Tuesday, August 07, 2012

Cinema experimental brasileiro: o filme "Limite", de Mário Peixoto

Isabel Pires


Direção: Mário Peixoto
Ano: 1930-1931
Elenco: Olga Breno (Mulher 1)
              Taciana Rei (Mulher 2)
              Raul Schnoor (Homem 1)
              D. G. Pedrera (Homem 2)

Filmado em 1930 em Mangaratiba, estado do Rio de Janeiro, Limite, único filme concluído do cineasta Mário Peixoto (1908-1992), não foi, decididamente, produzido para a “diversão das massas”. Vaiado durante a sua estreia no dia 17/05/1931, no extinto cinema Capitólio, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, permaneceria desconhecido do grande público brasileiro, tendo o seu valor reconhecido apenas na Europa, onde foi exibido em festivais de cinema de Londres e Paris. Não tendo chegado a ser exibido em circuitos comerciais, manteve-se restrito, no Brasil, às videotecas ou exibições caseiras, que interessam apenas a estudiosos, embora, atualmente, possa ser encontrado em algumas videolocadoras e, ainda, na Internet. A versão acessível é uma restauração, feita por Saulo Pereira de Mello e Plínio Süssekind entre 1959 e 1978, da única cópia existente do filme, e da qual algumas cenas se perderam e outras estão francamente deterioradas. Durante a restauração, a trilha sonora foi incorporada ao filme, pois, antes, era dissociada dele, operada em toca-discos pelo próprio Mário e pelo ator Brutus Pedreira, que também era pianista e fez a seleção musical. No período em que estava sendo restaurado, Limite ficou de fora dos festivais.
Paradoxalmente, porém, Limite – um filme realizado com poucos recursos e baixo orçamento, porém exibindo uma sofisticada técnica de montagem e filmagem foi eleito por diversas vezes como o melhor filme brasileiro já realizado, em votações promovidas pela Cinemateca Brasileira, tornando-se “a primeira e única referência para filmes brasileiros experimentais (...) do cinema mudo” (KORFMANN, s/d) e adquirindo deste modo status de um filme cult lendário. Algumas de suas emblemáticas cenas aparecem em uma sequência do filme O Cinema Falado (1986), de Caetano Veloso, e também no DVD Adriana Partimpim (2004), de Adriana Calcanhoto, na música O Mocho e a Gatinha.
Mudo e filmado em preto-e-branco, o filme de Mário Peixoto se vale de sofisticadas técnicas de filmagem e montagem, notadamente nas tomadas frontais dos personagens dentro do barco, as quais necessitaram de diversos cortes. Além disso, utilizou pela primeira vez no Brasil, material pancromático com alta sensibilidade para escalas de cinza” (KORFMANN), consistindo-se, como observa Saulo Pereira de Mello, em “um filme de montagem, refinado produto de uma arte no apogeu, obra sem concessões e que exige atenção, educação e ‘hábito’ do Cinema Silencioso, do qual é remate e conclusão” (MELLO, 1990, p. 86). A experiência do cameraman Edgar Hausschild, um alemão radicado no Brasil, que atuou com diretores como Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga, certamente contribuiu para a excelência do filme de Mário Peixoto, um jovem diretor de apenas 22 anos de idade à época.
Limite é, também, um filme incomodamente explícito. E é precisamente isto o que o aproxima da estética Expressionista que pertenceu às vanguardas do início do século XX: nele, não há lugar para subentendidos impressionistas nem para leituras nas entrelinhas. Limite é um filme eloquente, que diz tudo o que quer dizer, embora seja mudo. Assim, afinado com os princípios experimentalistas e vanguardistas, o filme de Mário Peixoto trabalha com procedimentos inovadores – como os movimentos “nervosos” da câmera, nas tomadas em terra firme, que contrastam com a quase completa rigidez das cenas do barco, e também as constantes fusões, em lugar da tradicional montagem, como observa Saulo Pereira de Mello (1990), num texto que se tornou referência obrigatória para o estudo de Limite.
Com um enredo aparentemente simples, Limite não é um filme convencional, já que não possui uma narratividade no sentido tradicional, com começo-meio-fim. Invertendo essa lógica, o filme começa em medias-res, ou seja, no “meio” da história. Após a cena de abertura, em que se veem urubus em um ninho contra um céu pálido, a tela é ocupada pelo rosto de uma mulher, que olha tensa e fixamente. Seu rosto está envolto por dois braços masculinos cujas mãos se encontram algemadas. Na cena seguinte, vê-se o mar e logo a seguir novamente surge, em close, o rosto da mulher, que agora não tem os braços em torno da cabeça. Aos poucos, vão sendo revelados os outros dois personagens que a acompanham – outra mulher e um homem – e a situação dramática em que os três se encontram: estão dentro de um pequeno barco à deriva no mar. Pelos trajes esfarrapados e cabelos em desalinho, percebe-se que se trata de náufragos. E pela desolação que aparentam, percebe-se também que eles não têm chances de sobreviver, perdidos no meio do nada, cercados por um mar que parece infinito, sem outro limite que não a da linha vazia do horizonte à frente.
Limite

Como que para se agarrarem a alguma coisa ou sentir que ainda estão vivos, embora sem a menor perspectiva de salvação, os três náufragos contam-se uns aos outros suas histórias de vida, que são trazidas à cena pela técnica do flash-back, alternando deste modo passado e presente. Em oposição à imagem desoladora do barco, as recordações do passado que os três elaboram trazem à cena impecáveis figurinos, que seguem à risca a moda da época: as melindrosas de saias plissadas, a elegância dos paletós, os cabelos perfeitamente definidos em cortes sofisticados. Sobretudo os sapatos, que merecem frequentes tomadas em close, bem como os cabelos masculinos visivelmente modelados por gel. No barco, ao contrário, os cabelos estão desfeitos pela ventania e pelo desespero – um desespero contido, sem alardes, porém; um “desespero composto”: “Olga chora, pouco antes da tempestade e após a morte de Raul – ­ mas é um choro composto, digno, quase medido” (MELLO, op. cit., p. 86). Filmados em close, os cabelos desfeitos dos náufragos são sobrepostos às imagens das copas das árvores e dos coqueiros agitadas ao vento, que surgem em diversos flashes-back das memórias de cada um deles.
Além das referências expressionistas que pontuam todo o filme, evidencia-se ainda o diálogo com a obra de Charles Chaplin – o grande nome do cinema mudo das primeiras décadas do século XX. O filme de Carlitos aparece em uma das cenas de rememoração, enquanto o personagem Homem 2 toca piano (“um filme dentro do filme”). Por sua vez, a cena da mulher com as mãos masculinas algemadas é uma referência a uma foto do fotógrafo húngaro vanguardista André Kertész (1894-1985), publicada na capa da revista francesa Vu do dia 14 de agosto de 1929, e que foi apropriada por Mário Peixoto como inspiração para o seu filme. Segundo o próprio cineasta: “Uma revista [...] que me bateu em cheio nos olhos. (...) eu parei, tomei o choque, tive aquela visão (...) um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada” (in MOROS).


Capa da revista Vu

Limite

       No filme de Mário Peixoto, outra forte referência é à modernidade industrial, que encontrava-se em franca expansão na Europa no início do século XX e que, no Brasil, chegava ainda como “novidade”. As rodas industriais recorrentemente  exibidas, como a roda da máquina de costura e as rodas dos automóveis, que cortam velozes a cena, funcionam, no filme, como contraponto para a natureza que domina todo o espaço como força bruta, e contra a qual o ser humano está em constante e desigual peleja. Assim, ao mesmo tempo em que se vê a intervenção humana da técnica na paisagem, esta é soberanamente dominada pela natureza – à qual, ao fim e ao cabo, o homem sucumbirá. O mar de Limite, neste sentido, representaria a força indomável da natureza – um dos temas tratados pelo Expressionismo, sobretudo na Alemanha –, frente a qual a intervenção humana – aqui representada pelo pequeno barco que oscila sem destino sobre ele – torna-se completamente impotente.
Outras intervenções técnicas humanas aparecem contrapostas à natureza durante todo o filme, como a visão das telhas das casas em oposição à copa das árvores ou aos galhos retorcidos. Mas o cúmulo da intervenção humana na natureza talvez seja representado – ou melhor, simbolizado –, no filme, por um singelo grampo, preso ao cabelo impecável da mulher à máquina de costura – o mesmo cabelo que, dentro do barco, apresenta-se revolto, indomável, incontrolável. A própria atividade da mulher – a costura, que remete à profissão da “modista”, muito em voga na época – também se refere a essa intervenção humana na natureza, já que tem por objetivo recobrir o corpo humano, que vem ao mundo despido e frágil.[1]
No entanto, a discussão deste complexo filme, de forte conteúdo expressionista e existencialista, não se restringe ao dístico homem versus natureza, ou técnica versus selvageria. Desde o seu início, que contrapõe a visão das mãos algemadas que circundam o rosto da mulher à amplitude do mar, Limite é, também, um questionamento sobre a liberdade humana, construído essencialmente sob a forma de paradoxos: no filme, o mar, que comumente é visto como símbolo de liberdade, da descoberta do novo, etc., torna-se, paradoxalmente, a “prisão sem grades” do barco que flutua “livremente” sobre ele. Em terra firme, tudo se move, tudo oscila, tudo passa ligeiro, ao contrário da situação do barco sobre o mar, em que a angústia dos náufragos dentro dele parece ser ampliada de modo desmesurado pelos enquadramentos fixos da câmera. Ali, nada muda, o mar calmo é um reflexo cintilante, os olhares estão obstinada e inutilmente fixos numa linha que apenas oscila ligeiramente, até o final subitamente tormentoso, num mar tragicamente móvel.
A notícia estampada no jornal que a mulher lê, “Fuga da prisão – a cumplicidade de um carcereiro”, remete igualmente ao tema da liberdade versus limitação, bem como a cena do filme em que Carlitos aparece vestido de presidiário, emergindo de um buraco cavado na terra, bem debaixo do nariz do carcereiro que, cochilando, nada percebe. Por sua vez, o peixe aprisionado na cesta que a mulher carrega alude à situação dos náufragos no barco à deriva, privados, tanto quanto o peixe, da liberdade e da opção de escolha. Este tema da liberdade versus prisão será aprofundado de modo radical mais adiante, na cena do cemitério, onde os dois homens se confrontam diante do túmulo da mulher morta, numa cena que conta com a participação do próprio diretor, Mário Peixoto. O cemitério, com seus túmulos erigidos contra uma natureza exuberante, que serve como cenário ao fundo, representaria uma derradeira e definitiva intervenção humana na paisagem, enquanto, por outro lado, o túmulo simbolizaria um limite instransponível do ser humano diante da morte.
A cena em que o Homem 1 atravessa o portão do cemitério é, neste sentido, emblemática da tentativa humana de transposição de limites e sua frustração diante da morte: ao ultrapassar o portão do cemitério, as costas cinzentas do paletó do homem fundem-se com a câmera e somente se dissociam dela quando ele finalmente se distancia do limite do portão – um portal que se abre para a dimensão silenciosa da morte. Não aleatoriamente, também, é nesse cenário de túmulos que parecem se insurgir contra a natureza que se dá o único diálogo que merece legenda no filme. Nessa cena, o diálogo dos dois homens diante dos túmulos, embora  silencioso, feito por meio de legendas,  parece querer romper o limite imposto pelo mutismo solene e irremediavelmente definitivo da morte.
Outros “limites” são apresentados no filme: as cercas de arame farpado, as grades, as paredes, as portas sempre fechadas ou se fechando e as janelas, que tanto são intervenções humanas na natureza, interrompendo a paisagem, como “limites” que põem termo à ação e à liberdade humanas. Paradoxalmente, mais uma vez, o limite definitivo será determinado, no filme, por uma massa amorfa e sem limites definidos: o próprio mar, contra o qual a borda do barco, filmada em close nas primeiras cenas, torna-se uma delimitação inútil, talvez mesmo absurda. A liberdade humana, que aparenta ser tão prezada pelos personagens em suas lembranças, vê-se inusitadamente limitada pelo imponderável – o naufrágio, que independe do livre-arbítrio humano. Assim, a condição humana de fragilidade e impotência diante das circunstâncias, perante a qual a própria razão perde o sentido, é apresentada sob a forma de uma situação-limite com a qual se deparam, involuntariamente, os personagens presos ao barco e à catástrofe irremediável.
No final, a imagem da mulher agarrada à tábua – um tênue limite entre a liberdade sem limites do mar e a prisão em que ela, afinal, se encontra – expressa bem o paradoxo liberdade versus prisão, ao mesmo tempo em que sintetiza os sentimentos de angústia e absurdo existencialistas, aliados à estética expressionista. A tábua a que Olga inutilmente se agarra remete ainda à noção de traço que Jacques Derrida (1930-2004) formularia em L'Écriture et la différence (1967), ou seja, aquilo que, “de um só golpe”, marca uma ausência, ao mesmo tempo em que “produz o espaço da sua inscrição senão dando-se o período da sua desaparição” (DERRIDA, 1995, p. 221).

Limite

Esse filme “esmeradamente planejado, pacientemente construído e meticulosamente produzido” (MELLO, op. cit., p. 85), apesar de utilizar um aparato técnico que lhe permite ser amplamente reproduzido e exibido para um número ilimitado de espectadores, ao optar por seguir a cartilha do cinema experimental possui objetivos outros que não o de simplesmente “divertir as massas”. Embora o filme tenha sido duramente criticado por Glauber Rocha (1963), que o acusou de ser uma “produção da burguesia intelectual decadente”, nem um pouco interessada na História e nas “contradições da sociedade burguesa”, as experimentações realizadas por Mário Peixoto em Limite iriam inspirar o próprio ícone do Cinema Novo, como, por exemplo, as aparições do diretor em cena, a montagem não linear e principalmente a imagem, tomada como signo de uma linguagem propriamente fílmica, que caracterizam o “específico fílmico” da lição glauberiana. Assim, o filme de Mário Peixoto parece se valer do próprio aparato técnico que lhe permitiu ser realizado não somente para desconstruir a noção (estigmatizada) de cinema como produto “massificado”, mas para propor uma renovação na própria técnica cinematográfica, abrindo, deste modo, novos caminhos para a linguagem cinematográfica. Limite é, neste sentido, precursor.

Referências:
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.

KORFMANN, Michael. Mário Peixoto. In: http://www.mariopeixoto.com/limite.htm (acesso em 09/09/2011)
MELLO, Saulo Pereira de. Ver Limite. Revista USP, n. 4, dez./1989-jan.-fev./1990. (in: http://www.usp.br/revistausp/04/12-saulo.pdf)
MOROS, Marina. Limite, de Mário Peixoto: um filme à deriva (ou sobre como restar entre a impossibilidade e a soberania). In: http://www.omni-bus.com/n27/limite.html (acesso em 09/09/2011)

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
Notas:


[1] A esse respeito, a Antropologia chama a atenção para o fato de que somente por meio da cultura, ou seja, por meio do desenvolvimento técnico, a sociedade humana pode se desenvolver, considerando que, em comparação com os outros animais, ditos irracionais, apenas o ser humano necessita de todo um aparato material para garantir a sua sobrevivência.

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