O explicador
Isabel Pires
— Quando as pessoas morrem, elas vão para o céu?
Ele parecia ter esperado desde sempre por essa pergunta. Por isso, não titubeou:
— Depende. Só se forem anjos. Mas se forem gente, vão para debaixo da terra, pra virar semente.
O menino arregalou os olhos negros, duas bolas de jabuticabas cintilantes.
— Virar semente?!
— É... Nunca ouviu falar em “ficar pra semente”? Então, as pessoas ficam para semente, são enterradas e, se derem sorte, podem até germinar, brotar, criar raízes, sair de novo da terra, com tronco, galhos, copas, folhas. Podem até dar frutos, como um dia deram filhos.
— Árvores? As pessoas quando morrem viram árvores?
— Não, não. Nem todo mundo, esqueceu? Apenas a gente comum. As pessoas que são anjos vão direto para o céu, brincar nas nuvens, tocar harpa, essas coisas que os anjos fazem.
O menino esfregou devagar o pé descalço na grama crescida. Ela estava úmida e cortante.
— Gente quando morre também vira grama?
— Grama? Não, claro que não, disse o homem, meio indeciso.
Ambos desceram o olhar para o chão. Uma fila de formigas passava, em disciplina militar, levando seus eternos pedaços de folhas verdes sobre as cabeças. Ele prosseguiu:
— Grama é comida de bicho. Gente não vira comida de bicho. Gente vira árvore, daquelas grandes. Palmeira, cedro, jacarandá, pinheiro, carvalho...
— Pinheiro? Carvalho?
O menino apertava agora as jabuticabas dos olhos, pensativo.
— Eu conheço um garoto chamado Pedro Carvalho.
— Viu só? É por isso que as pessoas têm esses nomes de árvores. Eu tenho um tio chamado José Pinheiro.
O menino sorriu. Calou-se uns instantes e, talvez porque algum aspecto lhe parecesse ainda obscuro, retrucou:
— Também tenho um amigo com nome de bicho, o Eduardo Leão.
O homem deu uma risada, surpreso.
— É?! Também tenho um amigo com nome de bicho, Júlio Leitão.
— As pessoas quando morrem também viram bicho?
Ele pensou um pouco antes de responder. Por fim, decidiu:
— Não, não. Só árvore. Veja bem: na natureza, há três espécies de seres: as pessoas, as plantas e os bichos. As pessoas podem ser anjo ou gente, e isso faz diferença quando elas morrem. As plantas são de dois tipos: as árvores, que foram gente que viraram semente, e os arbustos. Os bichos são os bichos. Não têm nada a ver nem com as pessoas nem com as plantas.
— Arbustos? O que são os arbustos?, quis saber o menino, um tanto impaciente com o didatismo da explicação.
— Arbustos são as plantas que não são árvores. São as plantas rasteiras, que servem de alimento às pessoas e aos animais. O capim é um arbusto. E o arroz, o xuxu, o maracujá, as abóboras, as flores. A grama.
Mas o menino parecia não esquecer o amigo, Eduardo Leão, e insistiu:
— Por que as pessoas não podem virar bicho quando morrem?
— Porque bicho é bicho, pessoas são pessoas, ora.
O garoto torceu a boca num muxoxo e percebeu que ele não conseguia explicar esse ponto muito bem. Não insistiu. Foi quando tocou a ponta do pé num pedregulho frio, redondo e gasto. Então, perguntou:
— E as pedras?
— As pedras? Bom, as pedras são pessoas que não deram certo, e ficaram encantadas. Petrificadas como estátuas.
O menino lembrou-se de uma pedra que havia no quintal de casa, que parecia um homem sentado, com o rosto carrancudo e pensativo. A pedra com o homem dentro ficava ali parada, debaixo de sol, debaixo de chuva.
— E a água?
— O que tem a água?
— Água não pode ter sido pessoas. Nem bicho – afirmou o menino.
— Não, não pode. A água serve para lavar as pessoas e os bichos. As plantas também. A água lava tudo. Lava por dentro e por fora, e depois vai para o céu. Até os anjos a água lava, e depois volta. A água sobe e desce. E quando bebemos a água, ficamos sabendo que existe o céu, como é lá, o que os anjos fazem e tudo. É porque a água esteve lá. E nos conta dentro da gente. É como um segredo que todo mundo conhece.
Depois de uns minutos de silêncio, o homem por fim decretou:
— É assim que são as coisas. E as coisas estão bem postas e as coisas funcionam assim.
O menino olhou em volta. E viu, para além da grama, a mangueira, carregada de frutos ainda verdes, os pássaros, nuvens. As pessoas ao fundo – homens, mulheres, algumas crianças –, metidas em uniformes brancos como os deles. Um gato cinzento de olhos azuis caminhava indiferente sobre o muro alto, encravado de pequenos cacos de vidros coloridos. Uma mulher regava a pequena horta cultivada a um canto do imenso pátio. Sim, as coisas pareciam bem postas. Mesmo assim, talvez para certificar-se, o menino fez mais uma pergunta:
— E as coisas? O que são as coisas?
Rio, 20-22/05/09
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