A janela
Isabel Pires
Descobriram por acaso uma infância quase em comum: haviam frequentado a mesma praia, agora tão distante no tempo e no espaço. Esse fato as tornava um pouco mais próximas, mais íntimas. Ficaram contentes com a novidade. "Amigas de infância", afinal...
Seis, sete anos de idade?
Se tanto.
Vai ver, a gente brincava junta, e nem sabia...
Pois é...
No retângulo azul-escuro do tapete, os dois rolavam ferozes, esganando-se mutuamente, em ódio visceral.
Corre, que eles vão se matar.
A troco de quê estão brigando assim, gente?
Parem com isso, já.
Pronto. O quê? Ah, sim. Deixa ele um pouquinho também, tá?
Tudo bem?
Tudo...
Os meninos sossegaram em frente ao videogame.
Um controle só é complicado.
Dá briga.
Se dá.
As ondas verdes e quentes balançando no mar. Na praia, sal, areia, céu azul, vento.
Tubarão...
Que cê disse?
Eu? Nada não. E o café?
A cozinha parecia pouco amigável, mergulhada numa meia-penumbra excessivamente fresca, que o clarão instantâneo da lâmpada só conseguiu aquecer aos poucos. Dentro da chaleira, as bolhas espocavam como fogos. Ou pipocas. Dava para ouvi-las perfeitamente.
Os meninos?
Correram para a sala. As almofadas brancas, salpicadas sobre o azul escuro do tapete, pareciam pequenos blocos de gelo sobre um pedaço quadrado de mar imóvel. O sofá, geleira branca à beira desse mar, vazio. Na tela da tevê muda, um carro capotado, fumaça, sangue, fogo.
Cadê eles, santo Cristo!
A porta escancarada denunciava a travessura. As duas à janela, ansiosas. Os vidros das janelas das casas miniaturizadas, amontoadas em frente, soltavam faíscas vivas, como lavas incandescentes. Barraco mesmo, de parede de madeira e teto de zinco furado, daqueles que, à noite, coavam estrelas no chão, quase não se via mais. Aqui e acolá, um prédio rapidamente erguido em uma semana, às vezes, menos. Dois, até três andares. Tudo calmo. Vez em quando, um galho se agitava. Uma bola? Um olheiro? Finalmente, os meninos despontaram no play, logo abaixo.
Subir agora.
Mas mãe...
Já.
Pô, mãe, deixa.
Só um pouco, vai.
Só um pouco então.
Tá.
O café!
Na cozinha, um vapor forte se despendia da chaleira, o açúcar quase virando melado no fundo.
Então, e a praia? A gente ia lá sempre... nas férias...
Pois é, nós também. Antes de morrer, meu pai quis porque quis ir para lá. Ninguém tirava da cabeça dele essa idéia. Vendeu a casa, comprou um apartamento. Minha mãe dizia apertamento. Mas fez a vontade. Ficou quase um ano lá. Até morrer. Mas para ela sozinha, dá, né?
O quê?
O apertamento...
Ah, é.
O pão era de mais de meia hora atrás.
Quer que esquente?
Não precisa...
Na sala, o caos recomeçou. O carro correndo feito louco fugindo dos bandidos. Ou seria da polícia? No caminho, a destruição. Muros derrubados, pedestres atirados para fora como bonecos sem vida, postes arrancados. Um motoqueiro voou com moto e tudo, bateu na amurada da ponte antes de cair no mar metálico da tecnologia.
Atira, atira!
Não dá.
Foge então.
Game over.
Agora sou eu!
Calma gente. De novo?
Não tem um jogo menos violento?
Quem foi que deu esse jogo a vocês?
O menino concentrado, apertando os botões de comandos, xis quadrado círculo. Direita esquerda subir descer.
Entra no avião.
Não dá, cara. Calma aí.
A faca cortava implacável o queijo-minas, enquanto as lembranças iam emergindo aos poucos, em pedaços teimosos.
Meu pai sempre buscava a gente na escola, eu e minha irmã. Segurava forte nossas mãos, que era para a gente não correr, imagina. Eu ia amassando com a conguinha azul as folhas secas que encontrava pelo caminho. Minha irmã, pendurada do outro lado do meu pai, tagarelava coisas que ninguém entendia. Quando ela ficava quieta, meu pai assoviava uma música comprida comprida, até a gente chegar em casa.
O rá-rá-tá-tá eletrônico da metralhadora virtual recomeçou na sala.
Joguinho chato esse, hein?
É... mas pelo menos a gente sabe que eles estão lá.
E você?
Eu? Ah! Quando saía da aula, eu ia correndo pra casa. A molecada toda se mandava, rua abaixo, rua acima. A aula acabava às cinco em ponto. E ninguém queria perder um seriado antigo, que passava nesse horário. Todo mundo correndo feito doido, pra não perder o começo.
E nossas mães reclamavam, hein?
Riram, enquanto o tiroteio prosseguia implacável na sala, pum-pum.
Uma das mães alteou um pouco a voz, o rosto virado em direção à sala.
Fizeram o dever?
Hã-hã.
Riram de novo.
É?... não quero dever saindo da mochila às dez horas da noite, hein?
Tá!
O meu, deixa sempre para as dez da manhã do dia seguinte. Um caos!
Na sala, o caos se intensificava mais, insuportável. Os tiros quase se confundiam com tiros de verdade, rá-tá-tá, pum-pum, pac-pac, até que de repente cessaram.
A cozinha agora era agradável, iluminada e quente. O café escorreu para dentro das xícaras, grosso, preto, forte. Aconchegante. O cheiro espalhou-se pela casa.
Bom...
Estão quietos...
Mais uma mordida no pão farto de queijo, um gole de café preto, bem preto.
Quer leite?
De jeito nenhum!
Mais café, então.
Vou pegar manteiga.
Tá.
A geladeira, imponente, tomava conta da cozinha, toda branca. Abriu-a, à procura da manteiga. Abaixada, distraída, consultou os pequenos.
Querem iogurte?
Silêncio.
Ela fechou a porta da geladeira devagar.
Ei vocês, querem iogurte?, repetiu mais alto.
Elas se entreolharam, meio assustadas.
A janela! A janela!
Descobriram por acaso uma infância quase em comum: haviam frequentado a mesma praia, agora tão distante no tempo e no espaço. Esse fato as tornava um pouco mais próximas, mais íntimas. Ficaram contentes com a novidade. "Amigas de infância", afinal...
Seis, sete anos de idade?
Se tanto.
Vai ver, a gente brincava junta, e nem sabia...
Pois é...
No retângulo azul-escuro do tapete, os dois rolavam ferozes, esganando-se mutuamente, em ódio visceral.
Corre, que eles vão se matar.
A troco de quê estão brigando assim, gente?
Parem com isso, já.
Pronto. O quê? Ah, sim. Deixa ele um pouquinho também, tá?
Tudo bem?
Tudo...
Os meninos sossegaram em frente ao videogame.
Um controle só é complicado.
Dá briga.
Se dá.
As ondas verdes e quentes balançando no mar. Na praia, sal, areia, céu azul, vento.
Tubarão...
Que cê disse?
Eu? Nada não. E o café?
A cozinha parecia pouco amigável, mergulhada numa meia-penumbra excessivamente fresca, que o clarão instantâneo da lâmpada só conseguiu aquecer aos poucos. Dentro da chaleira, as bolhas espocavam como fogos. Ou pipocas. Dava para ouvi-las perfeitamente.
Os meninos?
Correram para a sala. As almofadas brancas, salpicadas sobre o azul escuro do tapete, pareciam pequenos blocos de gelo sobre um pedaço quadrado de mar imóvel. O sofá, geleira branca à beira desse mar, vazio. Na tela da tevê muda, um carro capotado, fumaça, sangue, fogo.
Cadê eles, santo Cristo!
A porta escancarada denunciava a travessura. As duas à janela, ansiosas. Os vidros das janelas das casas miniaturizadas, amontoadas em frente, soltavam faíscas vivas, como lavas incandescentes. Barraco mesmo, de parede de madeira e teto de zinco furado, daqueles que, à noite, coavam estrelas no chão, quase não se via mais. Aqui e acolá, um prédio rapidamente erguido em uma semana, às vezes, menos. Dois, até três andares. Tudo calmo. Vez em quando, um galho se agitava. Uma bola? Um olheiro? Finalmente, os meninos despontaram no play, logo abaixo.
Subir agora.
Mas mãe...
Já.
Pô, mãe, deixa.
Só um pouco, vai.
Só um pouco então.
Tá.
O café!
Na cozinha, um vapor forte se despendia da chaleira, o açúcar quase virando melado no fundo.
Então, e a praia? A gente ia lá sempre... nas férias...
Pois é, nós também. Antes de morrer, meu pai quis porque quis ir para lá. Ninguém tirava da cabeça dele essa idéia. Vendeu a casa, comprou um apartamento. Minha mãe dizia apertamento. Mas fez a vontade. Ficou quase um ano lá. Até morrer. Mas para ela sozinha, dá, né?
O quê?
O apertamento...
Ah, é.
O pão era de mais de meia hora atrás.
Quer que esquente?
Não precisa...
Na sala, o caos recomeçou. O carro correndo feito louco fugindo dos bandidos. Ou seria da polícia? No caminho, a destruição. Muros derrubados, pedestres atirados para fora como bonecos sem vida, postes arrancados. Um motoqueiro voou com moto e tudo, bateu na amurada da ponte antes de cair no mar metálico da tecnologia.
Atira, atira!
Não dá.
Foge então.
Game over.
Agora sou eu!
Calma gente. De novo?
Não tem um jogo menos violento?
Quem foi que deu esse jogo a vocês?
O menino concentrado, apertando os botões de comandos, xis quadrado círculo. Direita esquerda subir descer.
Entra no avião.
Não dá, cara. Calma aí.
A faca cortava implacável o queijo-minas, enquanto as lembranças iam emergindo aos poucos, em pedaços teimosos.
Meu pai sempre buscava a gente na escola, eu e minha irmã. Segurava forte nossas mãos, que era para a gente não correr, imagina. Eu ia amassando com a conguinha azul as folhas secas que encontrava pelo caminho. Minha irmã, pendurada do outro lado do meu pai, tagarelava coisas que ninguém entendia. Quando ela ficava quieta, meu pai assoviava uma música comprida comprida, até a gente chegar em casa.
O rá-rá-tá-tá eletrônico da metralhadora virtual recomeçou na sala.
Joguinho chato esse, hein?
É... mas pelo menos a gente sabe que eles estão lá.
E você?
Eu? Ah! Quando saía da aula, eu ia correndo pra casa. A molecada toda se mandava, rua abaixo, rua acima. A aula acabava às cinco em ponto. E ninguém queria perder um seriado antigo, que passava nesse horário. Todo mundo correndo feito doido, pra não perder o começo.
E nossas mães reclamavam, hein?
Riram, enquanto o tiroteio prosseguia implacável na sala, pum-pum.
Uma das mães alteou um pouco a voz, o rosto virado em direção à sala.
Fizeram o dever?
Hã-hã.
Riram de novo.
É?... não quero dever saindo da mochila às dez horas da noite, hein?
Tá!
O meu, deixa sempre para as dez da manhã do dia seguinte. Um caos!
Na sala, o caos se intensificava mais, insuportável. Os tiros quase se confundiam com tiros de verdade, rá-tá-tá, pum-pum, pac-pac, até que de repente cessaram.
A cozinha agora era agradável, iluminada e quente. O café escorreu para dentro das xícaras, grosso, preto, forte. Aconchegante. O cheiro espalhou-se pela casa.
Bom...
Estão quietos...
Mais uma mordida no pão farto de queijo, um gole de café preto, bem preto.
Quer leite?
De jeito nenhum!
Mais café, então.
Vou pegar manteiga.
Tá.
A geladeira, imponente, tomava conta da cozinha, toda branca. Abriu-a, à procura da manteiga. Abaixada, distraída, consultou os pequenos.
Querem iogurte?
Silêncio.
Ela fechou a porta da geladeira devagar.
Ei vocês, querem iogurte?, repetiu mais alto.
Elas se entreolharam, meio assustadas.
A janela! A janela!
Meu Deus!
A maldita janela! Desde que foram morar ali, receava a janela, bem de frente para o morro, onde não tinha hora para haver troca de tiro entre traficantes e polícia. Inútil pedir ao marido para mudar a disposição dos móveis na sala, deixando a tevê bem de frente para a janela, em vez do sofá.
Sem coragem, aproximaram-se pé ante pé da sala, o coração saltando na boca, perturbadas, sem cor.
Uma rajada de vento meio frio sacudia de leve a cortina de tecido transparente que emoldurava a janela. A tarde desmaiava, um alaranjado sem fôlego tomando conta de tudo. Os meninos, muito quietos no sofá, liam, cada um, seu gibi, esquecidos do videogame.
Ah!
Abriram um sorriso largo, entreolhando-se mutuamente, mal disfarçando a comoção.
Voltaram para a cozinha.
Pois é, na minha época, gibi, nem pensar.
Minha mãe também proibia, mas meu pai às vezes comprava, e a gente lia escondido.
E voltaram ao café, eternamente recomeçado.
A maldita janela! Desde que foram morar ali, receava a janela, bem de frente para o morro, onde não tinha hora para haver troca de tiro entre traficantes e polícia. Inútil pedir ao marido para mudar a disposição dos móveis na sala, deixando a tevê bem de frente para a janela, em vez do sofá.
Sem coragem, aproximaram-se pé ante pé da sala, o coração saltando na boca, perturbadas, sem cor.
Uma rajada de vento meio frio sacudia de leve a cortina de tecido transparente que emoldurava a janela. A tarde desmaiava, um alaranjado sem fôlego tomando conta de tudo. Os meninos, muito quietos no sofá, liam, cada um, seu gibi, esquecidos do videogame.
Ah!
Abriram um sorriso largo, entreolhando-se mutuamente, mal disfarçando a comoção.
Voltaram para a cozinha.
Pois é, na minha época, gibi, nem pensar.
Minha mãe também proibia, mas meu pai às vezes comprava, e a gente lia escondido.
E voltaram ao café, eternamente recomeçado.
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