O guarda-chuva verde*
As duas velhas iam andando pela rua, com passos que pareceriam incertos, mas que, na verdade, eram passos de quem já perdeu toda a pressa das coisas do mundo. Chovia uma chuva fina, e elas seguiam, muito unidas sob o mesmo guarda-chuva. Confusa, a mais velha das duas velhas procurava entender, sem sequer se lembrar, como perdera o seu guarda-chuva. Coisa impossível, pois se até os moços não explicam como guarda-chuvas se perdem a toda hora, sobretudo em dias de chuva.
Pararam na banca do camelô. A velha menos velha insistia na compra de um guarda-chuva para a outra velha, que relutava, ainda mais confusa. Mas estou sem o dinheiro. Não faz mal. Não disse que, qualquer dia, lhe compraria um guarda-chuva novo? Pode escolher. A velha mais velha piscava para os guarda-chuvas na barraca, enquanto o camelô, paciente, esperava. E porquê já viveram até o ponto de perder a pressa, e de saber, que, agora, eram os outros que deveriam esperar por elas, as velhas escolhiam o guarda-chuva devagar. Devagar caía uma chuva rala.
Finalmente, seguiram pela rua cheia de guarda-chuvas em direção ao ortopedista. A mais velha das duas velhas sentiu a falta do corpo da outra velha amparando o seu. Contudo, o braço dela ainda a enlaçava pela cintura, e as duas seguiam, os guarda-chuvas bailando sob a chuva fina.
Com espanto e dor, subiram cada degrau. O que são as dores todas do mundo, quando duas velhas sobem cinco degraus? O ascensorista, solícito, as aguardava.
Outros velhos, muitos velhos, enchiam o consultório de ortopedia. Cada velho que levantava, que saía – e outro velho segurava longamente a porta – parecia que o mundo parava.
As duas velhinhas, sempre unidas, seriam as últimas. O médico atendia por ordem de chegada. A lentidão da velhice atrasava o atendimento. E quando parecia não ter mais fim a espera, a recepcionista encontrou, ao lado das velhas, um guarda-chuva abandonado. Negro, bem negro, não era delas, e de mais ninguém. Na sala de espera do consultório, não havia mais nenhum velho, além delas duas, que já se dirigiam ao médico.
— O que faço, doutor? Mais um guarda-chuva perdido. À soleira da porta, a recepcionista segurava incólume o objeto extraviado.
— Agora é moda, minhas senhoras. Semana passada, encontramos um também.
— Por acaso era verde?, arriscou a velhinha mais velha.
Meio comovido – porque, apesar do trato quase diário com aqueles seres que ainda não foram, mas também já não eram, meros ossos porosos a serem examinados, ele ainda guardava a capacidade de, pelo menos, querer se comover –, meio comovido, o médico mandou a recepcionista buscar o guarda-chuva verde. Mas a moça, pigarreando, explicou que o havia deixado na portaria. Era só pegá-lo, quando por lá passassem.
Na saída, a velhinha foi em busca do seu guarda-chuva verde. Atencioso, o porteiro prontamente se dispôs a pegá-lo. Que pena. Não é esse, não. Esperem, tem outro. E é verde também. Do cubículo escuro ao lado do balcão, o porteiro emergiu segurando o guarda-chuva verde. E, embora verde, também não era aquele o guarda-chuva agora já ansiosamente esperado.
Um momento! O porteiro, nesse instante, tornou-se involuntariamente autoritário, fazendo com que as velhas suspendessem o passo. Das entranhas do cubículo escuro agarrado ao balcão, o porteiro retirou quatro guarda-chuvas. Um verde-claro, um verde-escuro, outro verde-petróleo e outro, ainda verde, xadrez. Nenhum, porém, ostentava o friso dourado, a alça intacta. Nenhum deles era de pequenos pontos vermelhos salpicado. Eram verdes e eram guarda-chuvas. Mas nenhum era o guarda-chuva verde, para sempre perdido. Perdido para sempre.
Chegando à rua, a chuva já havia ido embora. Guarda-chuvas debaixo dos braços, as duas velhas seguiam mais lentas, mais unidas, mais inseparáveis. Acima de suas cabeças, resplandecia um céu recém-lavado.
* Publicado na revista Ficções, ano VI, n. 12, dez./2003, p. 84-5.
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