Tuesday, November 29, 2011

Série minirresenhas VII – O Pequeno Príncipe

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Trad. Dom Marcos Barbosa. Prefácios de Amélia Lacombe, Micheal Quesnel e Anne Solange Noble. Rio de Janeiro: Agir, 2004, 125 p.

                                        

(Foto retirada do livro citado)

Não pretendo recontar aqui a conhecida história do principezinho que desembarca no sétimo planeta de suas aventuras, a Terra, para dar a nós, “terráqueos”, lições de amor, tolerância e sabedoria, e que os estudiosos consideram ser fruto dos trágicos tempos da guerra suscitada pelo nazismo. Gostaria apenas de chamar a atenção para o caráter cético deste belo livro, escrito por Antoine de Saint-Exupéry e publicado em abril de 1943, há pouco mais de um ano antes de ele morrer – ou melhor, desaparecer misteriosamente, uma vez que apenas os destroços do avião foram encontrados – em sua última missão como piloto de guerra, em julho de 1944. 
Embora frases como “o essencial é invisível aos olhos” e “o que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar” possam apresentar um viés essencialista, herdeiro da tradição platônica – que afirma que o mundo essencial (e invisível) das ideias é o mundo perfeito da Verdade, ao qual se opõe o mundo das meras aparências enganosas –, é possível vislumbrar na obra-prima do piloto francês alguns aspectos do ceticismo criado por Pirro no século III a. C.
À moda pirrônica, O Pequeno Príncipe “coloca em suspenso” o “mundo dos adultos” para oferecer uma “outra” visão: a visão desarmada e sem “conceitos preconcebidos” de uma criança, que não precisa ser, necessariamente, uma visão infantilizada. Basta ser o ponto de vista de quem respeita as diferenças ou de quem tem a capacidade de “outrar-se” – velha proposta cética, retomada por poetas como Fernando Pessoa, e que Saint-Exupéry exemplifica bem nas páginas d’O Pequeno Príncipe, entre um texto intensamente poético e as delicadas aquarelas, feitas pelo próprio escritor. E quem melhor que o autor para dar aos seus leitores uma ideia suficientemente precisa do menino louro com sua echarpe esvoaçante, dos terríveis baobás ou da cara feia do “homem de negócios” do quarto planeta visitado pelo principezinho?

A pintura, considerada por Platão como uma “obra enganosa”, “afastada em três graus da Verdade”, foi condenada pelo filósofo grego, assim como a poesia e a retórica, como “mera imitação do real”. No livro de Saint-Exupéry, as “gravuras enganosas” possuem, ao contrário, imensa importância. Não tentam apenas “copiar o real”, mas também acrescentar a livre imaginação sobre ele, como o carneiro que o piloto da história desenha para o principezinho. Desconhecido para eles e para nós, o carneiro, contudo, existe, ainda que apenas dentro da caixa desenhada – única coisa que informa sobre ele.
A certa altura, eis que surge a raposa: “Por favor, cativa-me” (p. 99), pede ela para o menino. E porque não possui um “pré-conceito” sobre raposas, o menino diz simplesmente: “Você é bem bonita”. Contrariando a imagem, talvez pré-fabricada por homens “que têm fuzis e caçam” (p. 97), de um ser abominável, esperto e trapaceiro, que só pensa em “caçar galinhas”, a raposa d’O Pequeno Príncipe parece sugerir que, se as aparências enganam, só dispomos delas para nos orientar – outro preceito cético, utilizado, ainda, para construir uma importante personagem da história, senão a mais importante, pelo menos para o menino, que, graças a ela, soube o que é sofrer por amor. 

Tão igual a todas as rosas do mundo e ao mesmo tempo tão específica em sua comovente arrogância, a rosa do pequeno príncipe – que se defende dos perigos do mundo com seus ingênuos quatro espinhos – parece lembrar-nos, ceticamente, de que não devemos somente “enxergar para além das aparências”. Ao contrário, devemos levar em conta precisamente as aparências (as cinco mil rosas num só jardim) e suas limitações, que levam à necessidade dos espinhos, das redomas e também da mordaça – que o menino pede ao piloto para desenhar a fim de impedir que o carneiro, que ele leva igualmente “desenhado” na bagagem, devore a sua preciosa flor, quando ele retornar ao seu planeta. Pois somente assim poderemos, como o piloto da história, nos “consolar um pouco” (p. 121), apesar da dúvida que infinitamente persistirá: “se num lugar, que não sabemos onde, um carneiro, que não conhecemos, comeu ou não uma rosa...” (p. 123).



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