Série mini-resenhas IV - Barco a seco
Dando prosseguimento à série... (esta é do fundo do baú)
O tempo e a verdade em Barco a seco, de Rubens Figueiredo
Alguns escritores certamente já passaram pela experiência de escrever um romance a partir de um conto que haviam escrito antes. O romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, por exemplo, originou-se do conto “Baleia”, dedicado ao drama da cachorrinha pertencente à família de nordestinos flagelados pela seca. Outro exemplo famoso é o romance de Machado de Assis, Dom Casmurro (1899), que foi precedido pelo conto “O agregado”. Barco a seco (2001), romance de Rubens Figueiredo, parece também trilhar por esse caminho. No entanto, ao contrário dos exemplos anteriores, não teria sido arquitetado a partir de nenhum conto do autor, aparentando antes se tratar de uma bela homenagem a Rubem Braga, um dos cronistas mais brilhantes da literatura brasileira. Como no conto/crônica “O afogado”, de Rubem Braga, escrito na década de 1960, o protagonista de Barco seco, logo na abertura do romance, luta com o mar por sua vida, diante da força descomunal das águas. Em ambos os textos, o personagem sai da empreitada vitorioso e exausto, repensando os seus valores diante da fragilidade da vida. O quase afogamento do narrador no mar é o mote para Rubens Figueiredo desenrolar a história sobre o enigmático Emilio Vega, um obsessivo pintor de marinhas, que progressivamente torna-se a obsessão de Gaspar, o narrador, um perito em arte que ameça afogar-se - e afogar o leitor - não apenas nas ondas do mar bravio, mas principalmente em suas próprias dúvidas e perplexidades. Assim como Gaspar enfrenta diariamente o dilema de determinar se uma pintura é “falsa” ou “verdadeira”, a narrativa de Barco a seco oscila entre esses dois extremos: o que é falso? o que é verdadeiro? A frase de abertura do livro parece precisar uma linha divisória entre um lado e outro: “Existe um limite para tudo”. Mas logo constatamos que, no romance, o “limite” pode ser apenas uma linha imaginária, demarcada com trêmula precisão num cenário flutuante. A narrativa de Gaspar é alinhavada ora por lembranças da infância de filho adotivo de pais extremamente pobres ora por impressões resultantes dos seus afetos imediatos. Aos poucos, vai surgindo um vasto cenário que não se circunscreve a nenhuma moldura, mas antes rompe com qualquer espécie de “enquadramento”: paisagem e pintura, cena real e cena imaginária acabam por se fundir/confundir. Nesse cenário, é o tempo que preside a todas as ações, conferindo-lhes algum sentido. Longe de ser rigorosamente linear, o tempo, no romance, possui um caráter mágico, transformando as pessoas e as coisas. Pois é apenas mediante a ação do tempo que a pintura de Vega adquire valor, da mesma forma que é também o tempo que revela a ruína física das pessoas, transformadas em “outro” que não si mesmo, e cuja temporária juventude é apenas um “disfarce” da constante erosão da vida. Barco a seco sugere assim o falso/verdadeiro encerrado no próprio tempo, que corrói os botes abandonados na areia salgada, desbotando-lhe as cores à medida mesmo em que se dissolvem, enquanto de outro lado confere cada vez mais valor a esses mesmos botes, imobilizados para sempre na pintura de Vega.
O tempo e a verdade em Barco a seco, de Rubens Figueiredo
Alguns escritores certamente já passaram pela experiência de escrever um romance a partir de um conto que haviam escrito antes. O romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, por exemplo, originou-se do conto “Baleia”, dedicado ao drama da cachorrinha pertencente à família de nordestinos flagelados pela seca. Outro exemplo famoso é o romance de Machado de Assis, Dom Casmurro (1899), que foi precedido pelo conto “O agregado”. Barco a seco (2001), romance de Rubens Figueiredo, parece também trilhar por esse caminho. No entanto, ao contrário dos exemplos anteriores, não teria sido arquitetado a partir de nenhum conto do autor, aparentando antes se tratar de uma bela homenagem a Rubem Braga, um dos cronistas mais brilhantes da literatura brasileira. Como no conto/crônica “O afogado”, de Rubem Braga, escrito na década de 1960, o protagonista de Barco seco, logo na abertura do romance, luta com o mar por sua vida, diante da força descomunal das águas. Em ambos os textos, o personagem sai da empreitada vitorioso e exausto, repensando os seus valores diante da fragilidade da vida. O quase afogamento do narrador no mar é o mote para Rubens Figueiredo desenrolar a história sobre o enigmático Emilio Vega, um obsessivo pintor de marinhas, que progressivamente torna-se a obsessão de Gaspar, o narrador, um perito em arte que ameça afogar-se - e afogar o leitor - não apenas nas ondas do mar bravio, mas principalmente em suas próprias dúvidas e perplexidades. Assim como Gaspar enfrenta diariamente o dilema de determinar se uma pintura é “falsa” ou “verdadeira”, a narrativa de Barco a seco oscila entre esses dois extremos: o que é falso? o que é verdadeiro? A frase de abertura do livro parece precisar uma linha divisória entre um lado e outro: “Existe um limite para tudo”. Mas logo constatamos que, no romance, o “limite” pode ser apenas uma linha imaginária, demarcada com trêmula precisão num cenário flutuante. A narrativa de Gaspar é alinhavada ora por lembranças da infância de filho adotivo de pais extremamente pobres ora por impressões resultantes dos seus afetos imediatos. Aos poucos, vai surgindo um vasto cenário que não se circunscreve a nenhuma moldura, mas antes rompe com qualquer espécie de “enquadramento”: paisagem e pintura, cena real e cena imaginária acabam por se fundir/confundir. Nesse cenário, é o tempo que preside a todas as ações, conferindo-lhes algum sentido. Longe de ser rigorosamente linear, o tempo, no romance, possui um caráter mágico, transformando as pessoas e as coisas. Pois é apenas mediante a ação do tempo que a pintura de Vega adquire valor, da mesma forma que é também o tempo que revela a ruína física das pessoas, transformadas em “outro” que não si mesmo, e cuja temporária juventude é apenas um “disfarce” da constante erosão da vida. Barco a seco sugere assim o falso/verdadeiro encerrado no próprio tempo, que corrói os botes abandonados na areia salgada, desbotando-lhe as cores à medida mesmo em que se dissolvem, enquanto de outro lado confere cada vez mais valor a esses mesmos botes, imobilizados para sempre na pintura de Vega.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home