de “de tudo diferente”. Tentar
ensaiar respostas é enveredar por um caminho circular, que dá voltas sobre si
mesmo até o infinito.
Bibliografia citada:
CARVALHO, B. “Estão apenas ensaiando”. In: MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do
século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.
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