Crônicas de verão I - Essa cerveja é minha!
Isabel Pires
Praia lotada, o vermelho das barracas e cadeiras ajudando a esquentar um sol de 38 graus nas areias escaldantes. Nessas horas, não se pode ler um jornal em paz, tirando o gosto das notícias alarmantes com uma cervejinha bem gelada, que ele infalivelmente surge, implacável, à sua frente: o catador de latinha, com seu indefectível saco cheio de latas de alumínio. Parece enxergar a latinha de longe – talvez o brilho dela, talvez o cheiro, o fato é que ele vem para ficar. Não arreda pé enquanto você não entrega a ele o precioso objeto. Por sua vez, você se certifica bem se a latinha está mesmo vazia, enxuga a última gota e, não sem um quê de contrariedade, libera-a para ele, que, a passos rápidos, vai em busca de outra presa.
Neste verão tem chovido bastante, como, aliás, vem acontecendo, independentemente da estação. Segundo alguns, culpa do controverso “aquecimento global”. De qualquer modo, é preciso aproveitar qualquer brecha de sol na cortina de água que São Pedro resolveu cerrar sobre a cidade. Mas, naquele dia, o disco solar imperando no céu não deixava dúvidas: ia dar praia.
O helicóptero dos bombeiros passa em voo rasante e barulhento, bem junto à água, desalojando os banhistas do seu sagrado conforto. Como pode alguém se afogar, num mar exuberante como aquele? A plaquinha com o aviso “Perigo: correnteza” torna-se inútil, absurda, obsoleta, gerando certo sentimento de impotência que parece refletir-se nas escamas prateadas da água. À noite, o sombrio noticiário na tevê: “um homem se afogou hoje no mar de Copacabana. Os bombeiros conseguiram retirá-lo da água, mas ele chegou já sem vida ao hospital”. O corpo do homem, só de calção de banho, ficará no IML até que alguém o reclame? Turista? Brasileiro? Gringo? Não é doce morrer no mar.
“Enxuguei” a latinha, entreguei-a ao homem das latas e fui “molhar os pés”, com toda cautela possível, depois da passagem do helicóptero de salvamento. Água gelada, onda fortíssima. A plaquinha não mentia. Nem o som das hélices do helicóptero, vermelho como as barracas, que ainda repercutia no quebra-mar. E me vêm à mente a crônica belíssima de Rubem Braga, O Afogado, e a abertura do romance Barco a seco, de Rubens Figueiredo, boas páginas da nossa literatura que tratam de quase-afogamentos no mar. “Ele prefere ser lançado contra as pedras, ainda que se arrebente todo”. Mas por aqui não há pedras, constato. “Existe um limite para tudo”. Exceto para a imprudência, replico comigo mesma.
Esperei algumas ondas quebrarem para retornar à barraca, onde o jornal com as notícias alarmantes e uma ou outra crônica amena me esperava. A latinha também me aguardava, encostada ao pau da barraca, curtindo uma sombra fresquinha. Antes de mergulhar no jornal, desconfiei de que a cerveja ainda estivesse gelada. Aliás, desconfiei mesmo de que houvesse alguma cerveja naquela lata. Peguei-a. Sim, estava pesadinha, mas, pelo tempo em que estive na beira da água, a cerveja devia ter virado um caldo quente. Pelo sim, pelo não, provei. Geladíssima. Virei todo o conteúdo de um gole só.
Praia dá mesmo muita sede. Debaixo da barraca, a salvo do sol e do mar, saboreando minha cerveja gelada, constatei que as ondas, ironicamente, haviam se acalmado. Os curiosos, antes aglomerados à beira-mar, assistindo ao espetáculo do afogamento, já haviam se dispersado. O mar, pacífico, era agora uma imensa fita azul-royal ligando gentilmente entre si os continentes, as línguas, os costumes. Por mais diversos que estes sejam.
Do nada, ele apareceu, reclamando a latinha, cheio de razões que a minha razão desconhecia. Segurei firme o alumínio. “Que desaforo”, pensei. E em voz alta: “moço, a latinha ainda não está vazia. Calma aí”. E ele: “cadê a cerveja?”. “Já disse, a lata ainda está cheia”. “Não está cheia, não”, retrucou, “estava pela metade. Quero a minha cerveja”. E a ficha começando a cair: “Cerveja? Sua cerveja?”. “Sim”, continuou o homem, “essa cerveja é minha. Pedi para deixar aí enquanto dava um mergulho”.
Olhei para meu filho, que a essa altura, assistia à discussão impassível, sentado na cadeira vermelha, exibindo apenas um leve sorriso no canto da boca. O garoto esclareceu: “É, mãe, essa cerveja é dele mesmo. Quando você estava na água, ele me pediu para guardar a latinha debaixo da barraca”.
Sorriso amarelo, sem saber que fizesse: “É mesmo?!”. E para o garoto, que calmamente passava filtro solar: “bom saber. Assim, não deixo você tomando conta da minha cerveja”.
1 Comments:
Oi Isabel Pires!
Acabei esbarrando no seu blog, após ler um ótimo pedaço de texto seu na página do Gustavo Bernardo.
Adoraria publicar o pedaço de texto "Lois Lane" na minha página na internet:
jonasnepomuceno.wordpress.com
no post, colocaria um link para o seu blog...
obrigado pela atenção,
Jonas.
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