Tuesday, September 18, 2012

O fusquinha amarelo

Isabel Pires

Oficialmente, ainda estamos no inverno, mas os termômetros, beirando os 40 graus, resolveram adiantar – e muito – o verão para os cariocas de todas as nacionalidades. Há também os que preferem fugir do calor, buscar climas mais amenos, ou apenas outras paisagens. O fluxo intenso de carros na ponte, nos finais de semana, lembra que existe, sim, vida além-Rio. O verão fora de época lembra férias. E esperamos todos que, em janeiro e fevereiro, o calendário não resolva adiantar também o inverno.
A lembrança das férias vindouras traz à minha memória férias passadas, de verões passados. Em particular, uma, quando tinha eu 10 anos, mas tão franzina que não me davam mais do que nove. Os anos eram os de 1970 – época de “milagre econômico” no Brasil. A classe média fazia a festa com seus fusquinhas, aproveitando ao máximo o preço relativamente barato da gasolina. Um tio meu, irmão da minha mãe, não era exceção. Desde que a febre dos fuscas começou no Brasil, que ele trocava religiosamente o seu todos os anos. O daquele ano, 1977, era cor de gema de ovo, que havia substituído o anterior, azul-ferrete, que por sua vez substituíra um fusquinha cor de chocolate.
Meu tio e minha tia, ambos professores, viajavam todo final de ano com meus dois primos e a Marta, a “secretária do lar”. Iam pelo Natal e só retornavam quando o ano letivo estava prestes a começar. O percurso era comum a grande parte das famílias brasileiras que transitam entre o “Brasil do litoral” e o “Brasil-sertão”: partiam de uma grande cidade litorânea em direção a outra, bem pequena, no interior no Brasil, para reencontrar a família, os amigos, as origens enfim. Naquele ano – fins de 1977 –, não sei bem o porquê, resolveram me levar.
No dia marcado, a aventura rumo ao oeste começou às cinco horas da manhã. O inacreditável fusquinha amarelo partiu, com meu tio na direção, minha tia ao seu lado, com meu priminho no colo, meu primo maior no bagageiro, atrás do banco de trás, e eu e a Marta, folgadamente no banco traseiro do fusquinha do meu tio. Era simples perda de tempo tentar retirar meus primos dos seus respectivos lugares, o caçula, de dois anos, agarrado como carrapato ao colo da minha tia, o outro, que contava nove anos, ameaçando com unhas e dentes quem se atrevesse a retirá-lo da mala do carro. E assim o fusca seguiu, com a bagagem em cima, sobre a qual se equilibravam ainda duas bicicletas.
O fusquinha ia desbravando vagaroso a solidão da estrada, sem ultrapassar ninguém nem ser ultrapassado. Apenas o vento, zumbindo nos vidros e embaralhando os cabelos, dava-nos a sensação de não estarmos completamente sós. Meu tio parava ora aqui ora acolá, para um café, ou xixi, ou comprar frutas à beira da estrada. Quando meu priminho dormia, minha tia, sempre com o menino agarrado ao colo, trocava de lugar comigo ou com a Marta. Por volta do meio-dia, almoçamos galeto com coca-cola num desses rega-bofes de beira de estrada e seguimos, com meu tio no firme propósito de não mais parar, a fim de não atrasar mais a viagem.
À medida que o fusquinha amarelo-ovo prosseguia, o sol de verão parecia querer devorar tudo com sua boca vermelha e quente. Meu tio, escondendo-se na sombra mínima da pala de proteção do carro, adivinhava o caminho com faiscantes olhos azuis por detrás de grossas lentes de grau. Minha tia, de lenço atado no cabelo e largos óculos escuros – que ainda não eram “retrô”, mas o “último grito” da moda –, a toda hora nos oferecia água. A certa altura, porém, o tempo começou a mudar. Nuvens ameaçadoras, ávidas, apagavam a linha do horizonte à frente, enquanto as primeiras gotas começavam a cair, transformadas depois em uma cerrada cortina de água.
Um caminhão pesado, lento, surgiu em sentido contrário. Ao passar vagarosamente por nós, a imensa roda girou num movimento súbito, arremessando um pedregulho que estilhaçou todo o para-brisas do fusquinha. Não se sabe por qual mágica, minha tia rapidamente arranjou lençóis, cobrindo-nos a todos no banco traseiro – eu, Marta e os dois meninos. Um silêncio medroso reinava em meio ao frio que nos fazia tiritar. Enquanto minha tia se apegava ao seu rosário, meu tio seguia tenazmente, debaixo de cacos de vidro e grossos pingos de água.
O fusquinha pegou um atalho na rodovia e seguiu por uma pequena estrada enlameada até a cidade mais próxima. Um contratempo que nos fez passar um bom pedaço da tarde numa cidadezinha perdida num desses rincões do Brasil adentro, um mundo quase à parte, suspenso entre os parênteses das serras azuladas. Até que o para-brisas novo foi colocado e partimos, as crianças com os bolsos repletos de doces, os adultos já entediados.
Finalmente chegamos ao nosso destino, com o fusquinha amarelo quase totalmente coberto de lama. O lusco-fusco confundia as primeiras luzes da cidade com as luzes das primeiras estrelas que piscavam sobre as casas baixas. À nossa frente, também piscavam, promissoras, as férias, transformadas agora em pedaços de lembranças ora irreais, ora quase palpáveis, às vezes nítidas, às vezes cheias de lacunas, numa memória que “se esgarça, flutua, se decompõe, se compacta. Fios se atam/desatam. Fragmentos somem e reaparecem”,[i] como diz Salim Miguel, em seu belo livro memorialístico, Nur na escuridão.


[i] MIGUEL, Salim. Nur na escuridão. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 165.

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