Monday, June 03, 2019

Estamos apenas ensaiando

“O homem”, considerado isoladamente, fora de uma frase, é uma procura,
uma interrogação, e  deveria ser escrito, a rigor, “o homem?”. Vilém Flusser

              No conto Estão apenas ensaiando, de Bernardo de Carvalho (2000), a narração nos surge em forma de respostas — respostas a questões que não foram, de fato, formuladas, mas que estão implícitas no próprio enredo e na forma como este é montado. As questões são básicas e o texto “ensaia” resposta possíveis, ou, talvez, “verossímeis”. A primeira questão poderia ser formulada como: “quem são essas pessoas de que o foco narrativo se ocupa?”. Resposta imediata e (aparentemente) fácil: “são gente de teatro”. Em seguida, surge a segunda pergunta: “o que estão fazendo?”. E a resposta, quase óbvia e bastante enfática ao longo do texto: “estão apenas ensaiando”. A terceira pergunta, decorrente da anterior, poderia ser: “para quê?”. E sua resposta correspondente: “para representar”, ou seja, para assumir de fato um dado papel e a entonação de fala que lhe é desejável. No contexto do conto, entretanto, alcançar essa etapa pertenceria ao futuro, pois, por ora, estão apenas ensaiando.

            Todos “ensaiam” algo, à exceção do “vulto sem rosto” que vem de fora para anunciar, sem prévio ensaio, a dura realidade da rua de “buzinas, motores e sirenes”. Neste ponto, ficção e realidade, até então diametralmente opostas e radicalmente separadas (há um hall que separa o teatro da rua), se confundem. Os papéis — o papel real e o papel ficcional —, antes nitidamente separados, já não estão mais tão claramente delimitados. O “ator que interpreta o humilde lavrador” e o ator “que interpreta a morte” passam a ser, a partir deste momento, o próprio “humilde lavrador” que dialoga com a “morte” sobre o atraso da mulher:

Olhando o relógio, o humilde lavrador sussurra de novo à morte sem foice ou manto algo sobre o atraso da mulher, que a esta altura já devia estar sentada na plateia.

            O embaralhamento dos papéis leva à derradeira pergunta: “de onde vem essa gente?”. Tal como a confusão que a originou, a resposta a essa pergunta só poderia ser igualmente obscura, e se apresenta sob a forma de outra pergunta, para a qual, desta vez, não há resposta possível ou verossímil: “vem da realidade? ou da ficção?”. Ou seja, a fusão entre realidade e ficção, no texto, leva a um questionamento bastante complexo acerca do que seja realidade e do que seja ficção — seriam coisas necessariamente distintas e distantes uma da outra? —, e também acerca dos papéis desempenhados pelo próprio “ator” diante de uma e de outra.

Para Flusser (1963), a tradição filosófica ocidental tem adotado uma visão dicotômica, expressa pela relação sujeito versus objeto. Do seu ponto de vista, na busca do significado da realidade, esta relação deve ser superada, dando lugar a uma nova relação — que teria origem na própria estrutura gramatical da língua — entre sujeito, objeto e predicado. Assim, o que interessaria não é a rígida separação entre realidade e ficção (sujeito x objeto), mas sim o predicado que essa relação possui.

            No texto de Bernardo Carvalho, ficção e realidade estão mediatizadas por um predicado específico: ensaiando. Deste modo, de acordo com a relação proposta por Flusser de sujeito-objeto-predicado, o “ensaio” do texto poderia caber em qualquer cenário, em qualquer papel: uma equipe não de teatro, mas de ciência, “ensaiando” uma fórmula num laboratório, por exemplo. Quem sabe, uma equipe de pedagogos “ensaiando” um novo método de ensino. Ou talvez uma orquestra “ensaiando” uma peça musical. Não importa: todos estão, igualmente, “apenas ensaiando”, assim como “o ator que interpreta o humilde lavrador” ou o “ator que interpreta a morte”.

O ensaio, no texto ou fora dele, se afigura como, utilizando ainda a terminologia de Flusser, o campo onde ocorrem simultaneamente realidade e ficção. O ensaio encerraria deste modo tanto o possível, que remete ao palpável, ao real, quanto o verossímil, que remete ao ficcional, possuindo portanto um caráter ambíguo — uma vez que contém, em si mesmo, o possível e o verossímil em igual medida. Pretender questionar essa ambiguidade, pois, seria pretender questionar o próprio conceito, ou seja, o próprio sujeito ou o próprio objeto, recaindo dessa forma numa visão polarizada. Assim, “o ator que interpreta o humilde lavrador” passaria a ser “o ator? que interpreta o humilde lavrador”, implicando no questionamento “o que é o ator?”.

 Do ponto de vista de Flusser, descontextualizada do seu predicado, a busca do significado do conceito perde o seu verdadeiro sentido. A pergunta “o que é o ator?” remete à pergunta “o que é o homem?”, que contém em si mesma todas as demais perguntas, implícitas ou explícitas, possíveis ou verossímeis. É o próprio enigma proposto a Édipo e que não deveria ser respondido, sequer formulado. Pois o homem está no cerne daquilo que Flusser chama de “inarticulável” e de “de tudo diferente”. Tentar ensaiar respostas é enveredar por um caminho circular, que dá voltas sobre si mesmo até o infinito.

Bibliografia citada:

CARVALHO, B. “Estão apenas ensaiando”. In: MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

FLUSSER, V. Ficções Filosóficas, São Paulo, EdUSP, 1998.

FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.
























































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