Wednesday, November 07, 2012

Literatura versus filosofia: a questão cética

Isabel Pires

Em seus primórdios gregos, a Filosofia dividia-se em “física”, “ética” e “lógica”. Os primeiros filósofos gregos de que se tem notícia eram os chamados “físicos”, que dedicavam-se ao estudo da natureza, dos fenômenos físicos e astronômicos, etc. Acreditavam que, estudando o Universo e as “leis da natureza”, compreenderiam melhor o seu próprio mundo. Tales de Mileto (640-558 a. C.) e Pitágoras (582-500 a. C.) destacaram-se nessa linha de investigação, que, pela primeira vez, abandonava a explicação mitológica dos fenômenos naturais, buscando uma explicação racional. Os discípulos de Pitágoras, os chamados “pitagóricos”, foram excelentes matemáticos. Eram também astrólogos e místicos. Antes deles, o astrônomo Tales descobriu a constelação da Ursa Menor. De Tales, conta-se a lenda segundo a qual o filósofo, já bastante idoso, foi conduzido para fora de casa a fim de ver o céu, mas, descuidando-se, tropeçou e caiu num precipício, o que levou sua ama a comentar “Tales, como queres ver as estrelas, se não consegues enxergar o que está adiante de ti?” (in: LAERTIOS, 2008).
Com o ateniense Sócrates (499-399 a. C.), o eixo da Filosofia mudou por completo – não apenas geograficamente, passando de Mileto, na Ásia Menor (atual Turquia) para Atenas, mas construindo um novo objeto de estudo. Cerca de um milênio antes que a onda renascentista do Humanismo tomasse conta da Europa, a filosofia socrática já colocava os problemas humanos no centro da discussão, preocupando-se com questões de ética. Pode-se afirmar que Sócrates foi um divisor de águas na Filosofia e por isso mesmo os filósofos dividem-se em “pré-socráticos” – anteriores a Sócrates – e platônicos, continuadores do pensamento de Sócrates, pois foi Platão (428-348 a. C.), entre todos os discípulos de Sócrates, o de maior projeção. A propósito, Platão, o fundador da Academia, avulta na história da Filosofia antiga. Nascido Aristoclés, em homenagem ao avô, passou a se chamar Platão devido à sua compleição física robusta. Era adepto de exercícios físicos e, segundo consta, passava a maior parte do tempo em um ginásio atlético nos arredores de Atenas, batizado de “Academia” em homenagem ao herói Hecádemos. Foi nesta “Hecademia” que Platão escreveu os Diálogos – dos quais se conservaram 36 –, dando vida a vários personagens que argumentavam com Sócrates, protagonista de muitos desses diálogos.
A seguir, a Filosofia passou a tratar de assuntos de lógica, criando métodos que ajudassem o pensamento a se desenvolver. Aristóteles (384-322 a. C.), discípulo de Sócrates e de Platão, desenvolveu a lógica dedutiva clássica, como forma de chegar ao conhecimento científico. Aristóteles baseava-se no princípio de que a sistematização e os métodos devem ser desenvolvidos para se chegar ao conhecimento pretendido, partindo sempre dos conceitos gerais para os específicos. Dono de uma extensa obra, que trata dos mais variados assuntos – desde música e literatura, passando por física, ética, biologia e metafísica até governo e zoologia –, o estagirita, como era conhecido, passou à história dos filósofos como o primeiro a sistematizar o estudo formal do raciocínio.
De modo análogo às divisões da Filosofia, a Literatura também pode ser subdividida em “hiper-realista”, “antilógica” e “cética”. O primeiro tipo englobaria praticamente toda a literatura da atualidade, bem como o Realismo-Naturalismo do século XIX, da qual grande parte da produção atual se origina. “Cópia fiel da realidade”, este tipo de literatura já se identificou com a fotografia e com a ciência, pretendendo ser, com o chamado “romance de tese” do final do século XIX, ao mesmo tempo “fotografia” e “laboratório do real”, analisando as mazelas sociais à luz do Positivismo em voga. Atualmente, a literatura hiper-realista se identifica plenamente com o cinema – “herdeiro tecnológico” da fotografia –, e muitos escritores que seguem a sua cartilha chegam até mesmo a confessar que escrevem seus livros como se fossem roteiros de filmes – já pensando, quem sabe, nas bilheterias das salas de exibição. São exemplos desta seara literária os filmes brasileiros da chamada “segunda onda” do “cinema da retomada”, como “O homem do ano” (baseado no romance O matador, de Patrícia Melo, adaptado por Rubem Fonseca, ele próprio roteirista e romancista), “Cidade de Deus” (do livro homônimo, de Paulo Lins) e o imbatível “Tropa de Elite” (adaptado de Elite da tropa, de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel).
À literatura antilógica pertenceriam os textos inspirados no non-sense. Inaugurada ainda no século XIX com Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, teve continuidade no boom literário da América Latina, na década de 1960, com a literatura fantástica de Jorge Luís Borges e o realismo mágico de Gabriel Garcia Marquez. Ao contrário da literatura hiper-realista, este tipo de literatura não se referencia na realidade, mas tem como “missão” justamente desafiar a noção do que seja “realidade”. Em seus textos, a literatura antilógica costuma apresentar “mundos paralelos”, oníricos, especulares, sempre no sentido de subverter o real. Curiosamente, embora o cinema, com seus “efeitos especiais”, pudesse ser um aliado na produção de muitas cenas desses textos, eles ainda não encontraram aí o seu meio expressivo por excelência, restringindo-se, em sua maioria, ao texto escrito.
Por fim, a literatura cética seria uma espécie de assimilação das duas anteriores, um meio-termo que busca um “terceiro caminho”. Lidando com questões essencialmente humanas, este tipo de literatura não nega a realidade ao seu redor, mas abre a possibilidade para a admissão de percepções diferentes sobre a noção corrente de “realidade”, suspendendo, à maneira cética, o juízo diante de todo julgamento preconcebido. Este “modo” de literatura não tem a preocupação, como a hiper-realista, de esmiuçar a realidade, apresentando determinada “verdade”, nem em contrariá-la com uma “antiverdade” ou “verdade especular”, ou invertida, como a literatura antilógica. Ela simplesmente admite que, em matéria de humanidade, tudo é relativo: como podemos afirmar, por exemplo, que a condição do louco é contrária à natureza? Ou, dito de outro modo, por que a “loucura” seria mais contrária à natureza do que a “normalidade”? E o que seria uma e outra? Essas questões foram abordadas por Machado de Assis, escritor reconhecidamente cético. No conto “O alienista”, o médico Simão Bacamarte constrói a Casa Verde com o intuito de encerrar nela todos os loucos da cidade, mas, ao final do conto, ele mesmo se interna lá, libertando os demais. No romance Quincas Borba, Rubião, rico herdeiro do “filósofo pancada” Quincas Borba – autor da estranha filosofia do “Humanitismo” –, termina seus dias nas ruas tortuosas da provinciana Barbacena, coroando-se a si mesmo com uma “coroa do nada”: “ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas”.
À tradição da literatura cética pertence ainda o Dom Quixote, de Cervantes. A grande questão humana trabalhada nesta obra-prima é, também, o problema da loucura-normalidade, apresentada no par Dom Quixote-Sancho Pança, que funcionaria como espécie de “balança cética”, levando à suspensão do juízo sobre o que seja uma coisa e outra.
Retomando a comparação com a Filosofia, nos idos da Grécia Antiga, os sofistas – notadamente Górgias, com o seu Tratado do Não-Ser – se opunham à ontologia platônica da “Verdade”, buscando contrapor, com seus jogos de palavras, um mundo irreal ao “mundo real das ideias” de Platão. Fugindo desta dicotomia entre a verdade e a falsidade, entre o ser e o não-ser, entre filosofia e ficção – ou mimese, conforme a terminologia platônica –, o Ceticismo, método filosófico elaborado por Pirro no século III a. C., tinha por objetivo suspender o juízo sobre as diferentes doutrinas que, para ele, se equivaliam, uma vez que apresentavam argumentos contrários de igual força. Assim, na “balança pirrônica”, tanto platônicos quanto sofistas mereciam ficar em suspenso. Ou seja, a “Verdade” e a “não-Verdade”, o “Ser” e o “não-Ser”, aos olhos céticos de Pirro, se equivalem, pois, para ele, o melhor seria buscar uma via alternativa, encontrada, democraticamente, aliás, na tradição, nos costumes populares e no comportamento da maioria.

BIBLIOGRAFIA CITADA:

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. (Edições críticas das obras de Machado de Assis, estabelecida pela Comissão Machado de Assis, v. 14).

LAÊRTIOS, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. do grego, introd. e notas Mário da Gama. 2. ed., reimpressão. Brasília: Editora UnB, 2008.

Internet:
http://www.filoinfo.bem-vindo.net/plotinus/node/1461

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