Dízimo
Isabel Pires
O ônibus vinha meio sacolejante.
A mulher no ponto fez o sinal.
O motorista, porém, não parou,
embora viesse devagar.
A mulher avançou de repente,
se interpondo na frente
do ônibus, o que obrigou
o motorista a dar uma brusca freada.
Estava com pressa para ir trabalhar,
que o patrão não era de brincadeira.
— Meu filho, pode abrir a porta de trás
pra mim entrar?, pediu ela, humildemente.
Trazia muitas sacolas, de plástico branco,
e queria facilitar seu acesso ao ônibus.
O motorista não respondeu. Mas
um rapaz, postado em pé junto à roleta,
próximo ao cobrador, falou:
— Abre aí, tio, deixa ela entrar.
A mulher olhou para o rapaz. Ah, mas
não é o Sandrinho, lá da comunidade?
Outro rapaz, próximo à porta, ajudou
a mulher a subir com as sacolas.
Não eram grandes, mas
eram bem pesadinhas. Este outro rapaz
devia ser amigo do Sandrinho. A mulher
das sacolas não lembrava o nome, mas
sabia que era da comunidade.
— Deus abençoe vocês dois, disse ela,
acomodando-se no banco, com
suas sacolas branquinhas, de plástico.
Ambos em pé, Sandrinho e o amigo,
no ônibus quase vazio.
E Sandrinho:
— Tia, quanto é que a senhora pesa?
— Hein? - Por trás das grossas lentes,
a mulher viu a balança
postada ao pé da roleta do ônibus.
Era uma balança pequena, daquelas
que as madama usam no banheiro.
Para controlar o peso, sabe como é?
Sandrinho levantou um pouco a voz,
alterado: — Muito bem, muito bem.
Aqui é que nem com o pastor.
Só dez por cento, é o que a gente
vai levar, completou.
— É, dez por cento do que você pesar,
esclareceu para os presentes
o amigo do Sandrinho.
(A mulher das sacolas agarrou-se
febrilmente a elas.)
Sandrinho, revólver em punho
– e só agora a tia percebia –,
mandou-a subir na balança: — Já.
As sacolas de plástico branco
abandonadas sobre o banco do ônibus.
A um sinal de Sandrinho, o parceiro
pegou uma delas. Abriu. E então,
muito bem acondicionada, a droga
saltou à vista de todos. (E a mulher
era gorda, a balança confirmava.)
Em cima da balança, a mulher
suava frio, suas vistas escureciam.
E por sua mente, em desvario
de agonia, duas caras
diferentes desfilavam. A primeira,
a do patrão, severa, terrível. Desumana.
E depois, como em flashes que já não servem
pra nada, vinha e ia e ia e vinha
a face do doutor do posto
de saúde lá da comunidade.
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