O nó górdio da dúvida: o menino de Mata-cavalos versus o velho imperador do Engenho Novo
Isabel Pires
Que pensais que fez Capitu?
(Machado de Assis)
RESUMO
Este artigo se insere na linha dos “estudos machadianos” sobre a obra de Machado de Assis, fonte inesgotável para os estudiosos. O trabalho lança mão do conceito de “narrador não confiável”, de John Kinnear, para analisar o discurso do narrador do romance Dom Casmurro, um discurso que, ao mesmo tempo em que requer a cumplicidade do leitor, sonega a este os motivos que o teriam movido a escrever o seu “manuscrito”, quarenta anos depois de Bento Santiago ter vivido o seu idílio com a adolescente Capitu. Assim, mais do que levar o leitor a concordar com ele – ou pelo menos ficar em dúvida – sobre a questão do adultério, este narrador tipicamente machadiano teria muito mais motivos para escrever sua história, do que meramente “atar as duas pontas da vida”, como afirma na abertura do livro. Este é o tema do presente ensaio.
Palavras-chave: estudos machadianos; literatura brasileira.
ABSTRACT
This article takes part of the “Machadian studies” about Machado de Assis’ works, an inexhaustible fount for the scholars. This text utilizes the concept of “unreliable narrator” of John Kinnear in order to analyze the discourse of narrator of novel Dom Casmurro, a discourse that requires the complicity of lectors, and in other hand, denies them the motives for write the book, forty years after of the romance of Bento Santiago with the teenager Capitu. Thus, more than lead the lector to agree with him – or at least stay in doubt – about the question of adultery, this typical machadian narrator has more motives to write his story than merely “to tie the two tips of life”, such as he talks in the first chapter of his book. This is the theme this paper.
Key-words: Machadian studies; Brazilian literature.
Dom Casmurro é o terceiro
romance da fase considerada “madura” de Machado de Assis. Integrando uma obra
composta de vários contos, peças teatrais, poemas, crônicas de jornal, crítica
literária e traduções, os nove romances machadianos dividem-se, segundo os
estudiosos, em duas fases. A primeira, que seria a “fase da aprendizagem”, do
“Machadinho”, tem início com o romance de estreia, Ressurreição (publicado em 1872, em livro), prosseguindo com A mão e a luva (publicado em 20
folhetins no jornal O Globo, de setembro
a novembro de 1874; e em livro, em dezembro), Helena (publicado em 35 folhetins no jornal O Globo, de agosto e setembro de 1876, e em livro, em outubro) e Iaiá Garcia (publicado em 38 folhetins
no jornal O Cruzeiro, de janeiro a
março de 1878, e em livro, no mesmo ano).
A “segunda fase” machadiana, caracterizada pelo completo domínio do
escritor da arte de narrar, teria se iniciado com Memórias póstumas de Brás Cubas (publicado em folhetins na Revista Brasileira, de março a dezembro
de1880, e em 1881, em livro), ao qual se seguem os romances Quincas Borba (publicado em 91 folhetins
em A Estação, de junho de 1886 a setembro
de 1891, e em livro, em versão bastante modificada, em 1891), Dom Casmurro (1899, publicado em livro),
Esaú e Jacó (1904, publicado em
livro) e Memorial de Aires (1908, em livro). O Dom Casmurro, “apesar de sua qualidade excepcional, recebeu
escassas referências e críticas na imprensa”, segundo Ubiratan Machado (2003),
que compilou a fortuna crítica da obra machadiana publicada em vida do autor.
Apesar de controversa, a divisão da obra machadiana em duas fases tem
sido geralmente aceita pelos estudiosos, e teria surgido ainda em vida do
autor, que a ela se refere, em carta a José Veríssimo: “O que você chama a minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita
e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e
desculpe, e até chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustos de hoje”
(apud FACIOLI, 1982, p. 36).
O romance Memórias póstumas de Brás
Cubas, que dá início à segunda fase dos romances machadianos, a qual
pertence o Dom Casmurro, é considerado não apenas o “divisor de
águas” da obra machadiana, mas da própria literatura brasileira, pois a partir
dele se inauguraria o Realismo no Brasil, ao passo que o romance O mulato, de Aluísio Azevedo, também
publicado em 1881, fundaria o Naturalismo na literatura brasileira. Assim como
os demais romances machadianos da segunda fase, o Dom Casmurro é visto por Maia Neto (1987) como um livro de caráter
essencialmente cético, na medida em que parece adotar o princípio do ceticismo
filosófico grego de que a verdade não pode ser conhecida em sua totalidade, mas
apenas de modo parcial e relativo – ou seja, o livro apresenta o ponto de vista
parcial e relativo do narrador, ele próprio envolvido nos acontecimentos que
narra.
Antes de lançar o Dom Casmurro em 1899, Machado de Assis havia publicado, no jornal A República, em 15/11/1896, um texto intitulado “Um agregado”, que tem como subtítulo “capítulo de um livro inédito” (disponível na íntegra em: http://odragaodesaojorge.blogspot.com/2012/05). Esse texto, que seria o precursor do Dom Casmurro, contém uma espécie de “esboço” dos capítulos III, IV, V e VII, os quais, na versão em livro, foram bastante modificados. Em seu estudo comparativo entre o texto do jornal e os capítulos publicados no livro, Letícia Malard, baseando-se no fato de que, no primeiro, Capitu é retratada cruamente como “velhaca” e “desmiolada”, chama a atenção para a questão do adultério: “sob esse aspecto, creio que ‘Um agregado’ não deixa dúvidas sobre a traição. As dúvidas foram colocadas por Machado na versão definitiva, como parte do enxugamento do texto” (MALARD, 2000, p. 126). No entanto, como o próprio subtítulo de “Um agregado” sugere, trata-se de um texto ainda em construção. Como era usual na escrita machadiana, um texto apresentado primeiramente em jornal era posteriormente submetido a modificações às vezes drásticas, na versão em livro, cujo exemplo mais contundente é o Quincas Borba.[1]
Por outro lado, também não se deve enxergar, nesse texto machadiano,
futuro “capítulo de um livro inédito”, um texto “imaturo”, enquanto, no
romance, os capítulos referentes a ele seriam frutos do “amadurecimento do
autor”. É preciso antes considerar o fato de que o texto foi publicado em 1896,
ou seja, durante a vigência da chamada “segunda fase machadiana”, a fase da
maturidade, pois do contrário colocar-se-ia em xeque a própria divisão da obra
machadiana em duas fases, tão cara aos estudiosos. Se a narrativa de “Um
agregado” difere da que consta no romance por conter alguns excessos que foram
posteriormente suprimidos, deve-se levar em conta ainda que, além do seu
caráter de texto preliminar, ela é feita por um narrador que apresenta o seu
personagem-alvo, no caso, José Dias, com o objetivo de formar junto ao leitor
uma opinião pouco favorável acerca desse personagem. Deste modo, deve-se
observar, antes, que os adjetivos de “desmiolada” e “velhaca”, atribuídos a
Capitu, sejam ditos pela boca suspeitíssima – para usar um superlativo à moda
do personagem – de José Dias. Ou seja, visto deste ângulo, o texto de “Um
agregado” não apontaria para a “certeza do adultério” de Capitu, mas para a opinião que José Dias emite sobre a
personagem, opinião essa que, conforme vemos no desenrolar do romance, muda de
acordo com seus próprios interesses.
2) A “vida externa” na economia textual do Dom Casmurro
Enquanto, no romance, o contexto histórico, se não está totalmente
ausente da cena, tampouco ocupa grandes espaços, em “Um agregado” – ambientado
no ano de 1855 e não em 1857, como no Dom
Casmurro –, as referências à “vida externa” são abundantes, descrevendo os
costumes burgueses de bailes, teatros, óperas, corridas de cavalos, entre
outros, facilitados evidentemente pelo contexto político e econômico: “A vida
externa era festiva, intensa e variada. Tinham acabado as revoluções políticas.
Crescia o luxo, abundava o dinheiro, nasciam melhoramentos” (ASSIS, 1975, p.
264).
Quanto ao Dom Casmurro, o
contexto histórico brasileiro é referido explicitamente no capítulo XXIX, “O
Imperador”, quando Bentinho, retornando do seminário na companhia de José Dias,
se depara com o cortejo imperial passando pelas ruas do Rio de Janeiro e
devaneia em pedir a Dom Pedro II que intercedesse junto à sua mãe para que ele
não se tornasse padre. No capítulo LXIV também há uma referência ao contexto
histórico, desta vez internacional, em que é abordada a disputa entre Espanha e
Estados Unidos pela posse das Filipinas, ocorrida em 1898, servindo, deste
modo, para situar o momento em que o narrador escreve.
Após passar uma noite em claro às voltas com seu manuscrito, Dom Casmurro
– e não mais o Bentinho seminarista – vai à janela, “consultar a noite sobre os
sonhos”, pois havia acabado de escrever sobre o sonho interrompido com Capitu
que tivera no seminário há 40 anos, quando não conseguira mais dormir, tal como
nesse segundo momento. O narrador reflete então sobre a diferença dos “sonhos
antigos” e dos “modernos”: enquanto estes últimos morariam apenas nos cérebros
das pessoas, os primeiros, segundo afirmava o filósofo grego Luciano, citado
pelo narrador, habitavam uma ilha de onde saíam “com as suas caras de vária
feição”. No entanto, “a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas
de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos
Estados Unidos./ Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e
ainda menos a política internacional, fechei a janela e vim acabar este
capítulo para ir dormir”.
Por fim, uma última referência ao contexto histórico brasileiro é a que
aparece no capítulo CXXII, “O enterro”, e que, na economia textual, serve para
assinalar a morte de Escobar: “Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou outro
discutia o recente gabinete Rio Branco – estávamos em março de 1871. Nunca me
esqueceu o mês nem o ano”. Deste modo, embora pouco referido, o contexto
histórico – ou “vida externa”, como diz o narrador de “Um agregado” – não é
menos importante para a economia da narrativa textual. Assim é que se
justificaria a escolha de Machado de Assis em situar o início do romance 40
anos antes de sua data de publicação, ou seja, na época em que o Brasil ainda
era Império, anunciando por este modo enviesado e profundamente irônico o
“império de dúvidas” em que mergulha Bento Santiago, transformado em “Dom
Casmurro” ao final do livro.
Entrincheirado em seu castelo fortificado (“é o mesmo prédio assobradado,
três janelas de frente”), fora do alcance dos “amigos da cidade” e atormentado
pelos fantasmas do passado (“Aí vindes outra vez, inquietas sombras?”), esse
“Dom” específico reina absoluto em seu império de casmurrice, guarnecido por
uma verdadeira tropa de choque: César, Augusto, Nero e Massinissa[2] –
as figuras dos imperadores antigos, que podem estar ali numa alusão ao tema da
traição, como apontado por Marta de Senna (2000), mas que foram, de fato, poderosos
militares. Como quer que seja, as quatro figuras antigas tanto adornam as quatro paredes da sala de Dom
Casmurro, quanto protegem o seu
morador contra a “vida externa”. Assim é que a casa do Engenho Novo, réplica da
casa do “tempo do Império” – a de Mata-cavalos, que o narrador “deixou que
demolissem” –, irá permitir a Dom Casmurro construir, em tempos republicanos, o
seu império particular.
No capítulo XXVI, “As leis são belas”, continuação do capítulo anterior,
“No Passeio Público”, em que Bentinho pede pela primeira vez ajuda a José Dias
para livrá-lo do seminário, pode-se perceber idêntico aproveitamento quanto às
referências à natureza, que surgem como indícios de mau agouro, pois apesar de
Bentinho estar ali a pedir a intercessão do agregado para a sua felicidade,
o céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem a sombra dos céus, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. (Capítulo XXVI, “As leis são belas”.)
Se, em “Um agregado”, as referências explícitas ao contexto histórico
incluem o advento dos carros modernos, que substituíram as “velhas seges” –
“Traquitanas e velhas seges cediam o passo ao coupé, e os cavalos do Cabo entravam como triunfadores” (ASSIS, 1975,
p. 264) –, no Dom Casmurro, o
narrador apropria-se da substituição dos carros antigos pelos novos para
caracterizar a índole de Dona Glória:
Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora. / (...) A sege ia tanto com a vida recôndita de minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro pela “sege antiga.” Afinal minha mãe consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu mão dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente sentimental; era a lembrança do marido. (Capítulo LXXXVII, “A sege”.)
No capítulo XC, “A polêmica”, há nova referência ao contexto histórico
internacional que, aparentemente, não tem aproveitamento para a economia
narrativa. Ao contrário das outras, sempre curtas, esta é uma referência um
tanto longa, que conta a polêmica travada entre Bentinho e o jovem leproso
Manduca, cujas únicas distrações eram “um palmo de rua aos domingos à tarde” e
a leitura dos jornais que noticiavam a guerra da Crimeia, travada de 1853 a
1856, envolvendo a Rússia, de um lado, e a Turquia, a Inglaterra, a França e a
Itália, do outro lado. Enquanto Bentinho defendia a “questão moscovita”, para
Manduca, “os russos não hão de entrar em Constantinopla” – o que lembra a
futura polêmica dos gêmeos Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó (1904), acerca da monarquia e da República no Brasil.
Na polêmica Bentinho/Manduca, cada um defendia ardorosamente o próprio ponto de
vista com peças escritas que eram “replicadas” e “treplicadas”, o que deu novo
alento ao enfermo, meses antes de sua morte.
No capítulo seguinte, “Achado que consola”, a lembrança da polêmica
adolescente se explica por “servir de consolo” a Dom Casmurro, pela constatação
de que proporcionou ao leproso “dois ou três meses de felicidade” – tempo que
durou a “polêmica”. Para o narrador, roído não pela lepra, como Manduca, mas
pelas dúvidas e, quem sabe, pelo remorso, “é alguma coisa na liquidação da
minha vida”. Observe-se, porém, que, ao passo que, na polêmica com Manduca, as
peças escritas e trocadas entre eles têm direito a réplicas, o “manuscrito” de
Dom Casmurro/Bento Santiago fica sem qualquer réplica, uma vez que as vozes que
poderiam fazê-lo já se calaram há tempos: “foram estudar a geologia dos
campos-santos”, no dizer do narrador. Assim, a única “réplica” que se verifica
na narrativa é a da casa de Mata-cavalos, replicada que foi no Engenho Novo.
Aliás, o manuscrito seria, ele próprio, uma “réplica à réplica” – ou seja, uma
resposta ao intento que, conforme diz o narrador, a réplica da casa não teria alcançado:
“atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”.
3) O relato de Dom Casmurro: tentativa de preencher o “centro que falta”?
Em seu estudo sobre a obra machadiana, John Kinnear (apud GLEDSON, 1986) ressalta a existência de um “narrador
não-confiável” que passa a tomar vulto a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas. Basicamente, esse narrador em que
não se pode confiar vale-se da ironia para, afirmando uma coisa, dizer
exatamente o contrário do que afirma. Para Ivo Barbieri, os narradores
machadianos adotam “certos cacoetes de estilo e reforço dos mesmos
procedimentos de ironia e humor, que, no movimento sincopado de seu discurso,
consiste em deslocar o acento do mais importante para o menos importante, do
principal para o secundário – essas espertas armadilhas tipicamente machadianas
que enlaçam leitores desprevenidos” (BARBIERI, 2003, p. 17).
O tema do narrador não confiável tornou-se recorrente entre os estudiosos
da obra machadiana e, em particular, entre os estudiosos do Dom Casmurro. É sobejamente conhecido –
e repetido à exaustão – o célebre parecer de José Veríssimo, contemporâneo de
Machado de Assis: “Dom Casmurro a descreve [Capitu], aliás, com amor e com
ódio, o que pode torná-lo suspeito. Ele procura cuidadosamente esconder estes
sentimentos, sem talvez consegui-lo de todo” (in: MACHADO, 2003, p. 229).
Não se pretende, aqui, aprofundar esse tema, já extensivamente debatido,
mas apenas lembrar que tudo que for dito por Dom Casmurro/Bento Santiago, um
dos menos confiáveis narradores machadianos, é melhor que seja “colocado em
suspenso”, como manda o bom método cético de Pirro, ao qual os próprios
narradores dos romances machadianos parecem aderir, como observa Maia Neto
(1987) em seu estudo sobre a presença do ceticismo nos romances da chamada
segunda fase de Machado de Assis. Como observam Helen Caldwell (2002) e Marta
de Senna (2000), Dom Casmurro, narrador essencialmente embusteiro, pede ao
leitor para não consultar dicionários sobre o seu cognome Casmurro, alegando
que este não possui o sentido que aqueles lhes dão – isto é, “teimoso”,
“turrão” –, mas de “homem calado e metido consigo mesmo”. No entanto, Dom
Casmurro é, de fato, teimoso e turrão – como diz os dicionários em seu sentido
literal –, apegado ao seu próprio ponto de vista. Além disso, longe de ser
“calado e metido consigo”, ele o que faz é divulgar, pela escrita pública de
suas memórias, o acontecido.
Esse narrador não confiável certamente busca induzir o leitor a concordar
com ele – ou pelo menos ficar em dúvida – que Capitu o tenha traído, conforme
já estudado por Silviano Santiago (1978) e outros. No entanto, a sua versão é a
única de que dispomos para saber algo do que se passou, pois, como observa
Massaud Moisés,
Pelo menos assim a vê [Capitu] Bentinho, narrador que é da história da sua vida com Capitu. E nós, leitores, não temos como divisá-la de modo diverso, fiados que devemos ser à visão, única, que nos é oferecida. Se, por ventura, recusássemos a imagem que dela nos transmite o narrador, tangidos pela ideia de este não ser confiável, (...) todo o romance desmoronaria. Podemos por em causa a “veracidade” das lembranças de Bentinho em casos pontuais, mas não podemos negar toda a rememoração do seu passado, sob pena de não termos como aceitar as informações que nos são fornecidas. (MOISÉS, 2001, p. 80.)
Assim, Bento/Dom Casmurro não é confiável porque apresenta a sua visão,
necessariamente subjetiva, dos fatos, eivada de parcialidade, e que, uma vez
que não pode ser contraditada – já que os demais envolvidos nos acontecimentos
estão mortos –, se constitui como versão única e irrefutável, deixando a cargo
do leitor aceitar ou não o seu relato e toda a carga de dúvida que ele contém.
Mas ele não é confiável também porque certamente omite sobre si mesmo, pois “o
mais importante da obra não é o que ela diz, mas o que ela deixa de dizer – o
que Bentinho não consegue dizer nem mesmo na pele amadurecida e aborrecida de
Casmurro” (PIZA, 2008, p. 149). Relega-se assim ao leitor uma segunda e
importante tarefa – a de buscar preencher as lacunas da narrativa, da mesma
forma que faz o narrador, ao ler os “livros alheios”:
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias. (...) Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão. / E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. (...) / É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (Capítulo LIX, “Convivas de boa memória”.)
Dom Casmurro nos diz que escreve um livro para lograr conseguir o intento
que não havia conseguido fazendo reproduzir, no Engenho Novo, a casa de
Mata-cavalos. Ou seja, “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a
adolescência”, tentando reconstruir o passado através de suas lembranças,
rememoradas pelo “monstro de três cabeças” (Gledson) Bentinho/Bento/Dom
Casmurro. Mas devemos nos perguntar por que as “duas pontas da vida” do
narrador estavam “soltas”, já que ele pretendia “atá-las”? Evidentemente porque
entre as duas pontas extremas – a velhice e a adolescência – falta algo que se
perdeu, que não está mais lá, precisamente o “centro”, isto é, a fase da
juventude/idade adulta do narrador. Essa fase havia sido inaugurada com os
nomes abertos a prego no muro por Capitu (Capítulo XIV, “A inscrição”). Com
“estes dois nomes, abertos ao prego, e assim dispostos”, os protagonistas
deixam de ser “Bentinho” e “Capitu”, abandonando definitivamente a infância,
para se tornarem:
BENTO
CAPITOLINA
Essa parte que falta é justamente o objeto/objetivo da narrativa de Dom
Casmurro, tentativa que é de resgatar/atar as “duas pontas” de sua vida, como
modo de lhe restituir, senão “ele mesmo”, pelo menos a serenidade intelectual.[3] No
capítulo LV, “Um soneto”, o narrador nos fala de um soneto que tentou compor na
época do seminário, mas que só lhe tinham vindo exatos dois versos – o primeiro
e o último:
Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas páginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dois versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta. (Não grifado no original.)
Os únicos dois versos que o poeta compôs resumem bem as “duas pontas da
vida” do narrador: “Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!”, o primeiro
verso, e a “chave de ouro” do pretenso soneto: “Perde-se a vida, ganha-se a
batalha!”, modificado para “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”, pois,
afinal, o “imperador” Dom Casmurro ainda vivia, embora tenha perdido a batalha
pela sua própria felicidade.
A ideia do “centro que falta” reaparece, nítida, numa das mais belas
passagens do Dom Casmurro, em que o narrador,
acabando de escrever sobre o sonho interrompido que tivera com Capitu no
seminário, e estando tão insone quanto há 40 anos, deixa de lado o manuscrito
para “olhar para as paredes”, ou seja, para refletir:
Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reprodução da minha antiga casa de Matacavalos. Outrossim, como te disse no capítulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos ofícios do homem é fechar e apertar muito os olhos, e ver se continua pela noite velha o sonho truncado na noite moça. (Capítulo LXIV, “Uma ideia e um escrúpulo”.)
Dom Casmurro, de olhos bem abertos, insone, vai à janela, indagar da
noite por que os sonhos, uma vez interrompidos, “não continuam mais”. Naquele
sonho particular, Bentinho conversava com Capitu, que estava à janela com o
pai.[4]
Quando este desaparece, Capitu inclina-se para fora da janela, Bentinho
pega-lhe nas mãos e, quando estão prestes a se beijar, ele acorda “sozinho no
dormitório” do seminário. Quarenta anos depois, o narrador busca retomar o
sonho interrompido, escrevendo-o no manuscrito de suas memórias, tentando por
este modo continuar “pela noite velha o sonho truncado na noite moça”. Não o
consegue, porém, assim como não havia conseguido “atar as duas pontas da vida”
com a construção da casa, pois falta-lhe não somente Capitu: “Se só me
faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que
perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (Capítulo II, “Do livro”).
Entre as duas pontas extremas – a velhice e a juventude – há, pois, uma
lacuna, fazendo com que essas duas pontas soltas necessitem ser atadas, numa
tentativa de recompor o seu centro, isto é, o espaço entre a adolescência e a
velhice, precisamente a fase da juventude/maturidade do narrador. Assim, na
impossibilidade de preencher o lapso, o pedaço que falta, com a construção da
réplica da casa, o narrador vai tentar se “reconstruir” a si mesmo com o livro
que escreve, buscando preencher suas lacunas particulares, tal como no sonho
interrompido ou no soneto incompleto: “Ora, há só um modo de escrever a própria
essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai
lembrando e convidando à construção ou reconstrução de mim mesmo” (Capítulo
LXVIII, “Adiemos a virtude”).
Para Wolfgang Iser (1996), teórico da antropologia literária, que estuda
a necessidade humana de ficção, a existência humana é essencialmente lacunar,
sendo que há duas “ausências” fundamentais: a origem da vida, impossível de ser
conhecida, e a morte, esse grande vazio existencial, que jamais pode ser
experenciado de fato. Desse ponto de vista, a narratividade buscaria “presentificar as ausências
humanas”, num movimento que é, porém, paradoxal, pois que, por sua vez, a
narrativa também é construída de vazios e lacunas, segundo Iser, e de ventos
que fecundam uma fértil imaginação, segundo Dom Casmurro:
Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Nesse particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e impróprias dos meus quinze anos. (Capítulo XL, “Uma égua”.)
Mas Dom Casmurro não é o único a pretender “atar as duas pontas da vida”
ou tentar se “reconstruir”, preenchendo lacunas: Ezequiel também buscará fazer
isto. Arqueólogo que é, quando regressa ao Rio, realiza percurso inverso ao de
Bento Santiago, saindo do Engenho Novo para caminhadas na Glória, buscando
retomar, no aspecto das ruas e nas fachadas das casas antigas, a infância que
perdera: “Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia;
contava-me as recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se
que muitas destas fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas morressem
meninas” (Capítulo CXLV, “O regresso”).
“Ao cabo de seis meses”, durante os quais Dom Casmurro fez-se “pai
deveras”, Ezequiel expõe a Bento o desejo de pesquisar ruínas antigas na Europa
e na Palestina, o que envolvia um elevado custo financeiro. No entanto, apesar
do valor desembolsado, Dom Casmurro acaba preferindo esse prejuízo financeiro
ao “prejuízo moral” que as reminiscências arqueológicas de Ezequiel poderiam
causar, com seus passeios indesejáveis por locais em que a sua presença poderia
denunciar a semelhança física com Escobar, tão ferozmente ocultada por Bento
Santiago: “uma das consequências dos amores furtivos do pai era pagar eu as
arqueologias do filho; antes lhe pagasse a lepra...” (Capítulo CXLV, “O
regresso”).
6) A marca do duplo: paganismo e
cristianismo no Dom Casmurro
Analisando os nomes dos personagens em Dom Casmurro, Helen Caldwell chama a atenção para a escolha do nome
Capitolina para a protagonista do romance:
(...) na lenda dos santos cristãos, a capadócia Capitolina foi acompanhada em seu martírio por sua criada Erotheis (...) [cujo nome] está aparentemente relacionado com a raiz grega “erot-”, que significa “amor” (...) – um significado que não deve ser negligenciado em Machado de Assis, cujo interesse nos clássicos é evidenciado pela constante alusão em seus escritos. De fato, em sua maturidade, ele pôs-se a estudar grego antigo. Santa Capitolina e sua criada, Santo “Amor”, sofreram seu martírio em 304 d. C. (CALDWELL, 2002, p. 80.)
Capitolina, porém, é um nome que não se liga somente à santa mártir, mas
tem também raízes na cultura latina. Na história de Roma Antiga, Capitolina é a
loba que, segundo a lenda, narrada por Tito Lívio, Virgílio e Ovídio,[5]
teria amamentado os gêmeos Remo e Rômulo, fundadores de Roma, quando estes,
ainda bebês, foram jogados no rio Tibre pelo seu tio-avô Amúlio, que queria se
apoderar do trono de Alba Longa, fundada 400 anos antes por Ascânio, filho de
Enéias, fugitivo da guerra de Tróia.
A lenda da fundação de Roma é bastante cultuada pelos romanos, que deram
o nome de Monte Capitolino – ou Capitólio – a uma das sete colinas que margeiam
a cidade, próxima ao rio Tibres. Uma escultura em bronze representando a loba
Capitolina amamentando os gêmeos foi doada pelo Papa Sisto IV, durante o
Renascimento, para a cidade de Roma. Finalmente, Capitolina também se refere à
tríade de deuses, formada por Júpiter, Juno e Minerva (pai, mãe e filha), cujo
templo, o Capitólio, construído no monte já referido, foi erguido em 509 a. C.
por Tarquínio, o Soberbo, último rei a governar Roma, pouco antes da cidade se
tornar uma República. No Dom Casmurro,
além da explícita referência a Roma, na viagem que José Dias pretende fazer com
Bentinho para pedir a dispensa papal da promessa de D. Glória, o que não faltam
são “tríades Capitolinas”, de onde quer que se observem as relações
triangulares que permeiam a narrativa: Bentinho-Capitu-Escobar;
Sancha-Escobar-Capitu; Sancha-Bento-Capitu; Sancha-Escobar-Capituzinha;
Capitu-Bentinho-D. Glória, etc.
Encontra-se, assim, uma dupla referência no nome de Capitu, que possui
raízes tanto na cultura greco-romana quanto no cristianismo. As referências
pagãs e católicas, aliás, pontuam toda a narrativa, mas combinadas, como uma
dupla marca, colaboram para a construção dos personagens: Bento Santiago estuda
latim desde criança, quando estava prometido à Igreja, mas já adulto torna-se
advogado, profissão cujos jargões, essencialmente “pagãos”, voltados para
disputas judiciais e “embargos de terceiros”, utilizam largamente termos em
latim.[6]
Por sua vez, Ezequiel, portador do nome do profeta bíblico, torna-se
arqueólogo, interessando-se por “ruínas antigas” e pretendendo fazer uma viagem
cujo roteiro incluía a Grécia, o Egito e a Palestina (Capítulo CXLV “O
regresso”), num percurso idêntico ao que realizou Alexandre Magno em suas
conquistas territoriais que, como se sabe, geraram a expansão do helenismo. As
aventuras arqueológicas de Ezequiel culminam com a morte do personagem por
febre tifoide – uma das causas presumidas da morte de Alexandre[7] –
“nas imediações de Jerusalém”, o que, por sua vez, remete à morte de Jesus
Cristo.
Dom Casmurro, personagem que Bento Santiago inventa para si mesmo, também
porta a marca da duplicidade paganismo/cristianismo, pois ao mesmo tempo em que
é um título nobiliárquico, inerente a reis e imperadores, o “Dom”, como lembra
Roberto DaMatta, também é “alusivo a cargos religiosos que implicam castidade”
(DAMATTA, 2008, p. 140). A própria casa do Engenho Novo, esse ser inanimado
que, contudo, parece ganhar contornos de personagem, exibe igualmente a
duplicidade referida, pois, se de um lado, ela lembra um castelo fortificado,
digno dos imperadores romanos que lhe habitam as paredes, de outro lado, com
sua quietude solitária e sua “louça velha e mobília velha”, também toma ares de
um mosteiro, suspenso no tempo e retirado do mundo.
No Dom Casmurro, a máxima
cristã “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”[8]
não se aplica, pois aí paganismo e cristianismo encontram-se perfeitamente
entrelaçados, à maneira das “missas” rezadas por Bentinho, nas quais Capitu
servia de sacristão e a hóstia sagrada era substituída por um doce.
5) O nó górdio Capitu
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (Capítulo XXXII, “Olhos de ressaca”.)
No entanto, é esse menino que quer que o creiamos frágil, ingênuo e
também covarde, que, no capítulo seguinte ao da descrição aterradora de Capitu,
aparenta ter completo domínio sobre essa espécie de “monstro de muitos olhos”,[9]
uma vez que faz e refaz suas tranças a seu bel-prazer, para finalmente atá-las
com uma “fita enxovalhada”:
Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. (Capítulo XXXIII, “O penteado”.)
Esse movimento oscilatório de temor/fascínio, de um lado, e tentativa de
domínio/posse, de outro lado, irá desaguar, na fase adulta, na completa
inabilidade de Bento Santiago em lidar com Capitu, exigindo, por causa dos seus
ciúmes incontroláveis, que ela cobrisse os braços para ir aos bailes ou
deixasse de esperá-lo à janela: “não me ia esperar à janela, para não
espertar-me os ciúmes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades
da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa
infância” (Capítulo CXV, “Dúvidas sobre dúvidas”).
Finalmente, ao dar à luz o filho tão ardentemente desejado pelo casal,
Capitu torna-se para o marido – mergulhado em dúvidas sobre a paternidade de
Ezequiel – não somente uma “esfinge indecifrável”, que “jorra enigmas” por
todos os lados (MOISÉS, 2001, p. 89), mas um verdadeiro nó górdio que, ao
contrário das suas tranças adolescentes, era impossível de ser desatado.
Enredado nas redes igualmente enganosas e dissimuladoras da “Verdade” e da
mentira – onde está uma, onde está outra? –, e incapaz de discernir, seja pela
razão, seja pelos sentidos, sobre o melhor a fazer, Bento Santiago, esse jovem
e abastado senhor, membro da elite econômica carioca de meados do século XIX,
toma uma medida intermediária, ou seja, suspensiva:
(...) eu acabava de achar outra [solução], tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à reparação, se devesse havê-la. Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça. (...) Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil. (Capítulo CXL, “Volta da igreja” e Capítulo CXLI, “A solução”.)
No entanto, o que era para ser um remédio talvez provisório, torna-se
definitivo, sem retorno possível. Como o nó, que, em vez de desatar, Alexandre,
o Grande,[10] corta
com sua espada afiada, Bento Santiago metaforicamente “corta” – em lugar de
desfazer, como fizera com as tranças – o seu nó górdio particular, banindo
Capitu de sua vida e exilando-a sumariamente na Europa. Eis o castigo que o
menino frágil e ingênuo, mas que também sabe, como Otelo, se vingar, inflige a
Capitu e seu filho, exilados que foram em um país frio, separados do convívio
familiar – castigo esse que certamente também “escapou ao divino Dante”, como
diz Dom Casmurro, ao imaginar um castigo que nem o autor de A divina comédia havia pensado:
Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe, para dizer alguma cousa, que era capaz de os pentear, se quisesse. (Capítulo XXXII, “Olhos de ressaca” – não grifado no original.)
Um justiceiro de tal quilate poderia encontrar-se, já, no “menino de
Mata-cavalos”, “como a fruta dentro da casca”, ou como “o menino é o pai do
homem”? É o que poderia nos sugerir a resposta que ele dá a Capitu, quando ela
lhe lembra, a propósito do costume de Ezequiel de imitar as pessoas, que, em
criança, ele também gostava de imitar os outros, “quando se zangava com
alguém”: “Quando me zangava, concordo; vingança de menino” (Capítulo CXII, “As
imitações de Ezequiel”). Como quer que seja, porém, ao extirpar – com uma
espada pagã, e não cristã, como a que consta no Evangelho de São Mateus[11] –
o nó górdio-Capitu, Bento Santiago se depara com um grande e novo dilema, pois,
ao cortar de sua vida o nó que lhe atormentava, ele acaba por cortar a si
próprio, ou, como se diz, “jogou fora a água do banho com a criança junto”,
tornando-se deste modo mero espectro de si mesmo: “Se só me faltassem os
outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto
eu mesmo, e esta lacuna é tudo” (Capítulo II, “Do livro”).
O ciúme de Bento, causa da destruição de Capitu por ele, tem como efeito
a destruição do próprio Bento. Como observa Silviano Santiago, o ciúme do
narrador “antes de ser demonstração da obsessão do sujeito pelo objeto amado,
articula duplamente a pulsão de morte. Ao se autodestruir, o sujeito destrói o
objeto. Ao destruir o objeto, o sujeito se autodestrói” (SANTIAGO, 2008, p.
95).
Diante da intolerável ausência de si mesmo, Dom Casmurro “reconstrói” o
seu império – tal como Nero reconstruiu Roma após o incêndio –, fazendo
reproduzir no Engenho Novo a casa de Mata-cavalos. Mas como este estratagema
falha, ele opta por tentar resgatar-se por meio da palavra, ou seja, pelo
Verbo, reconstruindo-se, recompondo-se: reencarnando-se, em suma. Assim, a
narrativa de Dom Casmurro, ao mesmo tempo em que é uma “peça de defesa”,[12]
conforme observado por diversos autores, é, também, um mergulho do narrador em
busca do que ele “poderia ter sido e não foi”. Ao fim e ao cabo, Bento Santiago
não foi nem cristão nem pagão, ou melhor, não deu a Cesar o que é de Cesar nem
a Deus o que é de Deus. Não serviu a Deus, contrariando a promessa de D. Glória
e abdicando de tornar-se o “protonotário Santiago”, nem serviu a sua
deusa/monstro pagã, de olhos incomensuráveis – Capitu.
Nesta perspectiva, a “chave de ouro” do soneto incompleto – “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!” – surge como inversão das palavras bíblicas: “Quem achar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á” (São Mateus, 10, 39). Bento Santiago certamente não “perdeu a vida” por amor de Cristo, encerrando-se na Igreja – outro foi sacrificado em seu lugar[13] –, mas quando imaginou ter achado a felicidade junto à deusa amada, tudo o que fez foi perder a ambas, encontrando no final, assim como Ezequiel, somente as ruínas de um império sem salvação.
Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Brasília: INL, 1975. (Edições críticas da obra de Machado de Assis. Vol. 12. Apêndice: “Um agregado”.)
BARBIERI, Ivo (org.). Ler e reescrever Quincas Borba. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. [1960]
DAMATTA, Roberto. “De Capitu a capeta”. In: SCHPREJER, Alberto (org.). Quem é Capitu? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 139 a 146.
FACIOLI, Valentim. “Várias histórias para um homem célebre”. In: BOSI, Alfredo (org.) Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. [1991]
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
MAIA NETO, José Raimundo. A condição de observador na obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: PUC, 1987. (Dissertação de Mestrado)
MALARD, Letícia. Dom Casmurro começou na imprensa por José Dias. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, 1º semestre 2000, p. 123-128.
MOISÉS, Massaud. Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix, 2001.
PETIT, Paul. História antiga. São Paulo: Difel, s/d.
PIZA, Daniel. “Capitu é a música”. In: SCHPREJER, Alberto (org.). Quem é Capitu? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 147 a 156.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaio sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978.
___________. “Uma linhagem esquisita”. In: SCHPREJER, Alberto (org.). Quem é Capitu? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 83 a 98.
SENNA, Marta de. Estratégias do embuste: relações intertextuais em Dom Casmurro. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 6, 1º semestre 2000, p. 167-174.
NOTAS:
[1]Alguns
estudos têm se dedicado à comparação das duas versões do Quincas Borba, como os ensaios reunidos na coletânea Ler e reescrever Quincas Borba, organizada por Ivo Barbieri (2003).
[2]
Após a vitória nas Guerras Gálicas em 48 a. C., Júlio César invadiu o Egito,
intervindo na disputa dinástica a favor de Cleópatra, com quem teve um filho,
Cesarion. De volta à Roma em 46 a. C., extinguiu o poder do Senado e se
autointitulou ditador perpétuo, “Pater Patriae”, pondo fim à República Romana.
Após o assassinato de César em 44 a. C. por republicanos, entre os quais se
achava seu filho adotivo Brutus, trava-se uma sangrenta luta pelo poder, em que
Augusto, vitorioso, consagra-se “Príncipe dos Príncipes” e funda o Império
Romano, dando início a uma longa era de prosperidade e esplendor. Nero torna-se
imperador romano em 54; em 63, celebra com o Império Parto, com o qual estava
em guerra desde 58, um tratado de paz que lhe rendeu muita popularidade. Nero
reconstruiu Roma, destruída por um grande incêndio em 68, atribuído
inicialmente aos cristãos, que foram perseguidos, e por fim ao próprio Nero,
que acabou suicidando-se depois de tentar fugir de Roma ao ser declarado persona non grata pelo Senado.
Massinissa, rei da Numídia, norte da África, foi aliado da Roma republicana na
segunda guerra púnica contra Cartago. Obteve expressiva vitória contra o
general Aníbal na Batalha de Zama, em 202 a. C., mantendo-se no trono, ameaçado
antes pelos cartagineses.
[3] A
respeito do emprego, no Dom Casmurro,
da époké, ou suspensão cética do juízo, como modo de se obter a serenidade
intelectual, consultar Maia Neto (1987).
[4] A cena
de Bentinho e Capitu à janela, repetida fora do sonho mais vezes na narrativa,
remete à famosa “cena do balcão” de Romeu
e Julieta, em que os dois apaixonados trocam juras de amor. Observe-se que
a idade de Capitu em 1857 também é a mesma de Julieta: 14 anos.
[5] Autores
bem conhecidos de Machado de Assis, cujas obras fazem parte da sua biblioteca
particular, conforme catalogada por Jean-Michel Massa e Glória Vianna (JOBIM,
2001).
[6]
Observa-se aqui a conhecida ironia machadiana, uma vez que, tão distintas entre
si, as funções de padre e de advogado requerem, igualmente, o mesmo
conhecimento do latim.
[7]
Entre as causas prováveis da morte de Alexandre, o Grande, encontram-se
malária, envenenamento, febre tifoide e até mesmo alcoolismo, este último
decorrente de uma “tendência dionisíaca” herdada de sua mãe Olímpia (PETIT,
s/d, p. 154).
[8] São
Mateus, 22, 21.
[9] Os
olhos e olhares de Capitu, tão perturbadores para o narrador, merecem dois
capítulos com o mesmo título, “Olhos de ressaca”: o XXXII e o CXXIII.
[10] Segundo
as lendas antigas, no século VIII a. C., o rei da Frígia (atual Ásia Menor)
morreu sem deixar herdeiros. Consultado, o Oráculo previu que o seu sucessor
chegaria num carro de bois. Coube a Górdio, um camponês que chegou a Frígia em
seu carro de bois, dar cumprimento à profecia. Para lembrar sua origem humilde,
Górdio amarrou sua velha carroça com um forte nó, impossível de ser desatado, a
uma coluna do templo de Zeus. Após a morte de Górdio, seu filho Midas assumiu o
trono, mas morreu sem deixar herdeiros. Consultado novamente, o Oráculo desta
vez profetizou que aquele que desfizesse o nó da carroça de Górdio dominaria a
Ásia Menor. Nos cinco séculos seguintes ninguém consegue desatar o nó, até que
em 334. a. C., Alexandre III, rei da Macedônia, em viagem pela Frígia, tomando
conhecimento da lenda, vai ao templo de Zeus e, com sua espada, corta o nó
górdio, tornando-se, dali em diante, uma das personalidades “que mais rápida e
profundamente mudaram a face do mundo” (PETIT, s/d, p. 159). Alexandre dominou
não somente toda a Ásia Menor, como o Oráculo havia previsto, mas fundou
inúmeras cidades no Oriente, das quais se sobressai a deslumbrante e mítica
Alexandria, no Egito, expandindo o helenismo grego – cultura em que ele se
embebeu por meio de Aristóteles, seu professor – em grau nunca antes
experimentado. Obtendo vitória em todas as expedições militares que empreendeu,
Alexandre tornou-se o Magno senhor de um império que, com sua morte prematura
aos 33 anos de idade, declina tão rapidamente quanto fora erguido.
[11]
“Não julgueis que vim trazer a paz à terra; vim trazer não a paz, mas a espada”
(São Mateus, 10, 34).
[12]
“A ‘narrativa’ de Santiago não passa de uma longa defesa em causa própria”
(CALDWELL, 2002, p. 99).
[13] É
Escobar quem tem a ideia, finalmente levada a cabo, de oferecer um substituto a
Bentinho, na promessa feita por D. Gloria de fazê-lo padre: “Sua mãe fez
promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote que não seja você. Ela pode
muito bem tomar a si um mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado
um padre ao altar, sem que você...” (Capítulo XCIV, “Um Substituto”).
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