Friday, July 13, 2012

Gilberto Freyre e o mito da democracia racial brasileira

Isabel Pires

O mito narra como uma realidade passou a existir. (Mircea Eliade)

Embora conservador, o pensamento sociológico de Gilberto Freyre1 se contrapõe ao racismo de Oliveira Vianna e de outros sociólogos contemporâneos a ele, que viam no fenômeno da mestiçagem ocorrida no Brasil um fator de degradação da raça brasileira. Para Freyre, ao contrário, a mistura das raças era um fator positivo na formação do povo brasileiro. Na obra Casa grande e senzala, publicada em 1933, o estudioso defende a ideia de que a miscigenação racial teria sido possível, no Brasil, graças a uma “confraternização” entre as três raças formadoras da sociedade brasileira – o português, dominador, o índio, natural da terra, e o negro, vindo da África em posição subalterna.
Ao chegar à nova terra, os primeiros portugueses encontraram um verdadeiro paraíso, abundante em terras, praias bonitas e mulheres nuas. Esquecendo as dificuldades que iriam enfrentar para colonizar de fato esse “paraíso” (cuja abundância era, porém, problemática), partiram para efetivar a mistura entre as raças, inicialmente com os índios, fato que serviu, segundo Freyre, como “amortecedor” para os núcleos de povoadores que chegaram mais tarde. Isto é, o fruto das primeiras miscigenações no Brasil teria servido para que os núcleos de povoadores chegados depois não sofressem um violento choque no contato com tipos extremamente diferentes. O primeiro contato entre o português e o índio, ou a índia, melhor dizendo, foi, para Gilberto Freyre, uma verdadeira festa, uma “intoxicação sexual”, devido à total ausência de preconceito do português com relação à mulher índia. Nas palavras de Freyre, “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua”. E não se importava com isso.
Esse primeiro contato entre portugueses e índios teria se dado em clima de “reciprocidade cultural” e de “confraternização”, materializadas sobretudo na culinária (“gozo do paladar associado ao gozo sexual”). Para Freyre, o português “contemporizou” com o índio, no Brasil, devido à incipiência da cultura deste último, que o salvou do completo extermínio, como o efetivado pelos colonizadores espanhóis nas culturas maia e asteca. Essa “contemporização” entre portugueses e índios seria expressa pela fórmula adotada pelo colonizador: “índio para o trabalho, índia para a reprodução”. Assim, a mestiçagem entre índios e brancos teria tido, como motivo inicial, a absoluta escassez de mulher branca. Posteriormente, ela continuou ocorrendo, como expressão da simples e pura preferência sexual dos brancos pelas “caboclas”. Da mesma forma, estas também preferiam sexualmente os brancos aos de sua raça, fato que, segundo Freyre, Capistrano de Abreu considera como ambição, por parte delas, de terem filhos pertencentes à “raça superior”, uma vez que o parentesco era determinado pela ascendência paterna. Por outro lado, os primeiros colonizadores do Brasil, segundo Gilberto Freyre, eram um “sobejo de gente”, isto é, pertenciam às camadas mais baixas da população de Portugal, fato que explicaria, para o autor, a ausência de preconceito.

Para Freyre, a larga experiência dos portugueses em conquistar novas terras e de se adaptar facilmente ao clima delas foram fatores que, aliados à mistura das raças, acabaram por favorecer a colonização brasileira. Assim, desde o início, a povoação do Brasil teria seguido o próprio modelo português, que se definia pela ausência de um tipo específico, caracterizando-se, o tipo físico português, como verdadeira “união de antagonismos”. No Brasil, o indígena, o português e o negro africano contribuíram, cada um à sua maneira, para a formação de um povo cujas melhores características são a tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros e a intercomunicação entre as diferentes zonas do país. Nos costumes, a mistura racial deixou como herança a culinária tipicamente brasileira e o uso de artefatos materiais de origem indígena (colheres de pau, cestos de vime, esteiras, bolsas e chapéus de palha, etc.).
Embora considere o fenômeno da mestiçagem como um fator benéfico para a formação da sociedade brasileira, Gilberto Freyre procura uma “eugenia” nos mestiços brasileiros, condicionada à sua ascendência branca, o que evidencia certo etnocentrismo subsistente no seu pensamento. Deste modo, ao se contrapor ao racismo de Oliveira Vianna, que procura a eugenia na raça caucásica, o autor de Casa grande e senzala também revela possuir algum grau de racismo. Este texto busca analisar a ideia de “confraternização racial” de Gilberto Freyre, que teria dado origem ao mito da democracia racial brasileira. Este mito, bastante polêmico, já foi desconstruído por autores como Roberto DaMatta, Luiz Eduardo Soares e Roberto Schwartz, entre outros, que consideram, em suas análises sobre a sociedade brasileira, os resquícios de um passado baseado na escravidão, na oligarquia e na dominação de uma raça por outra – fatores que contribuíram diretamente para a grande desigualdade social e econômica que o Brasil ainda enfrenta.


A fetichização das instituições

Em Casa grande e senzala, Gilberto Freyre analisa as condições de formação da sociedade brasileira por meio do estabelecimento de três fatores essenciais: a monocultura, o latifúndio e o trabalho escravo. Essas três instituições, na obra freyreana, tomam dimensões fantásticas, assumindo quase que vida própria, naquilo que se poderia chamar de um verdadeiro “fetichismo das instituições”.2

Uma primeira instituição “fetichizada” por Freyre seria a do latifúndio. Para ele, sem essa instituição, aliada à da escravidão e à prática da monocultura, teria sido impossível a colonização do extenso território brasileiro. Além disso, a instituição latifundiária seria responsável, segundo o ponto de vista do autor, pela degenerescência física do brasileiro, pois a monocultura de exportação, exercida pelos senhores de engenho em largas faixas de terra, gera uma deficiência alimentar uma vez que, cultivando somente cana-de-açúcar, a prática de uma agricultura de subsistência é quase inexistente. Desta forma, numa relação de causalidade direta, o latifúndio, em outras palavras, geraria fome, um dos fatores da inferioridade física do brasileiro.

Outra instituição fetichizada por Gilberto Freyre é a da escravatura. Segundo ele, no período colonial, os escravos eram os únicos “bem alimentados”, pois os senhores de engenho exigiam deles um “esforço útil”, e não apenas um rendimento máximo, alimentando-os com vistas a nutri-los para o trabalho. Os senhores de engenho, por outro lado, padeciam de “fome crônica”, quebrada apenas pela abundância dos dias festivos nas casas-grandes, onde o excesso de carnes se contrapunha ao feijão-com-farinha do cotidiano. E, além de bem alimentados, os escravos não sofriam maus-tratos, recebendo um tratamento “doce” dos seus senhores, costume herdado da influência dos mouros em Portugal. Na visão de Freyre, esse tipo de tratamento para com os escravos teria sido fundamental para a confraternização entre as raças no Brasil.

Gilberto Freyre também fetichiza a instituição da família patriarcal brasileira, dando proeminência à figura do patriarca no Brasil-colônia. A mulher, na vida colonial, seria apenas uma “vítima inerme do domínio ou do abuso do homem, reprimida sexual e socialmente à sombra do pai ou do marido”. Apesar da repressão sofrida pela mulher colonial, esta, porém, era sádica com relação às mulatas, por inveja sexual. Para Freyre, o sado-masoquismo originado na relação opressiva homem/mulher, e que se refletia na relação mulher branca/mulata, extrapola a vida doméstica e atinge a esfera social e política, expressando-se no mandonismo político, no governo autocrático, no “princípio de autoridade” e na defesa da Ordem. Esta extrapolação do sado-masoquismo para a esfera social e política revela, para o autor, a dualidade na formação da cultura brasileira, expressa na polaridade senhores/escravos, doutores/analfabetos, cultura europeia/cultura africana e ameríndia. Deste modo, a formação brasileira ocorre num processo de “equilíbrio de antagonismos”, os quais são suavizados pela “miscigenação, dispersão da herança, fácil e frequente mudança de profissão e residência e fácil e frequente acesso a cargos e elevadas posições políticas e sociais de mestiços e filhos naturais, o cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonas do país”.

Finalmente, outra importante fetichização institucional é feita por Freyre com relação à instituição religiosa. Para ele, a religião é uma “influência perniciosa” capaz de contribuir para a desnutrição do povo, com a exigência das práticas dos jejuns, além de fechar os olhos ao problema da sífilis. Deste modo, a religião teria contribuído diretamente para a degradação física do brasileiro, instigando-o, por um lado, a “passar fome” e, por outro lado, não tomando providências no sentido de diminuir a sifilização que “deforma a plástica e desgasta a energia física” dos indivíduos. Outra “perniciosidade” decorrente da religião, para Freyre, foi o “imperialismo religioso” praticado pelos jesuítas, que teve como consequência direta a dissolução do potencial da cultura indígena.
O elemento religioso, para Freyre, tem ainda a função de ser o “cimento” social que supre a falta de nexo político ou consciência de raça, tanto em Portugal quanto no Brasil. Adotando o critério da “pureza da fé” (segundo o qual era permitida a entrada de estrangeiros no Brasil, desde que professassem a fé católica-apostólica-romana), era ainda a religião que decidia, em última instância, quem seriam os colonizadores do Brasil. Assim fetichizada, a instituição religiosa assume dimensões fantásticas: um ser autônomo, decidindo e influindo em importantes aspectos da vida social, econômica e política do Brasil-colônia.

Em Casa grande e senzala, Gilberto Freyre se detém ainda na análise detalhada da prática religiosa em Portugal e no Brasil. Segundo ele, do mesmo modo que as festividades religiosas, portuguesas ou brasileiras, possuíam um caráter pagão (com danças dentro das igrejas e atribuição de “funções afrodisíacas” aos santos festejados), os quitutes culinários executados pelas “seráficas” freiras também se profanizavam, revelando um caráter essencialmente erótico, explicitado nos nomes – “suspiros de freira”, “papos de anjo” – e na própria forma fálica dos doces. Há, deste modo, uma preocupação de Gilberto Freyre em estabelecer uma associação entre a libido e os prazeres do paladar, que, para ele, seria mediatizada pelo elemento religioso. Segundo o estudioso, o elemento erótico, contido na religião, e que confere a ela um caráter pouco ortodoxo, permitiu ao português “abarcar meio mundo com as pernas”. Por outro lado, a ação imperialista dos portugueses também gerou, na ótica freyreana, um “ônus moral”, representado pela dissolução moral decorrente do intenso contato com as mais variadas raças.


A construção do mito e a fundação do Novo Mundo

A instalação num território equivale à fundação de um mundo. (Mircea Eliade)

Para Gilberto Freyre, a “confraternização” entre as raças no Brasil é uma realidade dada, inegável e indestrutível. Embora sempre tenha negado ter defendido ou mesmo utilizado em seus estudos a expressão “democracia racial brasileira”, em Casa grande e senzala, ele procura, por meio de uma paciente elaboração mítica, demonstrar a origem de tal realidade. De acordo com Pierre Ansart, o mito é um tipo de imaginário social que cumpre uma dada função: “assegurar a reprodução do sistema de desigualdade” (ANSART, 1978, p. 28). Ou seja, a sociedade brasileira, de estrutura econômica, social e política extremamente desigual, ao praticar a “confraternização entre as raças” – conforme a expressão utilizada por Freyre –, surge, porém, como uma sociedade na qual todos, sendo mestiços, têm igual acesso a tudo. Este “acesso para todos” estaria garantido, na ótica freyreana, sobretudo pela grande tolerância dos dominadores para com os dominados.

Segundo Barthes (1978), o mito é um duplo sistema linguístico. Ou seja, o mito “fala” algo, ao mesmo tempo em que utiliza uma primeira fala no seu próprio discurso. Deste modo, ao “falar” que no Brasil há uma tolerância em todos os níveis, e, inclusive e principalmente, entre as raças, o mito da “confraternização racial” brasileira utiliza um discurso prévio: a linguagem da dominação. É a partir de tal linguagem que Freyre elabora o seu mito, sendo capaz, ao mesmo tempo, de justificar, de “imaginar” o Brasil e a sociedade brasileira e, ainda, de construir um Portugal à sua maneira – um Portugal essencialmente “símbolo”, um Portugal-signo de uma linguagem mítica e mitificante.

Estudando os mitos das sociedades ágrafas, Ernst Cassirer conclui que eles “são adornados por elementos incongruentes, fantásticos e bizarros” (CASSIRER, 1963, p. 21). De idêntico moto, o mito elaborado por Gilberto Freyre pode ser comparável aos das sociedades primitivas, ao revelar um alto grau de incongruência e bizarrice, quando dá ênfase exagerada à atuação de diversas instituições do período colonial brasileiro, bem como quando confere um caráter “fantástico” à colonização portuguesa no Brasil.

Ao tentar explicar as origens de uma suposta “confraternização racial” no Brasil, o mito de Gilberto Freyre narra como se deu a própria “fundação” da sociedade brasileira. Deste modo, ele conta, recriando imaginariamente a chegada dos portugueses nas terras tropicais, momento verdadeiramente inaugural da nova sociedade. Em seus estudos sobre religiões primitivas, Mircea Eliade conclui que as religiões surgem da necessidade de se estabelecer uma ordem num caos reinante, e que esta ordem é inicialmente estabelecida pela sacralização de um determinado espaço. Esse ordenamento primordial corresponderia à própria fundação do mundo. Ou seja, um “mundo” só se torna real, ou “funda-se”, na medida em que se diferencia de um caos inicial, o que é permitido pela “sacralização do espaço” (ELIADE, s/d, p. 36).
Segundo Gilberto Freyre, ao chegar às novas terras, os portugueses se depararam com um verdadeiro “caos”, que caracterizava a extrema diferenciação entre a cultura europeia e a indígena. Isto é, os portugueses, habituados a padrões europeus de comportamento, encontram um modelo social oposto a todas as suas regras e valores. Essa total oposição entre os dois modelos sociais leva ao etnocentrismo dos portugueses, que veem o outro com “olhos para dentro”, e tomam a sua própria cultura como “melhor”. Assim, enquanto a cultura europeia representaria a “ordem”, a cultura nativa seria o “caos”.

O primeiro contato dos portugueses com os índios, que teria resultado numa verdadeira “intoxicação sexual”, assume, neste momento inicial, um caráter orgiástico. Para Mircea Eliade, a orgia é uma espécie de combustão equivalente a um “fim de mundo”, uma completa regressão ao caos primordial que necessita de ordenamento (ELIADE, p. 90-91). Deste modo, os portugueses, ao se depararem com um caos reinante, teriam praticado o orgiasmo como forma de levar esse caos ao extremo e, consequentemente, aboli-lo: com o “fim do mundo” também o caos desapareceria. A partir daí, o estabelecimento de uma nova ordem se torna necessidade primordial. Uma primeira tentativa de organização do caos nas terras tropicais terá lugar com a sacralização do espaço, feita através do soerguimento da cruz do Catolicismo conjuntamente à celebração da Primeira Missa. Com isto, o português “funda” um Novo Mundo – reconhecido a partir de então como seu –, enquanto a sua própria ordem começa a ser aí estabelecida.


O imperialismo religioso dos jesuítas

Incesto é característico do caos: implicam-se mutuamente. (Roger Callois)

O “caos” encontrado pelos portugueses se caracterizava essencialmente por práticas sexuais incestuosas, vistas de um ponto de vista etnocêntrico. Isto é, os hábitos sexuais dos indígenas não eram, segundo Freyre, compreendidos pelos portugueses, que não percebiam as regras de exogamia e do totemismo, as quais estabeleciam tabus entre os indígenas. Deste modo, de acordo com os padrões da cultura europeia, as uniões sexuais praticadas pelos indígenas brasileiros tomavam um caráter incestuoso.

Com a sacralização do espaço, efetivada com a realização da Primeira Missa, narrada na célebre carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal D. Manuel I, tem início a tentativa de superação do caos reinante e o consequente estabelecimento da ordem portuguesa na nova terra. Essas ações têm continuidade com os padres jesuítas, que praticam um “imperialismo religioso”. Possuindo alto grau de intelectualidade e pouco senso prático – ao contrário dos franciscanos, que, para Freyre, seriam os catequizadores ideais dos indígenas no Brasil, por levarem em conta aspectos da vida prática –, os jesuítas pretendiam impor aos índios uma moral religiosa intransigente, além de impingir-lhes um severo controle e submissão aos costumes europeus. A ação dos jesuítas tem, porém, resultados maléficos, provocando o despovoamento entre os indígenas, sua degeneração e degradação.

O contato dos jesuítas com a cultura indígena era intermediado preponderantemente, segundo Freyre, pelos “culumins”, as crianças índias, sobre quem os padres exerciam forte influência, como forma de atrair os pais índios para a moral católica. Além do trabalho com os culumins, os jesuítas forjaram a língua artificial do tupi-guarani (que inclui elementos da língua de dois povos indígenas distintos) como veículo de comunicação entre as duas culturas. Deste modo, ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira seria fruto de uma “harmonia” e “contemporização” entre culturas extremamente diferentes, surge por outro lado como um resultado artificial de uma colonização que não deixou de ser severa, baseada em valores morais rígidos, impostos intransigentemente a uma cultura espontânea, que se degradou. Os valores da moral católica portuguesa também se revelam artificiais na medida em que, na prática, tentava-se uma adequação da rigidez religiosa à estrutura das relações indígenas, praticando-se casamentos que seriam, dentro das leis eclesiásticas, considerados incestuosos. Embora os missionários jesuítas revelassem um alto grau de intransigência, preconceito e etnocentrismo, o mesmo não se dava com outros colonizadores leigos, fato que revela a ineficiência da estrutura religiosa no seio da própria cultura “superior”.
A ação dos jesuítas revela, ainda, a apropriação feita por eles dos bens religiosos significativos. Para Ansart, a religião, enquanto imaginário social, define-se “por uma apropriação particular dos bens significativos pelos sacerdotes e, portanto, por uma manipulação especializada desses bem com o poder que a eles corresponde” (ANSART, op., cit. p. 31). Assim, era religião somente o que fosse validado pelos jesuítas, uma vez que eram eles os detentores e únicos “manipuladores especializados” dos bens “realmente” religiosos. A apropriação dos bens significativos confere, portanto, poder, uma vez que os seus proprietários manipulam a “verdade sagrada”.

Além de buscar superar o “caos” encontrado nas novas terras descobertas e instaurar nelas a ordem do colonizador, o imperialismo religioso praticado pelos jesuítas tinha como fim último justificar e explicar essa ordem. De acordo com Pierre Ansart, a religião, como forma de imaginário social, “se propõe fornecer a explicação derradeira da ordem do mundo, justificar a existência social e suas razões de ser” (ANSART, 1978, p. 31). Deste modo, os portugueses, ao se apropriarem de uma nova terra, tinham necessidade de justificar tal apropriação, e procuravam fazê-lo por meio da religião.

Antecedentes portugueses do mito

Em Casa grande e senzala, Gilberto Freyre também procede a uma análise das próprias condições de formação do povo português, que seria, assim como o povo brasileiro, o resultado da mestiçagem entre vários povos diferentes. O elemento “exótico” na formação do povo português não seria o indígena ou o negro africano, como na mestiçagem brasileira, mas o mouro, elemento que mais teria contribuído na formação do povo português, ao lado de povos nórdicos e povos mediterrâneos na Península Ibérica, além de outros invasores, como árabes e mulçumanos.
O autor caracteriza a formação do povo português como essencialmente antagônica – até mesmo no tipo físico, caracterizado pelos “meio-louros” ou “falsos-louros”, que possuíam “dois tipos de pelo”: barba loura e cabelo preto ou vice-versa, resultado do intenso cruzamento entre diferentes povos. Este antagonismo, porém, leva a um meio-termo que encontra expressão na “contemporização” portuguesa, ou tendência para “confraternização” com raças diferentes, miscigenando-se com elas. A pouca rigidez no caráter do povo português, segundo Gilberto Freyre, reflete-se em suas instituições, que “não são rígidas, nem definitivamente estratificadas”, o que confere ao povo português certa “plasticidade” de caráter. Esta “plasticidade” teria origem na gama diversificada e variada de antagonismos étnicos e de culturas, fato que se constitui, para o autor, no próprio “antecedente social” dos portugueses.

Segundo Freyre, a influência moura em Portugal foi transmitida ao Brasil, sendo justamente este elemento que explica “muito do que no Brasil não é europeu nem indígena nem resultado do contato direto com a África negra através dos escravos”. Deste modo, os traços da cultura moura surgem, no Brasil, como “influência da influência dos mouros em Portugal”, ou seja, influência exercida em segunda mão, e que estaria presente sobretudo no uso do azulejo, da telha mourisca, da janela quadriculada, das paredes grossas, e até mesmo no traçado urbano de ruas estreitas, e ainda nos quitutes culinários, oleosos e cheios de açúcar. Além destas influências, o próprio trato “doce” para com os escravos no Brasil seria herança moura, bem como o ideal de mulher (gorda e bonita), o gosto por banhos de gamela e o uso de mantilhas pelas mulheres para irem à Igreja.

Enquanto, no Brasil, a deficiência alimentar, decorrente dos “males do latifúndio”, seria responsável pela inferioridade física do brasileiro, em Portugal esta deficiência irá se refletir no baixo grau de intelectualização dos portugueses. Da mesma forma que, no Brasil, a abundância se limitava a dias festivos nas casas dos senhores de engenho, em Portugal a fartura se destinava apenas aos conventos dos “padres rochenchudos”, últimos representantes da intelectualidade portuguesa (uma vez extintas as ordens religiosas, “a civilização portuguesa ficou acéfala”). A Igreja em Portugal, do mesmo modo que no Brasil, interfere no regime alimentar do povo, incentivando-o aos jejuns, o que contribui para uma maior deficiência alimentar. Freyre explica a interferência da Igreja em Portugal como tentativa de se equilibrar os “limitados meios de subsistência” com os “apetites e necessidades do povo”.

Uma terceira categoria analítica utilizada por Gilberto Freyre na comparação dos dois povos é a populacional. Segundo ele, Portugal sofria o problema crônico da “escassez de pessoal”, fato que teria levado à tolerância da Igreja para com as diversas formas de uniões livres praticadas, desde que dessas uniões resultasse o aumento populacional. A problemática de povoamento se estende ao Brasil: os portugueses, pouco numerosos, recebem a tarefa gigantesca de colonizar um vasto território. Assim, a predisposição do colonizador para a miscigenação é o caminho viável para a superação do problema de escassez de pessoal, miscigenação inicialmente praticada com os índios e depois com os escravos africanos.

Para Freyre, a terra excessiva e o pessoal escasso são problemas que a colonização portuguesa do Brasil tenta solucionar com a adoção da exploração agrícola (baseada na monocultura e no latifúndio) e do trabalho escravo, fatores fundamentais para o aproveitamento e desenvolvimento da nova terra. Sem esses fatores, Portugal certamente não teria conseguido, segundo ele, levar a cabo o processo de colonização na América.

Embora o grande mérito de Gilberto Freyre tenha sido o de reconhecer que, na origem dos problemas brasileiros não se encontram fatores associados à miscigenação racial ou ao clima, como pensavam os sociólogos do seu tempo, mas sim causas sociais possíveis de serem controladas e “corrigidas”, o mito da “confraternização racial”, elaborado por ele, além de ter dado origem ao surgimento da expressão “democracia racial brasileira”, também ajudou a difundir a ideia de que não existe racismo no Brasil, mito essencialmente falso.3 Pois, se isto fosse verdade, evidências de um embate brasileiro entre raças, ou melhor, entre a “raça dominante” e as “raças dominadas” – como a Lei Afonso Arinos, o Movimento Negro Unificado (MNU) e as famigeradas “cotas raciais” nas universidades públicas – não seriam em absoluto necessárias.

Referências bibliográficas

ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Tradução de Áurea Weissenberg. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. 7. ed. São Paulo: DIFEL, 1987.

CASSIRER, Ernest. Antropologia filosofica: introduccion a una filosofia de la cultura. 3 ed. México/Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1963.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução de Rogério Fernandes. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. 1º vol., 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. [1933]

 
NOTAS

1 Gilberto de Melo Freyre nasceu em 1900, em Recife, Pernambuco, aí falecendo em 1987. Cursou as Universidades de Baylor e de Colômbia, nos Estados Unidos, onde, em 1922, defendeu a tese Vida social no Brasil em meados do século XIX, dando início a uma vasta obra.

2 Adotamos aqui o conceito da teoria marxista de “fetichismo da mercadoria”, segundo o qual, no capitalismo, as mercadorias parecem adquirir “vida própria”, tornando-se deste modo, para o consumidor, um “fetiche” (conferir MARX, O capital e outras obras).

3 De acordo com Bagolini (apud CASSIRER, 1963), existem mitos verdadeiros e falsos. Os primeiros seriam aqueles produzidos espontaneamente pela consciência e, por isso, autênticos, enquanto os segundos são impostos por algumas vontades politicamente dominantes.

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