Comida mineira de raiz
Isabel Pires
A ocupação das Minas Gerais foi um processo difícil, iniciado em 1693 com os bandeirantes paulistas que, em busca de riquezas, escravizavam índios pelo interior do Brasil. Evidentemente, àquela época a região ainda não era conhecida por “Minas Gerais”, mas pelos nomes dos acidentes geográficos do lugar, como “Ribeirão do Carmo”, “Serra dos Congonhas”, etc. A descoberta do ouro atraiu imediatamente para lá gente de todos os cantos da Colônia e também de Portugal, resultando num conflito com os paulistas que ficou conhecido como “Guerra dos Emboabas” (1707-1710). Vencida a guerra pelos emboabas – os demais imigrantes, que disputavam com os paulistas a posse do território –, teve lugar a fundação de pequenos arraiais e vilas, que começaram a ser ocupados por todo tipo de gente do Brasil-Colônia, bem como por um número elevado de escravos, trazidos da África para a exploração das minas. Data desta época a fundação de Comarcas, como as de Vila Rica e do Rio das Velhas, que possuíam Ouvidores designados pela Coroa portuguesa para resolver os conflitos locais. Finalmente, em 12/09/1720, foi criada a Capitania de Minas Gerais, cuja capital era Vila Rica, a atual Ouro Preto.
Os mineiros enfrentavam muitas dificuldades no dia-a-dia. A exploração do ouro provocava inflação na economia local. Devido ao transporte precário, os gêneros alimentícios eram caros e difíceis de serem obtidos, assim como outros gêneros de primeira necessidade: roupas, sapatos, mobiliário, tudo era custoso em meio à corrida pelo tão cobiçado metal dourado. O item mais escasso de todos era o sal, e houve mesmo uma época em que este era usado até como moeda de troca.
Com tão grandes dificuldades, não admira que a gente do lugar apelasse constantemente para a imaginação para conseguir colocar na mesa – nas casas em que havia essa peça de mobília, geralmente trazida de Portugal ou encomendada literalmente a peso de ouro a carpinteiros locais – a comida de todo dia. Foi destas condições que surgiu o famoso angu mineiro (veja a "receita" em http://blogdereceitasdabel.blogspot.com/, post de 11/01/2010), prato que leva apenas fubá e água, consumido com couve refogada e linguiça de porco frita. A culinária mineira tem, portanto, origem nas coisas simples, que podiam ser conseguidas mais facilmente, como a mandioca frita. Com o fim da exploração aurífera na região, os mineiros passaram a se dedicar a outras atividades, como a pecuária e a cafeicultura. Consequentemente, a culinária mineira também sofreu modificações, passando a incluir no cardápio ingredientes como a carne de boi e o açúcar, que antes eram difíceis de serem conseguidos. Doces caseiros, como o de cidra (e outros, sempre servidos com o queijo-minas), e biscoitos diversos, como a broinha de milho, também foram incorporados à gastronomia mineira. No entanto, as características fundamentais – que tornam a cozinha mineira diferenciada e muito saborosa – permaneceram inconfundíveis.
Hoje em dia, com a influência de outras cozinhas, novos ingredientes e costumes, a cozinha mineira se diversificou bastante. A banha de porco, por exemplo, foi quase totalmente substituída pelo óleo vegetal, mais saudável. Por outro lado, essas mudanças permitiram o surgimento de uma gama de pratos que, não raro, lembram muito pouco a boa e velha culinária das Minas Gerais. Com uma infinidade de modismos – com nomes como “Romeu e Julieta” (para designar o queijo-com-goiabada) e “Iaiá com Ioiô” (picadinho de carne e verduras com angu de fubá), aliados a pratos criados por chefs de restaurantes inspirados em cozinhas estrangeiras –, a comida mineira de raiz, aquela que nasceu ao pé das serras e dos ribeirões das Minas Gerais, corre o risco de ser descaracterizada por completo. Não à toa, algumas receitas foram preservadas e registradas como “patrimônio cultural” de Minas Gerais, como a receita do pão de queijo, por exemplo. Outro “patrimônio gastronômico mineiro”, que foi devidamente registrado para se evitar futuras descaracterizações, é o delicioso (embora pouco saudável) queijo-minas. No entanto, medidas como essa são meramente tentativas, e nada podem contra a ação do tempo. Apenas este dirá como será a comida servida em Minas Gerais daqui a algumas décadas ou, quem sabe, centenas de anos.
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